O Zero e o Infinito

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O Zero e o Infinito

tro. Assim, Rubashov poderia estar sentado atrás da mesa e Ivanov à sua frente; e dessa posição Rubashov teria provavelmente recorrido aos mesmos argumentos de que Ivanov se valera. As regras do jogo estavam estabelecidas. E só nos detalhes admitiam variações. A antiga compulsão de pensar pela cabeça dos outros mais uma vez o assaltava; punha-se no lugar de Ivanov e se via pelos olhos dele, na posição do acusado, como antes já vira Richard e o baixote Loewy. Via um Rubashov destroçado, a sombra do ex-companheiro, e entendia o misto de ternura e desprezo com que Ivanov o havia tratado. Durante a conversa, de repente ele se perguntara se Ivanov estava sendo sincero ou hipócrita; se estava preparando alguma armadilha ou queria de fato lhe propiciar um meio de escapar. Agora, pondo-se na posição de Ivanov, ele se dava conta de que o outro fora sincero – tanto ou tão pouco quanto ele próprio se mostrara em relação a Richard e ao baixote Loewy. Essas reflexões assumiam também a forma de monólogo, mas por linhas conhecidas; essa entidade recém-descoberta, o interlocutor silencioso, não fazia parte delas. Embora devesse ser a pessoa mencionada em todos os monólogos, ele permanecia mudo, e sua existência se limitava a uma abstração gramatical denominada “primeira pessoa do singular”. Perguntas diretas e meditações lógicas não o induziam a falar; suas intervenções ocorriam sem causa aparente e – muito estranho – faziam-se sempre acompanhar por uma crise aguda de dor de dente. Sua esfera mental parecia composta de partes tão variadas e desconexas quanto as mãos curvadas da Pietá, os gatos do baixote Loewy, a melodia da canção com 131


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