Olhos da Meia-Noite

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Olhos da meia- noite – Sarah Brophy

Olhos da meia-noite Sarah Brophy

Título original: Midnight Eyes Protagonistas: Imogen Colebrook & Robert Beaumont

INGLATERRA, SÉCULO XI O coração sente o que os olhos não podem ver... Filho ilegítimo de um nobre normando, Robert Beaumont tomou-se um dos mais implacáveis guerreiros da Inglaterra. Em reconhecimento por seus serviços à nação, o rei o presenteia com uma propriedade, sob uma condição: que ele se case com a irmã do homem a quem o rei deve favores... Uma jovem que poucos homens concordariam de bom grado em tomar por esposa... Há anos Imogen Colebrook vive isolada, nas terras frias e ermas do norte da Inglaterra, prisioneira do irmão, um homem sádico e cruel, responsável por sua deficiência... e por prometê-la em casamento a um homem perigoso. No entanto, ao conhecer Imogen, o temido cavaleiro fica deslumbrado por sua rara beleza e pela coragem daquela jovem, condenada a viver num mundo de trevas. Decidido a livrar sua noiva dos tormentos do passado, Robert precisa lutar contra o inimigo poderoso que ameaça destruir a frágil felicidade de ambos, e a conduzir o coração de Imogen pelo caminho da luz e do amor...

Digitalização: Silvia Revisão: Tina

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Prólogo Mary calou-se abruptamente. Imogen se voltou com expressão interrogativa diante do súbito silêncio, quebrado apenas pelo crepitar das chamas na lareira. — Perdão, milady, mas o restante do discurso de seu irmão não é apropriado para ouvidos humanos. Imogen riu, condescendente. — Oh, Mary, você não precisa ter pudores em minha presença. Estou acostumada ao palavreado de Roger. Sinta-se à vontade para prosseguir com a leitura da carta porque certamente não estará me dizendo nada que eu já não tenha ouvido dezenas de vezes antes. — Desculpe, milady, mas palavras como essas nunca saíram de minha boca. Não serei capaz de proferi-las. Ao se voltar novamente para o calor do fogo, Imogen ainda trazia um sorriso nos lábios, que foi sendo substituído por contrações de pânico à medida que o significado da mensagem era absorvido. Chegara o momento que ela sempre esperara e temera. Naquele pequeno pedaço de papel, que Mary procurara evitar ler em voz alta, seu irmão anunciava formalmente a decisão de encerrar o jogo com sua vitória total sobre ela. — Eu estou perdida. Agora não há mais esperança para mim. Roger tem em mãos o trunfo que lhe garantirá a vitória. — Imogen suspirou. — Na verdade, eu sempre soube que jamais teria condições de vencer o jogo diabólico que ele armou contra mim. — A esperança é a última que morre, minha menina — Mary retrucou, encorajadora, com a voz da experiência adquirida no decorrer de sua longa existência. — As informações sobre seu noivo parecem interessantes. Parece-me um ponto positivo que ele esteja empenhado em chegar aqui no prazo de sete dias para conhecê-la. — Não posso acreditar que toda essa ansiedade tenha a mim como motivo principal. Por que esse homem, Robert Beaumont, teria tanta pressa em reclamar uma mulher como eu para esposa? O constrangimento impediu Mary de retrucar por alguns segundos. — Não deveria falar assim de si mesma. Imogen baixou a cabeça. — Você se esquece de que Robert Beaumont concordou em se casar comigo, apesar de minha deficiência, porque se tornará senhor destas terras? A essa declaração, Imogen se pôs a andar de um lado para o outro. Eram vinte e um passos

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para a direita e dezessete para a esquerda, contados do centro da lareira. Seu quarto era seu mundo. Nele ela se sentia protegida apesar da escuridão que a oprimia havia cinco longos anos. Embora procurasse não reclamar, em alguns dias a impressão que tinha era de que as paredes estavam se fechando ao seu redor. O isolamento e a monotonia às vezes ameaçavam corroê-la por dentro. Se não fosse pela lealdade e pelo companheirismo afetuoso de Mary, ela não estaria suportando seu drama. Tudo que lhe era mais caro na vida lhe fora tirado por seu irmão. Jamais entendeu por qual motivo ele a permitiu conservar a velha criada. Entre tantas desgraças, Imogen lhe era grata por esse pequeno gesto de bondade, embora se sentisse culpada perante a boa mulher. Porque, no fundo, se considerava cúmplice de Roger por mantê-la cativa. Havia momentos que Imogen ansiava pelo descanso da morte. O fim de sua existência soava como a única maneira de fugir à solidão e ao remorso. Em outros momentos, todavia, a esperança conseguia se infiltrar em seu coração e ela se entregava à sabedoria divina com todas as fibras de seu ser. Em especial, em situações como aquela, em que as ameaças sombrias de Roger disparavam seus dardos e Imogen tentava se esquivar do alvo, em um reconhecimento de sua importância por ter sido criada por algum motivo por uma força superior. Seus olhos a impediam de ler, mas a veemência inicial de Mary em se recusar a transmitir o recado de seu irmão só poderia significar que a ameaça agora era definitiva. Roger queria destruíla pela humilhação total. Robert Beaumont era a arma que ele escolhera para atingir essa meta. Em sua última visita, Roger fizera questão de colocá-la a seus pés e de aterrorizá-la ao narrar os feitos do guerreiro sanguinário que escolhera para se casar com ela, embora tivesse mantido seu plano em segredo até a chegada daquela carta. Robert Beaumont era o filho bastardo de um nobre normando que surgira da obscuridade para se tornar um dos mais perigosos mercenários da Inglaterra. Roger se empenhara em salientar a frieza com que ele desembainhava a espada e duelava com o oponente, não para defender sua honra e integridade, mas em troca de ouro. Nenhum outro matador fazia frente a Robert Beaumont. O preço de seus serviços era tão elevado que apenas o rei tinha condições de pagá-lo. Roger, como homem de confiança do rei William, manipulara a situação até conseguir trazer o guerreiro de volta após quatro anos de luta nas fronteiras com Gales. Roger convenceu o rei a recompensá-lo pelos serviços prestados oferecendo-lhe terras. Apenas em troca ele teria de concordar em desposar a disforme lady Imogen. A vitória de seu monstruoso irmão estava próxima. Roger rira às gargalhadas da última vez que estivera em Shadowsend Keep, obrigando-a a ficar de joelhos, com as mãos juntas em súplica para que ele a poupasse, enquanto declarava que sua vingança estava quase concluída. Vingança! Ela jamais pudera entender o motivo de tanto ódio. Nunca fizera nenhum mal ao irmão para ele detestá-la como detestava. Deus, como desejava voltar a enxergar! O tênue calor do sol em sua pele lhe dizia que estava próxima da janela e que o dia estava bonito apesar de estarem no inverno. — Não tenho como detê-lo — Imogen desabafou. — Sei o que meu irmão pretende, mas

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não vejo nenhuma chance de defesa. — Talvez esse casamento tenha sido determinado pelo rei — Mary sugeriu. — Talvez o rei William tivesse algum motivo desconhecido para querer afastar Robert Beaumont dos campos de batalha. — Eu não acredito nessa possibilidade, mas confesso que não gosto de fazer parte de um plano jocoso, mesmo que parta de nosso rei. A doce Mary tentou consolar Imogen, segurando-lhe as mãos delicadas entre as dela, grossas e ásperas da lida diária. Imogen sorriu e levou-as ao rosto, grata pela dedicação da única pessoa que sabia amá-la sem restrições. — Mary, acredite em mim. A ameaça é real. Posso ouvir a vibração de triunfo na carta de Roger. Ele usou não apenas Robert Beaumont, mas também o rei, para finalmente me destruir e me tirar até mesmo estas terras onde vivo. O tempo está esgotando. Rogo que você se apresse, Mary, e que me obedeça desta vez quando lhe ordeno que deixe estas premissas. O ódio de Roger é insano. De repente ele pode não se satisfazer mais em atormentar apenas a meu corpo e minha alma. Não quero que ele a prejudique, minha boa mulher. Basta o que você já se sacrificou por mim, estando a meu lado todos esses anos. — Eu estou aqui porque quero estar, e aqui pretendo continuar — a aia declarou com firmeza. — Não pode me mandar embora, minha menina, porque nunca me pediu nada. Eu fiquei porque quis. Além disso, para onde eu iria? Não, milady. Quero continuar aquecendo meus ossos cansados diante desse fogo até meu último dia. — Mas Mary... — Não adianta insistir! Não conseguirá se livrar de mim tão fácil! Os olhos de Imogen brilharam de lágrimas. — Sei que estou sendo egoísta, que isto é errado, mas eu me sinto aliviada com sua determinação em ficar. Com você, eu não tenho tanto medo da escuridão. — Um pouco de egoísmo não faz mal a ninguém — Mary tentou brincar. — Eu também estou sendo um pouco egoísta. Gosto de você como a uma filha, afinal de contas, e não gostaria de estar em nenhum outro lugar que não a seu lado. Imogen deitou a cabeça no ombro da velha criada e sentiu que ela lhe afagava os cabelos. Sentaram-se. Nenhuma das duas falou por um longo tempo. — E agora, Imogen? — Mary perguntou com voz rouca. — O que faremos? — Nós esperamos, Mary. E nós rezamos.

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Capítulo I — Até quando você pretende me arrastar por essas terras de ninguém onde só encontro frio e pedras? Robert balançou a cabeça e sorriu consigo mesmo, sem afastar os olhos da monótona paisagem. Matthew tinha uma certa razão em se queixar. Dava a impressão que a travessia sobre o gelo não teria fim. O ideal teria sido deixar o velho homem e também suas infindáveis reclamações em Londres, na hospedaria que eles se acostumaram a chamar de morada. Não fora sua escolha trazêlo. Da mesma forma que não o convidara para ser seu acompanhante, não sugeriria que desistisse de segui-lo e fizesse meia volta. Mesmo porque não adiantaria. Desde que conhecera Matthew, anos atrás, o velho homem nunca voltava atrás em nada do que se propunha a conquistar ou fazer. Estava ainda por encontrar alguém mais obstinado. Embora ele se autodenominasse um escudeiro, acatar ordens não figurava entre seus deveres a cumprir. O que podia ser explicado, mais uma vez, pelo fato de que essa posição também fora conferida por ele próprio. Aconteceu durante a primeira batalha de que Robert participou como cavaleiro. Um grito ecoou as suas costas. O cavalo empinou e ele foi derrubado. Devia sua vida a Matthew. O velho homem saltara de uma árvore para protegê-lo. Do alto, ele vira o inimigo se aproximar sem que Robert percebesse, preparando-se para atacá-lo por trás. Uma batalha sangrenta se seguiu. Matthew lutou com ele contra todos os atacantes até vencê-los, um por um. Desde aquele dia, os dois se tornaram inseparáveis. Robert agradeceu pela intervenção de todas as maneiras que pôde imaginar, pensando que era uma recompensa por seus feitos que o homem esperava. Logo descobri que não. — Deus olha pelos tolos, mas você, em particular, Ele confiou a mim. Com o passar do tempo, Robert se afeiçoou ao escudeiro. Sua dedicação era uma bênção em seu caminho, quando não um problema. Porque o velho homem muitas vezes confundia seu papel e o tratava como um filho. Não apenas no sentido de zelar por ele, mas de lhe ditar as ordens. Assim, Robert tivera de aprender a conviver com a situação, ouvindo seus conselhos quando soavam adequados, ou se recusando a acatá-los de outra forma. O pior defeito de Matthew era se recusar a fazer aquilo que ele não queria. Não adiantava tentar fazê-lo mudar de idéia. Fechar-se aos resmungos e protestos dele, portanto, fora um aprendizado necessário. Robert se inclinou sobre o cavalo cinzento, a que dera o nome de Dagger, e afagou seu pescoço. Temera que o garanhão não fosse suportar a hostilidade do tempo. Ventos gélidos cortavam as montanhas e os viajantes. Dagger enfrentava os terrenos acidentados e as intempéries

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com força e garbo. Acostumado que estava a enfrentar desafios dos homens e da natureza, Robert não se importaria se ainda fosse demorar a alcançar seu destino. Ansiava pela chegada em nome dos homens que o acompanhavam, que considerava amigos além de servidores. Para que pudessem repousar. Ele próprio não tinha motivos para celebrar o momento por mais que seu lado ambicioso lhe dissesse que aquela seria a realização de todos os seus sonhos, sua recompensa por anos e anos de trabalho duro. Um suspiro brotou do fundo do peito de Robert a esse pensamento. Esses sonhos se baseavam na posse de terras que pudessem garantir seu futuro. Porque terra era sempre terra. Não perdia jamais seu valor, fossem tempos de guerra ou de paz. Ele viera ao mundo, sem ter eira nem beira, mas jurara não deixá-lo da mesma forma. Não esperava, porém, que o preço de sua conquista viesse atrelado a uma aliança de casamento. Porque para ter o registro da propriedade em seu nome, ele teria de aceitar "a dama disforme" como sua esposa. A cada vez que essa chantagem lhe vinha à mente, Robert cerrava os punhos, tal a raiva que o assolava. Porque sabia que fora um joguete nas mãos do rei e de seu homem de confiança e que não deveria ter aceitado a ultrajante proposta. Mas o ditado dizia para não chorar sobre o leite derramado. Não podia voltar atrás. Em pouco mais de vinte e quatro horas, ao pôr-do-sol, ele ganharia um título de senhor de terras. Do alto da montanha, a neve cobria os campos com um manto branco. As árvores desprovidas de folhas se assemelhavam a linhas escuras riscando a paisagem. Em contraste com a irritação que o cenário provocava em Matthew, o peito de Robert se dilatava em júbilo. A cada passo de seu cavalo, ele estava mais perto da realização de seus sonhos de menino, e mais fascinado pela nova vida que o esperava. Por sua vontade, Robert estaria contando a Matthew sobre seus planos para o futuro. Mas o velho homem não estava aberto a confidências. Mal dava para ver suas feições enterradas entre as peles que ele adquirira em uma das cidades por onde passaram. De seu corpo, dava para ver apenas as mãos grandes e roxas de frio, e os olhos reprovadores. — Você ainda não me disse, rapaz, por que motivo me arrastou para este fim de mundo? Robert fechou os olhos por um instante em busca de paciência. — Eu não o arrastei a parte alguma. Quem pode obrigá-lo a fazer algo contra sua vontade? Duvido que alguém tenha essa capacidade! — Admita que cometeu um erro, rapaz. Em meio a essas pedras congeladas, só encontrará animais inúteis e camponeses hostis. A observação obrigou Robert a refletir. Uma súbita apreensão o fez passar uma das mãos pelos cabelos escuros e espessos. — Eles estão mais arredios à medida que avançamos para o norte, não estão? — Arredios? Eu usaria outro termo. Como ferozes, por exemplo. — Matthew se afundou ainda mais nas peles e prosseguiu com ironia: — Em minha modesta opinião, o casamento com a dama disforme foi sua punição por ter enfurecido o rei com sua excelência, mas depois de ver o

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povo que habita essa região, eu não tenho tanta certeza. A indignação tomou conta de Robert. Sem tentar entender o porquê dessa reação, ele se sentiu no dever de proteger a mulher que lhe fora dada como esposa. — Não quero que a chame assim — Robert protestou. — Imogen será minha esposa e todos deverão se dirigir a ela como lady Beaumont. Matthew franziu o cenho diante da súbita mudança operada em seu tutelado. — Por que essa atitude de defesa, rapaz? Ainda nem sequer conheceu a moça. Ela ainda não se tornou sua esposa para que a chamemos de lady Beaumont! — O porquê não importa. Ela será minha esposa e sua honra deve ser respeitada. — Robert sentiu, sem precisar ver, o olhar indagador de Matthew voltado para ele. Evitou sustentá-lo. A verdade era que não saberia explicar seu impulso de defender a noiva. Jamais seria capaz de morrer pela honra como tantos incautos que recorriam aos duelos. Preferia seu modo cínico de encarar a vida. Aqueles que se atreviam a cruzar seu caminho, ele os afastava. Fosse por bem ou por mal. De repente, as vésperas de unir sua vida a de uma mulher desconhecida, ele se surpreendia em defesa de uma honra até então inexistente, pela estranha necessidade de zelar pela dignidade de uma mulher que nem sequer conhecia. Seu comportamento só poderia ser interpretado como irracional. Tão fora de propósito que Matthew se calou pela primeira vez desde que partiram. Irritado até mesmo com o barulho provocado pelos cascos dos cavalos, Robert se obrigou a aceitar que aquele tipo de reação não era normal. Quanto mais raciocinava a respeito, mais estranha lhe parecia. Matthew e ele nunca tiveram reservas um com o outro. Falavam sobre tudo. De repente, ele descobria que não queria discutir sobre sua noiva nem sequer com seu melhor amigo. A dama disforme. Não permitiria que continuassem se referindo a ela daquele modo pejorativo. Algo acontecia dentro dele cada vez que falavam com desprezo sobre Imogen. Não estava mais se reconhecendo. Quanto mais tentava compreender a situação, mais se confundia. Afinal, o que um bastardo e mercenário como ele entendia de honra? Alguém que empregara os últimos anos de sua vida matando por um rei que desprezava? Alguém que vivera sua vida de acordo com seu próprio código de leis e nunca se importara que essas leis não correspondiam ao código observado pelo resto do mundo? E que nunca sentira necessidade de justificar suas ações a não ser a si mesmo? Quando sua transformação tivera início? O que mais o surpreendia era o impulso de zelar pela segurança de lady Imogen. Nunca antes se permitira governar pelas emoções. Nunca se importara realmente com ninguém. Nunca conhecera o amor. E a verdade era que jamais sentira falta desse sentimento. Mas que ninguém mais, a partir de agora, ousasse se levantar para ferir a sensibilidade da pobre criatura afastada covardemente das distrações da corte para ser esquecida naquele deserto de gelo. Ou teria de responder a ele. — Detesto interromper seus devaneios — a voz de Matthew penetrou pelos pensamentos sombrios de Robert —, mas não lhe parece que aquele amontoado de pedras pode lhe pertencer? Os olhos de Robert adquiriram brilho e entusiasmo. Suas terras. Finalmente ele teria um lugar para morar que poderia chamar de seu! A torre se erguia alta e lúgubre contra o céu cinzento.

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— Eu não fazia idéia de que os domínios do rei se estendiam até o extremo norte, mas é de meu conhecimento que os saxões não empregavam pedras como material de construção — Robert retrucou. — Sou obrigado a concordar com você — Matthew admitiu. — A torre parece ter sido erguida recentemente. As pedras são novas. O lugar, no entanto, não deve ser habitado. — Está chamando minha nova moradia de inadequada? — Robert caçoou. — Não, rapaz. Estou chamando aquela pilha de pedras de inadequada. Tenho certeza de que a casa que o espera é digna de um grande guerreiro. Robert riu, bem-humorado. — Não me adule, velho homem. Esse procedimento não combina com você. — Quem está adulando quem? — Matthew retrucou. — Esse procedimento faz parte das regras da sobrevivência. Se meus elogios atingirem seu ego, talvez minha permanência neste frio glacial seja abreviada. — Nesse caso, não há tempo a perder. — Antes que acabasse de falar, Robert esporeou o cavalo e se afastou em pleno galope. Matthew suspirou. Faltava-lhe juventude e disposição para imitar seu protegido. Quanto mais se aproximavam da torre de pedra, mais estranha ela parecia. Elevava-se em desgraciosa linha reta para o alto, sem que desse para ver a base, escondida no meio da floresta. Embora a construção fosse recente, algumas pedras haviam se soltado da estrutura. De longe, fazia pensar em uma ruína. Robert franziu o rosto. — Esta não deve ser Shadowsend Keep. — Concordo com você — disse Matthew, agora perto o suficiente de Robert para ouvir o que ele dizia. — Talvez suas terras fiquem além daquele bosque. Estou vendo fumaça. Robert olhou na direção que o amigo apontava e vislumbrou as finas espirais de fumaça subindo lentamente e se confundindo com o céu cinzento de inverno. — Então avancemos — disse Robert em altos brados para se fazer ouvir sobre o vento. Uma espessa camada de neve cobria as pequenas edificações que compunham o local. O telhado só era visível na parte onde deveria estar a lareira. A casa se apresentava em mau estado de conservação, mas ao menos parecia ter condições para servir de abrigo. — Confesso que estou aliviado em saber que em breves instantes poderei aquecer meus ossos — declarou Matthew, apeando como Robert já o fizera. — Não há postos de vigilância. Nesse estado, seria impossível defender a propriedade. Três ou quatro galinhas ciscavam no terreiro na esperança de encontrarem algo para comer. Robert sentia o peito crescer com uma alegria indescritível. Não era muito. A necessidade de reparos era urgente. Mas o cheiro de madeira queimada fornecia uma atmosfera de bendito

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aconchego. Seu lar. Com os nós dos dedos, Robert se fez anunciar aos moradores. Ouviu passos apressados do lado de dentro. Em seguida, silêncio. Segurou a aldrava e bateu com mais força. — Não temos nada para oferecer. Vá embora! Os dois homens se entreolharam. — De defesa, parece que os moradores entendem — Matthew zombou. O timbre de Robert adquiriu as características de seus gritos de guerra. — É Robert Beaumont quem anuncia sua chegada e que está sendo deixado a congelar na soleira da própria porta. Abra imediatamente porque esta casa agora é minha por direito! Dessa vez, ao trocarem um novo olhar, Robert e Matthew exibiam largos sorrisos. A agressividade fora substituída por pequenos gritos de espanto que beiravam o cômico. Dentro de segundos, a pesada porta foi aberta por uma jovem, intensamente corada, com um lenço amarrado à cabeça. Ambos se entreolharam, surpresos pelo contraste de sua baixa estatura diante do enorme barulho que fez. — Queira perdoar, milorde, mas com esses normandos brutos perambulando pelas vizinhanças, todo cuidado é pouco. Antes que Robert pudesse responder, a porta foi fechada em sua cara. Matthew gargalhou. — O que faremos agora, senhor cavaleiro do rei? Derrubamos ou queimamos a porta? A noite está se aproximando e a temperatura baixando ainda mais. De braços cruzados e cenho franzido, Robert se obrigou a reunir paciência para enfrentar a situação inusitada. Estava começando a se irritar e a se decidir a tomar uma atitude drástica quando a porta foi aberta, de par em par. Nem ele nem Matthew hesitaram, com receio de que a oferta de hospitalidade de repente fosse retirada. Matthew seguiu em frente, com as mãos estendidas, deslumbrado com a generosidade das chamas que ardiam na imensa lareira. Robert permaneceu onde estava, na entrada do hall, tentando adaptar a vista ao escuro, quebrado apenas pelo fogo na lareira e pela chama de uma única vela, que quase se apagou com a rajada de vento que a atingiu com o movimento brusco da porta ao ser novamente fechada. Não havia janelas por onde pudessem entrar os últimos resquícios de claridade. Robert vasculhou cada recanto até adivinhar, mais do que ver, a sombra da mulher que permitira sua entrada. Seus cabelos eram grisalhos. Pela simplicidade do traje, Robert teve certeza de que ela era uma serviçal, assim como a jovem que lhes abrira a porta. Sua postura, no entanto, era o de uma mulher acostumada a tratar os outros com autoridade. Acostumado a confiar em seus instintos, após toda uma vida de aprendizado em campos de batalha, Robert relaxou sua defesa. Apesar do aspecto severo, ele soube que aquelas mulheres não constituíam ameaça. Sorriu como uma forma de agradecer pelo acolhimento. A velha mulher,

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porém, não retribuiu seu gesto. — Seja bem-vindo a Shadowsend Keep, milorde. Peço que nos desculpe. Somos dez mulheres a viver nesta propriedade. O número não é suficiente para manter o local em ordem, mas acreditamos que daremos conta de servi-lo. — Qual é o seu nome e qual a sua função aqui? — Meu nome é Mary. Sou a dama de companhia de lady Imogen, mas também exerço a função de governanta, na ausência de alguém com maiores atributos para o cargo. Robert assentiu. Nada conhecia sobre a administração de um castelo, casa ou choupana. Esperava que aquela mulher e também as outras continuassem a cuidar de seus deveres, sem esperar por sua ajuda ou direção. — Pode voltar para seus afazeres — Robert a dispensou, de costas, para tentar parecer mais seguro de si do que se sentia. Fossem lhe dados vinte soldados para comandar, e ele não teria hesitado. Um súbito pensamento, contudo, o fez girar novamente nos calcanhares. — Espere um instante. — Senhor? — Por que a própria lady Imogen não veio me receber? — Apesar de seus parcos conhecimentos sobre etiqueta, Robert sabia que as regras da hospitalidade mandavam que os donos da casa zelassem pessoalmente pelo conforto dos visitantes. Mary baixou os olhos, desconcertada por um instante. — Milady está repousando e eu recebi ordens para não incomodá-la. Ainda junto ao fogo, de costas para Robert, Matthew tornou a zombar. — Arrumaram uma esposa perfeita para você. Uma mulher que consegue dormir enquanto o marido luta contra as intempéries para sobreviver. A mulher teve a decência de baixar a cabeça e se mostrar humilde a essa observação. — Temos muito a conversar, ela e eu — disse Robert. — A começar de agora. Acorde-a e avise que sir Robert a aguarda no hall. Os olhos de Mary falaram por ela. Sua perplexidade atingiu Robert, deixando-o confuso. — Perdão, milorde, mas lady Imogen nunca deixa seus aposentos. A possibilidade de Imogen não ser capaz de se mover jamais passara pela mente de Robert. A legendária deformidade de sua jovem noiva atingiria suas pernas? Uma súbita náusea se apoderou dele. Não era da espécie de homem que se impressionava com sangue, com morte. Presenciara cenas de provocar horror nos mais fortes guerreiros, sem estremecer. Aprendera a conviver com seres mutilados com naturalidade. O bem e o mal faziam parte de seus dias. E de seus pesadelos. Mas nunca antes ele soubera de uma mulher tão afetada por suas injúrias que não se permitisse deixar os limites de seus aposentos.

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Os guerreiros exibiam suas cicatrizes como insígnias de coragem e de bravura. Como um símbolo de vitória. Ele estava acostumado a enfrentar a dor. Mas não esse tipo de sofrimento. Muito menos da parte de uma mulher. Por sua vontade, a deixaria em seu túmulo para que continuasse morta em vida, mas seu recém-conquistado senso de honra o impedia de tomar essa atitude. — Se lady Imogen está impedida de vir me receber, então eu irei cumprimentá-la. Leve-me até ela. Mary inclinou a cabeça em concordância. Apanhou o castiçal que estava em cima da mesa e indicou um corredor às escuras. — A luminosidade no andar superior não é suficiente — Mary explicou, como se tivesse ouvido a indagação muda de Robert. — E a escada se encontra em mau estado. Depois de sofrer algumas quedas, nós aprendemos a recorrer à ajuda de velas. Os degraus rangiam a cada passo. Quanto mais Robert tentava se locomover com cuidado, maiores eram os guinchos contra o silêncio. Antes de pensar em tornar suas terras produtivas, seria preciso consertar os estragos causados por longos anos de abandono. Por fim, Mary se deteve diante de uma das portas. O modo como o encarou foi tão intenso que ele quase não conseguiu sustentar seu olhar. De repente, ela murmurou palavras enigmáticas. O que teria desejado dizer com sua insinuação de que a vinda dele talvez pudesse reverter em algo positivo? E com o modo abrupto com que o impediu de abrir a porta, segurando-o firmemente pelo braço? — Imploro que seja paciente e gentil. As últimas semanas foram um martírio para ela. Medo. Robert se vangloriava de provocar medo em seus adversários. Mas não viera para o norte para guerrear. Não queria assustar ninguém. Em especial sua noiva, a mulher deformada que lhe fora destinada como esposa, e que o amedrontava, também, de um modo diferente de tudo que já experimentara, porque, a partir do próximo minuto, passaria a integrar sua vida. As palavras de alerta de Mary ainda o faziam hesitar. Ele tentou se colocar no lugar de Imogen. A pobre criatura não sabia o que esperar do homem a quem teria de entregar sua virgindade. Como ele deveria se comportar? Era perito no uso de armas e na conquista do inimigo. Nada conhecia, porém, sobre a arte de conquistar uma mulher. Subitamente irritado consigo mesmo e com as circunstâncias, Robert decidiu colocar um fim à hesitação. Não esperava pelo silêncio sepulcral que se seguiu a seu anúncio. Aguardou alguns instantes e cogitou desistir, mas a determinação em levar seu propósito a frente fez com que vencesse a barreira. Em contraste com o escuro dos ambientes, a intensa luminosidade do quarto o ofuscou. Passaram vários segundos até sua vista se adaptar à mudança, o suficiente para ele divisar a figura parada no outro extremo. O coração de Robert acelerou ao ver a jovem avançar em sua direção e se revelar em cada surpreendente detalhe. A impressão que teve foi a de que um anjo havia descido dos céus. Os cabelos longos e pretos caíam sobre seu corpo como uma aura, delineando a cintura estreita e as curvas generosas dos quadris, realçando a sensualidade dos seios. A pele era alva e

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acetinada como uma pérola. Os lábios pareciam vermelhos como rubis. Ereta, com a cabeça erguida, em postura soberana, ela não alcançava nem sequer a altura do queixo dele. Sua beleza parecia etérea. Ele, tão forte e tão grande, temeu não merecer a dádiva de uma noiva tão linda. Pela primeira vez em sua vida, Robert ficou sem palavras. Sem ar. — Deus, você é perfeita! O riso de Imogen soou irônico. Instintivamente, ela fechou os olhos e desejou que o som desagradável parasse de ecoar em seus ouvidos. Fora mais forte do que ela. O histerismo havia exercido controle sobre sua vontade diante do absurdo que acabara de ser pronunciado. Ninguém havia contado a verdade a sir Robert Beaumont, evidentemente. Ele a chamara de perfeita, quando lhe fora tirado o dom da visão. A voz máscula e grave falava de um homem grande e poderoso. Ela, entretanto, não podia vê-lo. Não podia saber se era loiro ou moreno. Se ele viera cortejá-la em trajes de guerreiro ou de sedutor. Não podia nem sequer encontrar um caminho de escape, caso ele tentasse tomá-la à força. Um arrepio percorreu as costas de Imogen. Sua deficiência a colocava em assustadora desvantagem. Queria que ele a deixasse sozinha. Sentia-se vulnerável na presença do desconhecido a quem teria de se submeter a partir daquele momento. Ele estava ali, afinal, para reclamar a recompensa que lhe fora conferida pelo rei. Era um homem a ser temido. Principalmente se estivesse mancomunado com Roger. O medo fechava a garganta de Imogen. Ela sentia ímpetos de gritar e de clamar por sua liberdade. Queria poder enxergar para lutar com aquele homem e expulsá-lo de seu quarto, e de sua vida. Mas a realidade era outra. Livrar-se daquele homem não seria uma tarefa simples. Ele fazia parte do jogo sórdido de seu irmão e ela só podia se entregar à esperança de que sua inteligência a levasse à vitória quando os dados rolassem pela última vez. Ela era capaz de se mover com segurança pelo quarto. Seu pequeno mundo. Com dois passos firmes, alcançou uma cadeira e sentou-se, cruzando as mãos no colo. Adivinhou, pela respiração de sir Robert que ele cogitava imitá-la. Um instante depois, teve certeza de que o fizera, pelo guinchar do móvel ao ter de se adaptar a seu peso e pelo arrastar da banqueta que ela costumava usar para repousar os pés. Ele era alto e forte, Imogen pensou. Seus joelhos precisavam de mais espaço do que o deixado habitualmente entre as duas peças. Por mais que sua imaginação tentasse visualizálo, desde o momento que recebera a notícia sobre sua vinda, ela nunca havia pensado nele com referência a suas proporções físicas. Deveria ter suposto que os atributos de um cavaleiro incluíam tamanho e força. Homens de compleição franzina como Roger nunca seriam escolhidos para defender o rei. Suas armas eram a astúcia e a lisonja, não a espada. Imogen não saberia afirmar qual lhe parecia a mais temível no momento. Talvez fosse para atormentá-la ainda mais que seu irmão o escolhera. Para que a tortura avançasse para o físico, além do mental. — Peço que desculpe minha franqueza, lady Imogen, mas não é como eu esperava que

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fosse — Robert disse, por fim, o que lhe ocorrera desde o instante que seus olhos pousaram sobre a angelical figura feminina. Talvez devesse se desculpar também por estar encarando-a. E a esse pensamento, Robert sentiu que corava. — É o que acontece, muitas vezes, quando se compra uma mercadoria sem ver antes — Imogen declarou com um sorriso carregado de amargura. Robert ficou rígido. Não esperava encontrar tanta beleza em sua noiva, mas tampouco um linguajar tão ofensivo. Ela estava sendo absolutamente rude com ele sem que tivesse feito por merecer. O primeiro impulso de Robert foi pagá-la com a mesma moeda. Algo, porém, o fez calar sua indignação e tentar entender o que havia por trás daquele comportamento. Ocorreu-lhe que aquela era a reação típica de um animal ferido ou encurralado. Enquanto ela não se sentisse segura de que ele não pretendia ofendê-la, continuaria atacando para se defender. — Eu não a considero uma presa, nem uma mercadoria — Robert declarou, decidido a se armar de paciência até que pudessem se conhecer melhor. — Gostaria que não tornasse a se referir a nós nesses termos. Imogen ergueu ainda mais o queixo. — Sinto por ter me expressado mal. Não foi a mim que o senhor comprou. Sei que seu interesse está voltado para estas terras. Eu sou apenas o inconveniente que teve de aceitar em troca de obtê-las. Deve estar lamentando seu destino. Porque para se tornar dono de Shadowsend Keep precisou colocar sobre seus ombros o peso de viver ao lado de uma mulher enjeitada. — Peço que não torne a usar termos depreciativos sobre sua pessoa em minha presença. — Aconselho-o que se acostume a ouvi-los. Sem outras distrações neste fim de mundo, as mulheres que aqui vivem se divertem falando dos defeitos dos outros. — Se os prazeres a que elas se entregam interferirem com minha honra, eu ordenarei que se calem ou que busquem outro trabalho. — Robert avançou alguns passos na direção de Imogen, incomodado com a rigidez de sua postura e com o ar de superioridade com que continuava encarando-o. — Especialmente porque não existe nenhum motivo que justifique essa maledicência. Imogen cerrou os punhos com tanta força que sentiu as unhas cravarem nas palmas das mãos. Sir Robert não sabia! Ninguém contara a ele! Ele ainda não havia notado sua deficiência. Não era possível. Roger e Robert Beaumont estavam se divertindo a sua custa. O que aquele canalha estava esperando? Que ela se humilhasse ainda mais, tendo de traduzir sua cegueira em palavras? Aquele era o maior prazer de Roger. Quanto mais a feria, mais forte e poderoso se sentia. Se o intruso estava esperando que ela se colocasse de joelhos a seus pés, deveria se preparar para uma surpresa. — Não estou com disposição para sua ironia. Minha deformidade é visível e eu não tolerarei que tripudie sobre mim. Nosso casamento poderá lhe conferir direitos sobre estas terras e sobre meu corpo, mas nunca espere me vencer em meu orgulho e em minha dignidade. Robert pestanejou.

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— Eu não tive intenções de ofendê-la. Sou um homem rude e desconheço as sutilezas que as palavras possam conter. Não é de minha natureza usar de duplo sentido Minha surpresa é genuína. — Quer dizer que realmente não notou nada de diferente em mim? Que meu irmão nem o rei o prepararam para assumir o papel que lhe reservaram ao mandá-lo para cá? Robert hesitou. Não era versado em letras nem etiqueta. Técnicas de diplomacia seriam necessárias no trato com a jovem Imogen. Ele tentou apelar para o bom senso para poder esclarecer a situação. — Seu irmão e eu não freqüentamos os mesmos círculos. — Robert declarou, omitindo sua impressão de que considerava o preferido do rei, um ser inferior a um verme. Não lhe pareceu prudente se referir ao irmão de sua noiva com a honestidade que lhe era característica. Nada estava fazendo sentido. Com os pensamentos em tumulto, Imogen se pôs a andar de um lado para outro. Estava tão agitada que não se lembrou de que Robert havia tirado a banqueta do lugar. Perdeu o equilíbrio ao tropeçar. Teria caído se um par de braços musculosos não a tivessem sustentado. O medo desapareceu como por encanto ao inesperado contato. Nunca antes, Imogen havia estado tão perto de um homem que desse para sentir seu calor e os contornos de seus músculos sob a fina lã da túnica. Ele recendia a sândalo. Agradou-lhe sobremaneira que sir Robert não tivesse vindo conhecê-la com aquelas vestes metálicas dos combates. O cheiro acre que provocavam era insuportável a seus sentidos. As partes de seu corpo que ele firmemente segurava pareciam em fogo. Não um fogo que ardia, mas que a excitava de uma maneira estranha. Parecia se espalhar por seus nervos, provocando sensações desconhecidas, que ela gostaria que se prolongassem. Um momento que pareceu durar uma eternidade, mas que acabou rápido demais. Robert precisou lutar consigo mesmo para soltar Imogen. Todas as fibras de seu ser clamavam pelo prolongamento daquele quase abraço. Ela parecia ter sido moldada para caber entre o círculo de seus braços e repousar em seu peito. Permitir que se afastasse parecia ir contra os desígnios da natureza. Suas mãos ansiavam por tocar a pele macia daquele rosto e daquele pescoço. Seus lábios ansiavam por pressionar os dela. Para fugir à tentação de beijá-la, Robert fechou os olhos, mas tornou a abri-los, incapaz de resistir ao desejo de fitar aquela perfeição. E teve de se arrepender. Porque Imogen lhe pareceu ainda mais bonita com a respiração ofegante e as faces tingidas de rosa. Ela parecia estar sentindo o mesmo que ele. Esperou por um sinal para inclinar a cabeça e se apoderar daqueles lábios trêmulos, mas os olhos dela se recusaram a fitá-lo. Abruptamente, Robert a soltou. Sem noção de onde ele a deixara, Imogen procurou se concentrar. Seu corpo ainda flutuava impedindo-a de se locomover. Não queria demonstrar sua fraqueza, mas uma súbita tontura a obrigou a pedir ajuda. — Poderia me levar de volta para minha cadeira, por favor?

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Robert não podia entender como a voz de Imogen soava tão tranqüila depois do que acontecera. Ele se sentia febril. Ainda não conseguira voltar à realidade. — O que disse? Imogen sentiu o sangue desaparecer de seu rosto. Já não bastava de humilhações? — Não se preocupe — Imogen disse, ríspida. — Eu mesma encontrarei meu caminho. Robert empalideceu ao, finalmente, entender o problema que atingira sua noiva e que motivara seu apelido. — Você não enxerga? — ele perguntou, em choque. Ela largou a cadeira em que se apoiara, e endireitou as costas. Em poucas e simples palavras, Robert resumira toda a extensão do sofrimento que se abatera sobre ela havia cinco longos anos. Incapaz de acreditar na dura realidade com que Imogen se confrontara, Robert não conseguiu fazer outra coisa que não mover a cabeça de um lado para outro, em completo aturdimento. Não era justo. Imogen era pouco mais do que uma criança quando a visão lhe fora tirada. Ela, a mulher mais linda que ele já conhecera, não tinha noção de sua própria aparência. — Diga alguma coisa! — Imogen quase gritou. — Eu sinto muito, milady. Não sei o que dizer. Exasperada, Imogen cruzou os braços. — Não diga que não sabia! Por que achou que eu era conhecida como a "dama disforme"? — Eu já lhe pedi para não se referir a si própria nesses termos. — Por que não? O resto da ilha me chama assim. — O resto da ilha não me importa. Mas os que habitam neste recanto da ilha terão de obedecer minhas ordens. A reação do forasteiro deixou Imogen momentaneamente perplexa. — Está falando sério? — Sim, eu estou. — Pois eu me recuso a ser comandada. — Sou seu marido. Nessas circunstâncias, minha palavra é sua lei. — Você ainda não é meu marido! — Eu o serei antes que o sol torne a nascer. Mandarei que avisem o pastor imediatamente sobre minha chegada. Uma onda de pânico se apoderou de Imogen. Sir Robert tinha intenção de manter seu compromisso, apesar do que acabara de descobrir a seu respeito? Ela teria de pertencer a um completo estranho antes do raiar do novo dia? Por outro lado, não deveria ser motivo de regozijo que ele não tivesse sentido aversão pelo primeiro de seus múltiplos segredos?

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Imogen pôde adivinhar que ele sorria pelo tom de sua voz ao lhe segurar as mãos. — Eu empenhei minha honra neste compromisso. A partir de agora, você faz parte de mim. Imogen franziu o rosto, incapaz de compreender o sentido daquela declaração. — Eu não estou entendendo... Delicadamente, Robert tocou as linhas que franziam a testa de Imogen até desfazê-las. — Não há o que entender. É um fato. Ela sentiu o hálito morno e úmido em suas mãos quando ele as levou aos lábios e beijouas, despertando emoções que nunca imaginara existirem. O quarto nunca pareceu tão frio e solitário depois que sir Robert se retirou. Imogen encostou as mãos no rosto e maravilhou-se à experiência de seu primeiro beijo. A expectativa do que viria a seguir a deixou alvoroçada. Submeteu-se aos cuidados de Mary que todas as noites a preparava para dormir, mas em vez de deixar que ela a colocasse na cama, pediu que a sentasse diante da lareira. Os terrores noturnos eram seus companheiros assíduos. Desde criança, antes que perdesse a visão, tinha medo do escuro. Por mais que seus pais lhe ensinassem que o escuro significava apenas a ausência de luz, como o sol que se escondia no horizonte para tornar a aparecer no outro dia, Imogen se fechava em si mesma, toda encolhida, rezando pela chegada do sono de modo que o fantasma do medo desaparecesse. Triste realidade a espreitava sem que pudesse evitar. Porque a partir de seu décimo sexto aniversário, em acréscimo às noites, todos os seus dias também mergulharam na escuridão. Era feliz naquele tempo. Amava seus pais e era amada por eles. Havia risos em seu lar. Os ciúmes doentios de Roger mal eram detectados ainda por sua alma inocente. Os pais os levaram de férias à Cornualha na ocasião. A paisagem esplêndida, a alegria e o aconchego dos pais, tudo era motivo de felicidade. Os ataques de mau humor, os olhares duros, o comportamento freqüentemente agressivo de seu irmão já não a surpreendiam. Ela procurava ignorar seus ataques e valorizar os bons momentos juntos, por raros que fossem. Havia uma torre na propriedade que pertencia a sua família desde gerações. Ela não percebeu que Roger a estava esperando, oculto pelas sombras, sob os altos degraus da torre onde quisera subir para apreciar a vista e admirar o vôo das gaivotas. Ele a pegou de surpresa. Tapou sua boca para evitar que alguém ouvisse, caso ela gritasse. Atônita demais para reagir de imediato, Imogen se sentiu desfalecer com a súbita falta de ar. Movida por puro instinto de defesa, ela fincou os dentes e as unhas no irmão que a soltou, uivando como uma fera. — Saiba que este não foi o fim! — ele sibilou. — Isto nunca terá fim! A ameaça contida naquela voz fez com que Imogen recuasse até suas costas baterem contra a parede. Distraída por um instante, ela não viu que o irmão se preparava para lhe dar um soco, mas

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sentiu o movimento do ar antes que o punho dele atingisse sua mandíbula. Os degraus pareciam subir e descer em imagens confusas após o impacto. Depois, misericordiosamente, Imogen não sentiu nada. Quando acordou, estava escuro. Esperou que clareasse, mas a escuridão permaneceu ao seu redor. E também o medo provocado pelo eco daquelas palavras proféticas. Jamais teria fim. Nem agora, a centenas de quilômetros de distância. Á cada visita, Roger renovava suas juras. Não tornara a agredi-la após o acidente na torre, mas ela sabia que sua sede de vingança nunca seria aplicada. Apenas não conseguia entender o porquê de tanto ódio. Desejava, às vezes, que tudo acabasse. Que ela não precisasse tornar a acordar para mais um dia mergulhada em trevas. Era sua primeira noite, em longos anos, que esse pensamento não se atreveu a dominá-la. Uma intensa paz lhe fora concedida como uma bênção. Quando deu por si, estava sorrindo. De esperança. — Imogen! — Mary exclamou, em tom de censura. — Não me diga que dormiu nessa cadeira a noite toda? — Não. Eu não dormi nem sequer por um segundo — Imogen confessou ao se levantar e esticar o corpo dolorido. — Dá para perceber pelas fundas olheiras. Eu lhe diria que está feia com essas manchas roxas sob os olhos, mas estaria mentindo. Além disso, não se pode insultar uma noiva. — Por que diz isso? — Insultos trazem má sorte. — Nesse caso, seja gentil comigo e a boa sorte poderá recair sobre você também. Mary olhou para Imogen com ceticismo. Sem retrucar, providenciou para que ela entrasse no banho. — O pastor chegou? — Oh, sim. Não ousaria contrariar um homem como sir Robert. Ele parece ser do tipo que não desiste quando se propõe a algo. Até mesmo a preguiçosa da Alice, a primeira a vê-lo quando chegou, teve de ficar esperta para dar conta da tarefa que ele a incumbiu de fazer. — Qual foi? — Limpar o salão e arrumar a mesa como se fosse um altar. Imogen sentiu o corpo enrijecer. — Ele pretende celebrar o casamento no salão? — Foi o que me pareceu. — Mas eu não posso! — Imogen exclamou, empalidecendo. — Eu nunca saio do meu quarto. Não tenho condições de descer para o salão. Você precisa dizer isso a ele! O casamento pode ser realizado aqui. Não fará nenhuma diferença.

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— Talvez faça para milorde. Porque se atender seu pedido, ele estará acatando suas ordens. — Você precisa me ajudar — Imogen segurou as mãos de Mary, em súplica. Mary suspirou. — Posso tentar. Mas só depois que você tomar seu banho e se vestir.

— De jeito nenhum! — Robert exclamou. — Eu me recuso a casar dentro de um quarto. — O problema é que lady Imogen jamais deixa seus aposentos. Ela achou que milorde entenderia a situação. Afinal, o casamento terá o mesmo valor onde quer que seja realizado. Robert desviou o olhar para a lareira. O mesmo local onde pousara seus olhos durante toda aquela noite, importante demais para ser desperdiçada com o sono. Antes do romper da aurora, ele se levantara para se preparar para a cerimônia. Havia acabado de vestir o traje que adquirira especialmente para a ocasião de que nunca sonhara participar como um dos principais elementos, quando Mary bateu a sua porta. — A cerimônia terá início em uma hora — ele determinou, impassível. — Avise lady Imogen que eu irei buscá-la pessoalmente. Mary engoliu em seco. Seus olhos pareciam ter aumentado de tamanho. Em seguida, ela os baixou e fez um gesto de assentimento antes de se retirar. A criada sabia quando uma luta estava perdida. Seu tempo seria empregado com maiores vantagens em convencer a noiva a atender o desejo do noivo. Ao ficar novamente sozinho, Robert apanhou o pequeno saco de couro que deixara sobre o console. O saco continha o anel de ouro que comprara para oferecer a sua noiva desconhecida. Naquele dia, sentira-se estranho, como se não fosse ele mesmo. Agora, no entanto, nada lhe parecia mais certo, mais apropriado. Imogen. Sua esposa. A imagem dela ficara gravada em sua mente desde o primeiro instante. Agora podia recordá-la em todos os momentos. Até mesmo nas chamas que dançaram a sua frente em sua vigília. Imogen não era mais sua noiva desconhecida, sem rosto e sem vida. Sentira-a vibrar em seus braços. Conseguira despertar seu lado bom. Sua capacidade de amar. Porque a ânsia que o invadira de tocar sua pele era forte, mais suave ao mesmo tempo. Seria incapaz de magoar Imogen. De assustá-la. — Então, meu rapaz? Está pronto? — Matthew o trouxe de volta ao presente, batendo rapidamente à porta e abrindo-a sem esperar para ser recebido. Robert fechou os dedos ao redor do anel e se virou para o velho amigo e companheiro. Matthew parecia sem jeito em seu novo traje, com os cabelos ainda úmidos do banho. Robert, porém, nunca se sentira tão bem. Alisou a túnica preta entremeada de fios prateados, ergueu a cabeça e disse: — Estou mais pronto do que nunca estive antes em toda minha vida. A porta do quarto estava aberta quando Robert se aproximou. Em silêncio, antes de se

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fazer anunciar, ele a observou. Imogen estava sentada no chão, em um canto, abraçada aos joelhos. Seu rosto estava escondido pelas ondas de seus cabelos pretos. Gostou de ver que ela também estava vestida especialmente para a ocasião. Seu traje era cor-de-rosa, leve e diáfano. A cintura estava marcada por uma faixa de renda branca. Ainda incrédulo diante de tanta beleza, Robert avançou devagar até se colocar de joelhos na frente dela. — Quem está aí? — Imogen ergueu bruscamente o rosto que ainda conservava os vestígios de lágrimas. — Desculpe. Eu não queria assustá-la — ele murmurou. — Eu me assusto facilmente. Não foi sua culpa — respondeu Imogen, e apelou, antes que ele tivesse tempo de responder, para sua generosidade. — Por favor, não me obrigue a descer. Robert não esperava que fosse se sentir capaz de traduzir o que se passava em seu íntimo. — Porque não quer que nosso casamento seja presenciado por sua gente? A revelação a deixou francamente pasma. — É isso que pensa? Que eu estou com vergonha de desposá-lo? — Sim — afirmou, perplexo, por se abrir em confidências com alguém pela primeira vez em sua vida. Sem refletir, Imogen estendeu a mão, procurando a dele, mas foi a solidez de uma coxa que encontrou. — Meu problema não tem nada a ver com você. Ao contrário. Tem sido muito bom comigo desde que chegou. — E fácil ser bom com você. — Seria capaz de mais um ato de bondade? — Imogen insistiu. — Eu não desço essas escadas desde que fui trazida para cá. Tentei muitas vezes, mas nunca consegui descer mais do que dois ou três degraus. A garganta fechou e eu parei de respirar. Eu me senti completamente desamparada. O vago sentimento de rejeição de Robert desapareceu como por milagre e foi substituído por um bem-estar que se espalhou pelo peito e por todo o corpo. No lugar em que Imogen pousara sua mão, em especial. — Você nunca mais sé sentirá desamparada. Eu prometo. Não me afastarei de seu lado nem sequer por um segundo. — Robert se moveu, sem se levantar, de modo a tocar nas faces ainda úmidas de lágrimas. — Eu serei seus olhos.

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Capítulo II O murmúrio da pequena multidão que se reunira para assistir à cerimônia parecia um troar de canhões aos ouvidos de Imogen, acostumados ao silêncio. Ela se movia como se estivesse sendo transportada para o espaço, tendo como sua única referência o homem que passara a desempenhar a figura central no novo caminho que se abria para o futuro. Com sua força, Robert lhe transmitia segurança. Com sua firmeza, a conduzia. Com suas atenções, a fazia sentir bem como em tempos passados. A capacidade de compreensão de seu guerreiro era o atributo que ela mais admirava. Quando outros teriam reagido com exasperação a seu medo, ele a ajudara a superá-lo. Como se ela fosse feita de cristal, Robert a colocou de pé, fez com que apoiasse a mão na curva de seu braço, e o toque final que afastou os últimos resquícios do pânico, foi seu gesto carinhoso de cobrir sua mão fria com a dele, grande, áspera, mas também cálida e companheira. Pouco a pouco, o noivo a retirou da clausura. Sua voz calma conseguiu fazê-la dar o primeiro passo e o segundo. Os demais foram mais fáceis. Apenas agora, ao atingirem o último dos degraus, Imogen descobriu que prosseguir seria impossível diante da multidão que os aguardava. — Você está indo muito bem — Robert a incentivou. — Estamos chegando à porta do salão principal. Imogen estancou como se as pernas tivessem se transformado em chumbo. Nem sequer o incentivo sussurrado tivera o poder de suplantar o burburinho que parecia criar formas ameaçadoras ao seu redor. — Não posso! — confessou, trêmula. — Há gente demais. O barulho é ensurdecedor. Ele lhe soltou a mão e a envolveu pelos ombros, como um manto protetor. A sensação de conforto era indescritível. Imogen se entregou à doçura do gesto e se aconchegou ainda mais ao noivo. Para resistir às agruras de sua vida, ela tivera de aprender a ser forte. Pela primeira vez, estava se entregando à força de outro alguém. Não importava que Robert tivesse sido enviado por seu irmão. Naquele momento, precisava se concentrar na paz que irradiava daquele homem. Seu noivo. — Essa gente é sua conhecida. Os convidados se resumem às serviçais que a atendem e a meus homens, mais alguns poucos habitantes dos vilarejos vizinhos. Imogen respirou profundamente. — Parecem milhares. Eu estive só durante anos. — Agora não mais.

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Robert a abraçou mais forte. Para não se desequilibrar, Imogen apoiou-se na cintura dele, mas afastou rapidamente a mão, sentindo que corava. As palavras brotaram, espontâneas. Robert não poderia explicar, nem sequer a si mesmo, a emoção que lhe inundou o peito ao dizê-las. Nem a revolta que o assaltou ao cogitar sobre o culpado por Imogen ter sido abandonada em uma propriedade tão distante da sede do reino aos cuidados de poucas e indefesas mulheres e de não mais de meia dúzia de homens de idade avançada. A intensidade da revolta que dominou Robert obrigou-o a parar e a mudar sua fisionomia. Era seu casamento. O guerreiro não tinha lugar naquela cerimônia. Não queria assustar os convidados. Imogen não podia vê-lo, mas sua sensibilidade poderia captar suas vibrações. Faria o culpado, ou culpados, pagarem pelo sofrimento de sua noiva. No momento oportuno. — O que houve? — Imogen perguntou. — Você ficou tenso de repente. Robert se censurou por sua imprevidência. — Não foi nada. Eu não estava conseguindo localizar o pastor no meio dos convidados e pensei que não gostaria que a cerimônia tivesse de ser adiada. O tom subitamente frio desconcertou Imogen. Era uma tola. O que esperava? Estavam se casando por conveniência. O fato de ela ter enveredado por fantasias românticas porque gostara do conforto daqueles braços não significava que seu noivo tivesse de fingir um sentimento que não existia em seu coração. — Estava procurando por mim? — o pastor indagou, naquele exato instante, como se tivesse se materializado à queixa. Robert antipatizou com o homem à primeira vista. Algo em seu olhar ou em seu sorriso o incomodou profundamente. — Sim. — Compreendo sua pressa — o religioso assentiu. — Confesso que raras vezes tive a oportunidade de casar uma jovem tão linda como lady Imogen. Ímpetos de empurrar aquele homem para longe de sua noiva não faltaram. Robert não conteve uma imprecaução quando ele, finalmente, se afastou em direção ao altar improvisado. — Idiota! — Ele me é intolerável — Imogen contou baixinho, e uma inesperada cumplicidade nasceu instantaneamente entre eles. — Ian foi aprendiz de meu pai. Tinha planos de servir como escudeiro. Até ouvir o chamado do Alto, algo que eu sempre duvidei, ele vivia correndo atrás das mulheres. Fiquei atônita quando ele foi designado como pároco desta região. Achei que meu irmão deveria estar por trás dessa nomeação. Os dois são grandes amigos. — Como você o reconheceu? — Sem poder enxergar, você quer dizer? — Robert sentiu que corava a sua indiscrição. Imogen prosseguiu, contudo, sem demonstrar ofensa. — Nós somos mais do que um rosto e um

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corpo. Cada um tem seu jeito próprio, suas particularidades. Eu conheço Ian desde criança. Mesmo que não tivesse reconhecido sua voz, teria identificado seu modo peculiar de falar. A camaradagem entre Robert e Imogen fez com que a animosidade inicial logo desaparecesse. — Idiota ou não, a celebração de nosso casamento ficará a cargo dele. Um arrepio de gelo percorreu o corpo de Imogen a essa declaração. Com total espontaneidade, ela se virou e apoiou a mão no peito de Robert. — Você tem certeza de que quer fazer isto? Que não há outros meios para você se apropriar destas terras? A observação soou quase brutal em sua franqueza. Robert hesitou. — Você quer desistir? Está querendo me dizer que não deseja se casar comigo? Imogen não precisou de mais do que alguns segundos para descobrir que não havia saída para sua situação. Se não fosse com Robert Beaumont, seria com outro. Roger jamais a deixaria em paz. Robert era gentil, ao menos. Ela precisava enfrentar a realidade. Seu casamento não era para ser um acontecimento feliz em sua vida; significava sua própria sobrevivência. O silêncio de Imogen foi interpretado como concordância. Ela não saberia afirmar ao certo, mas pareceu-lhe ouvir um suspiro de alívio antes que Robert a beijasse na testa e a chamasse para que prosseguissem em direção ao altar. A cerimônia ocorreu como um sonho. Uma névoa pareceu envolvê-la. Ela sentiu como se flutuasse no ar e apenas a voz máscula de Robert conseguisse trazê-la de volta para o presente, em sua jura de eterna fidelidade. Sua alma vibrou com o beijo que ele lhe deu. Um beijo que selava promessas de amor e de respeito. Foi um momento mágico em que ela conseguiu esquecer a ameaça velada que significava qualquer ligação com Roger. Porque, em última instância, Robert chegara até ela a mando de seu irmão. A multidão, fosse pela curiosidade com que testemunharam o pacto, fosse pela surpresa diante do beijo prolongado, trouxe Imogen de volta à Terra somente depois que Robert os convocou para que prestassem suas homenagens ao novo senhor de Shadowsend Keep e sua esposa. As vozes se elevaram em votos de felicidades. Colocada em uma cadeira de braços, Imogen se portou com a altivez e a dignidade de uma rainha em seu trono. Robert permaneceu em pé durante esse tempo, a seu lado direito, e Mary do lado esquerdo. Cada convidado se apresentou aos noivos, curvando-se em uma mesura. Imogen agradeceu com uma inclinação de cabeça. Não conseguia parar de pensar, contudo, que as histórias sobre o mistério da dama reclusa haviam chegado ao fim, para outras começarem a respeito da esposa cega do enviado do rei. Ao anúncio de que o último convidado acabara de se retirar, Imogen quase chorou de alívio. Estava exausta de tensão. Seus nervos estavam em frangalhos. Assim mesmo ela se levantou

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sem ajuda. Precisava ficar sozinha. Não suportaria por muito tempo mais demonstrar uma firmeza que estava longe de sentir. — Quero ir para meu quarto. Robert a segurou pelo braço. O calor de sua mão a tentou por um instante, mas o medo venceu. — Mary me levará. Percebeu pela súbita tomada de ar de Robert que ele se sentira desprezado e humilhado com sua recusa. Fingiu não notar, mas se questionou sobre a prudência de tal atitude assim que Mary a atendeu e a deixou sozinha. As lágrimas não mais puderam ser retidas. Imogen escondeu o rosto com as mãos e permitiu que vertessem livremente. Já não sabia o que era real e o que era falso em sua vida transformada de forma tão radical da noite para o dia. A mulher romântica que existia dentro dela chegara a acreditar por alguns instantes no compromisso daquele beijo. O peso daqueles olhares curiosos se revelara uma dádiva, de certa forma, por ajudá-la a retomar a dura realidade. Agora sua deficiência fora revelada aos quatro ventos. Até mesmo seu mais recôndito segredo lhe fora roubado. Por Robert. Não podia permitir que o marido tivesse todo esse poder sobre ela. Se relevasse ao esquecimento o fato de ele estar em sua vida por interferência de Roger, seu odioso irmão seria o vencedor. Controladas as lágrimas, Imogen suspirou. Parecia simples, mas era extremamente difícil. Fazia tempo demais que alguém não se importava com ela e lhe oferecia o conforto de um abraço. Seu padecimento se tornava menos real cada vez que Robert se apresentava a seu lado. Com seu charme rústico, ele representava um perigo a ser evitado a todo custo. Alheio aos pensamentos tenebrosos da esposa, Robert se encaminhou para a mesa colocada no centro do ambiente. Estava empoeirada pela falta de uso, mas a excelência da madeira era inegável. Dera ordens para que aquele, como todos os demais cômodos fossem limpos do chão ao teto. Ele saberia valorizar seu patrimônio e fazer com que fosse respeitado. Deixara claro a todos que vinham servindo a Imogen e agora a ele, que pretendia inspecionar cada canto e recanto da propriedade e da mobília porque aprendera a importância de cada realização. O carvalho sólido sob suas mãos, contudo, não estava lhe proporcionando a satisfação que esperara durante o longo trajeto até as terras do norte. Faltava algo. Poder e bens materiais de repente o faziam sentir ainda mais vazio do que antes de sua cerimônia de casamento. Um frio estranho parecia ter se apoderado de suas entranhas desde que Imogen repelira sua ajuda e o mal-estar só estava crescendo e aumentando com o passar das horas. Por mais que tivesse tentado negar o fato, o gosto amargo da rejeição sobrepujara o prazer da vitória. Ocupar a mente e o tempo com tarefas não surtira o efeito desejado. Instruções foram transmitidas no sentido de que um banquete fosse organizado para acontecer naquela noite. No dia seguinte, os estábulos seriam preparados para a chegada dos cavalos que ele mandara vir de Gales. O aroma que vinha da cozinha antecipava o êxito que seria a festa. Seu apetite estava aguçado após os rigores da viagem. Um apetite que se estendia por seu corpo cada vez que ele se lembrava da suavidade do corpo feminino entre seus braços e do beijo intenso que haviam trocado

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ao final da cerimônia que os consagrara como esposo e esposa. O toque fora rápido, mas o ardor daquele beijo ficara impregnado em todo o seu ser. Para sempre. Com sua inocência, Imogen transformara seu universo. Barganhas, obstáculos, ódios, tudo o que pudesse haver de mal no mundo fora esquecido naquele breve momento. Porque, com seu inesperado procedimento, Imogen o empurrara de volta ao abismo do qual não conseguia sair, por mais que lutasse para se salvar. A chegada de Mary o trouxe de volta ao presente perturbador. — Milorde. O modo submisso com que a serviçal se colocou à porta o fez notar seu constrangimento. Endireitou os ombros para que ela não interpretasse sua postura como sinal de fraqueza. Em seguida, ignorou o mau estado em que se encontrava a cadeira atrás da escrivaninha e sentou-se. Antes não o tivesse feito, o móvel estalou a seu peso. Só faltava a cadeira quebrar e derrubá-lo. Sua desgraça, então, estaria completa. — O que deseja? — Vim avisá-lo que milady está repousando para a festa. Robert ergueu uma sobrancelha em franca demonstração de surpresa pela inutilidade da informação. Obviamente Imogen teria de se apresentar à comemoração de seu próprio casamento. Seria de esperar que estivesse descansando e se preparando para a noite. — Há algo mais importante que queira me dizer? Era a chance pela qual Mary vinha esperando desde a chegada de sir Robert. No mesmo instante, ela entrou na sala e fechou a porta. — Peço que me diga se a atitude de milady o ofendeu. — Não mais do que ela pretendia fazer — Robert respondeu com fingido descaso. Mary suspirou. — Ela não tinha nenhuma intenção de ofendê-lo, milorde. O que disse foi em reação a seus próprios pensamentos. Mary percebeu que sua explicação soara confusa. Mais ainda quando ouviu as palavras seguintes: — Imogen não poderia ter sido mais clara em sua aversão ao que acabara de acontecer. Seu comportamento foi uma demonstração legítima de sua falta de interesse por mim. — Não! — Mary retrucou, enfática. — Não foi isso! Milorde não entendeu a situação. Milady estava assustada demais para se comportar de maneira lógica e sensata. — Assustada? O que havia a temer? Eu a ameacei por acaso? — Não é ao senhor que ela teme, milorde. Seu medo antecede a ordem que ela recebeu para lhe entregar estas terras e a si própria em casamento.

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— De que você está falando? Mary prosseguiu sem se importar com a fúria que transformara o semblante de seu novo amo. — Não é ao senhor que Imogen teme, mas ao irmão. A declaração exerceu um efeito paralisante sobre Robert. — Imogen tem medo do irmão? — Sim. Eu não tenho conhecimento de todos os horrores que ele lhe fez, mas sei que lady Imogen treme só em se lembrar de sua tenebrosa figura. Sir Roger a visita a cada três meses. Nesse período, recebemos ordens para nos afastar e só voltarmos depois que ele deixa a propriedade. Invariavelmente, a encontramos encolhida em um canto, como se tivesse sido mortalmente ferida, embora não haja evidências de sangue. — O que ele vem fazer aqui? Por que a visita com tanta freqüência? — Ninguém sabe. O que acontece fica apenas entre os dois. Milady se refere à situação como se fosse uma espécie de jogo. Um jogo em que ela não tem nenhuma chance de vencer. Robert se surpreendeu com a força com que seus dedos haviam agarrado o tampo da mesa. Um ódio feroz pelo monstro que fizera de sua esposa a criatura frágil que se apresentara a ele o levou a jurar a si mesmo que saberia compreendê-la e protegê-la a partir daquele momento. — Eu mudarei as regras desse jogo, seja qual for — Robert prometeu. — Apenas se ela permitir — Mary decidiu confiar naquele que sua intuição dizia ser a única chance de salvação para a mulher que considerava como uma filha. — Para lady Imogen, milorde também é seu inimigo, uma vez que foi Roger quem o escolheu para desposá-la. Para ela, o senhor faz parte desse jogo. Milady o teme porque acredita que veio para cá como o grande trunfo do irmão. Robert franziu o cenho. — Ela lhe fez todas essas confidências? — Sempre conversamos. Eu sou a única pessoa a quem ela concedeu o privilégio de sua confiança. Mas desde sua chegada, ontem à noite, milady preferiu ficar sozinha. Eu estou preocupada que ela não resista ao tumulto em que se afundou sua mente. Por um momento, Robert chegou a esquecer a presença de Mary. Nunca antes fora invadido por um ódio tão absoluto que chegava a corroê-lo por dentro. Precisava se conter. Precisava manter a mente clara e serena para pensar em uma estratégia que o levasse à vitória. Porque o irmão de Imogen acabara de se tornar seu maior inimigo. Roger Colebrook se tornara o homem de confiança do rei por suas intrigas. Que o miserável o tivesse usado para manipular Imogen em seu ignóbil jogo de perversão estava acima de sua capacidade de perdoar. Nada poderia justificar que ele o tivesse usado como uma arma em sua guerra particular. Porque quando havia vítimas, não se podia chamar de jogo, mas de guerra. Um sorriso selvagem brotou dos lábios de Robert ao considerar que Roger Colebrook

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cometera seu primeiro erro naquele sórdido plano. Robert Beaumont não era alguém que pudesse ser usado por um dos parasitas da corte. Principalmente para ferir alguém que ele tomara sob sua proteção. E Imogen lhe pertencia agora. — Você me fez entender o que houve. Eu lhe sou grato por ter me contado o que sabia. Prometo que não se arrependerá de sua consideração. Mary deixou escapar um suspiro de alívio que não percebera estar contendo. — Fico contente por milorde não ter interpretado minha atitude como uma impertinência, mas eu conheço lady Imogen e sei que o medo a domina a ponto de obscurecer sua razão. Robert entrelaçou os dedos e apoiou os cotovelos na mesa. Ele estava apenas começando a se inteirar dos fatos. Não sossegaria enquanto não resolvesse a situação. A capacidade de liderança de Robert trouxe uma nova vida a Shadowsend Keep. Antes que o sol se pusesse, o salão principal havia se transformado. O chão e os móveis reluziam aos últimos raios do astro-rei. Mesas haviam sido trazidas para acomodar todos os convidados durante o lauto jantar que seria oferecido em homenagem aos noivos. Azevinhos enfeitavam os arcos das portas e arranjos com laços de fitas haviam sido colocados em cada mesa. Um ar festivo impregnava o local. A agitação era constante com os criados se deslocando de um lado para o outro. A atmosfera lúgubre que Robert detectara em sua chegada parecia pertencer ao passado. Agora, uma nova esperança parecia brilhar em cada olhar. Tecidos vermelhos formavam uma cúpula sobre a mesa que ele ocuparia com Imogen. As cadeiras também haviam sido adornadas com fitas da mesma cor. Caçadores haviam trazido animais para serem assados e costureiras haviam trabalhado horas a fio para compor os trajes especiais para o grande evento. Robert não poderia estar mais satisfeito em seu papel de anfitrião, observando seu povo se divertir e se regalar em sua festa de casamento. Como noivo, porém, ele se viu se obrigando a recordar as palavras ditas naquela tarde por Mary em confidência. Por mais que ele quisesse acalmar Imogen e despertar sua fé de que ele zelaria por sua felicidade e segurança, o momento ainda não havia chegado. Restava a ele apenas aguardar e admirar em silêncio a esposa mais linda com que poderia ter sonhado. Imogen havia trocado a veste cor-de-rosa da cerimônia matinal, que a fazia parecer um anjo, por um vestido de veludo vermelho que aderia a suas curvas tornando-a a mulher mais desejável que ele já conhecera. Uma sensação inédita havia sido despertada em Robert à visão dos seios revelados pelo fundo decote. Cada vez que surpreendia olhares masculinos voltados para sua esposa, Robert precisava se ordenar a manter o controle. Fechava os punhos, mas seus dedos teimavam em abrir no ímpeto de tocarem os cabelos de Imogen. Eles brilhavam como ouro à luz das velas, cuidadosamente trançados com fios dourados por toda sua extensão. Quem acompanhasse a trajetória de Imogen pelo salão não adivinharia que cada passo constituía uma ameaça de desfalecimento. Somente quando ela se apoiou no tampo da mesa, foi que Robert percebeu a força com que sua esposa se agarrara ao braço de Mary. Levantou-se e foi recebê-la. Ela o saudou com uma mesura e aceitou que ele a conduzisse até acomodá-la em sua

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cadeira. Depois disso, ignorou-o. Ignorou a tudo e a todos. Manteve-se rígida, com as mãos repousando no colo, quando as bandejas foram trazidas para o salão e as iguarias servidas aos convidados. Sua postura não mudou quando os murmúrios de satisfação ecoaram ao seu redor. Pareceu se fechar ainda mais em seu casulo, se isso fosse possível. Embora ninguém pudesse notar, Robert não afastava seus olhos da figura de sua esposa. Ela nem sequer tocou em seu prato. Fazia questão de demonstrar que não se considerava o motivo principal da festa. Robert a teria sacudido se o gesto fosse lhe devolver sua essência. Não queria uma estátua para esposa, mas a mulher adorável que beijara aquela manhã e que retribuíra seu beijo. — O sabor da comida supera seu aroma — ele disse, por fim, incapaz de suportar a tensão que se criara entre ambos. — Eu diria que é a melhor que eu já provei. — Fico contente que tenha apreciado os talentos de nossa cozinheira. — Por que você não experimenta? Poderá se sentir surpreendentemente melhor. A menos que sua intenção seja se fazer de mártir perante seu marido. — Você não poderia estar mais errado — Imogen retrucou. — Não estou sem apetite. Apenas não consigo comer diante de outras pessoas desde que sofri o acidente. Não é fácil usar talheres sem enxergar o alimento e eu não farei de mim um espetáculo, utilizando apenas as mãos, para satisfazer sua perversa vontade. Um intenso rubor substituiu a expressão cínica de Robert. Não lhe ocorrera em nenhum momento que o banquete fosse constituir uma tortura para Imogen. Era de praxe celebrar bodas com festas. Ele pensara em seguir a tradição. Em vez de agradar sua noiva, fizera com que ela o desprezasse ainda mais. — Por que você não me disse isso antes? — Robert protestou, tentando, sem êxito, esconder seu embaraço. — De que adiantaria? — Imogen encolheu os ombros. — Adiantaria que você não estaria passando fome na festa de seu próprio casamento — Robert respondeu, sério. E sem que Imogen percebesse, ele encheu a taça na frente dela de vinho, aproximou mais sua cadeira e disse: — Eu vou alimentá-la. — Ele levou a colher até os lábios rosados que o fizeram lembrar novamente o beijo e a fez entreabri-los. — Eu não... Aproveitando o ensejo, Robert a fez comer uma pequena porção de carne. Atônita, Imogen não soube como reagir no primeiro instante. Robert não conteve um sorriso. Ou a noiva participava agora do banquete de casamento ou atrairia realmente a atenção dos convidados caso resolvesse desprezar seu oferecimento. — Recuso-me a ser tratada como uma criança — ela resmungou, e Robert aproveitou para

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colocar em seus lábios um pedacinho de pão com ervas. — Não adianta tentar me morder — Robert murmurou perto dos cabelos dela, inebriado que estava pelo perfume que se desprendia dos sedosos fios. — Porque vou continuar alimentandoa. Se quiser brigar comigo depois, ao menos terá forças para me atacar. — Brincou, fingindo não estar vendo o rubor de indignação que tingia as faces delicadas. Na terceira vez que Robert levou a colher à boca de Imogen, o alimento foi derrubado pela rapidez com que ela trancou os dentes. — Eu avisei — ela disse em tom de ameaça. Jamais poderia esperar que Robert fosse rir de seu gesto. — Eu sei que você não é tola. Mas eu também não sou nenhum tolo. Com esse seu comportamento, você apenas está me incentivando a desenvolver minha criatividade. Contra todas as suas expectativas, Imogen surpreendeu-se rindo do humor sincero de seu marido. Robert, também contra todas as suas expectativas, reconheceu a iminência em que se encontrava de se apaixonar pela mulher que o destino lhe reservara. — Por favor, coma mais um pouco — ele implorou, sedutor. — Dá-me prazer olhar para você. Imogen não resistiu ao apelo. — Como dizer não a alguém que obviamente perdeu o juízo? A colher ficou pairando no ar antes que Robert se lembrasse de colocar a maçã assada com canela entre os lábios entreabertos. Seu sangue, de repente, parecia ter se transformado em fogo líquido. Ele mal podia respirar. Era um homem mundano. Conhecera muitas mulheres. Nunca, porém, fora arrebatado por uma jovem inexperiente capaz de excitá-lo com sua pura inocência. A volúpia que ele sempre associara às relações sexuais acabara de adquirir uma outra conotação. Estava se sentindo no centro de uma teia de emoções. Ao contrário do que seria de esperar, ele não queria a liberdade. Não mais. Sem se preocupar com os comentários que seu comportamento poderia provocar, Robert se levantou e puxou Imogen pela mão. — O que houve? — Imogen perguntou, aturdida com o barulho que a cadeira fez ao tombar. — Venha comigo. Imogen precisou correr para acompanhá-lo. Robert só diminuiu as passadas quando alcançaram a base da escada onde ninguém poderia vê-los do salão. — Robert, isso é uma loucura! — ela protestou, ofegante. Ele só voltou a si nesse momento e sorriu ao notar a expressão de espanto no rosto angelical. Imogen tentou se desvencilhar. Em vez de ceder, ele a atraiu inteira ao encontro de seu corpo.

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— Isso pode ser uma loucura — concordou, rouco. E antes que Imogen pudesse questionar o significado daquelas palavras, Robert se inclinou e carregou-a no colo. — Mas uma loucura agora permitida, minha esposa. Imogen descobriu, para sua perplexidade, que estava gostando da sensação de calor que irradiava do peito e dos braços de seu esposo. Em vez de tentar lutar para que o marido a soltasse, ela se aconchegou ainda mais. Uma calma sem precedentes a inundou ao sentir as batidas do coração de Robert. Aconteceu como se uma faixa de luz brilhante vencesse a escuridão, fazendo com que se sentisse bem pela primeira vez desde que perdera seus pais. Uma voz em sua consciência gritava, porém, para que ela se acautelasse. Porque aquilo tudo era uma ilusão. Nada que vinha de Roger poderia ser bom. Ele apenas mudara sua tática. Em vez de vir pessoalmente torturá-la, dessa vez se fizera representar por um lobo vestido com pele de cordeiro. A necessidade de amar e de ser amada foi maior que a prudência. Ao menos por uma noite, Imogen queria se sentir como uma mulher igual às outras, com direito a lutar por sua felicidade. Robert estava certo. Eles estavam casados. Se aquilo era uma loucura, era uma loucura permitida. A porta maciça resistiu à tentativa de Robert de empurrá-la com as costas. Imogen não saberia explicar sua conduta, mas sentiu uma súbita vontade de rir. — Talvez você deva me colocar no chão. Ela não reconheceu a voz que lhe chegou aos ouvidos. Tampouco reconhecia a mulher que se entregara com tanta confiança nos braços de um homem e que o estava encorajando a penetrar na intimidade de seu reduto. Ela existia. Apenas estivera adormecida à espera de alguém que fizesse vibrar as veias da paixão. Algo que Roger não conseguira lhe roubar. — Talvez você esteja certa — Robert concordou. Com uma delicadeza surpreendente para um homem daquele tamanho, Robert deslizou o corpo esguio até sentir que os pés dela tocavam o chão. Imogen sentiu o fôlego faltar a um simples pensamento de que Robert pudesse desistir e se afastar. Mas ele parecia ter lido sua mente. Seus braços continuaram envolvendo-a, como se a idéia de se separarem também lhe fosse insuportável. As emoções e sensações que percorriam seu corpo eram tão inéditas que ela não conseguia identificar nem sequer a si mesma. Mas o que sua mente não entendia, o instinto lhe ensinava como reagir. Robert não precisava pedir. Ela retribuía cada um de seus gestos como se eles já soubessem como agradar um ao outro. Imogen o ouviu gemer baixinho antes de se inclinar para beijá-la. Ao primeiro contato, ela sentiu uma leve tontura de tanto que seu coração acelerou o batimento. Como se adquirissem vida própria, seus braços o rodearam pelo pescoço. Os lábios entreabriram, receptivos, ao sentirem a ponta da língua de Robert tocá-los. Com um gemido mais alto e rouco, Robert exigiu a posse completa de sua boca. Ela o recebeu com avidez. Seu primeiro beijo de verdade. A porta que se abria para um mundo novo. Era como se até aquele momento ela tivesse vivido apenas à espera do que estava por acontecer.

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Robert estava lhe mostrando que a felicidade era possível. Os gemidos e grunhidos e o farfalhar dos tecidos, ao roçarem uns contra os outros, eram música para seus ouvidos. Á música do amor. Amor. O que significava exatamente fazer amor? Ela não sabia nada do amor entre um homem e uma mulher. Robert não lhe dissera como proceder. Seu corpo, porém, parecia conhecer o caminho que a faria cruzar o abismo do desconhecido de forma a chegar até ele. Seus dedos se perderam nos cabelos macios. Sentiu que os lábios dele pousavam na curva de seu pescoço e, sem que ela pudesse entender o que se passara, a razão venceu a emoção e o calor que a invadira se transformou em frio e rigidez. Suas mãos desceram até o peito de Robert e tentaram empurrá-lo. Dominado pela volúpia, Robert demorou alguns instantes para entender que sua paixão já não tinha resposta. Imogen se manteve no controle. Conseguira seu intento. Robert se afastara como ela queria. Por que, então, estava sentindo aquele vazio inominável? Por que, então, estava desejando que ele a convencesse a continuarem? Uma eternidade pareceu passar antes que ambos tivessem condições de voltar a falar. — Eu sinto muito — Imogen murmurou, por fim. Robert lhe acariciou gentilmente a face. — Sou eu que devo me desculpar. Por minha audácia. Eu a tirei de sua própria festa e me comportei como um irracional incapaz de conter seus desejos. Ela percebeu que o marido fazia menção de se afastar e impediu-o. Segurou-o pela mão e tornou a pressioná-la contra o rosto. — Eu não estou reprovando sua conduta. — Surpreendeu-se pela sinceridade que imprimiu à resposta. — Sou eu... Estou me sentindo esquisita... O inesperado aconteceu. O medo e a preocupação foram substituídos pelo estupor. As risadas de Robert a fizeram chacoalhar em seus braços. Porque ao ouvir sua declaração, ele a reclamara de volta. — Eu também estou. Não se preocupe com isso. Você precisa de tempo para se acostumar comigo eu lhe darei todo o tempo de que precisar. Ao dizer isso, Robert se afastou e Imogen teve de se encostar à parede para que suas pernas não cedessem sob seu peso, de tanto que tremiam. Robert se portara como um cavalheiro, mas ela percebera pelo tom de sua voz que o decepcionara. Deveria ter pensado duas vezes antes de rejeitálo. Arrependida, Imogen se sentou e abraçou os joelhos. A dor de Robert estava se refletindo em seu corpo. Ela estava captando a frustração do marido da mesma forma que absorvera seu riso. Robert interpretara sua atitude como um sinal de repulsa a uma demonstração natural de apreço e admiração masculina. Quando, de fato, foram lembranças das perversões cometidas por outro alguém que a fizeram se fechar em si mesma. Emoções fortes, mas bem-vindas, deveriam ser sufocadas em nome do medo? Esse

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pensamento ocorreu a Imogen com súbita clareza. — Eu não preciso de mais tempo. A decisão foi tomada em voz alta. Imogen estremeceu ao som das palavras, mas foi com convicção que respondeu quando Robert tornou a se aproximar. — Não é preciso que minta para me poupar. Teve toda razão em colocar um freio em meus avanços. Eu me portei como um selvagem. Os passos de Robert se distanciaram. Imogen calculou que ele tivesse se encaminhado para junto da lareira. Teve certeza de seu palpite quando ouviu a cadeira ranger ao acomodá-lo. Dilacerado pela culpa e pelo desejo que conflitavam em seu corpo, Robert escondeu a cabeça com as mãos. Mais uma vez, Imogen sentiu que ele estava sofrendo. Não teve mais dúvidas. Guiada pela respiração entrecortada, ela o encontrou e se ajoelhou a seus pés. Pousou a mão na coxa musculosa para que o marido acreditasse que estava sendo sincera e também porque o toque lhe dava prazer. — Você está enganado. De medo e de aversão eu entendo. Seu beijo foi bem-vindo. Eu o afastei de mim por um outro motivo. — Você se encolheu. — Não por medo de você. — Eu tenho o dobro de seu tamanho. — Mas não fez uso dele para tirar vantagem. Robert a respeitara. Jamais se esqueceria isso. Ele lhe dera a chance de escolha. Não tentara dominá-la pela força. E foi essa consideração que a levou a se comportar como jamais acreditara ser possível. — Gosto de tocá-lo. Permite que eu continue? Entendeu o silêncio como uma afirmação. Robert prendera o fôlego. Como negar algo que seu corpo ansiava febrilmente por merecer? Sentiu o sangue correr mais rápido por suas veias ao ver Imogen afastar suas pernas e se colocar entre elas. As pequenas mãos estavam subindo por seu tronco até alcançarem seu pescoço e suas faces. Depois ela tocou os lábios, a linha do nariz e das sobrancelhas. Por último, contornou as curvas de suas orelhas. — É tão bom fazer isso — murmurou, voltando aos lábios e introduzindo o indicador levemente na linha dos dentes. A carícia ultrapassou os limites de resistência de Robert. Incapaz de se conter, ele sugou aquele dedo como se fosse um néctar. Por pouco não tomou Imogen ao vê-la estremecer. — Incrível que gestos tão pequenos possam nos afetar tanto — Imogen declarou, sensual em sua ingenuidade. — Estou sentindo a textura de sua língua percorrer minha pele até o estômago. A exploração prosseguiu pelo queixo, pelo pescoço, pelos ombros. Ao encontrar a barreira da túnica, Imogen insistiu. Queria sentir o calor de Robert nas palmas de suas mãos. E seu desejo foi satisfeito com o movimento súbito que ele fez para se livrar do obstáculo.

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Robert precisou fechar os olhos à excitação quando Imogen mergulhou os dedos no manto de pêlos que cobria o tórax e descobriu os mamilos. Não sabia até que ponto resistiria ao ímpeto de buscar o desfecho natural do encontro. Entretida em seu próprio prazer, não cogitou na tortura que estava causando. Ao chegar à altura do umbigo, ela espalmou as mãos, uma de cada lado. Deteve-se ao adivinhar marcas de ferimentos. Algumas cicatrizes pareciam ser antigas. A maioria, no entanto, apresentava aspecto recente. Robert se encolheu subitamente e ela afastou a mão. Tentou impedi-la ao adivinhar sua intenção, mas ela o venceu e beijou o local. A surpresa o emudeceu ao ver Imogen se ajoelhar a seus pés para lhe dar conforto. Ninguém jamais o mimara. Nem mesmo em suas lembranças de criança. A ação de Imogen lhe despertou emoções inéditas. As vagas noções que aprendera sobre o casamento e sobre a necessidade de proteger a esposa se cristalizaram em uma sólida realidade que ele interpretou como sede de amor. Um sorriso surgiu, finalmente, nos lábios agora vermelhos como se a febre dele a tivesse contagiado. — Agora eu sinto que conheço você — ela disse. — Eu sei em minha mente como você é. A mão de Robert tremeu ao tocá-la no rosto. Bastaria um único movimento para fazêla completamente dele, Robert pensou. Imogen estava pronta fisicamente para se aprofundar nos mares da paixão. Ele estava mais do que pronto. Seu corpo estava inchado de desejo. Apenas ele fizera uma descoberta. Imogen era mais do que um corpo. E ele também. Deitá-la em um tapete diante da lareira lhe daria uma satisfação momentânea. A conquista de sua confiança e de seu coração o faria permanentemente feliz. Ele queria agora o mesmo que ela lhe tomara com suas carícias e com o beijo que significara o marco de uma nova fase em sua vida. Fez com que Imogen se amoldasse em seu colo. Ela tentou se esquivar de modo que ele precisou pedir que se aquietasse. Ela obedeceu, mas franziu o rosto porque essa mudança na atitude de seu noivo lhe causou estranheza. Em um momento, a tratava como mulher. De repente a segurava em seu colo como se ainda fosse uma criança. Ou feita de vidro. Ela gostara das sensações que Robert lhe despertara como mulher. No entanto, ele fizera questão de tranqüilizá-la no aspecto de que jamais lhe imporia sua vontade. Ocorreu-lhe que se ela realmente quisesse que ele continuasse tratando-a como mulher, dependeria de seus atos a continuidade da relação. — O que nós fizemos é o que fazem todos os casais? — ela resolveu perguntar. — Ou eles fazem mais do que beijar e trocar carícias? Robert precisou pigarrear para recuperar a voz. — Há mais do que beijos e carícias. — Mas você parou — Imogen prosseguiu, para desconforto de Robert que francamente não se sentia em condições de traduzir em palavras o que se passava por seus pensamentos. — Porque será melhor para você se esperarmos até conhecermos um ao outro e descobrirmos o que mais nos agrada e o que nos desagrada. Então eu lhe ensinarei tudo sobre o

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prazer que um homem e uma mulher podem se oferecer mutuamente. — Eu estava gostando. Robert engoliu em seco. Seu corpo estava em fogo. Em sua inocência, Imogen era a mulher mais ardente que ele já conhecera. E a mais doce. Não queria se arriscar a perdê-la, apressando uma situação contra a voz do bom senso. — Eu também. Não pode avaliar como me agrada ouvir isso. — Robert apoiou o queixo no alto da cabeça de Imogen e brincou com as madeixas da cor do ébano, enquanto seu olhar se perdia nas chamas como em busca de coragem para adiar o momento pelo qual ansiava. — Mas para que você continue gostando de tudo que fazemos juntos, eu acho que precisamos ir devagar. — Você prefere ir mais devagar só por minha causa? A impaciência de Imogen o estava afetando mais do que desejaria admitir. Se ela insistisse, acabaria vencendo sua resistência. — Devagar se vai ao longe. Conhece esse ditado? Eu tenho muitos planos para o futuro e pretendo realizá-los todos. Não seria possível alcançar êxito se os percorresse todos de uma vez. Nesta primeira noite, eu me contentarei em abraçá-la. Quero segurá-la junto de mim, se você também quiser. Com o corpo ainda latejando de desejo, Imogen se viu forçada a reprimir seus impulsos. Não ficaria bem continuar provocando seu marido, depois do que ele dissera. Afinal, se ele queria esperar, ela também conseguiria. — Dormiremos abraçados ou você está pensando em termos de nos recolher a aposentos separados? Ela sentiu que Robert a abraçava com mais força antes de responder. —A partir desta noite, seu quarto também será o meu. O tom ditatorial roubou de Imogen a estudada calma. Ela estava se sentindo frustrada, de uma maneira que não saberia explicar. Como o marido podia decidir sobre o que era ou não bom para ela? Como podia se apoderar de um espaço que sempre pertencera exclusivamente a ela? Seu refúgio sagrado? Com passos firmes, no território que conhecia palmo a palmo, Imogen foi até o leito, puxou a manta de pele e atirou-a na direção de onde viera. — Imagino que esteja acostumado a dormir no chão quando em campanha. Ele apanhou a coberta em pleno ar, por reflexo. Em outras circunstâncias, teria ficado zangado, mas desculpou Imogen. Em sua pretensão de dominá-lo, ela se esquecia de que ele era o mais forte e que poderia lhe impor sua vontade quando bem entendesse. Mas medo era uma das emoções que Robert odiaria despertar em sua esposa e deveria ser justamente essa condição que a estava fazendo tremer ao pé da cama. — Se é assim que você deseja, assim farei — Robert concordou, tomada a decisão de protegê-la, de fortalecer seu espírito de confiança. — Embora eu esteja acostumado ao chão dos

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campos de batalha, atrevo-me a pedir que me empreste ao menos sua cadeira. A estratégia não funcionou. Imogen esperava que seu desafio rude fosse enfurecê-lo e atirá-lo contra ela, mas Robert continuava se portando como se nada tivesse o poder de abalar sua vontade. Ao silêncio que se seguiu, Imogen precisou engolir em seco. — Você não vai ficar olhando enquanto eu me preparo para dormir, não é? — Posso fechar os olhos, se você quiser. — Como vou saber se você cumprirá sua promessa? — Terá de aprender a confiar em mim, pequena. Eu sou um homem de palavra. Quando digo sim, é sim. Quando digo não, é não. — Ele bocejou de propósito. — Além disso, estou cansado demais para manter meus olhos abertos por mais um minuto. Boa noite. Imogen o ouviu soprar uma vela e conteve a respiração. Seu coração batia tão forte que o som parecia ecoar pelas paredes. — Robert? Você não está olhando, está? — ela acabou por chamá-lo após alguns instantes de completo silêncio. Ele não respondeu. Desajeitada, por não estar habituada a trocar de roupa sem a ajuda de Mary, puxou as pontas da fita para desfazer o laço que prendia o corpete. Era sua noite de núpcias e o orgulho a impedira de revelar a verdade. Do outro lado, Robert apertava os lábios no esforço de conter o protesto que teimava em se manifestar. Ele já havia passado por momentos difíceis, mas nenhum que se comparasse a esse. A tentação de abrir os olhos e ver Imogen nua beirava o insuportável. Ela nunca teria conhecimento caso ele cedesse a essa tentação. E ele teria se aproveitado dessa vantagem se não estivesse tão compenetrado em se redimir de seu passado, e de se tornar um novo homem, capaz de amar e de respeitar sua esposa. Então se entregou ao deleite de ouvi-la. Ouviu seus murmúrios de esforço e de alívio quando finalmente conseguiu afastar o vestido dos ombros e fazer com que resvalasse para o chão. Nas circunstâncias, até mesmo o sussurrar dos tecidos apelava para seu erotismo. Um fio de suor umedeceu-lhe a fronte, mas ele se manteve firme em sua decisão. Só tornou a abrir os olhos depois que a ouviu puxar as cobertas e se deitar. — Você olhou? — Imogen perguntou baixinho. Ele não pode evitar um sorriso e uma necessidade premente de tomar fôlego diante da vista magnífica dos cabelos negros espalhados sobre o travesseiro branco. E de satisfação à certeza de que Imogen confiara em sua palavra, apesar de mal se conhecerem. — Não, pequena. Eu não olhei. Um bocejo antecedeu o movimento que Imogen fez ao se virar de lado para finalmente se entregar ao torpor que a invadira. Suas últimas palavras tornaram impossível para Robert conciliar no sono antes do amanhecer. — Eu acho que não teria me importado se você resolvesse espiar só um pouquinho. Robert acordou com um sobressalto. Sua mente o levara de volta para os campos de

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batalha onde lhe fora atribuída a missão de contar os mortos. Ele estava ferido. Havia sangue por toda parte. Por mais que se esforçasse por realizar sua tarefa, o número de corpos nunca chegava ao fim. Era um pesadelo que se repetia. A única forma de afastá-lo era acordar e lavar o rosto com água fria. Com um movimento brusco, Robert tentou enxergar alguém vivo entre as pilhas de mortos. Descobriu que estava completamente sozinho. A angústia explodiu em forma de um gemido abafado que o fez acordar. Aliviado por se livrar do pesadelo, Robert olhou ao redor. O fogo havia se extinguido. Agora só restavam cinzas na lareira e o frio começava a penetrar em seus ossos. Moveu-se na cadeira na tentativa de encontrar uma posição mais confortável. Para um homem de seu tamanho, dormir sentado era também uma tortura. Um ruído abafado o colocou em alerta. Virou-se na direção da cama e viu Imogen se debater. Seu grito foi tão assustador que o fez levantar de um salto. Em dois segundos estava ao lado dela. Sentiu-a fria ao tomá-la nos braços. Chamou-a e ela não respondeu. O terror o contagiou. Imogen continuava se debatendo como se lutasse contra fantasmas. O coração dele se apertou de compaixão. — Imogen, pelo amor de Deus, acorde! Os olhos abriram, mas Robert sabia que ela continuava no escuro. Seus próprios olhos encheram de lágrimas de tristeza e de dor. Em seguida, Imogen escondeu o rosto com as mãos e seu corpo foi sacudido por soluços. Robert descobriu que não importava se ela continuasse dormindo ou acordasse. Porque seus medos a perseguiam sem trégua. Para Imogen não havia diferença entre o dia e a noite. Entre a luz e as sombras. Ele atraiu-a contra o peito e se pôs a embalá-la, subindo e descendo a mão por suas costas para confortá-la. Imogen se entregou ao calor daquele abraço. Era a primeira vez que não precisava buscar alívio em seu travesseiro. Agora contava com os ombros e o peito de seu marido para repousar sua cabeça atormentada. Com a voz sussurrada lhe dizendo que estava tudo bem, que ele estava ali para protegê-la. Devagar, ela foi se acalmando. Mas ele não a soltou. Talvez Imogen não precisasse mais de seu amparo, mas Robert se descobriu precisando daquele aconchego como do ar que respirava. O sorriso tímido que surgiu naquele rosto pálido e brilhante de lágrimas foi a coisa mais linda que ele já vira na vida. Com o polegar, as secou. — Quer me contar a respeito? Imogen mordeu o lábio e negou sem falar. — Às vezes, a carga se torna mais leve quando a partilhamos com alguém — procurou persuadi-la. Novas lágrimas surgiram naqueles olhos sem vida. — A carga é pesada demais. Mesmo que eu tente dividi-la, ela sempre continuará a me esmagar. Ocorreu a Robert que não deveria pressionar sua esposa sob o risco de perturbá-la ainda

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mais. Imogen precisava de tempo em todos os sentidos. Talvez algum dia ela conseguisse falar de seus medos. Então ele beijaria as feridas de sua alma, como ela beijara as cicatrizes de seu corpo. Robert deslizou as pontas dos dedos pelos braços de Imogen até lhe pegar as mãos. Nesse instante, hesitou. — Você gostaria que eu continuasse aqui a seu lado na cama? — Ele procurou imprimir indiferença à pergunta, mas sua respiração estava suspensa de expectativa. Até ouvir o oferecimento, Imogen não se atrevera a materializar seu desejo de ter Robert a seu lado. Um homem em sua cama. A idéia a fez estremecer. Mas como recusar a proteção ao seu alcance quando o demônio do medo a assaltava sem aviso? — Sim. Por favor, fique. Antes que Imogen pudesse se arrepender, Robert a recostou sobre o travesseiro. Suspirou, tomado por uma paz indescritível ao vê-la fechar os olhos e se aconchegar a seu peito. Não importava que tivesse sido o terror o responsável por ela tê-lo aceitado em sua cama. O fato de ter confiado nele em sua primeira noite de casados era mais do que ele jamais teria ousado sonhar. Mas, por mais que se esforçasse por se confortar com esse pensamento, não foi capaz de se conformar com a realidade.

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Capítulo III Para onde, exatamente, ele foi? — Imogen indagou, surpresa e desapontada. Mary gesticulou, impaciente, sem se lembrar de que sua ama não poderia notar a ênfase que pretendia imprimir a seu esforço de lhe devolver a serenidade. — Eu já lhe disse. Sir Robert foi até a torre de pedra e levou alguns homens consigo. Você não deveria ficar tão aborrecida. Ele está se esforçando por melhorar a qualidade de vida neste fim de mundo. — Oh, sim — Imogen caçoou. — Tudo o que ele tem feito, desde que chegou, é lindo e maravilhoso! Só falta você colocá-lo em um altar como santo! — Ao dizer isso, Imogen hesitou. O que lhe dera para se referir dessa maneira ao marido? Robert merecia crédito e reconhecimento por seu empenho em proporcionar uma vida melhor aos camponeses. Não havia nada que justificasse sua indignação. Mas ela se recusava a ir embora. Com os braços cruzados sobre o peito, Imogen se encaminhou para a janela. A temperatura estava mais elevada do que se esperava para a época. Talvez o inverno estivesse finalmente se despedindo. Ou, então, tinham sido as ordens de Robert para que o fogo permanecesse aceso em todas as dependências da casa a causa do intenso rubor nas faces de Imogen. Incomodada com a irritação que a invadira sem um motivo justo, tentou entender o que estava se passando com ela, e chegou à conclusão de que estava com ciúme. Havia feito o melhor ao seu alcance. Se a propriedade se encontrava em mau estado de conservação, não fora por sua escolha. Roger transformara Shadowsend Keep em uma espécie de presídio feminino, com dois homens apenas para cuidar dos trabalhos mais pesados. Duncan acumulava as funções de cavalariço, pastor e jardineiro. Dados seus sessenta e quatro anos, ele desempenhava magnificamente seu papel. Lucas, em contrapartida, o filho da cozinheira, ajudava aqui e ali, em pequenas tarefas, o que também era surpreendente para um menino de sete anos de idade. Diante desse fato, como Robert estava conseguindo manter o fogo aceso? Mais ainda, quem ficara encarregado de abastecer a casa de lenha? A única resposta que lhe ocorria era que Robert havia trazido outros homens consigo ou então contratara mão-de-obra extra após a cerimônia de casamento. A vida mudara para todos em Shadowsend Keep. A dela, em especial. As surpresas se repetiam. À novidade da cerimônia e da noite de núpcias somara-se o amanhecer de seu primeiro dia de casada. Ela havia acordado cedo e procurado seu marido no leito, mas encontrara apenas o vazio.

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O impacto que sentiu foi o de uma punhalada. Não estava preparada para dividir seu quarto, nem sua cama com ninguém, mas permitira que Robert se deitasse a seu lado. E como ele retribuíra sua consideração? Enfim, a culpa era dela. Baixara sua guarda e agora precisava assimilar aquela sensação de abandono, de traição. A traição de seu corpo, mais do que a de Robert. Em vez de virar para o outro lado e esquecê-lo, abraçou o travesseiro onde ele repousara a cabeça. Ao menos esse conforto ninguém poderia lhe tirar. Em presença de outras pessoas, Imogen continuou se portando como de costume. Não queria ser alvo de piedade. Por mais vontade que sentisse de chorar, mantinha-se firme. Deplorava a idéia de ser apontada como uma noiva indesejada. O que não deixava de ser. Apesar dos longos anos de isolamento a que seu irmão a condenara, a solidão do presente era ainda pior. Quando ele finalmente voltou da torre e a procurou em seus aposentos, Imogen comparou o encontro ao sopro da brisa de inverno. Robert se manteve distante como se fosse um forasteiro. Não disse nem sequer uma palavra sobre o casamento. Apenas informou que os cavalos haviam chegado e que mais alguns de seus homens passariam a viver na propriedade. Comunicou ainda, sem que se lembrasse de lhe estender o convite, que mandara servir o almoço no salão principal. As refeições obedeceram a esse padrão nos dias que seguiram. Imogen, invariavelmente isolada em seu quarto, podia ouvir o eco das vozes e risadas. Por mais que tentasse ignorá-las, a indignação se infiltrava em seu sangue a ponto de fazê-la perder o apetite. A tristeza a consumia. Porque depois de vislumbrar uma chance de um futuro mais feliz, o peso da solidão se tornara insustentável. Noite após noite, ela adormecia só depois de ser vencida pelo cansaço. Noite após noite, as lágrimas foram suas únicas companheiras. Os pesadelos, contudo, não voltaram a atormentá-la. Sonhos maravilhosos traziam prazer a suas noites. Vivia para esperar por esses momentos. Os dias a amarguravam. Durante o sono, o esposo a visitava. Os beijos e as carícias pareciam reais. Uma parte dela queria convencê-la de que Robert vinha realmente a seu quarto todas as noites. Mais de uma vez tentou acordar e conferir se sua intuição era verdadeira, mas sua mente se recusava a deixar a névoa que a envolvia enquanto seu corpo queimava de desejo. Algumas vezes, tinha a impressão de que sentia o cheiro de Robert em sua pele e nas cobertas. Depois, dizia a si mesma que era sua imaginação. A esperança que a acalentara nos primeiros dias logo se provou um tormento tão terrível quanto o que Roger provocava. O ressentimento começou a se avolumar em seu coração. Quanto maior era o afastamento de Robert, mais seus pensamentos se ligavam a ele. De uma maneira perversa, nas raras ocasiões em que Robert a visitava, ela o recebia com uma frieza que impossibilitava qualquer tentativa de reconciliação, mesmo que uma voz em seu interior dissesse que se ela não mudasse de atitude, acabaria perdendo-o irreversivelmente. A indignação e a revolta eram mais fortes do que ela. Não bastasse ter conhecido o calor dos braços de um homem para depois perdê-lo, ela também perdera o controle sobre sua própria morada. Isso não podia continuar! — Mary, eu preciso de sapatos resistentes e de um casaco grosso. Sabe se existem peças

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que me sirvam no armário? — Eu acredito que sim, mas por que deseja...? — Vá buscá-los, por favor! — Imogen não permitiu que Mary continuasse, ansiosa que estava para sair ao pátio. — Quero verificar o andamento das obras. O queixo de Mary virtualmente caiu. — Você não pode estar falando sério! A torre fica a três horas de distância! — Não importa — Imogen retrucou, como se recusasse a admitir a dificuldade da empreitada. — Claro que importa! — Mary retrucou. — Eu não a estou reconhecendo! Você vive encerrada em seus aposentos. Uma visita ao salão principal em anos não a habilita a se aventurar por terrenos acidentados e cobertos de neve. — Estou disposta a enfrentá-los. — Seria uma loucura, Imogen Colebrook! — Se eu estou maluca, não me contrarie. E não me chame mais de Imogen Colebrook. Tente se lembrar de que passei a me chamar Imogen Beaumont com o casamento. Mary corou sem que Imogen pudesse ver. A camareira sabia que devia respeito a sua ama, mas a amizade que existia entre elas era sincera o bastante para ela desobedecer as suas ordens em nome do bom senso. — Não mude de assunto. Estávamos falando sobre a dificuldade de andar com os pés afundando na neve! — Não está insinuando que eu engordei, está? — Imogen caçoou, bem-humorada para sua própria surpresa e perplexidade de Mary. — Não. Seu corpo está perfeito, como sempre. Não sei como pode. Qualquer quilo adicional invariavelmente vai parar nos lugares certos. — Acha mesmo? — Imogen perguntou com uma nota de satisfação na voz enquanto contornava os quadris com as palmas das mãos. A contrariedade de Mary passou diante da alegria que proporcionara a Imogen com sua pequena observação. Muitas vezes ela se esquecia do quanto a vida castigara aquela adorável jovem. — Lógico que estou. Agora basta de perguntas! Ou eu não terei como apanhar as coisas que me pediu. Enquanto aguardava, Imogen torceu as mãos de excitação. Não importava que seu destino fosse a torre sombria que Roger construíra como réplica da outra que fora palco de sua desgraça. Ela estava voltando para o mundo dos vivos com aquela pequena expedição. Mal podia acreditar que fosse verdade. — Arranjei sapatos e um casaco que parecem lhe servir — disse Mary alguns minutos

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depois. — Trouxe também um par de luvas, um chapéu e o menino Lucas comigo. — Lucas? Por quê? — Imogen franziu o rosto enquanto se sentava para calçar os sapatos. — Porque a cabeça de ao menos uma de nós precisa estar funcionando! — Mary redargüiu. — Você não tem condições de andar por aí sozinha e eu não poderia lhe dar a graça de minha companhia, mesmo que quisesse. Minhas pernas já não agüentam longas caminhadas, ainda mais com a neve chegando aos joelhos. E Lucas foi o único que encontrei com tempo disponível para dar um passeio. Imogen se levantou e se pôs a andar de um lado para outro para se certificar de que os sapatos lhe serviam. Estavam um pouco apertados, mas teriam de bastar. — Sorria, Mary! — Imogen bateu palmas. — Se ficar boazinha, talvez eu lhe traga uma bola de neve. Mary suspirou. Esperava não se arrepender de estar ajudando Imogen a cometer o que ela julgava uma imprudência. Abaixou-se e pegou o casaco que deixara cair e colocou-o nos ombros de sua ama que o segurou como se fosse um manto real. — Como lhe pareço? — Imogen inclinou o corpo em uma mesura. — Uma ladra de roupas! Imogen virou para trás ao ouvir a observação. Mary ralhou e a fez sorrir com isso. Ela estava se zangando com o menino Lucas, não apenas por sua indelicadeza, mas também por ele ter tirado uma maçã do cesto. — Não se atreva a tornar a mexer aí. Eu preparei essa pequena refeição para lady Imogen levar a sir Robert. Essa recomendação bastou para impressionar o menino que, entusiasmado com a perspectiva de uma aventura, terminou de comer rapidamente a fruta e limpou as mãos na roupa ao chamado de lady Imogen para que eles partissem. Mary, ao contrário, torcia as mãos de apreensão. Tanto que rezara por aquele momento, e agora temia ver Imogen se afastar de casa. Seguindo as orientações de Mary, Lucas segurou a mão de Imogen para guiá-la. Dois tropeções depois, ela resolveu mudar de tática antes que acabasse rolando pelas escadas, levando o menino consigo. Ele era pequeno demais Para alguém de sua estatura. Em vez de lhe dar a mão, ela procurou se apoiar no ombro dele. Mary acompanhou os movimentos com a respiração suspensa. Suspirou, aliviada, ao vê-los chegarem ao pé da escada, inteiros. E assim que os viu atravessarem o pátio, apanhou o lenço que sempre trazia no bolso do avental e assoou o nariz. Porque acabara de testemunhar um milagre. E assoou novamente o nariz, certa de que precisaria de muitos outros lenços. Até que Imogen e Lucas retornassem, ela não teria sossego. Imogen caminhava distraída. Shadowsend Keep parecia deserta após a intensa atividade das últimas semanas. Ela não precisou perguntar a Lucas onde eles estavam para saber que atravessavam o pátio uma rajada de vento lhe serviu de resposta. Assim como o silêncio do menino lhe dizia que ele estava compenetrado em cumprir sua missão a contento.

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— Podemos andar mais depressa? — Imogen sugeriu. Poderia sair cantando e dançando tal seu entusiasmo à perspectiva de encontrar Robert. — Se milady não se importar de cairmos de cara no chão! — Lucas respondeu com a espontaneidade própria de uma criança. — Só um pouco mais depressa, então? — Poderíamos até correr — Lucas explicou —, mas sir Robert me picaria em mil pedaços se por minha causa milady quebrasse uma perna! Imogen chamou o menino de covarde, mas ele percebeu que ela estava brincando pelo modo como lhe sorriu. Lucas teria respondido de maneira que lady Imogen soubesse quanto ele se sentia honrado com a tarefa que lhe fora confiada, se algo não o fizesse estancar. — Por que parou de repente? Por pouco eu não caí realmente de cara no chão! — Imogen se queixou. — Da próxima vez, lembre-se de me avisar antes de resolver mudar o passo. — Perdão, milady. — A culpa foi minha. Imogen estremeceu. Alguém estava se aproximando. Pela voz, era um desconhecido. Lucas obviamente se assustara ao dar por sua presença. — O senhor está obstruindo nosso caminho. Queira se afastar para que possamos prosseguir. — Sinto muito, milady, mas tenho ordens a cumprir. Sir Robert me encarregou de zelar pela segurança de todos na casa. A menos que me diga para onde está se dirigindo, serei forçado a impedir sua passagem. Imogen franziu o cenho. — Venha comigo, Lucas. Quem esse sujeito pensa que é para tentar tolher meus movimentos? Lucas hesitou. Desde que sir Robert tomara posse de Shadowsend Keep, duas semanas antes, ele aprendera a respeitá-lo e a seus cavaleiros. Por camaradagem, um daqueles homens batera em suas costas e ele saíra quase voando pelos ares. Aquele era sir Gareth, uma espécie de líder dos outros. Não se atreveria a desafiá-lo, se estivesse no lugar de lady Imogen. Além de respeito, aqueles guerreiros despertavam sua veneração. Até que eles chegassem, o velho Duncan era o único homem que lhe servia de modelo. Sempre que surgia uma chance, cobria-os de perguntas. Eram pessoas amigáveis apesar do aspecto intimidador. Um deles o deixara segurar sua espada. Preferiria morrer a decepcionar seus heróis. E também era esperto o bastante para entender que seria inútil ignorar a autoridade de que sir Gareth se revestia, embora tivesse sido o último a chegar, quando sir Robert já se encontrava fora. — Desculpe, milady, mas eu acho...

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— Eu não pedi para você achar nada, Lucas, mas para vir comigo. Se não quiser me acompanhar, então eu seguirei sozinha. Imogen largou o ombro de Lucas e, antes de ponderar sobre a insensatez de seu ato, dirigiu-se para o local onde supunha que o brutamontes estivesse. Sua intenção era passar por ele. Em vez disso, trombou contra seu peito. — Se o senhor tivesse feito a gentileza de se esquivar, isto não teria acontecido. Trate de se afastar imediatamente ou... — Imogen deixou escapar um grito ao sentir seus pés perderem o chão e seu corpo ser colocado sobre um ombro que parecia um tronco de árvore. Lucas não gritou, mas ela ouviu sua exclamação de assombro. Sem dizer nada, o cavaleiro a carregou de volta para o salão principal onde a largou como um saco de batatas. — Agora pode me dizer seu nome? — ele cruzou os braços, mal contendo um sorriso diante da expressão enfurecida da linda jovem. — Ainda não lhe ocorreu que eu sou lady Imogen Beaumont, a senhora deste lugar, e que o farei pagar caro por sua impertinência? Gareth mal conteve um sorriso. Então aquela era a esposa de Robert. O amigo acabara encontrando a sorte grande. Lady Imogen era linda. — Peço que me perdoe pela ofensa, milady, mas é meu dever zelar pela segurança de todos que habitam este lugar. — Faz parte de sua função intimidar mulheres e crianças indefesas? Foi essa a missão que lhe deram? — Não, milady. Ordens me foram transmitidas para proteger Shadowsend Keep e seus ocupantes até o retorno de sir Robert. — Sua missão o autorizou a usar de força física para dominar seus protegidos? — Não, milady. Isso não fazia parte de minhas atribuições. Tocar em mulheres bonitas é um dos prazeres que a vida às vezes nos oferece. Imogen estreitou os olhos. — Está flertando comigo? Gareth refletiu por um instante antes de responder. — Acredito que sim, milady. Sem se deixar afetar pela empáfia daquele homem, Imogen apoiou as mãos nos quadris. — O que acha que sir Robert fará quando souber de seu atrevimento para comigo? — Eu estava esperando, milady, que o fato não chegasse aos ouvidos dele. O riso de Imogen foi tão espontâneo quanto inesperado. A resposta franca afastou, imediatamente, qualquer sugestão de malícia. Para Gareth, a reação de lady Imogen podia ser

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comparada ao arco-íris que surge após a tempestade. —Aprovo sua demonstração de honestidade desonesta — Imogen declarou, ainda conservando vestígios de humor. — Gostaria de saber o nome de tão galante cavaleiro, encarregado de zelar por minha sobrevivência e dos que me servem. — Sir Gareth de Hugues, o segundo homem sob o comando de seu marido, depois do velho Matthew. — Nesse momento, Gareth se lembrou de inclinar o corpo em uma mesura. Ele ainda não voltara a si com o impacto da descoberta. Não conseguia entender como uma mulher tão bonita podia ser conhecida pelo apelido de dama disforme. Achava ainda mais incrível que Robert a tivesse deixado sozinha em plena lua-de-mel. Mais que a beleza, no entanto, foi a personalidade marcante de lady Imogen que o impressionou. Pela primeira vez em sua vida, ele se surpreendeu invejando um amigo. Como Robert podia se manter afastado durante todo aquele tempo estava além de sua compreensão. Se algum dia encontrasse uma noiva formosa como lady Imogen, ele lhe dedicaria todos os seus dias. Em pensar que sempre considerara Robert um homem inteligente! Não mais. — Sir Gareth. — Imogen moveu a cabeça em uma saudação. — E um prazer conhecê-lo. — O prazer é todo meu. — Ele sorriu. — Pode me dizer agora para onde pretendia ir? — Lucas estava me levando à torre. — Uma criança fazendo o trabalho de um homem? — Na verdade, uma criança fazendo o trabalho de uma velha senhora — Imogen explicou. — Mary representa meus olhos, mas ela declinou de meu convite por causa do desconforto que o frio e a distância encerram. — Ela representa seus olhos? — Gareth estranhou a declaração. — Sim. Porque meus olhos não enxergam. O impacto da notícia o emudeceu por um momento. Em seguida, ele entendeu a origem dos rumores a respeito da noiva do amigo e líder. — Permita-me oferecer os meus para guiá-la. São azuis e excepcionalmente capacitados. Considere os meus olhos e a mim à sua inteira disposição. A aceitação irrestrita de sir Gareth comoveu Imogen. Não se importou, portanto, que ele tornasse a segurar sua mão e a levasse aos lábios. — Sim, obrigada. De repente, o protesto de Lucas soou como um chamado à razão. — Mas fui eu que recebi a incumbência de levar milady ao acampamento na torre. Imogen se surpreendeu com seu lapso de memória. Normalmente, ela conseguia se ater a seu planejamento mental de orientação. Mas entretida com a conversa, chegara a esquecer que Lucas continuava a seu lado. Não estava acostumada à companhia de homens e sir Gareth a fizera sentir especial.

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— Lucas, na vida é preciso aprender a ganhar e perder — disse Gareth. — Principalmente quando seu rival é alguém de mais do dobro de seu tamanho. — Mas Mary me deu ordens para acompanhar milady. — Por que não vamos juntos? — Imogen propôs. — Lucas poderá seguir à frente, abrindo o caminho. E eu tenho certeza de que há comida o bastante para todos nós. Embora a contragosto, Lucas não resistiu à menção da comida e da atribuição de um papel de relevância. — Eu vou abrir o caminho como um soldado no exército? — Sim — Gareth concordou com a autoridade que lhe era conferida. — E você já pode aliviar o peso do cesto, provando uma ou duas das iguarias que Mary nos preparou — ofereceu Imogen. Os três prosseguiram como se fossem amigos de longa data. Imogen pensou que ninguém nunca a fizera rir como sir Gareth. Ele não lhe despertava emoções e sensações estranhas pelo corpo como Robert, mas seu jeito simples e afável era um bálsamo para seu orgulho ferido. Robert caminhava com extrema cautela sobre as pedras, seguido de perto por seu fiel escudeiro. — O que pretende fazer para marcar sua posse? Fincar uma bandeira no alto da torre? Robert escutava as provocações de Matthew mas reconhecia o orgulho contido naquelas palavras. Matthew mais parecia seu pai do que um velho companheiro. Velho também em idade. No início, quando Robert o convidara para participar da excursão, Matthew resmungara durante uma hora, no mínimo, sobre as agruras do clima e sobre a impossibilidade de ele colocar seus ossos gastos sobre um cavalo que o faria sacolejar durante horas intermináveis. Como sempre fazia quando seu velho amigo se dispunha a reclamar, Robert encolhera os ombros. Sabia, contudo, que mais cedo ou mais tarde Matthew partiria para uma revanche. Daquela vez por um duplo motivo: ser arrancado de uma cama quente e por ter sido ignorado. Robert ergueu os olhos para o alto e suspirou. Teria de dar a mão à palmatória. Dessa vez Matthew conseguira facilmente sua vingança. Ele estava certo quando apontara para aquele local como um amontoado de pedras inúteis. De qualquer ângulo que se olhasse, a vista alcançava o horizonte sem encontrar nenhum obstáculo. Era um total absurdo que alguém tivesse mandado construir uma torre no meio do nada e sem acesso para seu interior. — Tanto empenho, tanta luta, e tudo para quê? — Matthew caçoou. — Até quando você pretende continuar me provocando? — Robert resolveu protestar por fim contra o tratamento. — Tem rido a minha custa desde antes de chegarmos a Shadowsend Keep. Eu não vejo onde está a graça. As feições de Matthew contraíram. — Para ser franco, nem eu. Apenas não consigo encontrar nenhuma desculpa para você ter desprezado um leito confortável e aquecido, não só por peles, mas por sua linda esposa, de modo

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a se embrenhar entre as pedras de uma torre que já sabíamos não ter serventia desde antes de sua chegada a Shadowsend Keep. Você pode me chamar de senil, mas eu o chamo de louco. Porque só uma completa insensatez poderia explicar seu procedimento. Ou uma tragédia. — Minhas razões não são tão absurdas quanto parecem — Robert se defendeu. — E você não precisaria ter vindo, se não quisesse. — Não se apoquente, meu rapaz! — A ironia vibrou novamente na resposta. — Eu não teria perdido esta excursão por nada no mundo. Você sabe que eu adoro a sensação de torpor em meus pés e em minhas mãos quando se congelam, e a impressão de que minhas costas partirão em duas sobre o lombo de um cavalo. Sofrer faz bem para a alma, se não para o corpo. A eloqüência de Matthew acabou arrancando um sorriso de Robert. — Bem, o quanto antes encontrarmos a entrada para a torre, o quanto antes poderemos voltar para o acampamento, onde nossos homens já devem ter acendido uma fogueira. — Esse é uma outra situação que eu não consigo entender — Matthew confessou. — Por que você insiste em continuarmos acampados se agora temos condições de dormir com um teto sobre nossas cabeças? As pessoas acampam quando estão longe de casa. Shadowsend Keep, além de ficar perto daqui, é sua casa agora. Incapaz de dar uma resposta plausível a uma observação perfeitamente coerente, Robert sentiu um forte calor lhe subir pelo pescoço. — Eu mandei que eles acendessem uma fogueira para podermos cozinhar. Ficaremos com fome se tivermos de esperar até a noite para fazermos uma refeição. — Você pretende ficar aqui mais um dia inteiro? — Matthew protestou. — De quanto tempo mais você precisa para se convencer de que não vale a pena? — Pensei que poderíamos verificar as chances de restauração da torre e aproveitar para caçarmos e contribuirmos para aumentar o estoque de alimentos. — Nunca ouvi uma desculpa tão esfarrapada. O mínimo que eu poderia esperar de você, depois do sacrifício que me obrigou a fazer, era que me dissesse a verdade. — Eu disse a verdade — Robert retrucou, sem coragem para sustentar o olhar de reprovação, e zangado consigo mesmo por não saber onde colocar as mãos, como se fosse um menino apanhado em flagrante durante uma traquinagem. O resmungo de Matthew foi satisfatório em exibir seu patente ceticismo. — Você tem se debatido durante as últimas duas semanas como uma abelha presa dentro de uma garrafa. Anda de um lado para outro desde que o sol nasce até ele se pôr. Talvez também durante a noite. Não tenho certeza porque pessoas, na minha idade, precisam dormir por mais que queiram permanecer acordadas e vigilantes. — Matthew fez uma pausa e colocou a mão sobre o ombro de Robert. — É óbvio que você está fugindo de alguma coisa. Hoje isso ficou mais claro do que nunca. Por que não se abre comigo de uma vez e me conta o que está acontecendo? A gentileza inesperada em comparação com a ironia rude com que Matthew costumava tratá-lo, derrubou suas últimas defesas. Ele se afastou alguns passos e ficou olhando para uma pedra

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de tamanho maior do que as outras. — A verdade, meu caro, é que eu não sei explicar o que está acontecendo. Porque eu mesmo não entendo. Tenho a impressão de que estou amarrado. Antes era tudo tão simples. Eu ansiava por terras e por um título e derramei sangue pela conquista de meus sonhos. Empenhei-me por ser o melhor e acabei me tornando um guerreiro famoso. — Eu sempre soube que você não era um guerreiro de coração. Aquele que mata sem escrúpulos, não se sente culpado do que faz ou foi obrigado a fazer. A alma gentil nunca deixou de existir sob a armadura de que se revestiu seu corpo. — Tome cuidado com o que diz, velho homem. Guerreiros se sentem honrados pela coragem que lhes atribuem. A gentileza soaria como uma ofensa. Eu não desejaria que tivesse de vê-lo pagar por essa afronta. Matthew fez um movimento de descaso. — Se eles quiserem me partir ao meio por afirmar algo que os contraria, então eu espero saber lidar com a situação e não deixar que minha língua traia meus pensamentos. Robert deu mais alguns passos e se sentou sobre uma pedra. — Gentil ou não, eu fiz o que tinha de ser feito. Aconchegando-se mais às peles, para afastar o frio, Matthew também fez de uma pedra um banco. — O que mudou? — Toda a minha vida — Robert respondeu, os olhos erguidos para o céu nublado. — Eu agora tenho tudo que sempre quis e descobri que não é o suficiente. — O que está faltando? — Matthew perguntou, embora já soubesse a resposta. — Eu lhe direi quando descobrir. — Rapaz, eu não gostaria de estar em seu lugar. Parece que você conseguiu tornar algo simples em um monstro complexo. Robert se levantou e se pôs a andar de um lado para outro. — O monstro complexo já existia. Eu apenas o herdei. Quando penso que consegui eliminá-lo, como se elimina as ervas daninhas, outras surgem em seu lugar. — O que pretende fazer a respeito? — Continuar fugindo até que chegue o momento de me virar e enfrentá-lo. Os dois homens voltaram a andar sobre as pedras. — Não acho que esse seja um plano salutar. — Nem eu — Robert concordou e baixou a cabeça. — Talvez devêssemos fazer uma parada para descansar — Gareth sugeriu a um novo tropeço de Imogen.

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— Se tornar a repetir isso, eu lhe darei um pontapé — ela respondeu, ofegante. Sabia que estava se comportando como uma criança mimada, mas não queria admitir que Mary estava certa. Ao menos até tropeçar outra vez e Gareth não se manifestar. — Sinto muito pelo modo como o tratei. Acho que Mary estava certa sobre a imprudência de minha decisão. Ela disse que o tempo de reclusão me deixou lenta e preguiçosa. — Mas uma preguiçosa adorável. — Elogios não me farão sentir melhor. Se eu não tivesse me deixado afetar por seu flerte, não estaria agora nesta situação. — Mas eu não estava flertando com você. Fui sincero no que disse. — Gareth sorriu e balançou a cabeça diante da seriedade que se apoderara do semblante perfeito. — Solte-se. Considere esta excursão como uma aventura. Você ficou rígida, de repente. Eu não me divertia assim há um longo tempo. — Por quê? Como era sua vida antes? — Imogen quis saber. — Boa. — Gareth fez um movimento amplo com as mãos. — Não tanto quanto esta. — Algo me diz que eu confiei minha segurança a um lunático. — A um lunático e a um enjoado. — Gareth apontou para Lucas que se escondera atrás de uma árvore. — O menino comeu como se fosse um adulto do dobro do meu tamanho. Era de esperar que passasse mal. — Eu não deveria ter lhe entregado o cesto de comida. — Ele ficará bem. — Gareth olhou para Imogen que estava pálida como a neve. — E com você que estou preocupado. Tem certeza de que não quer descansar alguns minutos? Imogen mordeu o lábio para conter uma resposta malcriada. Estava com os nervos à flor da pele. Nenhuma tentativa de humor lhe era bem-vinda. — Quanto tempo você acha que falta para chegarmos? Gareth lançou um olhar crítico para as sombras que se avizinhavam. Logo ficaria escuro e a torre ainda estava distante. — Não muito — mentiu. Cansada demais para responder, Imogen continuou se concentrando no esforço de mudar apenas os passos. Seu cuidado, porém, não adiantou. Da vez seguinte que tropeçou, Gareth não foi tão rápido e ela caiu de joelhos. Ele a acudiu, porém, no mesmo instante. Estava zangado consigo mesmo por não tê-la obrigado a parar, quando sabia que o resultado seria aquele. Sem perda de tempo, fez com que Imogen se sentasse em uma pedra e se ajoelhou aos pés dela, para lhe esfregar as mãos de modo a aquecê-las. No instinto de se proteger, Imogen havia afundado as mãos na neve. Ele se sentiu ainda pior ao vê-la chorando. Sem um lenço para emprestar, ofereceu a manga de sua túnica. Sentiu o coração apertado ao notar que Imogen olhava por cima de seu ombro, lutando com trevas que somente ela podia ver.

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— Eu queria tanto chegar até Robert. Eu queria tanto fazer com que ele parasse de me ignorar. — Um soluço entremeou a confidência. — Eu queria provar que o fato de eu ser cega não importava... Que sou uma mulher normal apesar de minha deficiência. — O choro se tornou convulsivo. — Que engano! Eu não sirvo para nada. Deveria ter continuado trancada em meu quarto até o fim de meus dias, conforme a vontade de meu irmão. Eu sabia que não daria certo. No fundo eu sabia que seria impossível. Mas por um instante eu ousei me agarrar a um fio de esperança... Incapaz de resistir às emoções que Imogen lhe despertava, recusando-se a considerar se aquilo era certo ou errado, Gareth a envolveu no calor de seu abraço. Lucas, ao lado deles, encontrou um local razoavelmente protegido para se deitar e descansar. O frio não lhe importava, nem o fato de que o estranho estava abraçando lady Imogen. Ele estava grato pela interrupção da jornada. Gareth sabia que estava se iludindo. Não era um tolo. Mas por mais que o bom senso lhe dissesse para se afastar, ele não conseguia renunciar à sensação de ter aquele lindo corpo de mulher junto ao peito. Imogen pertencia a outro. Ela nunca seria dele. Talvez ela ainda não estivesse reconhecendo o sentimento que dedicava a Robert, mas o que acabara de dizer o provava. A verdade lhe doía. Ainda assim, ele não fez menção em afastá-la. Comprazeu-se em acalentá-la pelo tempo que lhe fosse permitido. — Devo estar horrível — Imogen murmurou depois de se acalmar. — Sim, você está — ele confirmou, deliberadamente para tentar fazê-la rir. — Não foi uma observação muito galante, mas sincera, eu suponho. Sério, como nunca se mostrara antes, Gareth pigarreou. — Penso que devemos descansar mais um pouco antes de prosseguirmos. — Mas... — Eu insisto — ele a interrompeu. — A torre não sairá do lugar. Além disso, nosso companheiro deve ter se entediado tanto com suas demonstrações de fraqueza feminina que acabou adormecendo, e eu me recuso a acordá-lo ou carregá-lo nas costas. Imogen hesitou, mas teve de admitir que Gareth estava com a razão. — Está bem. Farei como você disser. Não gostaria que Robert me visse vermelha e inchada. Gareth se afastou bruscamente. Precisava colocar alguma distância entre ele e a tentação. — Vou tentar encontrar madeira seca para acender uma fogueira. — Para quê? — Imogen estranhou. — Não vamos nos demorar! Eu posso agüentar o frio. — Não é em você que estou pensando, mas em mim— Gareth tornou a mentir. — Não estou acostumado a terras frias como estas. Prometo voltar logo. Imogen se abraçou sob as peles e procurou uma posição mais confortável. O sono a venceu

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em poucos segundos. Ao retornar, Gareth sorriu ao vê-la. Enquanto estivessem sozinhos, ele seria seu guardião. Não importava que não fosse durar. Até que Robert a reclamasse, ele decidiu não renunciar ao prazer das emoções que Imogen lhe despertava. O dia estava chegando ao fim e Robert se cumprimentou pela idéia brilhante que fizera um dia difícil terminar com êxito. Antes perplexos com as ordens recebidas para empreenderem uma excursão aparentemente inútil, os homens exibiam, vaidosos, seus troféus. Matthew se recusara a acompanhá-los. Alegara a necessidade de alguém ficar vigiando o fogo para que não apagasse. Robert concordou de bom grado com o oferecimento. Estava precisando ficar sozinho com seus pensamentos. Havia dúvidas demais encerradas em sua alma que precisavam ser sanadas antes que o levassem à loucura. Embora ele pudesse considerar Matthew quase como um pai, nenhum homem conseguia contar tudo a outro, fosse quem fosse. De que maneira poderia traduzir as novas e estranhas emoções que o assaltavam a ponto de derreter seu coração outrora feito de gelo? Como falar de uma experiência que o fazia sentir que pela primeira vez pertencia a algum lugar e queria ter alguém que também o quisesse? De que forma explicar, inclusive a si próprio, sobre as noites em que tivera sua esposa castamente nos braços, embora a desejasse mais do que tudo no mundo? Teria sido menos penoso dormir sentado na cadeira e suportar as dores físicas no dia seguinte, esperando, noite após noite, que ela o chamasse para sua cama e sua vida? Até quando teria resistido ao desejo de acordá-la com seus beijos? Tentara inutilmente permanecer em vigília, apenas olhando para ela. Fora impossível tê-la tão perto e não tocá-la. Surpreendera-se afundando o rosto no perfume de seus cabelos. Encostando os lábios em sua pele quente e macia. Afastara-se somente quando a força do desejo ameaçara vencê-lo, embora permanecesse no quarto até que as primeiras luzes começassem a anunciar o nascer de um novo dia e a morte de uma noite de esperanças vãs. Matthew estava coberto de razão. Seu comportamento não estava normal. Ao se casar, não pretendia que fosse assim, mas acabara perdendo o controle da situação. Pela manhã, ao acordar ao lado de Imogen, não pensava em outra coisa que não fosse fazêla sua. Ela ainda dormia. Fascinado pela beleza de sua esposa, ele se perdeu em admiração. Depois ouviu o tropel dos cavalos e desceu para recebê-los e aos homens a quem confiara a tarefa de buscálos. Em seu entusiasmo, Robert subiu os degraus de dois em dois, ansioso para contar a ela. Mais ansioso ainda para ficar a seu lado. Em nenhum momento lhe ocorreu que a dura realidade fosse atingi-lo como o golpe de uma espada. A realidade se apresentara na forma de uma dama olhando para um usurpador, embora não pudesse vê-lo. Porque a verdade era que ele entrara na vida de Imogen por imposição, sem que ela consentisse em recebê-lo. Sem conhecê-lo. Sem sentir nada por ele, exceto rancor e desconfiança. Haveria alguma maneira de mudar esse fato? O que poderia dizer a Imogen sobre seus sentimentos, se ele próprio não sabia identificá-los? Se talvez não fosse digno nem sequer de respirar o mesmo ar que ela? Incapaz de enfrentar essa terrível realidade, Robert resolvera fugir de sua presença. Matthew não poderia ter acertado mais em sua dedução.

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Um ruído mal-adivinhado atraiu sua atenção. Instintivamente, atirou-se ao chão e perscrutou a floresta ao redor na tentativa de localizar sua origem. Quase em seguida, um gamo espreitou por entre alguns arbustos. Devagar, Robert preparou o arco e a flecha. Pressentindo o perigo, o gamo ficou imóvel, tornando-se um alvo perfeito. Mas algo fez com que Robert baixasse as armas. Com vinte homens espalhados pela área, um animal a menos não faria falta nas mesas. E algo a respeito de sua fragilidade corajosa o fez lembrar Imogen. Homem e animal continuaram se encarando por mais alguns segundos. De repente, como se o vento trouxesse uma mensagem de alerta, o gamo fugiu extremamente ágil apesar da neve. Robert se levantou, então, e também farejou o ar que trazia resquícios de fumaça, vindos de longe, mas fortes o bastante para ele ter certeza de que não provinham das chaminés de Shadowsend Keep. Então, certo de que seus homens não acenderiam uma fogueira porque as chamas espantariam a caça, ele resolveu averiguar a presença de prováveis invasores em suas terras. Após meia hora de caminhada, ele divisou um homem sentado diante de uma fogueira. Estreitou os olhos ao reconhecê-lo. Era Gareth. O que ele estava fazendo ali? Por que não acatara as ordens que lhe deixara antes de partir? Gareth identificou Robert antes que se aproximasse e, portanto, não demonstrou surpresa ao vê-lo. Robert abriu a boca, pronto para repreender o companheiro. Fechou-a, estupefato, ao sinal do outro para que fizesse silêncio, e tornou a abri-la, furioso, para gritar sua contrariedade. — Espero que tenha uma boa explicação para ter ignorado minhas ordens! — Eu tenho — Gareth afirmou. O cenho de Robert franziu. — O que está esperando para me contar? — Eu não o desobedeci, de fato. — Eu o encarreguei de proteger minha casa e as pessoas que lá estavam! — Robert protestou. — Sua esposa, em especial. — Sim. Principalmente minha esposa! — É o que estou tentando fazer. — O que Imogen tem a ver com isso? — Os olhos de Robert estreitaram. — Aquele amontoado de peles no meio das pedras é Imogen. Eu, como um galante guardacostas, estou mantendo o fogo aceso para não morrermos congelados. Robert não teria acreditado que Imogen estivesse sob o monte de peles, se ela, incomodada pelo barulho, não tivesse se movido no sono. Ele reconheceria aqueles cabelos entre milhares de outros. — Como foi que ela veio parar aqui? Gareth encolheu os ombros.

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— Aparentemente, ela quis abreviar o isolamento de ambos. Desceu de sua torre de marfim para ir ao encontro do esposo, encerrado voluntariamente na base de uma outra torre. Ela estava tão determinada a vê-lo que caminhou até ser vencida pela exaustão. Eu poderia, talvez, tê-la convencido a voltar para casa, se estivesse montado em um cavalo, mas não encontrei nenhum nos estábulos. Robert demorou alguns instantes para tornar a pousar os olhos no amigo. Ao decidir se afastar por alguns dias de Shadowsend Keep, ele levara consigo seus homens e todos os cavalos que mandara trazer de Gales. Uma onda de ciúme o inundou ao saber que o outro desfrutara da companhia de sua esposa, quando ele próprio se abstivera desse prazer. — É inadmissível que tenha escoltado minha esposa por estas paragens desertas sem que ela estivesse devidamente acompanhada por sua camareira. — Do jeito que você fala, parece que eu cometi um crime — Gareth se defendeu. — Por que não olha um pouco mais para sua esquerda antes de me acusar? Nós não estamos sozinhos. Apenas nosso acompanhante também pegou no sono. Você o encontrará sob aquele segundo monte de peles. Com passos firmes e severos, Robert foi conferir a declaração do homem de cuja palavra, pela primeira vez desde que o conhecera, ele estava duvidando. — Lucas? — Robert arqueou uma sobrancelha. — Ele foi indicado por Mary para acompanhar Imogen em seu lugar. — O menino está pálido. O que houve com ele? — Você não viu nada. Duas horas atrás ele estava verde como uma folha. O que houve com ele chama-se gula. Comeu tanto que agora está sofrendo as esperadas conseqüências. Não foi falta de aviso. O olhar de Robert se perdeu nas chamas. Imogen viera a sua procura. Ele mal podia acreditar. — Está começando a escurecer — disse, surpreendentemente afável para alguém que acabara de se comportar como um irracional. — Leve a criança de volta para casa. — E você? — Gareth perguntou daquele jeito irônico com que os dois amigos costumavam se tratar. — O que pretende fazer enquanto eu me encarrego dessa tarefa? — Manter o fogo aceso? — Robert sugeriu, dando de ombros. Em outros tempos, Gareth teria rido do contra-ataque, mas naquele instante precisou conter um resmungo de protesto. Não tinha nenhum direito sobre Imogen. Por mais injusta que lhe parecesse a ordem recebida, precisava cumpri-la. Robert era seu líder e marido dela. — Devo enviar homens para escoltá-los, caso demorem a regressar? — Não será necessário. Uma máscara parecia cobrir as feições de Gareth antes que ele se abaixasse para pegar o pequeno Lucas no colo. O menino estava tão fraco que não acordou. Antes de se afastar, contudo,

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ele encarou Robert como se quisesse fulminá-lo. — Faça por merecê-la, ou eu arrancarei seu coração! Robert não se virou nem respondeu. Certamente porque Gareth não traduzira em palavras seus pensamentos. Abaixado junto da fogueira, Robert atirou gravetos para avivar o fogo. O lado racional de sua mente o aconselhava a acordar Imogen e levá-la de volta para o conforto do lar. Mas ao olhar para suas faces douradas pelos raios do sol que se despedia, soube que não teria coragem, como não tivera naquelas noites em que permanecera vigiando seu sono e se controlando para não tomá-la nos braços. Um suspiro lhe escapou. Não fora assim que planejara seu dia. Em especial seu fim. Mas não conseguia pensar em nenhum outro lugar onde quisesse estar. A consciência de Imogen foi despertada de chofre. Seu coração quase parou. Em vez de acordar com os sons e cheiros a que estava acostumada, ela se encontrava tremendo em um ambiente hostil. — Gareth? — chamou em pânico. — Gareth, você está aqui? — Não, ele não está mais aqui. A voz de Robert soou tão próxima e a alegria ao reconhecê-la foi tão grande que Imogen se esqueceu de fingir indiferença. Seus lábios trêmulos sorriram e ela não tentou disfarçar a verdade. — Eu estava sonhando com você. Sem dizer nada, Robert contornou suas faces com as pontas dos dedos. Imogen se atirou espontaneamente nos braços dele. Onde era seu lugar.

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Capítulo IV Robert fechou os olhos e se deixou levar pela emoção. Parecia fazer um século desde que abraçara Imogen pela última vez. Ao menos por um momento queria se permitir aspirar o perfume de seus cabelos, sentir o calor de seu corpo, ouvir o coração de sua amada batendo contra seu peito. Sem parar para refletir, procurou os lábios da esposa e teve a grata surpresa de ter seu beijo correspondido. No início, os movimentos de Imogen foram tímidos. Como se o ardor de Robert a contaminasse, logo ela passou a reclamar ostensivamente a saciedade de suas necessidades carnais. Ela estava exultante com a descoberta do poder de seus beijos e de suas carícias. O gemido que explodiu em sua boca, vindo do fundo da garganta de Robert, se derramou ao longo de sua espinha como lava. Uma súbita rigidez venceu os arrepios, quando as mãos de Robert abandonaram as curvas de seus quadris para moldarem as curvas dos seios. Seu coração quase parou e só voltou a bater quando ele afastou as mãos para tornar a acariciá-la, depois, com movimentos leves e suaves, sem demonstrar nenhuma pressa. A falta de ar a fez jogar a cabeça para trás. Os lábios dele, agora livres, começaram a explorar seu pescoço como se quisessem marcá-lo com seu calor. E nesse instante ela experimentou sensações inéditas, avassaladoras em sua intensidade. Os mamilos pareceram crescer de tão rígidos e sensíveis e seu baixo ventre contraiu. Com aturdimento, ela percebeu que Robert retirava o broche que prendia o manto sobre seus ombros, e precisou apoiar o rosto no ombro dele, incapaz de resistir ao prazer do calor úmido dos beijos sobre o tecido fino do corpete. —Você é tão linda. — Imogen sentiu que Robert erguia o rosto para poder fitá-la. Com uma audácia de que não esperava ser capaz, colocou-o de volta ao vale entre os seios. Gemeu baixinho ao sentir que ele sugava um ma-milo por cima do corpete. Robert se sentia devorar pela paixão. Concomitante-mente, uma imensa ternura o impedia de se deixar arrastar pela força do desejo. Uma voz insistia em lembrá-lo de seu dever como marido de proteger sua mulher. Mas antes de se obrigar a escutá-la, Robert se deixou levar mais uma vez pelo convite mudo dos braços que o envolviam pelo pescoço como se temessem que ele pudesse ir embora. Imogen tornou a gemer como se implorasse por mais beijos. Incapaz de resistir, Robert pressionou sua virilidade premente contra a maciez do corpo feminino. Imogen abraçou-o, impaciente. E foi exatamente essa prova de que ela também estava perdendo o controle que o fez voltar a si. — Este não é um lugar apropriado para o que estamos fazendo. O suspiro que escapou dos lábios trêmulos soou como um protesto. Ele ergueu a mão e segurou-a pelo queixo. Tentou sorrir. Imogen se manteve séria. Pousou seus olhos nos dele como se o estivesse vendo.

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Foi um gesto pequeno, mas que significou tudo para ele. O tempo e o lugar deixaram de ter importância. O mundo estava agora ao seu alcance. Imogen era seu bem mais precioso. Porém, por mais que seu corpo clamasse pelo dela, sua mente o obrigou a erguer os olhos para o céu em busca de discernimento. Não queria amar Imogen apenas por alguns minutos. Queria preservá-la para que o amor deles durasse para sempre. —Já é noite — murmurou. — Precisamos nos apressar. As palavras de Robert trouxeram de volta o cansaço e as dores que Imogen havia esquecido ao embalo da paixão. De repente, em vez de abraçá-lo, ela queria se encolher de vergonha. — Não creio que tenham sobrado forças para me levarem de volta para casa. A declaração o preocupou. — Não é seguro enfrentarmos a noite na neve. Precisamos nos abrigar de alguma forma. — Gareth disse que faltava pouco para alcançarmos a torre quando paramos para descansar. — A torre não nos terá serventia — Robert explicou. — Não há como entrar nela. Só há pedras e nenhuma porta — Existe uma porta. — Não, não existe — Robert retrucou. — Matthew e eu demos uma volta completa e as únicas aberturas estavam no alto, fazendo pensar em janelas. — O fato de você não tê-la visto, não significa que não exista. O alçapão foi colocado a vinte passos em sentido leste, ao lado de um marco de pedra. Foi pintado com uma cor escura para se confundir com a paisagem e esconde uma escadaria. — Bom Deus! — Robert exclamou. — Eu jamais a encontraria. Não que a existência de uma porta possa resolver nosso problema. O local não é seguro. As paredes poderiam desabar sobre nossas cabeças sem nos dar chance de salvação. — Elas podem causar essa impressão, mas são firmes. Eu tenho certeza de que poderemos nos abrigar lá esta noite. — Você não diria isso se pudesse ver a quantidade enorme de pedras que estão espalhadas por lá. — Eu não poderia vê-las mesmo que estivessem em-ilhadas, Robert. A sensatez de Imogen fez Robert corar. Ela percebeu que o desconcertara com sua declaração e tentou ser mais delicada. — Não estou querendo dizer que você está errado. Apenas que não observou o fato por outro ângulo. — De que você está falando? — Robert resmungou. Imogen se obrigou a encarar a realidade. Apesar das lembranças terríveis que aquela torre encerrava, ela podia significar um teto

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de proteção no presente. — Eu me lembro de ter ouvido dizer que o entulho espalhado ao redor da torre não era resultante do desmoronamento de partes da obra, mas do excesso de pedras no local. Ou seja, não foi um caso de elas terem caído, mas de nunca terem subido. O silêncio momentâneo de Robert foi resultado de sua estupefação. — Eu nunca teria pensado nisso. Então você realmente acha que podemos passar a noite lá sem corrermos nenhum risco? Agora foi Imogen quem não soube o que dizer. Robert era um homem forte e determinado. Ela não esperava que ele fosse admitir seu engano com tanta humildade. Roger jamais assumira a culpa por algo que tivesse feito. — Sim, eu acho. A afabilidade de Robert impressionou-a. Nunca pensara que pudesse haver um entendimento tão perfeito entre um homem e uma mulher em circunstâncias tão inusitadas. Quando ele a chamou para seguirem e lhe deu um beijo na fronte, seu coração tornou a bater acelerado. Robert preparou uma tocha para iluminar-lhes o caminho antes de apagar a fogueira. Parou, atônito, ao notar suas feições contraídas. — O que houve? As bolhas nos pés a estavam matando. Sob o risco de se mostrar uma inútil, Imogen calou sua dor. — Nada. — Você não me parece bem. Seria preocupação genuína que ela detectou na voz de Robert? Ergueu a mão e tocou-o. Os músculos das faces estavam tensos e os lábios pressionados em uma linha dura. Ela não podia continuar mentindo. — Não. Eu não tenho certeza se conseguirei andar até lá. O silêncio que se seguiu foi um sinal de que ela o deixara ainda mais preocupado. Mas então Robert assobiou alegremente. — Eu estava me esquecendo de que deixei meu cavalo aqui perto, escondido entre as árvores. O que acha, mi-lady, de uma cavalgada ao luar? A euforia de Imogen se traduziu por uma gostosa risada. — Eu adoro cavalos! Eu adoro a sensação de voar em galope! Robert se inclinou e ergueu-a nos braços. Imogen deu um gritinho de susto e de alegre expectativa. — Prepare-se, milady. Meu fiel Dagger nos aguarda. Não há tempo a perder.

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Imogen fechou os olhos e se aconchegou junto ao peito do marido. Não pôde evitar o pensamento de que muito tempo já havia sido perdido. Imogen afagou o pescoço do cavalo e riu quando o sentiu empurrá-la gentilmente. — Fico contente que você tenha aceitado minha amizade — disse Imogen como se o cavalo pudesse entender suas palavras. — E que tenha me perdoado por interromper seu descanso. Seu dono não parece partilhar de seu bom humor. Os grunhidos e resmungos de frustração de Robert estavam sendo trazidos pela brisa da noite. Era estranho, mas embora ela ainda mal o conhecesse, suas imprecações não lhe causavam medo. Robert era completamente diferente de seu irmão. As regras que tivera de aprender para garantir sua sobrevivência não se aplicavam a ele. Porque ele era incapaz de machucá-la. Apesar de sua força, da autoridade que representava como seu marido e senhor, ele a tratava com infinita consideração. Subitamente nostálgica, encostou seu rosto ao pescoço do cavalo e procurou sentir o cheiro característico que a levou de volta aos tempos de criança. Já deveria ter aprendido com a amarga vida que a esperança era o ouro dos tolos. Que a vitória nunca era dos fracos. No entanto, cada vez que ficava perto de Robert, ele conseguia derrubar uma parte dos muros que construíra ao redor de si mesma para se proteger. Com ele, ela estava quase acreditando que a escuridão poderia ceder sob a luz. A esperança de conseguirem um abrigo para a noite, porém, estava quase sendo abandonada. — Robert, você tem certeza de que não quer que eu o ajude a encontrar o alçapão? Um novo resmungo foi a resposta. Ela suspirou. Após mais alguns instantes de silêncio, contudo, um forte barulho a fez adivinhar que Robert finalmente tivera êxito em sua empreitada. Uma risada de euforia se seguiu. Um minuto depois, ele estava ao lado dela. — Você tinha razão! Sob aquele decrépito alçapão há uma escada de pedra. Quem diria? Isso é obra de um gênio! — Você parece surpreso demais. — Imogen franziu o cenho. — Não acreditou realmente que eu soubesse o que estava dizendo, não é? — Bem, eu pensei que você, talvez, tivesse confundido esta com outra torre. De brincadeira, Imogen bateu em Robert com o punho fechado. Ele tornou a rir. — Agora que a torre provou ter um acesso, você não acha que deveríamos entrar e nos abrigar? Robert a conduziu pela abertura. Imogen tateou a parede com uma sensação de alívio mesclada a medo. A figura de seu irmão se delineou em sua mente. Apesar de todas as torturas mentais a que ele a submetera naquele recinto, ela estava de volta. A medida que desciam os degraus subterrâneos antes de chegarem à escada que conduzia ao alto da torre, o frio das pedras fazia aumentar os calafrios que percorriam as costas de Imogen. Ela sentia pelas palmas das mãos a aspereza das paredes que formavam a estreita passagem. Era

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quase como se as energias malignas que seu irmão ali deixara estivessem impregnadas nas pedras. — Eu estou aqui, Roger — Imogen disse em voz alta como se a força de suas palavras pudesse dispersá-las. Robert se virou para ela, espantado com sua veemência. Imogen ficara subitamente pálida, mas prosseguia com a firmeza sustentada sobre um pilar de coragem. Sem que ele entendesse o motivo da mudança, preparou-se para desembainhar a espada. Era estranho que a excitação de sua esposa tivesse evaporado ao penetrar por aqueles muros. Ele desejaria perguntar o motivo de tanto medo. — Em que ano esta torre foi construída? — Robert perguntou, na tentativa de ajudá-la a afugentar os maus pensamentos. — Eu não me lembro. Esta construção é uma réplica de outra que minha família possuía quando eu era criança. — O passado atacou-a como uma arma contundente. As imagens do inferno que ali vivera voltaram com o impacto de uma avalanche. Um estremecimento a fez tirar as mãos das paredes frias e escondê-las sob a roupa. Arrependido de ter incitado aquela terrível reação, Robert a enlaçou pelo ombro. Precisava se lembrar de que qualquer tipo de pressão a faria correr outra vez para aqueles locais secretos de sua mente, inacessíveis para ele. — Preciso que você segure isto para mim. — Robert colocou a tocha na mão de Imogen ao chegarem ao topo da escada. O golpe seco que ele deu contra a madeira a fez perceber que a porta estava fechada. — Preste atenção para os entalhes feitos na pedra, do lado esquerdo da porta. São círculos dentro de círculos. Empurre o menor que fica no centro, depois o terceiro de dentro para fora, em seguida o quarto e por último o segundo. Com a curiosidade estampada nos olhos, Robert procedeu conforme as instruções. Como por um passe de mágica, a porta abriu para um mundo secreto. — Eu nunca vi nada igual! — ele exclamou, boquiaberto. — Roger contratou um mouro para decorar o ambiente. Mais do que das outras vezes, a cada referência que Imogen fazia ao irmão, ela se encolhia como se mencionasse o diabo. Robert sentiu uma vontade imensa de aninhá-la e de dizer que ela não precisava ter medo. Que ele estava ali para protegê-la. Mas não houve tempo. Antes que pudesse proteger a si próprio, Imogen esticou a mão para lhe devolver a tocha. — Pegue-a! Ela não me adianta de nada! Robert precisou se esquivar para que o fogo não o atingisse. Não a censurou. Apanhou a tocha cuidadosamente e aproveitou para examinar-lhe as feições contraídas. O que teria acontecido ali para Imogen se transformar quase em outra mulher de um minuto para outro? As vibrações do lugar pareciam estar atingindo-o também. De repente, ele quis ir

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embora. Era como se houvesse algo de sinistro naquela torre. A tensão se apoderou de todos os seus músculos e nervos. Ele era um veterano dos campos de batalha e aprendera a farejar o perigo espreitando nas sombras como um inimigo invisível. Jamais poderia imaginar que aquele amontoado de pedras, como Matthew se referira à torre vista de longe, encerrasse tesouros de valor inestimável. Tapetes preciosos forravam o piso e as paredes. Objetos em ouro e prata estavam espalhados sobre móveis de madeira nobre. Havia baús por todos os cantos. Um deles estava aberto e ao seu redor muitos livros estavam espalhados. Pareciam jóias. As inscrições douradas contra as capas de couro brilhavam sob a luz do fogo. — Mãe do Céu! O que é isso? Um sorriso que mais parecia um escárnio acompanhou a resposta seca. — Minha vida. Imogen soltou a mão de Robert e começou a andar em direção ao centro da sala. Ele se deteve apenas o tempo necessário para acender uma vela no castiçal que encontrou sobre um aparador junto da porta e para deixar a tocha em um local seguro. — Você está bem? — perguntou ao vê-la deslizar a mão por uma tapeçaria. — Sim. Descreva o desenho, por favor. A dor que transpareceu naquele pedido cortou o coração de Robert. Em circunstâncias normais, o tapete teria lhe passado despercebido. Não era de seu feitio prestar atenção em pormenores. Objetos de decoração lhe pareciam coisas de mulher. Jamais parara para refletir sobre a importância de ter olhos saudáveis. O problema de Imogen lhe pareceu ainda mais desesperador. — Ele retrata uma floresta. Há flores ao redor de toda a borda. No alto, do lado direito, há um grupo de caçadores. Embaixo está acontecendo uma festa. Mulheres e menestréis sorriem. Um cavalo esquisito os observa. A alegria pareceu quebrar o medo naquele instante. Imogen voltou a sorrir de um modo singelo, quase infantil. — Eu me lembrei. Não é um cavalo, é um unicórnio. Ele costumava ficar na sala de armas de meu pai. Minha mãe detestava armas de guerra e a única maneira que meu pai encontrou para convencê-la a permitir que ele as conservasse foi decorar a sala com objetos de arte. Era engraçado. Quando ele precisava se ausentar, mamãe ordenava que os criados cobrissem as espadas, os arcos e as flechas com lençóis. Se ele voltasse para casa antes do previsto, chamava os criados e mandava que retirassem os panos. Um não se atrevia a criticar o outro. Faziam de conta que nada havia acontecido. Naquela época, Imogen era feliz e saudável. Robert cerrou os punhos de revolta. — Robert, você viu algum livro? — Uma porção deles. Ela lhe estendeu a mão. Robert se apressou a segurá-la. — Mostre-os.

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Ele a ajudou a atravessar a sala por entre móveis, caixas e rolos de tecidos. — Estão aqui. Imogen se ajoelhou e estendeu as duas mãos. Robert imitou-a. Após uma ligeira hesitação, apanhou o volume que estava por cima da pilha e entregou a ela que passou a examiná-lo por meio do tato e do olfato. Primeiro, ela deslizou as mãos sobre a superfície e depois quis sentir o cheiro do couro e do papel. Robert se esquivou. Não queria invadir um momento de privacidade. Mas a tentação o venceu e ele tornou a fitá-la. Imogen agora estava abraçando o livro junto ao peito e sem entender o que lhe dera, Robert sentiu que sufocava de ódio. — Por quê? — Por que o quê? — Imogen perguntou como se acordasse de um sonho. — Por que essas coisas de que você obviamente tanto gosta não foram levadas para Shadowsend Keep de modo a ficarem a sua disposição? — Se você conhecesse Roger como eu o conheço não teria feito essa pergunta. Ele gosta de me fazer sofrer. Ele quer que eu o obedeça e procura dificultar minha vida como um jeito de dobrar minha vontade. Sem largar o livro, Imogen encolheu as pernas e abraçou-as. — Cada vez que meu irmão me visita, tortura-me com a descrição de tudo que se encontra guardado aqui e repete como eu teria de proceder para alcançar o alto da torre. Ao partir, ele tem certeza de que as informações estão rodando por minha mente e que ficarão gravadas indelevelmente na memória. Sua perversidade chega ao extremo de me trazer objetos, colocá-los em minha mão e retirá-los bruscamente quando percebe que eu consegui reconhecê-los. — Por que ele faz isso? — Robert indagou com voz espantosamente calma em relação à fúria que o dominava. Sensível como era, Imogen se retirou imediatamente para aquela parte de sua mente que não lhe permitia acesso. Seu silêncio foi uma confirmação de que ela não queria tocar naquele assunto. Mas provocou em Robert a reação contrária. O medo de perdê-la para os demônios que a assombravam o fez arrancar o livro de suas mãos e ignorar seus protestos. — Responda minha pergunta! — Robert se ajoelhou de frente e segurou-a pelos ombros. Ela ergueu as mãos e fechou-as ao redor dos braços dele. Dava para sentir a rigidez dos músculos sob a túnica. Admirava a força de Robert. Com ele, Imogen se sentia protegida e essa sensação foi tão maravilhosa que se traduziu em um rompante de paixão. — Beije-me. O pedido sussurrante a surpreendeu e também a ele. O silêncio que seguiu foi ensurdecedor. A espera pareceu uma eternidade. Sem resposta, Imogen tomou a iniciativa. Seu coração batia descompassado. Precisava de Robert. Um beijo gentil e casto não o devolveu ao batimento regular. Ela tornou a beijá-lo, dessa vez com mais insistência. Enquanto o outro deixara

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Robert impassível, o toque de sua língua lhe arrancou um grunhido e uma adorável reação. Ela contornou a linha dos ombros largos ao ter seus lábios reclamados com ardor. Estavam um nos braços do outro, trocando um longo beijo. Mas ainda não era o bastante. Imogen ansiava por tocá-lo sob a túnica. Queria sentir pele contra pele. Robert se afastou após o beijo e olhou para as faces coradas de excitação. — Você tem certeza de que é isso que quer? A preocupação com ela foi o que a fez decidir. Não sabia exatamente o que significava fazer amor. Seu instinto lhe dizia para confiar em Robert e para aproveitar a oportunidade que lhe surgira de viver um momento de felicidade. Não importava que estivessem em sua câmara de tortura. A alegria que estava sentindo nos braços de seu marido venceria as lembranças amargas. Robert merecia que ela lhe entregasse seu corpo além de sua estima e reconhecimento. Ele era um homem admirável. Embora pudesse ter reclamado seu direito de posse, esperara até ter certeza de que ela também estivesse pronta para consumarem o casamento. — Tire a túnica — Imogen murmurou, mas ela mesma tateou ao longo da roupa no afã de fazê-lo. — Você está realmente certa de que é isso que quer? — Robert repetiu, sério. — Porque se avançarmos deste ponto, eu não sei se conseguirei parar até torná-la minha em toda extensão da palavra. Embora não pudesse vê-lo, Imogen o encarou. — Eu não vou pedir que pare. A razão continuava recomendando prudência, mas Robert mergulhou em uma onda de desejo da qual não conseguiu emergir. Com um movimento rápido, livrou-se da capa e da túnica. Imogen imprimiu a marca de seus lábios úmidos no peito dele como se os pousasse em matéria incandescente. Ansioso por retribuir a carícia, Robert a segurou pelo queixo e a trouxe aos próprios lábios, capturando os dela em um longo e possessivo beijo. O vestido deslizou pelos ombros. Robert perdeu o fôlego ao admirar, pela primeira vez, a perfeição de alabastro dos seios alvos e arrematados por auréolas rosadas que enrijeceram ao contato com o ar frio. — Você é perfeita! Imogen enlaçou-o pelo pescoço. — Vou tentar acreditar no que você diz. — Não, você não terá de confiar em sua imaginação nem em minha palavra. Eu vou lhe provar o que disse. Antes que Imogen pudesse retrucar, Robert se apoderou dos seios com as mãos e com a boca. Ela jogou a cabeça para trás em um movimento instintivo, oferecendo uma melhor posição. A excitação era tanta que lhe arrancou gemidos e a fez pensar que alcançaria um estado de êxtase

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porque a impressão que lhe dava era de estar flutuando no espaço. Ele estava certo. Não poderia haver outro modo de descrever o que estava acontecendo. Era perfeito. E estava só começando. Ao perceber que Robert estava estendendo peles no chão, ela o ajudou. Queria que aquele momento precioso durasse para sempre. Queria-o como jamais quisera outra coisa. Robert a deitou e terminou de despi-la. Fez o mesmo consigo próprio. Exultou ao vê-la estender os braços para recebê-lo. Mal conseguia conter a emoção. A mulher mais linda que ele já conhecera confiava nele e o queria tanto quanto ele a ela. Imogen era linda da cabeça aos pés, passando pelo suave contorno dos quadris e dos seios até o ápice de sua feminilidade. Mas o modo como Imogen se encolheu ao sentir o membro dele em sua coxa o fez cerrar os dentes. Seria terrível se tivesse de desistir. Por mais que ela demonstrasse que queria, o medo instintivo do que estava por acontecer a fizera perder a coragem. — Faz parte de mim — ele murmurou e conduziu-a pela mão para que o tocasse. — Conheça-o. Surpresa, Imogen percebeu que não sentia vergonha em tocar seu marido. Percorreu toda a extensão com as pontas dos dedos e depois o circundou, tomando conhecimento de sua forma e de seu tamanho. Ao apertá-lo ligeiramente, Robert gemeu baixinho. Ela sentiu como se uma bolha de euforia se formasse em seu peito e começasse a aumentar. Ao ouvir Robert gemer outra vez, tentou recuar, mas ele a impediu. — Continue — pediu, rouco, até que as carícias o levaram ao limite. Trêmulo de paixão, Robert afastou as mãos de Imogen e a fez abraçá-lo pelo pescoço enquanto posicionava seu corpo sobre o dela e a beijava como se tivesse fome e sede de seu néctar. Então pressionou a rigidez de seu membro contra a maciez da feminilidade de Imogen e observou a reação dela ao calor e à insistência do toque. Não esperava que ela fosse se abrir para ele com espontaneidade e volúpia. Um gemido gutural brotou de sua garganta ao sentir o roçar pulsante contra sua intimidade. A respiração lhe faltou. Uma dor estranha e inexplicável a obrigou a se movimentar como se soubesse instintivamente que era assim que deveria proceder. Robert se conteve e continuou acariciando-a até sentir que ela estava em vias de atingir o máximo do prazer. Só então começou a penetrá-la, atento às expressões de seu rosto, ao silêncio com que ela absorvia a novidade. Ele também mal conseguia respirar ao captar o deslumbramento com que Imogen o recebia dentro de seu corpo que se distendia, pouco a pouco, para acomodá-lo. Até que uma barreira frágil, mas resistente, o deteve. — Imogen, eu gostaria que você continuasse a se sentir confortável com o que está acontecendo, mas receio ter de lhe causar alguma dor. Uma veia latejava na têmpora de Robert, tal seu esforço, para conter o impulso de completar o ato. Abraçada a ele, Imogen podia sentir a tensão que invadira o corpo deitado sobre o dela. Sorriu e sussurrou:

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— Eu confio em você. Foi o que de mais erótico ela poderia ter dito e o venceu por completo. Imogen deu um gemido de surpresa. Ficou imóvel até a dor passar. Mas tão logo seu corpo se acomodou a essas novas e estranhas sensações de plenitude, ela se surpreendeu envolvendo-o com as pernas de modo a pressioná-lo contra si. O último fio de controle de Robert se rompeu ao movimento que Imogen começou a fazer para acompanhar o ritmo de suas investidas. Beijou-a febrilmente e não parou até alcançarem a saciedade. Mais tarde, deitados um nos braços do outro, Robert pediu que Imogen provasse que confiava nele, lhe contando sobre seus medos. Ela se encolheu. Estavam aquecidos como em um casulo, no leito improvisado com as capas de pele. Mas a proposta trouxera o frio e o escuro de volta, o que se tornava ainda mais insuportável em comparação como esplendor do momento que estavam vivendo. — Eu não posso lhe contar — ela confessou. — Mas agora eu sou seu marido de verdade — Robert protestou.— Eu conheci seu corpo e você conheceu o meu. Não pode mais haver segredos entre nós. Imogen negou com um movimento de cabeça e ele testemunhou o desafio que aquele rosto ostentava. Sentiu os punhos fecharem de indignação ao perceber que muros invisíveis se erguiam entre eles, deixando-o fora de um mundo de segredos e memórias. — Então eu sirvo como marido, mas é presunção de minha parte querer desempenhar o papel também de amigo e confidente. Não sou digno de partilhar seus medos; apenas seu corpo. — Você ficou zangado comigo. — Sim, eu fiquei! — Robert respondeu. — E também estou decepcionado. Você se fechou em seu castelo e me atirou ao fosso! Se eu não sei como terei de lutar para defendê-la, será mais difícil me preparar para a confrontação. Imogen o venceu com as armas de que dispunha. Ou ao menos conseguiu silenciá-lo e acalmá-lo. Enlaçou-o pela cintura e suspirou contra seu peito. Embora continuasse resmungando, Robert se aconchegou a ela e adormeceu. Ela sorriu. Se Robert tivesse sido sincero, ela nunca mais teria o que temer. No silêncio da madrugada só se ouvia as patas do cavalo. Estava escuro ainda quando Robert e Imogen deixaram a torre e seguiram para Shadowsend Keep com o propósito de chegarem antes que os outros acordassem. — Parece que nosso sacrifício foi em vão — ele murmurou ao detectar o movimento no pátio com os serviçais se reunindo para recebê-los. Robert sentiu o peito de Imogen vibrar contra suas costas com o súbito riso que a sacudiu. — Parece que não dá para confiar em Dagger quando se trata de se esgueirar pela propriedade.

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— Neste caso, acho melhor se render ao flagrante do que passar despercebido com os pés em bolhas! Para continuar impondo respeito aos criados, Robert engoliu o riso e colocou uma expressão séria no rosto que quase foi esquecida no momento que ele segurou Imogen pela cintura para ajudá-la a apear. — Preparada para enfrentar a horda? — ele cochichou ainda brincando, mas seu cenho franziu ao perceber que Gareth liderava o grupo. — Estávamos discutindo quem ficaria responsável por guardar Shadowsend Keep caso os senhorios tivessem sido devorados pelos lobos durante a noite. Estamos aliviados em vê-los aqui, sãos e salvos. Sob o braço protetor de Robert, Imogen sentiu que se tornava difícil respirar. Mais ainda quando Gareth prosseguiu com seu discurso. — O que houve para demorarem tanto a retornar? Onde passaram a noite? — Na torre — Robert respondeu, sucinto. — Na torre? — Matthew repetiu, cético. — Como, se não existe acesso para seu interior? — O acesso existe — Imogen afirmou para espanto dos homens que se puseram a ovacioná-los em boas-vindas. Foi como uma revelação para Robert. Ele olhou para a multidão sob um novo prisma. Os antigos moradores de Shadowsend Keep e seus cavaleiros estavam se confraternizando. Uma estranha emoção fez seu peito dilatar. Parecia que a última peça do quebra-cabeça havia se encaixado. Sua casa. Sua esposa. Sua gente. Seu lar. O sorriso que teimava em brotar de seus lábios, porém, foi transformado em uma linha de contrariedade. Seus homens não estavam preocupados com ele. Nenhum se adiantou para saudá-lo. Todos os olhares estavam pousados na senhora do lugar. A dor do ciúme foi como uma punhalada. Ele precisou respirar profundamente para não ceder ao ímpeto de afastá-la daqueles olhares devastadores. De levá-la de volta para a torre. Com ele. — Lady Imogen está cansada. — Limitou-se a dizer e avançou, sem se importar que as pessoas precisassem recuar para abrir caminho. — O que foi aquilo? — Imogen protestou assim que se certificou de estarem a sós, depois de ser quase arrastada escada acima. Robert se encaminhou para a lareira e demorou algum tempo para responder. — Não sei de que você está falando. Ela apoiou as mãos na cintura. — Estou falando da corrida insana a que você me obrigou para chegar a nossos aposentos. Parecia que estávamos sendo perseguidos por feras. Estou falando de sua mentira sobre meu

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cansaço. Estou falando dessa súbita necessidade que você desenvolveu de me esconder dos outros. — A voz de Imogen adquiriu uma nota de tristeza e de profundo pesar a essa observação. — Se está com vergonha de mim, é só dizer. Eu não sairei mais daqui. Estou acostumada à vida de clausura. Peço apenas que seja sincero e que não torne a fingir que não se importa com minha condição, para depois não suportar que os outros me vejam como sou. Robert se afastou da lareira e voltou para junto da porta onde a deixara. Abraçou-a em silêncio e a fez repousar a cabeça em seu ombro ao perceber que ela estava quase chorando. — Não foi nada disso. Eu fiquei... Eu não consigo explicar. — Tente. Imogen ergueu a cabeça, desafiadora. Robert hesitou, mas logo soube que não teria como escapar. Sua esposa era uma mulher determinada. Admirável. Incapaz de resistir, ele apoiou o queixo em seus cabelos. — Os homens estavam olhando para você como se a quisessem para eles. O silêncio que se seguiu o fez cogitar se não havia sido claro em seus resmungos. Ele fez, então, que Imogen erguesse o rosto para poder encará-la. Não podia esperar pela expressão de franca incredulidade que detectou. — Você ficou com ciúme do modo que seus homens olharam para mim? — Talvez. O riso foi tanto que as faces tingiram de rosa. Ela, a mulher que vivera afastada do mundo durante anos, que era conhecida como dama disforme fora alvo de olhares cobiçosos? Por mais que se esforçasse, não conseguia acreditar. Até que Robert calou suas risadas com um beijo que lhe tirou o fôlego. E que não o deixou satisfeito. Ele queria mais. Queria enlouquecê-la de desejo da mesma maneira que ela o estava arrebatando com seu jeito provocante. A sedução começou com carícias leves que foram se tornando ousadas e intensas. Quando percebia que Imogen estava quase se entregando à volúpia do êxtase, ele recuava e a levava a alturas cada vez mais altas de prazer. Mas ainda não era o bastante. Esperou que Imogen implorasse pelo término da deli-ciosa tortura para enfim penetrá-la. E depois, ele só se permitiu perder totalmente o controle quando a rendição de Imogen foi absoluta. Nesse instante, sua sensação foi a de que seu corpo estava se derretendo para nunca mais tornar a se mover. Não que isso o assustasse. Não quando seu corpo ainda estava dentro do dela. E ainda assim não era o suficiente. O ciúme continuava a corroê-lo. Que fossem dirigidos a seus próprios homens, que lutavam a seu lado havia anos, tornava o problema mais grave. Era loucura. O fato de Imogen lhe provocar essa perda de controle o estava perturbando mais do que desejaria admitir. Abraçou-a com força. Seus olhos fecharam à emoção do que acabara de constatar. Que sem Imogen ele não tinha mais vida. De alguma forma, ela havia surgido em seu caminho e agora fazia parte dele. Seus ciúmes talvez não tivessem fundamento. Como poderia ter paz, no entanto, sem ter certeza de que sua esposa o queria tanto quanto ele a ela? A alma era como uma miragem. Ele podia ter o corpo de Imogen, mas seu espírito era invisível. Não adiantaria ele tentar segurá-lo, muito menos aprisioná-lo. Se Imogen não o quisesse, seu espírito se desprenderia e ele se veria de mãos vazias, olhando para o nada. Esse era o medo que

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se apoderara dele sem que percebesse e que o fez contrair todos os músculos ao toque apazigua-dor. Porque o modo como Imogen deslizou as pontas dos dedos pela barba que começava a despontar o fez pensar em uma tentativa de conforto quando ela mal podia imaginar que era a causa do tumulto que o invadira. O amor para Robert nunca fora associado a momentos de calma e de ternura. Ele só conhecia o prazer vindo da união de corpos, da satisfação do desejo físico. O fato de Imogen têlo introduzido a um novo mundo o fazia cogitar como conseguiria continuar vivendo se tivesse de ficar sem ela, sem sua dedicação. — Estive pensando... Aquelas palavras soaram estranhas no silêncio. Sem responder, Robert se apoiou sobre o cotovelo para fitá-la. E fez outra descoberta. Que não era mais apenas a beleza de Imogen que o atraía. Porque ele queria permanecer a seu lado, mesmo sem vê-la. Mesmo que o fogo apagasse na lareira, mesmo que as velas fossem consumidas e que eles tivessem de ficar no escuro. — Devo começar a me preocupar com o que minha esposa pode estar pensando enquanto eu lhe faço amor? — Robert caçoou de modo a tentar disfarçar o redemoinho de emoções em que se enveredara. — Não sei — Imogen respondeu com uma malícia surpreendente em sua própria opinião. — Talvez tenhamos de repetir constantemente a experiência para termos certeza. — Tocou-o de leve no rosto e ele se pôs a beijar e sugar seus dedos até que ela precisou pedir clemência. — Na verdade, se você me proporcionar sensações ainda mais intensas, eu poderei acabar perdendo a consciência. Quando me toca eu não consigo pensar em mais nada que não seja no prazer que você está me dando. Depois, sim, os pensamentos parecem se tornar mais claros em minha mente. E eu agradeço a você por isso. Antes eu tinha medo de tudo. Você me ajudou a vencer o obstáculo destas quatro paredes. Ao me levar para fora, eu aprendi que posso enfrentar o mundo ao seu lado. Não quero mais viver escondida. Acho que finalmente consegui virar essa página do livro de minha vida. Robert a beijou no topo da cabeça incapaz de expressar em palavras o que lhe passava pelo coração. — Eu gostaria de começar a participar das refeições comunitárias no salão. Acho que poderei aprender a me comportar à mesa se você me ajudar. — Se você se lembra, da última vez em que tentei ajudá-la a comer, fiquei tão excitado que poderia lhe ter feito amor diante da platéia. O rubor se fez presente, mas o sorriso de malícia provou que a observação não a faria mudar de idéia. — Sim, eu me lembro. O que me ocorreu, porém, foi que a causa de sua volúpia foi uma severa crise de tirania, que terminou comigo na cama e você em uma cadeira.

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A lista de surpresas ainda não chegara ao fim. Para provocá-la, Robert mordeu ligeiramente seu ombro e deixou escapar uma pequena risada. — Se a questão é ser honesto, eu dormi a seu lado na cama naquela noite. — Um mero detalhe — Imogen observou. — Eu quero apenas que você me diga o que foi colocado em meu prato e em que posição. Do resto eu me encarrego. Não quero que me dê de comer na boca como se eu ainda fosse um bebê. Conheço o caminho para ela. — Eu também. — Robert a calou nesse momento com um novo beijo que os deixou sem fôlego ao terminar. — Bem, como eu estava dizendo antes de ser interrompida... — Imogen prosseguiu com um sorriso —, estou certa de que não se sentirá envergonhado por minha causa perante seus homens e criados. — Tive imensa dificuldade em me alimentar sozinha nos primeiros seis meses. Minha roupa vivia suja e manchada. Mas agora... O esforço que Imogen fazia para falar com humor sobre a própria cegueira provocou um nó na garganta de Robert. — Por que continua falando como se ainda precisasse me convencer a levá-la comigo às refeições? Que espécie de marido eu seria se mantivesse minha esposa trancafiada? Se não lhe fizesse uma vontade tão singela e importante em seu significado? O reencontro nupcial se prolongou por dois dias durante os quais Robert se empenhou em provar a espécie de marido que era. Não apenas como sedutor, mas como companheiro e professor. Ele ordenou que todas as refeições fossem servidas nos aposentos de Imogen, que agora também lhe pertenciam, de modo que ela pudesse aprender a usar os talheres. O que antes a fazia chorar de desalento, agora era motivo para diversão. Imogen não se lembrava de ter rido tanto antes. Não que tivesse sido fácil de início. Ao sentir os olhos de Robert sobre ela, como um toque físico, ficava nervosa e incapaz de se movimentar com espontaneidade. Em vez de se tornar mais fácil com as novas tentativas, ela se sentiu mais desajeitada. Antes do final do primeiro dia, Imogen teve ímpetos de gritar e de chorar de frustração. Resistiu, porém, a ceder às lágrimas, e extravasou sua irritação atirando a colher contra a parede. Em seu íntimo, talvez quisesse retroceder ao hábito de ficar sozinha e entregue a sua dor. Robert, provavelmente, desistiria de ajudá-la diante de uma cena como aquela, de uma criança birrenta. Mas ele não deixou que ela perdesse o ânimo. Ao contrário. Com infinita paciência, ajoelhou-se diante dela e segurou suas mãos. — O que foi isso? — Eu não consigo comer sozinha. Eu não enxergo! — Esse rompante tem outro nome. Chama-se perda de controle. Acontece com todo mundo. Não é privilégio seu, nem meu, nem de ninguém em particular. — O que você está querendo dizer com isso? — Imogen cruzou os braços, ainda impaciente.

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Ele se levantou de um salto. O movimento brusco atingiu o alvo, mais do que qualquer palavra. — Nada. Eu estava apenas tentando entender seu problema e tranqüilizá-la. Desculpe se a incomodei. Isso não tornará a se repetir. A humildade de Robert a venceu, fazendo com que analisasse a situação e reconhecesse seu erro. — Eu não consigo com você olhando para mim — Imogen confessou. O silêncio que se seguiu era um sinal de que Robert ficara atônito com sua declaração. De repente, ele se pôs a rir. — Meu Deus! Então era isso? Mas você ainda não se acostumou? Eu sempre estarei olhando para você! Eu não consigo deixar de fazê-lo! Imogen se voltou na direção da cadeira ao ouvir as almofadas chiarem sob o peso de Robert. — Avise-me quando terminar de rir. Imogen não esperava que ele fosse buscá-la e a colocasse em seu colo. — Eu me portei como uma tola, não? Ele teve de sorrir diante da evidente hesitação. —Acho que qualquer um diria isso de você, se soubesse que atirou uma colher para longe só porque não queria que eu ficasse admirando-a. Imogen suspirou de enfado. — Detesto essa sensação de desesperança. Você não pode imaginar como é terrível ser objeto da atenção dos outros quando se é incapaz de fazer coisas normais para qualquer criança de quatro anos. Suponho que isso explique a razão de eu também me comportar, de vez em quando, como se ainda tivesse essa idade. — Outro suspiro se seguiu ao relato. — Eu tentei, Robert, mas não funcionou. Estou desistindo... O susto a fez interromper a frase. E também o gesto inesperado de Robert ao lhe tapar a boca. — De jeito nenhum! Talvez você precise de mais tempo do que imaginávamos, mas acabará conseguindo. Não pode desistir! Ela precisou usar ambas as mãos para conseguir afastar a dele. — Então eu devo continuar tentando? — ela perguntou, hesitante. — Ou isso ou terei de passar o resto de meus dias me esquivando de colheres, de facas e de garfos. Ele foi recompensado por um doce sorriso. Mas ao tentar apagá-lo com um beijo, foi sumariamente abandonado. Com um movimento impetuoso, Imogen se levantou e voltou para

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a mesa. Sentou-se com a dignidade e a pompa de uma rainha e convocou-o para a retomada da prática. Aparadas as arestas, as horas fluíram. Os exercícios se tornaram leves e permeados de riso e de beijos. Nesse convívio amoroso, Robert descobriu que grande parte de seus receios havia se dissipado. Seu maior desejo era que Imogen vencesse seus demônios, não importando quais nem quantos eram. Muita comida foi derramada, muitos talheres voaram pelos ares, mas finalmente uma solução ocorreu a Robert. — Não seria melhor eu perder as esperanças de uma vez por todas? — Imogen indagou, cética. —Acho que vale a pena tentar — ele insistiu, se apressando a amontoar cada tipo de alimento em seqüência. — Não funciona com a mobília? Se eu lhe contar onde coloquei cada alimento, você saberá onde pegá-lo. — E se eu confundir as posições? — Eu estarei a seu lado. No instante seguinte, Robert prosseguiu com a aula. Depois de mostrar a Imogen a distribuição dos alimentos no prato, afastou-se para que ela pudesse colocar a teoria em prática. O orgulho lhe dilatou o peito ao notar que a cada garfada a autoconfiança de Imogen aumentava. Ela estava vencendo mais um obstáculo. A alma de Robert parecia ter ficado até mais leve por tê-la ajudado a ponto de ela conseguir comer sem deixar nada cair. Imogen alternou entre o riso e o choro tal sua emoção. Sua alegria, entretanto, durou pouco. A tensão voltou a se espalhar por seu corpo à lembrança de que faria sua primeira aparição em público, desde o banquete do casamento, naquela noite. Não sabia o que vestir. Trocou vários vestidos e, por mais que Robert garantisse que ela estava espetacular, todos os modelos lhe pareciam inadequados. Na terceira tentativa, Robert cogitou desistir do projeto. — Não precisamos descer para jantar, se você não se sentir preparada. Podemos esperar mais uma noite. Ou quantas noites você achar que serão necessárias. Os outros não me importam. Eu ficarei bem onde você estiver. — Não. Eu me recuso a continuar vivendo em reclusão, embora você já tenha demonstrado preferência por me proteger de olhares alheios. — Imogen fez uma pose. — Agora me diga se estou bem assim. Como resistir? — Você é maravilhosa e está maravilhosa. — Ele a fez apoiar a mão na curva de seu braço. — Podemos ir agora? Conforme eles atravessavam o salão, Robert percebeu que estava ficando tão ou mais tenso do que Imogen, embora por diferentes razões. O ciúme mal o deixava respirar. Mas ele lutou contra o absurdo desse sentimento. Deveria estar sentindo orgulho de sua esposa e de si mesmo por tê-la conquistado. E foi com essa nova disposição que ele ergueu a cabeça e prosseguiu em meio à multidão que se afastava para lhes abrir alas. Imogen precisava de seu

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apoio. Ele não lhe daria motivos de preocupação abrigando pensamentos negativos em sua mente. Com sua beleza e dignidade, Imogen atraía todos os olhares para si. Muitos entre os presentes a estavam vendo pela primeira vez. Curiosos pelos rumores que circulavam pela propriedade a respeito de sua dona, eles a encaravam mudos de admiração e respeito. Todos esperaram que o casal chegasse à mesa de destaque, colocada sobre um pequeno mezanino, e se acomodasse, antes de tomarem seus assentos. As portas da cozinha foram então abertas e os criados começaram a servir as comidas e as bebidas. Robert preparou o prato de Imogen e colocou-o diante dela. Estava começando a se servir quando ela o interrompeu com um toque em seu braço. — Obrigada — disse, comovida, e beijou-o no rosto. Robert pegou a mão delicada e a levou aos lábios. — Você não tem de que me agradecer. Eu apenas observei algo que mais cedo ou mais tarde você acabaria deduzindo por si só. Nada mais. Um burburinho distraiu Robert. Ao ver Gareth olhando para Imogen, próximo ao mezanino, ele precisou se conter contra uma nova e explosiva onda de ciúme. — Sir Gareth — ele saudou com formalidade, para talvez deter seu avanço. Mas não adiantou. Ao reconhecer a voz de seu segundo protetor, Imogen lhe dirigiu um sorriso brilhante que traduzia um grande prazer à oportunidade de conversarem. — É você, não é, Gareth? — Eu sempre estarei onde milady estiver — Gareth declarou, em uma demonstração tão exagerada de galanteria que até mesmo Robert teve de achar graça. — Sempre adulador, não é mesmo, sir Gareth? — Imogen caçoou. — Perdão, milady, mas eu não consigo calar minha admiração em sua presença. Tentarei ser breve e conciso, contudo, para não cair em desgraça com meu líder, que já está começando a me encarar com fúria assassina! Gareth fez uma mesura e se ajoelhou. Robert balançou a cabeça. O amigo sempre tivera um espírito brincalhão. Certamente estava apenas querendo divertir Imogen. Não havia maldade em seu procedimento. — Ouvi sussurros trazidos pelo vento de que milady nos agraciaria esta noite com sua presença. Então eu pensei em lhe oferecer este pequeno buquê para que saiba que nos sentimos honrados em tê-la conosco. Robert engoliu em seco ao ver o amigo subir o degrau e depositar ramos de folhas no colo de Imogen. A surpresa o fez perguntar: — Por que você deu folhas a ela? — Porque por mais que eu desejasse oferecer flores, não consegui encontrar nenhuma que tivesse sobrevivido à nevasca. Depois me ocorreu que Imogen sentiria mais prazer em aspirar a fragrância das ervas a simplesmente tocar em pétalas sem poder lhes adivinhar a cor.

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Sem poder imaginar a emoção que seu gesto acarretaria, Gareth emudeceu ao notar que Imogen estava apertando um galhinho entre os dedos e sorrindo ao sentir o perfume de camomila espalhar pelo ar. Robert viu as lágrimas brilharem em suas faces refletidas pelas chamas das velas. — Robert, ajude-me a levantar — ela pediu baixinho. — Obrigada, sir Gareth — Imogen agradeceu. — Foi um lindo presente. Não sei como lhe agradecer pela consideração. O discurso fora formal e apropriado. Robert não se sentiu aguilhoado pelo veneno do ciúme dessa vez. Mesmo porque isso de nada adiantaria. Ao olhar para a multidão em completo silêncio, ele descobriu que os olhares de admiração agora beiravam a idolatria. Homens embrutecidos pelas batalhas, pelo derramamento de sangue de que foram testemunhas, estavam sendo vencidos pela bondade e reconhecimento de uma jovem a quem fora roubado o dom da visão. Ele pestanejou ao pensamento de que teria de disputar o amor de sua esposa com trinta adversários. Não esperava que o primeiro deles fosse aliviá-lo dessa preocupação. — Parabéns, Robert. Você finalmente poderá desfrutar da paz pela qual lutou todos esses anos. Com trinta homens dispostos a dar a vida por Imogen, ao menos você poderá ter a certeza de que ninguém jamais se arriscará a lhe causar algum mal. — Ela estará segura, mas eu corro o risco de ser pisoteado por eles a qualquer sinal que Imogen possa fazer para chamá-los. — Nesse caso, eu o protegerei. Robert balançou a cabeça de um lado para outro e acabou sorrindo. A única pessoa que estava alheia à comoção que provocara inadvertidamente era a própria Imogen. Talvez ele devesse admitir que sua vida de casado não era a que imaginara, mas que o estava agradando sobremaneira.

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Capítulo V O som de risadas, trazido pelo vento, atraiu Robert para a janela. O pátio estava banhado em sol. A paisagem branca já havia se despedido para a chegada da nova estação. Mas não era exatamente a primavera a responsável pelo calor que o inundava. Imogen estava rindo em meio ao pessoal. Desde que assumira a administração de Shadowsend Keep, Robert estabelecera regras de convivência. O uso de cada local fora delimitado. O pátio servia agora também como campo de treinamento para seus homens. Naquele momento, eles não estavam treinando com suas espadas. Não era o ruído metálico que o alcançava, mas o entusiasmo de suas vozes. Bastava Imogen aparecer para eles para que esquecessem o dever e competissem por sua atenção. Como culpá-los se ele era a maior vítima de seu poder de sedução? A felicidade que Imogen estava encontrando ao ingressar naquele novo mundo pelos braços dele era o maior presente que ela poderia lhe dar. O que significavam alguns minutos de sua dedicação a homens que se entregavam de corpo e alma na defesa dos valores em que acreditavam? Seria demasiado egoísmo da parte dele reclamar Imogen apenas para si. Seus homens mereciam a distração inocente que ela representava. E Imogen tinha motivos para esse deslumbramento quando vivera quase toda sua vida como uma prisioneira. Às vezes, ele nem sequer conseguia acompanhar seu dinamismo. Tudo agora despertava seu interesse. Ela era incansável na perseguição de novidades. Normalmente, não era permitido que as mulheres freqüentassem locais de treinamento, mas quando a dama em questão se chamava Imogen Beaumont era aberta uma exceção. Robert não conteve um sorriso à decepção dos homens com a chegada de Gareth que ordenou que voltassem à prática. No meio deles, Imogen começou a retornar à casa, seguida por uma afobada Mary que não parecia ter se adaptado ainda à rotina revitalizada de sua ama. Ele se preparou para substituir a criada, mas antes que ela trouxesse Imogen de volta ao quarto, ele desistiu do projeto. Sua postura talvez fosse insensata, mas nos últimos dias a recusa de sua esposa em partilhar seus segredos o estava incomodando. Seus pensamentos a esse respeito estavam se tornando obsessivos. Seu orgulho masculino estava lhe cobrando um pesado tributo. Esperou até que Imogen e Mary desaparecessem entre os muros que conduziam à cozinha, nos fundos, para se afastar da janela. Chegou a recuar um passo quando adivinhou uma forma escura à espreita. Com os sentidos aguçados para o perigo, Robert estreitou os olhos e descobriu um homem escondido entre os arbustos. Qual não foi sua surpresa ao reconhecer o pastor que os casara. Lembrava-se de Imogen lhe ter contado que ele era amigo de seu irmão. Então ele não se enganara ao antipatizar com o homem à primeira vista. Embora Imogen ainda fosse praticamente uma estranha para ele, apesar de sua noiva, ele odiara o modo como o sujeito a fitava e a seguia com os olhos por onde quer que ela fosse. Não diria nada a ela sobre sua descoberta. Imogen ficaria aterrorizada se soubesse que o irmão mandara vigiá-la. Mas estava

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disposto a encontrar uma forma de impedir aquela invasão a sua privacidade. Uma forte batida à porta o fez voltar ao presente. Colocou-se por trás da escrivaninha. Melhor fingir que estava ocupado com a lista de serviços a serem feitos do que ser surpreendido sonhando acordado com sua esposa. Sir Edmond, um de seus homens, abriu a porta com dificuldade. Estava segurando uma ovelha que quase deixou escapar de tanto que o pobre animal esperneava. Robert apoiou os cotovelos sobre o tampo da mesa e apertou os lábios para não rir. O jovem parecia constrangido, mas também orgulhoso de si mesmo ao trazer a oferenda. — Pode me dizer por que me trouxe essa ovelha? — Robert franziu o rosto. — Na verdade, ela não é para você. Por que a declaração não o surpreendia? Robert suspirou. Fatos como aquele vinham se repetindo havia semanas. Por culpa de Gareth, é claro. Ao oferecer o buquê de ervas aromáticas, ele recebera um beijo no rosto em recompensa e dera início a uma competição entre os companheiros de quem conseguiria ganhar outros beijos de lady Imogen. Até mesmo o velho Matthew se colocara entre os pretendentes. Sua oferenda fora uma pena de pato. Para oferecê-la, ele se ajoelhou galantemente. Os joelhos estalaram, o que provocou risos e chacotas. Na defesa de Matthew, Imogen pediu que os homens se calassem e o proibiu de tornar a lhe render aquele tipo de homenagem, ajudando-o gentilmente a se levantar. O que houve a seguir não só emudeceu a platéia como encorajou os homens a usarem sua criatividade. Imogen abraçou Matthew como a um pai e apoiou a mão na curva de seu braço, pedindo que a guiasse até a despensa para que pudesse providenciar um inventário das provisões. Vencidos os ciúmes, Robert se imaginara oferecendo o mimo no lugar de Matthew. Ele esperaria até que estivesse a sós com a esposa. Então a despiria e percorreria sua pele acetinada com a pena. Imogen suspiraria ao toque adivinhado na elevação dos seios, na concavidade do umbigo, na parte interna das coxas... Ele precisou fechar os olhos e se forçar a respirar para apagar o quadro de sua mente. Teria sido impossível ocultar de sir Edmond seu estado de luxúria se o rapaz não estivesse tão distraído com os balidos da ovelha que lutava bravamente por recuperar sua liberdade. No fundo, Robert estava com pena do novato. Cavaleiros não eram treinados para criar ovelhas e pastoreá-las. — Então você não a trouxe para mim. Vermelho como um pimentão, sir Edmond baixou a cabeça e confirmou o palpite. — Eu pensei em oferecê-la a... — Não é preciso que continue — Robert o interrompeu. — Você achou que poderia se fazer conhecer a Imogen, minha esposa, e talvez receber seus protestos de gratidão, caso conseguisse se aproximar dela com a desculpa de lhe dar um presente.

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O jovem tornou a assentir. — Por que, então, você não aproveitou para entregar o presente diretamente a ela? — Eu não consegui passar pelos outros — sir Edmond confessou. Uma explosão de riso ameaçava vencer o prazer da provocação. Robert se levantou e fez menção de se dirigir para a porta. — Gostaria que eu o levasse até ela? O deslumbramento do rapaz se evidenciou em seu largo sorriso. — Faria isso por mim? Incapaz de continuar fingindo, Robert fez um gesto para que o rapaz se aproximasse. — Venha comigo. Eu o levarei até minha esposa. Seria incapaz de impedi-la de receber uma homenagem. Há poucos instantes eu a vi rumando para a cozinha. Os homens interromperam os exercícios ao vê-los passarem. Os balidos frenéticos da ovelha ajudaram sobremaneira a chamar a atenção sobre eles. Sir Edmond marchava com o queixo tão erguido, de vaidade e orgulho, que Robert receou que ele fosse tropeçar e cair. Da mesma forma que não culpara Gareth, nem Matthew, não podia responsabilizar seus outros homens por terem se rendido ao fascínio de Imogen. Como ele. Principalmente ele. Para compensar Imogen por ter sido obrigada a se separar das relíquias que a lembravam de um passado em que ainda possuía o dom da visão, ele estava fazendo constantes peregrinações à torre, transferindo aos poucos os objetos que lá haviam sido encerrados. Imogen empalidecera ao reconhecer o livro que tivera nas mãos, sob o olhar comovido de Robert, naquela noite. Proibiu-o de trazer outros objetos. Determinou que tudo permanecesse onde e como estava. Ele suplicara para que ela lhe contasse a razão desse sacrifício. Não conseguia entender o porquê de Imogen se negar o prazer de ter de volta coisas que eram suas. Mas a esposa se recusara a lhe abrir seu coração. Ele resolveu prosseguir em seu intento. Faria uma surpresa a ela no momento oportuno. Não conseguia parar de pensar no desvelo com que Imogen tocara cada livro, cada superfície. Principalmente em seu impulso, ao esconder no bolso um peso de papel quando acreditara que o gesto passaria despercebido. A falta de confiança de Imogen o machucara como um golpe. Mas na calada daquela noite, vendo-a dormir com a placidez de um anjo, ele a perdoara. Sua esposa tinha medo. Ele seria um infame se fizesse acordar os ecos do passado exigindo respostas que ela não estava em condições de oferecer. Enfurecia-o que a insistência de Imogen de que os objetos permanecessem onde estavam se fundamentasse em medo. Que ela não acreditasse em sua capacidade de defendê-la contra as ameaças feitas pelo irmão. Se ao menos ela conversasse com ele! Se Imogen lhe desse uma chance, ele afastaria todos os fantasmas que assombravam seus dias e suas noites. Por sua esposa, seria capaz de reduzir Roger a pó! Mas Imogen se recusava a

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lhe confidenciar seus segredos. Ela o queria perto de seu corpo, mas longe de seu coração... Apesar de tudo, Robert continuava buscando os pequenos tesouros que pretendia poder oferecer algum dia como símbolos de seu devotamento. Cada peça seria uma declaração silenciosa de que ele a protegeria até seu último suspiro contra qualquer mal que tentassem lhe fazer. Tinha esperança de que ela acabaria por entender seus propósitos e permitir que ele atravessasse as muralhas de que se revestira. Imogen cavava a terra aquecida pelo sol da primavera. A impressão que tivera fora de que o último inverno duraria para sempre. Mas o vento estava mais brando e seu perfume tornava-se gradativamente mais doce. Após anos e anos de solidão e isolamento, Imogen queria aproveitar cada minuto e glorificar a oportunidade de estar viva. Aprendera a agradecer pelas dádivas divinas em que até mesmo o perfume das flores e das ervas trazido pelo vento era um milagre. E ela queria fazer parte desse milagre, contribuindo de alguma maneira com a natureza. Apesar de suas limitações, queria ao menos plantar algumas sementes que mais tarde se transformariam em árvores e flores. Queria aprender novas coisas. Estava decidida a tornar cada dia melhor do que o anterior. Não importava que Mary ficasse reclamando sobre jardinagem não ser tarefa para uma mulher realizar. O velho Duncan era um ótimo professor e guiava suas mãos pacientemente. Além disso, Mary merecia uma folga depois de ter cuidado dela todos aqueles anos, sem dividir o peso dessa responsabilidade com ninguém. Duncan lhe destinara um canteiro para preparar. Ele a ensinara a revolver a terra para depois receber as sementes que ele recolhera no último outono. Imogen se sentia como se estivesse encontrando finalmente seu lugar no mundo. Não importava que tivesse dificuldades. Quem não as tinha de uma forma ou de outra? Ela descobrira ao tocar as mãos do velho criado, que seus dedos estavam deformados pela artrose e que isso não o impedia de trabalhar. Ela fora abençoada com a chegada de Robert. Ele era o mago que a trouxera do exílio para o convívio com os humanos. O som de seu próprio riso a fez rir ainda mais. Que tolice! De onde tirara aquela idéia? Seu marido, um forte guerreiro, comparado a um manipulado dos elementos? Por outro lado, não era magia o que ele fazia com seu corpo, criando sensações que ela jamais imaginara existir? Nunca fora tão feliz em sua vida. Chegava a ter medo dessa felicidade. Às vezes tinha a impressão de que era bom demais para ser verdade. Que o destino a estava tentando. Ou talvez fosse medo de que Roger estivesse por trás do que estava acontecendo e que de uma hora para outra tudo voltasse a ser como antes. Porque fora o irmão quem colocara Robert em seu caminho. E ele jamais tivera a intenção de lhe dar uma migalha que fosse de felicidade. As mãos de Imogen tremeram em contato com a terra, apesar do dia ensolarado. Seu ódio pelo irmão foi maior do que nunca. Não adiantava tentar fugir porque ele estava permanentemente à espreita de qualquer oportunidade para destruí-la. Talvez a presença de Robert significasse apenas isso. Um novo movimento no jogo de Roger. Para sair do abismo de escuridão em que se precipitara com aqueles pensamentos sórdidos, Imogen sacudiu energicamente a cabeça e voltou a se concentrar no plantio das sementes. Aguçou os ouvidos para os sons da primavera, para o canto dos passarinhos atarefados com a construção de ninhos, para o zumbido das abelhas à procura do néctar das flores, para um balido...

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— Você está vendo alguma ovelha por perto, Duncan? Ela comerá todas as sementes, se a deixarmos aqui. — Sim, milady. Sir Edmond está vindo para cá com uma nos braços. Surpresa, Imogen aguardou que o rapaz se aproximasse. Mas foi a voz de Robert que ela ouviu. — Não era minha intenção interromper seu trabalho, minha pequena, mas sir Edmond quer lhe dar um presente. — Um presente? Uma ovelha, você quis dizer? — Eu penso que é um cordeiro — sir Edmond esclareceu. — Mas não tenho certeza. Duncan deu um sorriso. — O animal é definitivamente um cordeiro. Sir Edmond enrubesceu aos olhares que flagrou entre o chefe e o velho criado. Os dois estavam caçoando dele. Arrependeu-se de sua ousadia. Seu desejo era que um buraco abrisse a seus pés. — Não ligue para eles, Edmond. — A observação de lady Imogen o fez mudar de idéia. Para vê-la sorrir daquele jeito, qualquer sacrifício valeria a pena. — Você acha que o cordeiro poderá se assustar se eu tocá-lo? O rapaz quase tropeçou em si mesmo para colocar o cordeiro ao alcance dela. Robert suspirou. Outro de seus homens havia sido dominado pelo fascínio de sua esposa, como marinheiros por uma sereia. Também o cordeiro se deixou dominar. Ao sentir o toque suave em sua cabeça, o pequeno animal parou de espernear e de balir. — Oh, ele não é um encanto? — Imogen pareceu deslumbrada com a experiência. — Posso segurá-lo? — Claro que sim!— Ainda mais orgulhoso de seu feito, Edmond colocou o pequeno animal nos braços de Imogen e ele, como se soubesse instintivamente que teria uma nova dona, fechou os olhinhos e dormiu. Incapaz de resistir à pureza da cena, Robert enlaçou Imogen pelo ombro e adorou que ela se aconchegasse a ele, apesar do cuidado para não deixar o cordeiro cair. — Parece que você seduz tanto os homens como os animais com seu charme — ele disse baixinho. Ela sorriu. — Posso levá-lo para casa? Tenho certeza de que saberei cuidar dele, com um pouco de ajuda. — Mas, Imogen... — Eu prometo que você nem sequer se lembrará que ele existe. Um cordeiro, afinal, não deve ser muito diferente de um cão para criar.

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— Cães são espertos. Além disso, eu nunca ouvi falar em um cordeiro de estimação. Ele sabia que estaria lutando por uma causa perdida desde antes de Imogen pegar o cordeiro no colo. Na verdade, ele adivinhou que ela se apaixonaria pelo pequeno animal desde que Edmond lhe contara que pretendia dá-lo de presente a Imogen. — Está bem. Mas você terá de encontrar um lugar para abrigá-lo. Não há condições de ficar com ele em nosso quarto. O sermão foi interrompido pelo grito de prazer que ela deu e pelo modo como o abraçou e beijou. Ele quis retribuir o beijo. O cordeiro o impediu. Constrangido por ter sido obrigado a se afastar da esposa por um animal assustado, Robert se sentiu aliviado por Duncan ter deixado as sementes caírem e se espalharem por toda a parte. Notou, nesse instante, que Edmond olhava para Imogen com expectativa. — O rapaz parece uma criança que lhe roubaram o doce — Robert cochichou. — Acho que ele está pensando que eu roubei seu direito a uma recompensa. Imogen se reprovou pela indelicadeza para com o jovem e se apressou a corrigir seu erro, beijando-o nas faces. — Eu adorei seu presente, sir Edmond. Quero lhe agradecer a gentileza. — Não é preciso me agradecer, milady. Agora, peço que me desculpe porque tenho de voltar ao trabalho. — E com o gesto mais cavalheiresco que Robert já o vira fazer, ele se curvou sobre a mão de Imogen, levou-a à altura da fronte e se afastou. Robert o seguiu com os olhos e o viu dar um pulo e erguer um braço em sinal de vitória, antes de desaparecer atrás da casa. — Como você faz isso? — Robert perguntou, a cabeça se movendo de um lado para outro. — Como eu faço o quê? — Imogen quis saber, distraída em acalmar o cordeiro que, de repente, parecia ansioso para escapar de seus braços. E antes que Robert pudesse explicar a que se referira, ela pediu que ele a ajudasse a levá-lo para casa porque o pobre animal deveria estar com fome. — Era o que eu estava pensando — Duncan concordou. — Acho que uma visita à cozinha fará bem à criatura. Lá poderão encontrar algo para ele comer e improvisar um lugar aquecido para ele dormir. A ruga de preocupação desapareceu da testa de Imogen. — Sua idéia foi brilhante. Para justificar sua inexperiência no trato com o cordeiro, Robert encolheu os ombros. — Sou um guerreiro, não um fazendeiro. — Como atual senhor destas terras, seria recomendável que aprendesse a atuar também nesse sentido — Duncan tornou a se manifestar com a sabedoria adquirida após uma longa existência. Para surpresa de Robert, Imogen colocou o cordeiro nos braços dele.

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— Você poderia cuidar dele por mim? Preciso terminar meu canteiro. Duncan está certo. Você não pode continuar sendo apenas um guerreiro. Deve aprender a conduzir as pessoas que vivem sob sua proteção também em tempos de paz. Pequenos animais normalmente fazem parte da vida dessas pessoas. Robert olhou, aturdido, para o velho jardineiro. O homem abaixou imediatamente a cabeça e se pôs a mexer com a terra. Ainda mais pasmo, Robert notou que o cordeiro estava tentando comer os cordões de sua túnica. — Você o ganhou, Imogen! Não é justo que eu tenha de alimentá-lo! — Robert tornou a protestar. Mas um beijo, como de costume, o fez se render. — Leite e cama quente — sugeriu Imogen. — Não é isso, Duncan? — Sim, milady. Para compensar seu prejuízo, Robert roubou um beijo de sua esposa antes de seguir para a cozinha. Não esperava que ela fosse se aproximar de seu ouvido e pedir que ele viesse buscá-la em uma hora para conversarem a sós. Como resistir? Ele se afastou depressa, depois de avisá-la que não se atrasasse porque ele não lhe daria nem sequer um minuto além daquele prazo. O cordeiro olhou-o como se quisesse descobrir o motivo daquela súbita excitação. Robert se viu fazendo algo que jamais imaginara ser capaz: falar com um animal. — Parece que eu também ganharei uma recompensa por sua causa. Imogen sorriu ao distinguir o assovio de Robert sendo trazido pela brisa e voltou a se ocupar com a terra. — Milady me permite uma observação? — Sim, Duncan, é claro. — E um bom homem esse seu marido. — Você acha? — Imogen fez de conta que não se importava com a resposta. — Não, milady, eu não acho. Eu tenho certeza. Até conhecer Robert, Imogen não teria acreditado na opinião do velho jardineiro, nem de Mary, nem em sua própria intuição. Não quando homens como Roger pareciam estar em controle de tudo. Ela se pôs a rezar, naquele momento, para que seu esposo nunca a decepcionasse. Precisava que ele fosse realmente o que aparentava ser. Estaria desafiando o céu ao pedir tanto? Imogen recebeu a notícia de que o mensageiro havia chegado como se já o estivesse esperando. Porque em nenhum momento ela acreditou que Roger tivesse decidido deixá-la em paz. Durante todo aquele tempo ele estivera apenas espalhando seu veneno, gota a gota, de longe, certo de que a falta de notícias acabaria por nutrir o coração dela com o alento da esperança. Não que o tempo tivesse sido o único responsável por essa alegria fugaz. Robert e seus homens haviam trazido

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uma nova luz a sua casa. Sob a orientação de Robert, as pessoas que viviam em Shadowsend Keep aprenderam a trabalhar e a se relacionarem com respeito. Dava para ouvir o murmúrio das mulheres, naquela noite, costurando, bordando e trocando confidências junto ao fogo, no salão principal, enquanto os homens se ocupavam em limpar armas e utensílios de madeira, couro ou metal, também conversando. A mistura das vozes mais graves dos homens e mais agudas das mulheres também contribuíam para a harmonia geral do ambiente. Nenhum som podia ser mais bonito para Imogen. Não conseguia entender como pudera viver tanto tempo isolada. Um sorriso brilhava em seu semblante enquanto aguardava que Robert movesse a próxima peça sobre o tabuleiro em cima da mesa. A seus pés, o cordeirinho dormia. — Você está se preparando para me dar o xeque-mate, não está? — Robert resmungou. — Lógico que estou — Imogen respondeu em tom de provocação. — Eu não teria tanta certeza, pequena — Robert recomendou. — Até ensiná-la a jogar xadrez, eu raramente perdia uma partida. A não ser, o que eu desconfio ser verdade, que você já soubesse jogar xadrez embora não tivesse me informado a respeito quando eu a desafiei a me vencer. Imogen teve o desplante de baixar a cabeça. — Por mais tentada que eu esteja a negar suas palavras, e permitir que se iluda com o fato de ter sido derrotado por uma principiante, minha dignidade me obriga a confessar que eu já jogava xadrez com meu pai quando era uma criança. Mas, se lhe serve de consolo, fazia muitos anos que eu não chegava perto de um tabuleiro. — Não serve — Robert resmungou. — Não é o fato de eu perder que me incomoda, mas a sua incrível esperteza e capacidade de memória. Basta eu lhe dizer qual foi o movimento que fiz para você planejar a próxima jogada sem titubear. Francamente, isso não me parece normal. Imogen se inclinou por cima da mesa e disse em tom conspirador. — Pode não ser normal, mas é real. O riso dela fez com que várias cabeças se virassem. Até mesmo o cordeiro olhou para a dona e para os humanos com algum interesse, antes de retomar seu sono interrompido. Robert continuava empenhado em encontrar uma saída para escapar ao bloqueio que Imogen lhe armara. Recostado na cadeira de espaldar alto, ele examinava detidamente as peças e suas posições. Decidiu-se por mover o rei e passou a vez à esposa. Em poucos segundos, ela contraatacou e abandonou a expressão pensativa por um sorriso de vitória. — Xeque! A partida ainda não estava terminada, Robert falou consigo mesmo. Mas por mais que sua mente teimasse em encontrar um jeito de salvar seu rei, sabia que acabaria tendo de entregá-lo. Não era possível. Por mais que se esforçasse não conseguia entender qual o movimento

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que fizera para que ela estivesse a ponto de lhe dar o xeque-mate. Nem sequer a aproximação de um de seus homens conseguiu que ele afastasse os olhos do tabuleiro. O que ele lhe disse ao ouvido, porém, o fez levantar com tanto ímpeto que a cadeira tombou para trás, acordando mais uma vez o cordeiro, que dessa vez baliu em protesto. — Peço que me dê licença por um momento, pequena. Tenho um assunto a resolver. — Fugindo para escapar da derrota, senhor meu marido? — Imogen caçoou com um sorriso de fingida inocência. — Não, uma atitude como essa seria indigna de um guerreiro. Talvez possa considerá-la como uma retirada estratégica. Façamos o seguinte: por que não arruma as peças enquanto eu tomo algumas providências? Você me deve uma revanche. Fique certa de que da próxima vez eu não a deixarei ganhar! — Que arrogância! — Imogen exclamou. — Você não me deixou ganhar. Eu o venci por meu próprio mérito! Robert se afastou ao som das risadas de Imogen. Sem que ninguém visse, ele riu também. Não se importara realmente que sua esposa o tivesse vencido. Ele seria capaz de qualquer coisa para vê-la feliz. Imogen ficou ouvindo os passos de Robert até que eles desaparecessem, abafados pela distância e pelos murmúrios dos presentes. Suas mãos começaram, então, a se mover sobre o tabuleiro, devolvendo cada peça à posição original. Sua mente aproveitou esses instantes para alçar vôo. O mundo que Robert lhe apresentara era repleto de novidades. Quando ela poderia ter imaginado que um simples jogo de xadrez fosse lhe proporcionar tanto bem-estar? Sentiu a alegria borbulhar em seu peito ao segurar o rei e recordar a surpresa de Robert ao se ver na iminência da derrota. Ela não saberia explicar porque escondera de Robert que dominava a técnica do xadrez no momento que ele sugerira jogarem uma partida. Malícia? Ou apenas uma maneira de prolongar sua permanência ao lado dele até que as instruções fossem dadas? De qualquer maneira, não se arrependia de sua malandragem. Sua pequena fraude servira para reforçar sua admiração por Robert. Enternecia seu coração que ele fosse capaz de tratá-la com infinita paciência. Seu corpo o queria, desde o primeiro instante, pelas sensações indescritíveis que ele lhe proporcionava. Mas sua alma relutante e sofrida precisara de mais tempo para ceder. Agora estava preparada para aceitá-lo também nos recônditos de sua alma. Porque Robert tornara-se tão importante em sua vida como o ar que respirava. Nas primeiras duas partidas, ela precisara se conter de modo a não se trair, todas as vezes que Robert parava as jogadas para fazer comentários, incapaz de tirar alguma vantagem do fato de ela não enxergar o tabuleiro. A preocupação dele interferia com sua concentração. Em compensação ela se deleitava ao ouvi-lo, sempre que ele tentava acalmá-la por sua fingida dificuldade no entendimento das regras. Ao devolver a última peça para seu devido quadrado, Imogen prolongou o toque. Robert amarrara uma fita estreita ao redor de cada peça branca de modo que ela não tivesse dificuldade em identificá-la. Tanta consideração. No entanto, ela não tivera pudor em enganá-lo. Se estivesse no

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lugar dele, talvez não aceitasse com tanta facilidade ser usada em uma brincadeira como aquela. Robert deveria ser o melhor homem do mundo. Ele era, sem dúvida, o melhor que ela conhecera. — Venha comigo! O chamado, vindo do nada, a fez estremecer. Robert estava sério e tenso. Ela percebeu isso pelo modo como ele a segurou pela mão, sem cerimônia, e a fez levantar da cadeira. O carneirinho, acordado de súbito, reclamou e fugiu para perto da lareira onde Matthew o aconchegou, com o cenho franzido pelo estranho comportamento de seu amo. Sem chance de perguntar o que poderia ter acontecido, Imogen o seguiu aos tropeções e acabou se chocando contra as costas do marido quando ele parou sem avisá-la. — Ei-la! Agora você pode transmitir a mensagem pessoalmente, como foi ordenado a fazer. Mas se continuar na minha frente depois de dizê-la, juro que farei com que se arrependa. Sem entender o que estava se passando, Imogen se viu obrigada a esperar que a situação se esclarecesse. Sentiu que o sangue sumia de suas faces ao testemunhar o restante da conversa. — Eu recebi ordens expressas para que a mensagem fosse transmitida a lady Imogen e a ninguém mais. A voz era de um jovem. Imogen estranhou. Tinha certeza de nunca tê-la ouvido antes. — Como eu me recuso a deixar minha esposa a sós com um desconhecido, ou você diz o que quer, ou pode voltar para o lugar de onde veio e devolver a mensagem ao mandatário. Robert parecia outro homem. A agressividade com que estava tratando o rapaz a surpreendeu. — O que está havendo, Robert? — ela perguntou, confusa. Por causa da pressa com que Robert a levara ao encontro, ela não tivera como se localizar na propriedade. Estava completamente perdida. — Peço que me desculpe, pequena. Eu me deixei levar pela raiva. Seu irmão parece ter esquecido que você agora é uma mulher casada e que ele não pode esconder nada de mim. O paraíso de Imogen foi abalado pela simples menção a Roger. A paz que ela ousara sentir lhe fora mais uma vez roubada. Seu irmão resolvera surgir das sombras para atormentá-la como tantas vezes antes e como continuaria a fazer até a morte de um deles. Não deveria ter se iludido. Roger jamais se permitiria esquecê-la. Solteira ou casada, ela continuaria à mercê dos pesadelos que ele provocava. — O que meu irmão mandou me dizer? — perguntou depois de respirar profundamente para afastar uma súbita sensação de desmaio. O jovem pigarreou. — Peço que me desculpe, mas seu nobre irmão insistiu para que milady estivesse sozinha quando eu lhe trans-

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— Ele pode insistir quanto quiser, mas esta propriedade é minha, e eu tenho todo o direito de saber o que se passa sob meu teto. — Faça-o por mim — Imogen murmurou. — Em absoluto! — Robert recusou, enfático. — Será melhor para nós, se você me escutar — Imogen explicou, súplice. Algo aconteceu naquele instante que fez Robert empalidecer. A esperança de um futuro feliz parecia ter abandonado Imogen. Ele não podia imaginar que o motivo não se limitava à ameaça feita pelo irmão, mas que ela voltara a suspeitar de que ele fizesse parte do plano de Roger para destruí-la até seu total aniquilamento. Um longo minuto passou até que ela o ouviu suspirar. — Está bem. Ficarei esperando do lado de fora. Até mesmo o mensageiro estremeceu ao impacto da porta ao ser batida. Imogen cogitou, nesse instante, se não errara ao exigir que a ordem de Roger fosse cumprida. Se ela tivesse permitido que Robert permanecesse a seu lado, talvez seu irmão pudesse começar a enxergar que ela agora tinha alguém empenhado em protegê-la. — Diga o que tem a dizer — Imogen pediu com um fio de voz, em vez disso. Após alguns segundos, o jovem leu: Querida irmãzinha, Minhas saudações a você. Estou certo de que esta a encontrará bem. Notícias sobre seu feliz casamento chegaram a meus ouvidos. Como pode imaginar, tive imenso prazer em recebêlas. Também fui informado de que seu marido é digno de você. Excelente. Eu detestaria saber que você está sendo maltratada pelo açougueiro do rei. Especialmente porque fui eu que o escolhi para desposá-la. Não se esqueça de que estou sempre a seu lado, embora não possa me ver. Aliás, estou muito mais perto de você do que possa pensar. Seu irmão devotado, Roger Terminada a leitura, Imogen ouviu o mensageiro tornar a enrolar o papel. — Ele também me pediu que lhe entregasse isto para que se lembre dos que já foram e que passe a usá-lo junto ao corpo. Imogen hesitou antes de estender a mão para que o mensageiro lhe entregasse a encomenda. Já esperava que fosse uma jóia pela recomendação de usá-lo em seu corpo. Assim mesmo, a sensação do metal em contato com a palma da mão lhe causou um calafrio. — Devo aguardar uma resposta para levar a meu senhor? — o mensageiro indagou, enquanto providenciava a entrega também do pergaminho. A negativa de Imogen, ele fez uma mesura, embora ela não pudesse percebê-la, e se despediu. Ela permaneceu onde estava, à mercê dos pensamentos que giravam ao seu redor como se

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fossem dardos. As palavras de Roger a amedrontavam. Sua mensagem fora clara. Principalmente a que escrevera nas entrelinhas. Que ele contava com espiões em Shadowsend Keep ela já sabia. O mais terrível fora ter suas suspeitas confirmadas de que Robert não era o que parecia. Atingida pelos dardos, Imogen sentiu o veneno se espalhar por todo seu ser. Por mais que quisesse resistir às investidas do irmão, o poder dele era inexorável. Roger era mais forte. Por mais que ela se odiasse por se submeter a sua autoridade, não conseguia mover nem sequer um dedo para impedir que a dominação se perpetuasse. Como naquele momento em que se desprezava por ter afastado Robert de si e por estar criando empecilhos para a realização de seu sonho de amor. O problema era simples e abominável em sua simplicidade. O medo de Roger a consumia. Ela podia antecipar seus passos, mas não se preparava para detê-lo e não se dava a oportunidade de tentar vencê-lo. Mesmo a felicidade, entrevista em seu casamento, fora uma ilusão. Essa era a explicação da supremacia de Roger. Ele conhecia seus inimigos melhor do que eles próprios. Explorava suas fraquezas e atacava-os nesses pontos sem dó nem piedade. A indignação e a revolta a fizeram apertar as mãos com tanta força que as pedras do anel ficaram gravadas em sua pele, marcando-a com a dura realidade. Tocou-as cautelosamente e, imediatamente, se lembrou. Eram as esmeraldas e os rubis que sua mãe usava. O anel continha uma inscrição: Amor sem medida. Um sorriso triste aflorou a seus lábios apesar da dor contundente que se alojara em seu peito. Amor sem medida, o lema de sua família. Lágrimas de saudade marejaram seus olhos. Era estranho que Roger lhe tivesse oferecido aquele presente. Ele só poderia significar um lembrete, uma nova ameaça. Seu irmão sabia que ela identificaria a jóia mesmo sem vê-la e quais as memórias que o anel invocaria. Tempos de alegria, de saúde, de amor. Deixou escapar uma risada sarcástica seguida de um soluço. Porque era exatamente assim que era sua vida. De um amor sem medida. Lembrava-se das inúmeras vezes em que se sentara no colo de sua mãe e pedira para ver o anel. E depois para que a mãe a deixasse segurá-lo. As duas, então, se dirigiam para a janela e a mãe ficava observando, sorridente, a filha que brincava com os reflexos coloridos que os raios do sol produziam ao incidirem sobre as pedras. Após alguns minutos, Imogen suplicava, invariavelmente, para que a mãe lhe permitisse usar o anel. A resposta era sempre a mesma e também o abraço que a acompanhava. —Ele ainda é largo demais para você, querida. No dia que suas mãos forem tão grandes quanto as minhas, eu prometo que o darei a você. — Mas, mamãe, eu cresci desde a última vez que experimentei o anel. Veja como minhas mãos estão grandes! As mãos eram exibidas. A mãe fingia examiná-las atentamente e depois colocava as dela contra as da filha. — Elas ainda não estão suficientemente grandes, querida. Até que o anel sirva em seu dedo, eu o usarei comigo de modo que não se perca.

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A mãe fora fiel em sua promessa. O anel estava em seu dedo naquele dia em que saiu para cavalgar com o marido para nunca mais retornar. Imogen jamais esqueceria o quanto se esforçara por convencê-los a darem um passeio. Fazia meses que seus pais não se afastavam de seu lado para não deixá-la sozinha na escuridão que a tragara. Tivera de insistir muito até que a mãe a ouvisse. — Divirtam-se! — Imogen dissera no último instante, depois de beijar os pais e apertar as mãos de sua mãe e sentir a forma do anel em sua pele. — Eu estou bem. Não há com o que se preocupar. Há muita gente aqui para cuidar de mim. Além disso, será apenas por uma tarde. Mentira. Ela não estava bem e detestaria ter de ficar sozinha. E o que deveria ter sido apenas uma tarde, prolongou-se pelo resto de sua vida. Os corpos só foram localizados dois dias depois do acidente. Eles tinham sido atirados em uma valeta ao longo do riacho, provavelmente por bandidos, pois nenhum objeto de valor que carregavam foi encontrado. Nem o anel. Imogen não se importou. Sua perda era grande demais para lamentar a falta de algo material. Permaneceu em silêncio durante o velório, concentrando suas forças em segurar-lhes as mãos frias e rígidas. Não derramara nem sequer uma lágrima. Ela as havia esgotado de tanto chorar pela perda de seus olhos no acidente ocorrido meses antes. A amargura a deixara como que entorpecida durante o funeral, mas a dor e o desespero reclamaram vazão em pouco tempo. Nos momentos de desespero, a imagem do anel voltou a assaltá-la. Como um símbolo e um lembrete do amor de sua mãe, ela o queria ter em seu dedo. Mas ele estava perdido para sempre, assim como os pais que, inadvertidamente, ela mandara para a morte. Imogen voltou ao presente com um sobressalto. As pedras frias estavam lhe contando que seu próprio irmão fora o assassino de seus pais. Ou aquele anel teria se perdido em mãos e terras desconhecidas. O fato de Roger tê-lo conservado durante todos aqueles anos era uma prova irrefutável de que ele não estava em Londres, para onde o pai o banira desde que constatara sua culpa pela tragédia que roubara a visão da filha caçula, mas nos arredores. Apenas jamais ocorrera ao pai que o filho primogênito retornaria após sua morte para tomar posse dos bens que a lei lhe garantia. Se Roger fosse inocente, ele nunca saberia que o anel não estava no dedo de sua mãe quando seu corpo fora encontrado em uma vala, ao lado do corpo do marido, dois dias depois que eles saíram montados em seus cavalos. A cruel realidade matara a última centelha de esperança a que ela tentara se agarrar durante todos aqueles anos de escuridão de que ainda poderia restar uma chance de encontrar paz em sua vida. Porque não havia mais nada a esperar. Não quando o assassino de seus pais acabava de dar a carta que encerrava o jogo com a derrota esmagadora. Ao lhe enviar aquele anel, Roger lhe entregara não somente a evidência de seu feito mais tenebroso, mas também uma declaração de que ela nada poderia fazer contra ele. Uma náusea intensa a invadiu e a obrigou a cruzar os braços sobre o estômago. Por um instante, sentiu ímpetos de atirar o anel longe. Em vez disso, abriu os dedos, deixou que a jóia repousasse em sua palma e depois a levou até o coração, decidida a guardá-la e a protegê-la, como Roger esperava que fizesse. Porque o anel seria um lembrete constante da morte que a espreitava.

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Um suor frio se espalhou pelas costas de Imogen. Ela precisou cerrar os dentes para deter o grito que subiu por sua garganta. Seu controle foi perfeito, contudo, ao ouvir Robert chamar seu nome. — Você está bem? Ela endireitou os ombros instantaneamente como se um fio invisível a puxasse para cima e colocou o anel no dedo, sem questionar o instinto que a levara a esconder a verdade de seu outro inimigo. Robert Beaumont, o açougueiro do rei. — Estou — respondeu com um sorriso tão falso quanto a preocupação que ele vinha demonstrando desde sua chegada. — Por que não estaria? Você achou realmente que aquele jovem mensageiro poderia me causar algum dano? — O que seu irmão queria? — Robert perguntou, como se não tivesse ouvido a observação. Ele queria deitar por terra qualquer esperança que ainda poderia me restar de que você era quem se dizia ser, Imogen pensou cinicamente, e fez um movimento de descaso com os ombros. — Nada de importante. Surpreendeu-me, na verdade, que ele tivesse se privado da ajuda de um de seus lacaios para mandá-lo até aqui só para se certificar de que eu estivesse bem de saúde a lado de meu esposo. Os passos cadenciados de Robert de um lado para o outro despertaram uma ponta de inveja em Imogen. Oxalá pudesse reagir de outra forma. Talvez gastando as energias acumuladas por todo seu corpo em movimentos enérgicos. Mas ela parecia ter se transformado em pedra. Estava se sentindo sufocar por sua absoluta inércia. — Maldito seja ele! — Robert praguejou, apertando o braço de Imogen tão inesperadamente que ela se encolheu. — Roger não significa nada para nós. Você entendeu? Ele não manda em você nem em mim. Acredite quando lhe digo que não deve temê-lo. Em vez de tranqüilizá-la, o modo como Robert se comportou a deixou ainda mais aterrorizada. Robert vencera. Ele maculara até mesmo seu casamento. Seu futuro estava perdido como sempre estivera. Seu corpo estremecia dominado pela revolta. Ela não queria que Robert a tocasse. Por que, então, sentia vontade de implorar pelo calor daquelas mãos fortes outra vez em sua pele depois que ele se afastou magoado com sua patente rejeição? O silêncio que se estendeu entre ambos foi tão intenso que Imogen o entendeu como uma ponte construída como por um passe de mágica e que seria impossível de transpor, mesmo que ela quisesse voltar atrás em sua decisão. — Obviamente, você não me revelou todo o conteúdo da mensagem — Robert declarou com plena e verdadeira convicção. — Talvez eu deva ler o texto por mim mesmo ou tentar alcançar o mensageiro para que ele me conte o que você me ocultou. Imogen negou com veemência. — Não se dê a esse trabalho. Não há nada que possa lhe interessar. O silêncio de Robert foi mais eloqüente do que qualquer resposta que ele pudesse ter dado. Ele não acreditara no discurso mentiroso. Imogen sabia que deveria insistir sobre ter dito a verdade, mas as forças lhe faltaram. Que Robert lesse a mensagem de uma vez por todas! Isso não mudaria

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nada. O sopro que lhe restituíra a alegria de viver lhe fora retirado e sem ele ela voltaria a mergulhar na escuridão das sombras. — Faça o que lhe aprouver. Eu vou me retirar para meus aposentos. — Eu terei com você assim que terminar de tomar as providências para a noite. Pedirei que Mary suba para ajudá-la. Imogen acenou de forma a dispensá-lo do oferecimento. Estava arrasada. Não queria ter ninguém a seu lado. Nem mesmo a fiel Mary. — Não será preciso. Tenho certeza de que conseguirei me orientar sozinha. Robert estreitou os olhos ao ver Imogen se afastar tateando pelas paredes. Quando tornou a falar, sua voz soou rouca e estranha a seus próprios ouvidos. — Não importa. O que quer que seu irmão tenha dito ou feito, não importa. Ele não tem mais nenhum poder sobre você. Nem sobre mim. Não mais. Imogen concordou com um gesto de cabeça em sinal de obediência, mas seu coração sabia que Robert estava mentindo. As mãos de Roger continuavam apertando seu pescoço, impedindo-a de respirar. E ele não a soltaria até que ela desse seu último suspiro. Longe ou perto, tanto fazia. Na manhã seguinte, ao se levantar, Imogen sentiu uma forte náusea. Abraçou-se na tentativa de controlar o mal-estar. Mas em vez de melhorar, uma súbita tontura a fez voltar para a cama. No entanto, antes que a alcançasse, suas pernas cederam sob seu peso. Ao cair, Imogen se deitou de lado e rezou para que as paredes parassem de girar e que ela conseguisse buscar o conforto de seu leito. Ainda estava escuro quando ouviu Robert sair do quarto. Não tivesse permanecido insone a noite toda, ela talvez não tivesse notado sua presença. Ele havia entrado um longo tempo depois de ela ter se recolhido. Ouvira-o se despir e depois tornar a se vestir, sem fazer nenhum ruído que pudesse acordá-la. Só depois de ouvi-lo sair e fechar a porta, ela se permitiu buscar um merecido descanso, embora temesse, no fundo, até mesmo o sono por causa dos pesadelos. Agora, o sono trazia um novo agravante. Podia dominá-la e vencê-la em sua fraqueza. O que ela mais temia era procurar refúgio irrefletidamente nos braços de Robert. Esse era um recurso a que não mais poderia recorrer. Poderia ter se passado uma hora, ou um século, até que Imogen conseguisse se levantar e chegar ao final daquele dia. De alguma forma, ela sobrevivera. Sobreviera a dor, ao medo, à fria cordialidade que parecia ter descido entre ela e Robert como uma cortina de neve. Era de seu conhecimento que a responsável pelo erguimento daqueles muros invisíveis que os separavam era ela própria. De qualquer modo, Robert não fizera nenhum movimento que demonstrasse sua intenção de escalá-los. Ele simplesmente se escondera atrás deles como um predador à espera do momento oportuno de atacar. A ceia transcorreu em um clima de abominável gentileza e cortesia. O riso e o conforto pareciam ter sido roubados de todos que habitavam Shadowsend Keep. O perigo parecia espreitar em cada fresta.

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A impressão de Imogen era que ela estava morrendo um pouco a cada dia. E a cada noite. Embora Robert continuasse dormindo ao lado dela, a distância de seus corpos parecia se estender até o fim do mundo. Ela estava sozinha, como Roger queria que ficasse, e ele deveria estar exultante com o fato porque seus mensageiros estavam chegando e partindo com freqüência cada vez maior. A segunda mensagem lhe fora entregue menos de vinte e quatro horas após a primeira. Robert conduzira o portador a seus aposentos, em vez de pedir para que ela descesse. Surpreenderaa tentando engolir uma fatia de pão, apesar dos protestos de seu estômago, e insistira em ficar. Como o outro, o novo mensageiro também se recusou a permitir que ele ouvisse o que tinha a dizer. — Não depende de mim, milorde. Estou apenas cumprindo ordens — o homem, um senhor de cabelos grisalhos, se desculpou, ofendido com a atitude beligerante de Robert. Imogen pediu que Robert os deixasse a sós. Um sorriso triste acompanhou suas palavras e foi seguido de um suspiro à batida da porta. Onde fora parar o Robert que a ensinara a se abrir para o mundo e para o amor? Ou ele nunca existira, como afirmava Roger, porque seu casa-mento fora uma farsa desde o momento em que fora concebido? A voz do mensageiro a sacudiu do torpor que a invadira ao se elevar pelo ambiente. Minha querida irmã, Espero que tenha apreciado o pequeno presente que lhe mandei Ao lhe entregar a jóia eu me senti exultante por ter conseguido cumprir quase totalmente a promessa que lhe fiz há tantos anos atrás no alto daquela torre. Você se lembra daquele lugar e daquela ocasião, não se lembra, irmãzinha querida? Eu estava cogitando lhe dizer estas palavras em pessoa, mas decidi aguardar mais um pouco para lhe fazer uma visita, de modo que Robert tenha mais algum tempo para completar sua missão. Ele a está servindo como deseja, minha querida? Eu penso nele como se também fosse um presente meu para você. Tenho planos para vocês, como bem sabe, e detestaria que me desapontassem. Não se esqueça de que sou amigo do rei, o que não poderia ser mais conveniente para mim. Fique certa de que estou mais perto de você do que pode imaginar. Estou tão perto, aliás, que vou lhe dar uma pista para que tente adivinhar quão próximo eu me encontro: estou tão perto quanto o ar que acabou de respirar. Seu irmão que tão bem a quer. Ansiosa por ficar sozinha com seu desespero, Imogen se apressou a dispensar o portador da desgraça. Roger deveria estar se vangloriando do último trunfo alcançado. Seu escárnio estava claro nas vozes anônimas de seus mensageiros. O pior era saber que não podia fazer nada para detêlo. Que embora ela tivesse vencido todas as batalhas nos últimos meses, sua derrocada era iminente. Não podia afirmar que aquele resultado já não era esperado. Sempre soubera que seu casamento era uma ilusão. Que Roger a fizera descobrir o amor só para poder destruí-la no que mais passaria a prezar: sua vida com Robert. A dor em seu coração era tão forte quanto a dor que atravessara seus olhos naquele dia distante em que rolara do alto da torre.

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Capítulo VI Robert brandiu o machado com tanta força que quase rachou o cabo ao partir a tora. Seus movimentos eram mecânicos. Sem se dar conta do que fazia, ele não parou até abastecer o celeiro. Fazia calor. No meio da tarefa, ele se livrara da túnica que o cobria e seu torso, agora, estava brilhante de trans-piração. Uma mecha de seus cabelos escuros teimava em cair sobre seus olhos, atrapalhando sua visão. Empurrou-a para trás, vezes sem fim. O sol do meio-dia, quase incandescente, não o incomodava. Preferia se cansar, extenuando os músculos, a comprometer sua sanidade mental com os pensamentos que se repetiam. Não pudesse desviar sua mente para o trabalho, ele não teria suportado o peso da decepção. Que estava ameaçando vencê-lo, apesar de tudo... Porque ao rachar uma das últimas toras, Robert descobriu que seu esforço fora inútil. Recusando-se ao silêncio que ele tentara impor, sua mente se transformara em um carrossel de preocupações que não parava de girar por mais que lhe ordenasse o contrário. Sua ansiedade vinha aumentando a cada mensagem que Imogen recebia e que a levava a se recolher em camadas cada vez mais profundas da alma. Ele não conseguia mais alcançála. Não importava o que dissesse ou fizesse, a essência de Imogen havia escapado por entre seus dedos. Ela havia se perdido entre os pesadelos que a reclamavam para longe dos lugares onde ele poderia protegê-la. A incerteza o tornara fraco quando antes não se deixava vergar por nada nem por ninguém. Sentia-se como um ser inanimado, vendo seu mundo desmoronar sem fazer nada para impedir que isso acontecesse. Uma raiva surda o invadia. Talvez pudesse se acalmar se arrumasse mais madeira para transformar em fogo. O machado tornou a subir e a descer alcançando facilmente o alvo. O zunido da arma ao ser brandida o distraiu por uma fração de segundo. A violência do golpe, contudo, não chegou nem perto de aplacar o ódio que o afligia. Bastava pensar na couraça de que Imogen se revestira para a batalha recomeçar em cada partícula de seu corpo. O casamento havia sido uma farsa. Ele estava afundando lentamente em um mar de cortesia sem alma. Imogen o tratava como a um estranho. Seus gestos e palavras traduziam sua boa educação. Ele poderia ser qualquer um. Chegava a esquecer que eram marido e mulher e também amigos e amantes. A dor que atingiu os braços de Robert pela força bruta que empregou no último golpe foi bem-vinda. Fazendo-o esquecer por um minuto a cena em que Imogen quase se tornara dele por inteiro. Quase. O vento parecia ter levado a mulher fascinante que ele vira desabrochar em seus braços. Em seu lugar ficara uma mera sombra que mal conseguia sorrir. Era uma tortura sem fim. Não bastasse ter de assistir à morte lenta de seu espírito, ele era obrigado a suportar a decadência a que o corpo tão lindo e perfeito estava sofrendo, com a perda constante de peso e de viço.

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Robert se via pensando, muitas vezes, que não havia saída para seu dilema. A morte por um inimigo, ou a morte por suicídio. Para ele, os dois se resumiam em uma mesma fatalidade. Porque o suicídio de Imogen a roubaria dele como o faria seu pior inimigo. A imagem que tinha de Imogen sempre fora de uma perfeição etérea, mas sua condição atual de completa fragilidade o fazia compará-la a uma aparição macabra. Porque Imogen parecia a morte em vida. Sua pele havia adquirido a transparência de um espírito. Seus olhos estavam afundados e emoldurados por manchas escuras. Ele procurava não se mover na cama, quando dormia, com medo de quebrá-la se seus corpos se tocassem. Com mais medo ainda de que ela o rejeitasse. Deitar ao lado de Imogen e não poder tocá-la era a dor suprema. Desejava-a mais do que tudo. Sonhava, com cada fibra de seu ser, poder estreitá-la novamente nos braços, segurá-la ao encontro de seu coração e beijá-la até ficarem sem fôlego. Ter seu desejo negado o deixava ansioso. Ele se sentia como um animal selvagem preso em uma jaula, andando de um lado para outro da propriedade. Seus homens e criados o encaravam como se temessem que ele fosse atacá-los. A comparação fez Robert sorrir de uma maneira cínica e amarga. Não poderia ter sido mais exata. Ele se sentia como um animal ferido a quem roubaram a fêmea. Todos seus instintos o impulsionavam a gritar e a uivar como se o céu infinito pudesse lhe trazer algum consolo. Esperava que seus homens o entendessem e relevassem seu comportamento. Na verdade, ele tinha certeza de que os demais habitantes de Shadowsend Keep também estavam preocupados com sua ama. A transformação de Imogen fora evidente a partir da visita do primeiro mensageiro. Cada um deles tinha o direito de se preocupar. Robert, ao menos, podia dar um nome ao inimigo. Aos outros só restava cogitar sobre a causa. De que adiantava, contudo, poder identificar o mal se era impossível erradicá-lo? Frustradas as primeiras tentativas de conquistar a confiança de Imogen, Robert desistira de pedir que ela lhe falasse sobre as mensagens que o irmão lhe enviara. Pensara em interceptá-las e se inteirar da situação, mas a cada ordem implacável para que ele a deixasse sozinha na companhia dos mensageiros, a camada de gelo entre eles se tornava mais espessa e resistente. Conforme o machado multiplicava os pedaços de lenha, Robert se comprazia com a idéia de submeter o próximo portador das notícias de Roger a esse tratamento. Seria fácil e seu problema estaria resolvido. Lamentavelmente, Roger era um homem esperto. Era ele quem dava as cartas. De longe ele jogava seu veneno, certo de que ninguém poderia atingi-lo no palácio do rei onde lograra se instalar assegurando impunidade. Porque ninguém seria louco para atacá-lo e atrair o exército do rei sobre a própria cabeça. A única forma de salvação que ocorria a Robert era esperar para descobrir com quais peças Roger estava jogando e quais as regras que estabelecera para aquele I jogo infame de gato e rato. Teria de esperar até que sua presa se atrevesse a deixar o esconderijo e se revelar. Só então ele teria como desferir o golpe que o vingaria pela perda de sua esposa em vida. Ou que significaria a salvação de seu casamento se ainda não fosse tarde de-mais para Imogen recuperar sua saúde. Por mais que Robert se obrigasse a manter o controle, um grito ecoou pelos ares. Ele não se conformava. Era cruel demais. Aquilo não era um jogo. Era uma guerra entre irmãos. Jogos não

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admitiam reféns, não deixavam mortos para trás, não faziam vítimas inocentes. E ele estava de mãos atadas e assim elas continuariam até que Imogen aprendesse a confiar nele e lhe contasse a verdade sobre o que estava se passando. A aproximação de Gareth obrigou Robert a interromper seus devaneios. — Parece que nosso abastecimento de lenha estará garantido até a chegada do verão. Robert encarou o amigo sem disfarçar a irritação. — O que você quer aqui? Gareth balançou a cabeça de olhos fechados. Depois apontou para as pilhas de lenha e deu um assovio. — Permite-me perguntar que cabeça desejou estar cortando ao castigar esses pobres troncos? O sorriso de Robert foi quase selvagem. — Foram várias cabeças, para ser honesto. De cada um dos portadores de mensagens para Imogen. As sobrancelhas de Gareth fizeram uma curva ascendente. — Talvez seja melhor que aquele homem parado junto à lareira não ouça nossa conversa. Eu desconfio de que ele também esteja trazendo notícias do exterior para sua esposa. Robert depositou o machado entre os pés e suspirou. — Bom Deus! Será que o estoque de pergaminhos daquele infame nunca terminará? Esta será a quarta mensagem que ele manda em cinco dias. — Com a pausa, Robert aproveitou para afastar mais uma vez a mecha de cabelos que lhe caíra sobre a testa. — Você sabe me dizer se já mandaram avisar minha esposa? O modo formal com que Robert se expressou pareceu a Gareth uma clara evidência de que a resposta para toda aquela agressividade estava ligada a Imogen. — Eu posso afirmar que ela não será incomodada e que não precisará deixar seus aposentos para atender o mensageiro. Porque a mensagem, desta vez, não se destina a ela. — Não? — Robert indagou, surpreso. — Não. O fato é que o mensageiro pediu para ser recebido pelo senhor deste lugar. — Por que não disse logo? — Robert protestou, mais comedido. Afinal, aquela era a melhor notícia que alguém poderia ter lhe dado nos últimos cinco dias. — Você faz idéia de quem incumbiu esse sujeito de me procurar? A expressão matreira de Gareth fez com que Robert se calasse e aguardasse. Ele conhecia bem o amigo. Uma de suas distrações favoritas era se divertir à custa dos incautos. — A julgar pela libré e pelo ar pomposo de que o sujeito se cerca, eu diria que está cumprindo uma ordem recebida diretamente do rei.

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Os olhos de Robert dobraram de tamanho. — O que William pode estar querendo de mim? Um novo sorriso curvou os lábios de Gareth. — Eu antecipei sua curiosidade e tomei a liberdade de perguntar ao emissário. Ele me contou que o rei está se sentindo tão desprotegido longe de sua presença que decidiu chamá-lo de volta à corte. Robert se sentiu incapaz de respirar por um instante. Desejou que aquela fosse apenas mais uma das brincadeiras de mau gosto a que Gareth costumava submeter os companheiros. Não era. — Quando você deverá partir? — a voz de Imogen penetrou pela mente de Robert como se atravessasse uma densa névoa. — Amanhã cedo — ele respondeu, olhando intensamente para ela, querendo gravar na mentia cada traço, cada expressão daquele rosto e daquele corpo perfeito, agora proibidos. — Terei uma longa e árdua jornada pela frente. Não quero perder nem sequer um segundo com trivialidades. Pretendo estar de volta a tempo de participar do plantio. De qualquer modo, não quero ficar longe daqui um minuto além do estritamente necessário.

Imogen sorriu e fez um gesto de concordância, mas sua expressão continuou vazia. Era como se ela já o tivesse banido de sua presença e de seu pensamento. Embora Robert tivesse soltado as mãos ao longo do corpo, os punhos se fecharam. Imogen estava perto, mas era como se estivesse a mil quilômetros de distância. Sua esposa se tornara tão inacessível para ele quanto a lua. Parecia serena com as mãos pousadas no peitoral da janela, a brisa suave agitando seus cabelos. Mas essa pose, essa altivez de rainha não o enganava. Ele sabia que aquilo não era verdade. Podia ouvir, em seu coração, a alma de Imogen gritar de dor. Sentia, como em si próprio, o peso do sofrimento a esmagando. Doía-lhe, também, saber que ela estava sendo brutalmente destruída sem que pudesse fazer nada para salvá-la. Era insuportável olhar para ela e testemunhar sua passividade diante do próprio aniquilamento. Magoava-o tanto que chegava a pensar em sacudi-la, às vezes, e sufocá-la de beijos. Seria capaz de qualquer coisa para trazê-la de volta para a realidade. De volta para ele. As mãos permaneceram inertes e os braços ao longo do corpo. Ao sol, Imogen parecia ainda mais impressionante. As faces e os lábios, antes rosados, agora apresentavam uma palidez mortal. A expressão daquele rosto assombrava Robert dia e noite. Já não sabia o que fazer para tentar afastá-la dos demônios que a estavam devorando em vida. Sem respostas, ele precisava afastar os próprios olhos da figura doentia de Imogen sob o risco de não conseguir nem sequer lhe dirigir a palavra. — Você precisa se alimentar — ele disse. — Esse vestido está tão folgado que parece pertencer a uma outra mulher. Ela encolheu os ombros.

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— Ando sem apetite. Irritado com a falta de consideração de Imogen consigo mesma, Robert quase gritou com ela. — Não importa se você tem ou não apetite. Precisa se alimentar. Se continuar jejuando, eu a farei comer, nem que seja à força. — Está falando como meu dono, não como meu marido. Roger exultaria se o escutasse neste instante. A situação fugira completamente ao controle, Robert pensou. Imogen cismara que ele estava mancomunado com o infame do irmão dela, e nada a convenceria do contrário. A víbora se instalara no ninho e despejara seu veneno gota a gota até matar qualquer chance de entendimento entre ele e Imogen. — Eu não estou falando como seu marido — Robert retrucou. — Eu sou seu marido. Também sou seu dono e senhor, se é assim que você prefere se referir a mim. E nessas condições, eu exijo que você pare de se alimentar com porções adequadas a um passarinho e volte a comer como uma pessoa adulta. Em meu retorno, espero encontrá-la com o peso que tinha quando eu a conheci. — É claro. O tom de falsa candura foi instantaneamente notado por Robert. Como não estaria em seu poder vigiá-la e zelar por sua saúde pelas semanas que viriam, ele resolveu desistir de aconselhá-la e de dar ordens inúteis. Em uma nova tentativa de entendimento, mudou de assunto. — Levarei Matthew comigo. Decidi deixar meus outros homens aqui para guardar Shadowsend Keep. Sob a liderança de Gareth, você e os criados estarão seguros. Ela aquiesceu. O silêncio era sua marca nos últimos tempos. Robert a fitava na expectativa de voltar a ouvi-la falar como antes, por ouvir seu riso contagiante. Sentia tanta falta de aconchegála junto ao peito que chegava a doer. Desejar o impossível era sua realidade. Ele se curvou para beijar a mão de Imogen em despedida. Como se ela fosse uma estranha. E como se ele fosse um estranho, ela se restringiu a lhe desejar que fizesse uma boa viagem. Robert manteve o controle até sair do quarto e fechar a porta atrás de si. Os corredores, porém, foram testemunhas de seu desespero. — Eu sinto muito, milorde. As palavras de Mary e a sinceridade que transmitiam o levaram a um necessário desabafo. — Impossível tratar com sua ama — ele se queixou. — Eu nunca conheci alguém mais difícil. — Receio existirem fortes razões que justifiquem esse comportamento — Mary confidenciou. — Por mais que Imogen tenha sofrido nesta vida, eu nunca a vi definhar como agora. Estou para morrer de preocupação. Roger já despedaçou o coração dela infinitas vezes, mas agora

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parece ter resolvido dar o golpe da misericórdia. O que eu me pergunto — Mary se deteve, o cenho franzido ao apontar um inesperado dedo para ele —, é o que o senhor, sir Robert, pretende fazer a respeito? Uma risada de sarcasmo e incredulidade ecoou pelo ambiente. — Está enganada, Mary, se pensa que eu represento algum papel nesta farsa. Sou um mero espectador, como você. — Robert esfregou os olhos e tomou fôlego antes de continuar a falar. — Juro que não tenho a menor idéia do que fazer para esclarecer esta situação inominável. — Nem eu — Mary admitiu —, mas eu tenho certeza de que largá-la aqui e fugir para Londres não é a resposta. — Eu recebi um chamado do rei — Robert protestou. — Não estou deixando Imogen por minha vontade. Robert cogitou repreender a velha aia por seu atrevimento. Não o faria, contudo. Mary era fiel a Imogen. Estimava-a como a uma filha. — Então por que não a faz acompanhá-lo? — Mary sugeriu. — Imogen está mais debilitada emocionalmente do que fisicamente. Sozinha ela se sentirá ainda pior. — Sozinha? Você não é ninguém? Gareth não é ninguém? Nem toda esse gente que vive aqui? — Ela sempre esteve só apesar de viver cercada de pessoas — Mary explicou, séria. — Até sua chegada, ela parecia morta em vida. Foi milorde quem a devolveu a nós. Ela estava voltando a ser o que era, antes de perder a visão. Se milorde realizou esse milagre uma vez, o conseguirá uma segunda. Basta que queira fazê-lo — Mary segurou Robert pelo braço e olhou em seus olhos. — Eu lhe imploro. Sem afastar os olhos dos da velha mulher, Robert se desvencilhou. Havia derrota em sua voz ao responder. — Não há nada que eu possa fazer. Imogen não permite minha aproximação. Ela não quer minha ajuda. Eu recebi uma convocação para me apresentar em Westminster. Não é uma questão de escolha. — Gentilmente, Robert apoiou a mão no ombro de Mary. — Talvez seja melhor assim. Talvez com a distância, Imogen possa refletir e chegar a uma conclusão sobre o que deseja para seu futuro. Mary protestou com firmeza. — Eu não pressinto nada de bom nesse afastamento. Robert não se defendeu da acusação. Ficou olhando Mary se afastar pelo corredor até entrar no quarto de Imogen. Suspirou, então, e balançou a cabeça. — Eu penso como você, Mary. Infelizmente, não há nada que eu possa fazer...

—Você acha que eu possa ter esquecido algo? — Robert perguntou a Gareth que o encarava com expressão divertida.

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— Como a quantidade exata de madeira que deverá ser colocada para queimar na lareira todas as tardes pontualmente às dezessete horas? — Eu não estou brincando — Robert resmungou. — Quero partir sossegado. — Não poderia ser diferente. Você cuidou para que tudo fique em ordem durante sua ausência. Se eu resolver me sentar diante da lareira e ficar de braços cruzados até seu regresso, ninguém sentirá minha falta. Robert deu um sorriso, por fim. — Eu não confiaria minha casa a mais ninguém. Orgulhoso, Gareth correspondeu ao sorriso. — Não se preocupe. Eu já estive a seu lado em campos de batalha e o ajudei a comandar batalhões. Uma velha colônia saxônia não me causará problemas. Robert se encaminhou para a janela. — Nunca me senti tão vulnerável nos campos de batalha — admitiu. — Não estou gostando nada disso. Algo parece estar errado. A paisagem lá fora, antes tranqüila e cheia de promessas de felicidade, parecia falar de um perigo iminente. Tanto que Robert lutara para conquistar aquelas terras, de repente ele estava sentindo um cheiro de traição no ar. — Você acredita se tratar de um chamado inocente ou a convocação é parte de uma estratégia para lhe tomarem a propriedade? Robert se afastou da janela e se obrigou a manter o controle. O amigo parecia ter lido sua mente. Ele precisava se concentrar em estabelecer um plano de defesa, não em se entregar ao medo da derrota. — Quem pode saber? — ele encolheu os ombros. — Talvez o rei esteja realmente se preparando para uma nova guerra e tenha me convocado no sentido de descobrir se continuará podendo contar com minha experiência e a colaboração de meus homens. — Como mercenários? Ao movimento de concordância de Robert seguiu-se um instante de silêncio. — Mais cedo ou mais tarde, o rei teria de saber que eu me despedi de minha antiga vida. Que minhas habilidades com as armas serão usadas daqui por diante apenas para defender o que é meu. Não pretendo continuar matando e arriscando minha vida por causa da ambição desmedida de William em expandir seu território. — Você considerou a possibilidade de ter sido envolvido em uma trama? Que os soldados do rei receberão ordens para atacar estas terras assim que você se ausentar? — Sim. E por isso que o escolhi para ficar em meu lugar. — Eu agradeço sua confiança. Tenho lutado por minha sobrevivência a cada dia e me considero apto a proteger esta terra e esta gente como se fossem minhas. — Mas não são as terras que mais me preocupam neste momento. O tesouro que estou lhe

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confiando tem um valor inestimável. Terá de defendê-lo com sua própria vida, se necessário. — Um tesouro que só pode ter um nome: Imogen! Robert cerrou as mandíbulas e os punhos como se o ataque invisível tivesse acabado de ser deflagrado. — Ela é tudo que me importa e que deverá importar também a você em minha ausência. Rolem quantas cabeças tiverem de rolar, Imogen precisa ser poupada a qualquer preço de mais sofrimento. Um assovio de admiração ecoou pelos ares. — Você a ama de verdade, não? Robert chegou a se esquecer de respirar. Até aquele instante, ele nunca havia pensado nesses termos. Ouvir seu fiel companheiro falar de amor em voz alta lhe causou um profundo impacto e o fez reconhecer que estava completamente certo. Jamais poderia adivinhar que o coração de Gareth também tivesse se perdido por Imogen, a única mulher que lhe era proibida. — Sim, eu a amo mais do que minha própria vida. — Se lhe serve de consolo, eu estou certo de que ela corresponde a seu amor. — Cuide dela por mim, então, para que um dia ela possa me fazer essa declaração. Emocionado demais para continuar falando, Robert se calou. Estava surpreso por ter revelado ao amigo uma parte dele que sempre mantivera trancada até de si mesmo. — Eu cuidarei. Estou cogitando, inclusive, poupá-la da visita de qualquer outro mensageiro que se atrever a procurá-la. Foram tantos ultimamente, que ninguém lhes sentirá a falta se por acaso não voltarem. — Dou-lhe carta branca nesse sentido. Os dois amigos se entreolharam e trocaram um sorriso. — Talvez você possa resolver o problema diretamente na fonte enquanto estiver em Londres — Gareth sugeriu. — Roger Colebrook, afinal, vive na corte. — Eu farei o que for preciso para salvar minha esposa! — Robert jurou. O ar estava frio e o sol começava a despontar quando Robert seguiu para o estábulo. Embora ainda fosse cedo, Shadowsend Keep já estava acordando. Alguns de seus habitantes se encaminhavam para os postos de trabalho Matthew o esperava com os cavalos. Ele teve a sensação de voltar ao passado ao atravessar o pátio o círculo parecia estar se fechando. Cinco meses antes, Matthew e ele haviam se encontrado em circunstancias semelhantes. Quase sorriu, apesar de sua contrariedade, ao notar que o velho companheiro apresentava a mesma carranca. Apenas em vez de partirem do sul rumo ao norte, agora eles estavam deixando o norte

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para se dirigirem ao sul. Cinco meses. Uma eternidade sob um ponto de vista e uma fração de segundo sob outro. Não havia como negar que a vida mudara por completo no decorrer desse período. Ele havia buscado as terras do norte cheio de sonhos de poder e regressava ao sul sem seu coração. Tornara-se mais servo do que senhor. Seus conceitos haviam mudado. Antes, possuir uma casa significava ter um teto onde se abrigar. Agora, uma casa não era nada se não fosse também um lar. Seu destino se entrelaçara aos das pessoas que também viviam entre aquelas paredes. Cada um trabalhava para o bem de todos. Especialmente ao de Imogen, a mulher que, sem saber, se tomara sua dona. Dona de seus pensamentos, de seu coração. Na noite anterior, ele se recusara a deixar que o cansaço o vencesse. Aproveitara todo o tempo que lhe restava para velar o sono de sua esposa, para admirá-la, para gravar cada detalhe de sua beleza na memória. Durante a madrugada, cedeu ao impulso de tocá-la pela primeira vez em longas semanas. Queria sentir a maciez de seus cabelos, delinear as curvas de seu rosto, os lábios entreabertos. Teve tanto cuidado que ela não acordou. Nunca imaginara que fosse capaz de se controlar a essa extensão. Seu corpo estava rijo de desejo. Implorava por tê-la nos braços. Mas seu respeito pela esposa amada estava acima das paixões. Ela quase não dormira nas últimas semanas por causa dos pesadelos. Seria imperdoável se a acordasse em seu descanso. Ou, talvez, Imogen tivesse apenas fingido que dormia. Uma lágrima havia escapado por entre os cílios e se escondido entre seus cabelos. Ele pôde detectar seu brilho à luz das chamas. Nesse instante, prendera a respiração. Era odioso pensar que Imogen chorava também quando dormia. Não bastava o sofrimento que a consumia cada segundo do dia, fazendo-a definhar a olhos vistos? Tivera de se obrigar a deixá-la. Em seu íntimo, gostaria de poder recusar o chamado do rei e permanecer ao lado dela. Mas sabia que não era possível. — Eu voltarei, pequena — Robert murmurou e beijou-a castamente nos lábios. — Saiba que eu te amo muito. Ele se vestiu e partiu sem olhar para trás. Teve medo de perder a coragem se o fizesse. — Nós vamos ou você desistiu? — O resmungo de Matthew fez Robert voltar ao presente. — Eu imaginava que a idade tornasse as criaturas mais pacientes — Robert caçoou, enquanto alisava a cri-na de Dagger. — Não é o meu caso — Matthew admitiu. — Resta-me pouco tempo de vida e eu não quero desperdiçá-lo com alguém que olha para mim, mas não me vê. Robert teve de rir da merecida acusação. — Avante! Foi Matthew, dessa vez, que precisou de alguns segundos para voltar a si porque, sem perceber, ficara parado olhando Robert se afastar com seu cavalo. Robert olhou para o alto como se buscasse uma resposta. Fazia uma semana que se

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apresentara no castelo do rei e ainda não fora chamado a sua presença. Não o tivesse servido fielmente em tempos passados, pensaria estar sendo tratado como um prisioneiro, e não como um hóspede. Sentia-se confinado. Sem permissão para se afastar do castelo, ele se sentia a ponto de explodir de tensão. Seus músculos pareciam estar inativos por séculos. Sua mente, contudo, fervilhava de pensamentos e questionamentos. Uma pergunta em especial não lhe dava trégua: o que, afinal, estava acontecendo na corte que justificasse sua convocação? Por mais que tentasse descobrir a verdade, não encontrava resposta. No intervalo entre o despacho da ordem e a viagem de Robert, o rei William decidira se transferir de Westminster para um castelo fortificado que estava sendo construído ao longo da costa de South Eastern. Por mais que se esforçasse, Robert não conseguia entender a razão daquela súbita mudança. Capricho? Descaso? Ou um propósito escuso? Sem escolha, tivera de prosseguir pelas estradas sob os justos protestos de Matthew. Mais tempo perdido e com que finalidade? Assim que ele conseguiu localizar o monarca e seu séquito, e pediu para ser recebido, foi solicitado a aguardar. Indefinidamente. Apesar dos inconvenientes, Robert estava determinado a reverenciar o rei com serena humildade. Faria o possível e o impossível para acelerar o processo. Por certo, até o mais recalcitrante dos soberanos simpatizaria com um súdito que sabia se apresentar com a dose exata de subserviência. Só nesse momento, então, Robert lhe revelaria o único motivo realmente importante daquela viagem: que ele deixara de ser um mercenário e que o rei não mais poderia contar com seus serviços. Restava saber, contudo, se sobreviveria a essa empáfia. Em condições de abandonar o castelo sobre suas próprias pernas, se o rei não o matasse, Robert daria início ao primeiro projeto do resto de sua vida: afastar Roger Colebrook, definitivamente, de sua vida e de sua esposa. Ainda não estava pensando no que faria com o canalha ao colocar suas mãos sobre ele. Mas só depois que conseguisse livrar Imogen da tenebrosa perseguição, voltaria para casa de onde não pretenderia sair nunca mais. O plano era esse, simples, porém efetivo. Apenas não dependia dele retomar sua liberdade. Não enquanto o rei não se dignasse a lhe conceder uma audiência. Até que esse momento chegasse, a verdade era que Matthew e ele estavam encerrados em uma cela de minúsculas proporções. Hóspedes não ficavam sob a vigilância de guar-das, ficavam? Apesar de a palavra confinamento jamais ter sido pronunciada, Robert não era um tolo para se deixar enganar. Dia após dia ele permanecia no aguardo de uma audiência que nunca acontecia, e que ele jamais solicitara, muito menos desejara. A impaciência ameaçava vencê-lo por mais que se esforçasse por preservá-la. A inércia era uma punição severa para um homem acostumado à ação. O tempo ocioso estava afetando sua mente, obrigando-a a trabalhar ininterruptamente. E quanto mais pensava, maior era sua certeza de que errara em sua tática. Esperara demais para deter Roger. Deveria ter partido em sua perseguição desde a entrega da primeira mensagem. Imogen não teria se reduzido à sombra da mulher que ele tivera a graça de conhecer. Por ele ter falhado em sua promessa de protegê-la, seu mundo desabara.

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Tivesse recebido os mensageiros do mal a golpes de espada e ateado fogo nos pergaminhos, Roger certamente enviaria homens para atacá-lo em represália, mas ao menos Imogen não teria sido ferida nas profundezas de sua alma. Haveria tempo para eles se prepararem. Ela nem sequer precisaria testemunhar a batalha que seria travada entre o marido e o irmão. Robert a teria afastado da ilha fria e chuvosa e colocado-a em algum refúgio ao sol do sul da França. A dura realidade fez Robert pender a cabeça. Era tarde demais para conjeturas. Deveria ter feito diferente, mas não fez. Por mais que tivesse esperado que Imogen fosse lhe contar o que havia entre ela e o irmão, esse dia nunca chegara. Era um homem de ação. Deveria ter tomado providências para impedir que Roger continuasse torturando Imogen com suas ameaças. Por que esperara tanto? De certa forma, o confinamento estava se revelando um bom conselheiro. Agora ele conseguia enxergar a situação com clareza. A solução era simples. O caminho sempre estivera aberto. Apenas ele não se dispusera a trilhá-lo por não divisar a linha de chegada atrás do obstáculo. Um obstáculo chamado orgulho. Fora seu orgulho estúpido que o impedira de fazer o que tinha de ser feito. Que outro nome se dava à exigência de que fosse outro alguém a dar o primeiro passo? Por que esperara que Imogen o procurasse e lhe dissesse que o queria, se ele, por mais que a amasse e desejasse, também não lhe havia declarado seus sentimentos? O arrependimento estava dilacerando sua alma. O que era o orgulho em comparação ao amor sincero? O que ele fazia agora sem Imogen e sem seu orgulho porque a vergonha e o remorso era tudo que lhe sobrara? Se fosse possível voltar no tempo, se ajoelharia aos pés de Imogen e lhe diria que a amava. Embora não pudesse vê-lo, ela podia ouvi-lo e senti-lo. Deveria tê-la abraçado ao encontro do peito e se recusado a deixá-la sozinha. Deus, como saber se ela estava bem? Se estava segura? E se o terror a tivesse matado de inanição? E se os pesadelos continuavam a lhe roubar o sono? Angustiado, Robert se pôs a andar de um lado para outro. Estava se sentindo a ponto de enlouquecer de arrependimento. — Se você não parar com isso, serei obrigado a matá-lo — Matthew ameaçou, o semblante tranqüilo desmentindo as palavras violentas. — Eu estava dormindo, se é que você não notou. A jarra quase vazia na mesinha ao canto e a janela sem grades eram os únicos indícios de que os dois homens não haviam sido jogados em um calabouço. Na tentativa de se aquietar, Robert se sentou no chão e apoiou as costas e a cabeça no catre onde Matthew repousava. Fechou os olhos e também os punhos. Não deu certo. Seus pés e seus punhos começaram a golpear compulsivamente a parede de pedra. Ele não ouviu Matthew suspirar nem o viu balançar a cabeça. Nem fechar os olhos. Ocorreu-lhe que estava sendo egoísta, preocupando-se apenas com seus próprios problemas, quando o velho companheiro se levantou e esvaziou mais uma jarra de vinho. Jamais vira Matthew beber tanto antes. — Você não acha que está exagerando, meu amigo?

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— Claro que estou — Matthew concordou com um encolher de ombros. — Não tenho o que fazer. Por que não aproveitar a hospitalidade do rei? Embora, cá entre nós, com os cofres abarrotados, ele poderia oferecer um vinho que não se parecesse tanto com vinagre! — Parece que a má qualidade da bebida não impediu que você a engolisse aos tonéis. Em vez de responder, Matthew entornou mais uma caneca. Robert não disse mais nada. No fundo, estava invejando a capacidade do outro de afogar o tédio e os maus pressentimentos em álcool. A ele não restava esse consolo. Dormindo ou acordado, ele não parava de pensar em Imogen. À beira de perder sua sanidade, Robert se levantou e se pôs novamente a andar pela cela, mas tornou a se sentar ao ouvir o suspiro de impaciência do amigo. Deus, não havia o que fazer! Por mais que tentasse forjar um plano para escapar daquela masmorra, porque não encontrava outra maneira de descrever aquele lugar, nenhuma idéia lhe ocorria. Sem outro recurso a não ser manter o controle, Robert aspirou o ar profundamente. Precisa se acalmar e entorpecer sua mente, de qualquer maneira. Deveria ter alcançado êxito após essa última ordem mental porque voltou a si ao baque da madeira contra a parede quando a porta foi violentamente empurrada. A certeza de que essa visita intempestiva mudaria sua sorte o deixou em alerta. Matthew, sob o efeito do vinho, se restringiu a encolher os ombros. Com a respiração suspensa, Robert encarou o guarda. Não o reconheceu. Pareceu-lhe estranho, adicionalmente, que ele evitasse encará-lo ao avisar que o rei ordenava sua presença à sala do trono. — Por fim! — Robert exclamou, contendo um estremecimento ao súbito frio que se apoderou de seu corpo, como se o avisasse da aproximação de um grande perigo. Provada estava sua teoria de que era um prisioneiro no castelo, e não um hóspede. Fingindo ingenuidade, Robert tentou apanhar sua espada para fazer uma apresentação formal, como seria de esperar a um antigo colaborador do rei. O guarda o deteve. — Sinto muito, sir Robert, mas recebi instruções para que o levasse desarmado à presença do rei. A hesitação de Robert durou alguns segundos. Todos os seus instintos clamavam para que ele se protegesse. Munido de sua espada, teria ao menos uma chance de se defender, mas essa chance lhe fora sumariamente negada. Seria a primeira vez que se apresentaria desarmado diante do rei. Era estranho. William jamais impusera restrições à presença de homens armados em suas audiências. Era de conhecimento geral que o poder absoluto gerava violência e que essa violência só era rivalizada pelo ódio em seus extremos. — Estou pronto — ele disse, subitamente certo da decisão que deveria tomar. — Siga-me!

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Rápido como um raio, Robert aproveitou a saída do guarda para o corredor, para dizer a Matthew que ele deveria fugir e levar Imogen para a França, onde ela estaria a salvo, com a ajuda de Gareth. — Há ouro suficiente no cofre para garantir a vocês e a todos que me serviram uma nova vida em outras partes. Apesar de não estar em completa forma, Matthew aquiesceu. Robert não teve dúvidas de que o velho companheiro se esforçaria para cumprir suas ordens. Ele tampouco teve dúvidas de que o guarda o conhecia das épocas em que fora recebido como herói pelo monarca. Sentia-se grato a ele por ter respeitado sua privacidade ao permitir que ficasse mais alguns instantes a sós com Matthew. Seu alívio, porém, teve curta duração. O silêncio era quase sepulcral. A atmosfera havia mudado na corte naqueles seis meses, desde que se afastara para tomar posse das terras que lhe foram concedidas. Os ares de libertinagem, impregnados de risos e gemidos de luxúria se transformaram em espectros de medo e de suspeitas. O aspecto dos corredores chegava a ser sinistro. O silêncio se tornava mais e mais opressivo. As vozes antes proferidas em respeito e alegre devoção agora estavam contidas e sufocadas. Era desconcertante. O número de guardas parecia ter triplicado. O silêncio e a desconfiança pareciam ter contagiado os lacaios. Todos se moviam como sombras pelos corredores e salões, os olhos insistentemente voltados para baixo. Até mesmo os membros da nobreza sussurravam pelos cantos, quando antes se moviam à vontade, entretidos em animadas conversações. Robert percebeu que eles evitavam fitá-lo. A maioria se comportava como se não o reconhecesse. Ou como se ele não mais existisse. Embora Robert não os considerasse seus amigos, mas aliados ou conhecidos, ele não levou essa afronta para o lado pessoal. A julgar pelas vibrações de medo que ricocheteavam pelas paredes, eles também deveriam querer estar em qualquer outro lugar que não ali. Não era preciso ser um gênio para perceber que algo no castelo estava errado. Ao chegar diante da porta que dava para a sala do trono, Robert aguardou para ser anunciado. Também era sua primeira experiência nesse sentido. O rei nunca o tratara antes com formalidade. A apreensão se instalou em seu estômago como um bloco de gelo ao pensamento de que talvez não fosse sair com vida daquela audiência. A imagem de Shadowsend Keep lhe voltou à memória. Os aposentos escuros e as escadas rangentes figuravam como um paraíso em comparação. O sorriso de Imogen surgiu como uma luz entre as trevas. E, surpreendentemente, lhe deu forças para enfrentar a situação. O ar, de repente, pareceu saturar de promessas. Robert abriu os olhos, que havia fechado à lembrança da amada, e endireitou as costas. Estava pronto. William podia ser um adversário perigoso, mas ele estava acostumado ao perigo. Antes um guerreiro por causas alheias, agora saberia lutar pela própria causa. Seus passos soaram firmes e seguros através da sala. Hesitou apenas por um instante. De ódio. Roger, o irmão de Imogen, estava inclinado sobre o rei, sussurrando algo em seu ouvido. Seu

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sorriso continha triunfo e maldade. Foi necessário um esforço descomunal de vontade para Robert não correr em direção ao canalha e lhe infligir uma morte tão violenta quanto o sofrimento que ele vinha causando à irmã. Suas mãos tremiam e clamavam por se tornarem armas da justiça. Mas, como sua vingança significaria a morte e a separação perpétua da esposa que idolatrava, Robert continuou andando e dizendo a si mesmo que a justiça poderia tardar, mas nunca falharia. Roger estava protegido pelos guardas do rei naquele momento. Mais cedo ou mais tarde, ele teria de ficar sozinho. Não poderia se esconder atrás do rei para sempre. Robert se conformou com a certeza de que valeria a pena esperar. No momento em que pusesse as mãos sobre Roger, o faria pagar por todo o mal que fizera a Imogen. Para não se deixar consumir pela fúria assassina que o dominava, Robert se obrigou a afastar seus olhos da figura diabólica e focá-los no rei. Ficou chocado com o que viu. Não fosse pela cabeleira vermelha, Robert não o reconheceria. William parecia ter envelhecido vinte anos naqueles seis meses. Seu olhar, antes expressivo e freqüentemente colérico, agora estava vazio, marcado por rugas profundas. Apesar de estar rodeado de guardas, o rei estava usando uma pesada cota e trazia a espada na bainha. Parecia atemorizado como alguém jurado de morte por um inimigo desconhecido. Robert fez uma mesura em sinal de respeito e aguardou licença para se levantar. — Majestade. A licença nunca foi dada. De joelhos, Robert ouviu o rei se levantar do trono e se aproximar. — Robert Beaumont! — Às ordens de Vossa Majestade! — Robert respondeu e estranhou a risada grotesca e as palavras que a seguiram. — Eu pensaria que você continua a ser um súdito fiel se não soubesse a verdade. — Embora o frio do metal percorresse todo o seu corpo, Robert não tremeu quando o rei encostou a espada em seu pescoço. — Mas acontece que eu fui informado de suas perversas maquinações. Embora sentisse que um fio de sangue escorria do ferimento causado pela pressão da espada, Robert não se moveu. — Minha lealdade não é fingida — ele se defendeu. — Não tenho outros planos que não viver em paz nas terras que Vossa Majestade generosamente me concedeu. O zunido da espada ao ser recolhida fez Robert erguer a cabeça em um movimento instintivo. O rei o encarava. — Eu sei de tudo. Sei de sua barganha com meu irmão. Henry lhe encomendou minha morte para reclamar o trono. O que você está fazendo tem um nome: alta traição. E você sabe que será punido exemplarmente. Apenas serei magnânimo em lhe conceder uma morte rápida em troca de me fornecer os nomes dos outros que conspiram contra mim. Ele estava perdido. Fora culpado de crimes que não cometera. Sua vida não terminaria em um campo de batalha, mas sob as intrigas da corte. Sem condições de provar sua inocência, Robert se levantou. Se tivesse de morrer, morreria

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com dignidade. O rei se afastou, como se temesse um ataque, embora os movimentos de Robert tivessem sido deliberadamente lentos. Seria cômico se não fosse sério. O rei estava com medo de um homem desarmado, na presença de guardas. Incapaz de se conter, Robert sorriu com desdém. — Eu não lhe dei permissão para se levantar! — esbravejou William, as faces vermelhas como suas madeixas. — Eu não pedi sua permissão. Não posso ter respeito por um homem que me julga capaz de cometer traição e de tramar seu assassinato, o que é pior. — Por sua atitude acabou de provar que não tem respeito pelo trono da Inglaterra. — Eu respeito o trono e o país. No momento, o rei não se mostra digno de ocupá-lo e de governá-lo. A fúria de William fez sua voz tremer ao dar continuidade ao pronunciamento. — Você não me deixa escolha. Por sua infidelidade, eu o destituo dos títulos que recebeu e dos bens que lhe foram conferidos. Será levado para os porões como um prisioneiro comum onde ficará aguardando sua sentença. Shadowsend Keep tomou forma na lembrança de Robert. A viagem para o norte e seu casamento com Imogen foram um breve sonho precioso em sua tumultuada existência. A dura realidade cobrara seu preço. Ele seria capaz de qualquer coisa por uma chance de fazer o que era certo. Livrar Imogen do irmão. Ao menos deixaria este mundo sabendo que o responsável por sua breve felicidade e por sua morte prematura o precederia. Robert foi arrancado de seus devaneios pela declaração odiosa que veio a seguir. — Até sua execução, a posse de Shadowsend Keep reverterá para meu fiel súdito, Roger Colebrook, assim como a tutela de sua esposa. O sangue desapareceu das faces de Robert. Sem se importar com a ameaça dos guardas que imediatamente brandiram suas espadas, ele avançou em direção ao trono. — Não! Isso não! Um sorriso de escárnio acompanhou o discurso do rei. — Deveria se mostrar grato. As esposas dos traidores não recebem um tratamento tão generoso, na maioria das vezes. — Eu imploro que Vossa Majestade reconsidere. — Ele jamais imploraria por sua própria vida, mas faria tudo que pudesse para tentar salvar sua esposa. — Imogen é maior de idade e as terras lhe pertencem por direito. Não me importo com meu destino, mas suplico que proclame sua liberdade. Robert se dirigiu a Deus pela primeira vez em sua vida. Estava ao alcance do rei restituir a Imogen a liberdade perdida, mas só a um ser superior ele poderia implorar que lhe devolvesse a luz. — Senhor Deus, permita que eu desça a minha sepultura sabendo que meu amor poderá

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continuar vivendo sem dor e sem medo! Uma gargalhada cortou o recinto. — Qual! Um traidor ousa pedir que seu rei deixe uma propriedade valiosa em mãos de sua esposa, com prejuízo a um súdito fiel? Em absoluto. Ela será mantida sob estreita vigilância. E quem melhor do que o irmão para fazer cumprir minha vontade? Robert não raciocinou. Seus olhos estavam voltados para Roger. Suas mãos estavam crispadas. Sequer ouviu a ordem do rei para que os guardas o detivessem. Foram necessários cinco homens para o prostrarem de joelhos. Mas ninguém conseguiu que se calasse. — Proteja Imogen, eu lhe peço, William — Robert apelou para a antiga amizade que existira entre ele e o monarca. — Não se deixe cegar pela astúcia desse maldito! Ele o está usando! Imogen já sofreu demais em suas garras. Robert não pôde continuar. Não viu a espada ser erguida e cair sobre sua cabeça. Seu último pensamento antes de mergulhar na inconsciência foi que ele havia falhado no cumprimento de sua promessa. Roger assistiu à retirada de Robert, completamente inerte, com regozijo. Seu plano havia funcionado melhor ainda do que antecipara. O tolo havia se apaixonado por Imogen. E como ela também deveria ter se apaixonado por ele, seu sofrimento acabaria destruindo-a antes mesmo que ele determinasse o momento de encerrar o jogo. Perfeito. Agora Robert também estava sob seu controle. Na tentativa de salvar o marido, Imogen se humilharia para ele como ele fora humilhado por ela e pelos pais. Apenas precisaria ter um pouco mais de paciência. O rei estava olhando para ele. Precisava se concentrar em agradá-lo. Não se podia permitir distrações. Confiança em excesso poderia pôr tudo a perder. Robert também se tornara um empecilho maior do que esperava. Não contava que o mercenário fosse se redimir. O amor poderia fortalecê-lo e torná-lo um inimigo perigoso. Era preciso eliminá-lo o quanto antes. Robert voltou a si de um abismo negro para um quadro vermelho de dor. Todos os seus músculos e nervos pareciam ter sido trucidados. Tentou se mover sobre a palha que mal cobria o chão duro e frio e quase tornou a desfalecer. A cada respiração seu peito queimava. Os guardas deveriam ter quebrado suas costelas ao surrá-lo. Suas roupas haviam sido retiradas. Apenas uma tira de pano cobria suas partes íntimas. Seu corpo estava coberto de hematomas e de cortes. Mas ele sobreviveria. A cabeça parecia ter adquirido vida própria de tanto que pulsava. De qualquer modo, Robert achava que deveria se sentir grato por ainda estar vivo. Os estragos haviam sido superficiais. Já havia se recuperado de uma situação pior quando fora pisoteado por cavalos em uma das muitas batalhas em que lutara. Aos poucos, conseguiu se sentar. Cada vez que a dor tentava vencê-lo, procurava buscar forças nas lembranças. Após o que deveriam ter sido horas, Robert conseguiu se pôr de pé, apenas para ser obrigado a se sentar novamente. Eles o haviam acorrentado. Seria impossível se erguer em

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toda a sua altura porque as correntes eram curtas. O rei se vingara. Ele o manteria de joelhos pelo tempo que lhe aprouvesse. Com cuidado, Robert esticou uma perna e depois a outra. Em seguida, cruzou os braços e apertou-os contra as costelas para mantê-las no lugar. Depois encostou a cabeça lentamente contra a parede fria e fechou os olhos para tentar encontrar um pouco de conforto no sono. Um gosto de fel o impediu de descansar. Ele havia entregado Imogen diretamente ao inimigo. Agora só lhe restava a esperança de que Matthew tivesse conseguido fugir e estivesse voltando para casa para salvar Imogen. Robert fechou os olhos nesse instante e gritou em silêncio. Imogen era sua razão de viver. Era a outra metade de seu corpo e de sua alma. Precisava vê-la, mesmo que fosse com os olhos de sua mente. A imagem foi se formando e ele a viu sorrir. Chegou a sentir seu perfume. A última coisa de que se lembrou quando mais tarde tornou a voltar a si, foi de ouvi-la murmurar, pela primeira vez, que o amava.

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Capítulo VII Matthew ainda estava embriagado, mas Robert precisava dele e não havia nada que ele não fizesse para ajudar o homem que considerava seu melhor amigo. Ou quase nada. Por mais que tentasse encontrar uma saída para sua situação, nenhuma idéia lhe ocorria. Apesar de não ter grades, a janela não abria. Ele bateu em todas as paredes e descobriu que eram sólidas. O piso era compacto. Não havia nenhuma pedra solta. No entanto, Robert lhe confiara essa missão e ele não pretendia falhar em seu cumprimento. Difícil ou não, teria de dar um jeito de fugir e salvá-los. Porque tão logo avisasse Gareth da urgência em levarem Imogen para fora do país, ele voltaria para salvar também Robert. Devagar, porque seu corpo parecia ter enferrujado após a imobilidade forçada ao longo de várias semanas, Matthew empurrou as pernas para fora do catre e apoiou os pés no chão. Ao se levantar, deixou escapar um gemido. As pernas protestaram ao serem obrigadas a sustentá-lo. Mas ao menos as paredes continuaram onde estavam. O fato de não girarem ao seu redor significava que ele não estava tão bêbado quanto pensava. Era bom saber que continuava forte embora a idade tivesse resolvido cobrar seu tributo através de dores reu-máticas que o atingiam em, praticamente, todas as juntas. Porque ele precisaria reunir suas forças para conseguir carregar sua carcaça outra vez através do país. O desalento o fez esconder o rosto com as mãos. Não era justo. Fora terrível deixar Londres e suportar o frio e o cansaço para alcançar o norte. Agora Robert queria que ele repetisse a trajetória. Como se isso não fosse sacrifício suficiente, ainda teria de levar Imogen para fora da Inglaterra. Um grunhido escapou de sua garganta. Detestava viajar por mar e não havia outra maneira de sair da Inglaterra. Da única vez que subira em uma embarcação, jurara nunca mais desafiar as leis da natureza. Se o Todo-Poderoso quisesse que os homens navegassem, Ele lhes teria dado guelras. Com um suspiro, Matthew se obrigou a calar os queixumes e os pensamentos. Tirar Imogen da Inglaterra seria algo para o futuro. O importante agora era encontrar um meio de chegar até ela. Robert falara em fuga como se fosse fácil. Matthew admitia que não estava sendo vigiado tão estreitamente quanto antes. Por outro lado, ter um guarda em seu encalço seria tão efetivo quanto vinte correndo atrás de Robert. Que ingenuidade! Robert o encarregara da missão mais difícil de sua vida como se pedisse para ele lhe encilhar um cavalo. Apesar das circunstâncias, sorriu consigo mesmo. Por trás da fachada de guerreiro, escondia-se um jovem idealista. Na verdade, fora essa característica de vulnerabilidade de Robert que o levara a acatar seu comando. Sentira-se muitas vezes como um mentor, defendendo-o da morte.

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Com sua dignidade inata, com seu espírito altruísta, Robert se colocara em situações de grande risco. Matthew tentara alertá-lo para a necessidade de se precaver contra os dissimulados, mas nunca alcançara êxito. Agora, o feitiço parecia ter virado contra o feiticeiro. Ele teria de esquecer seu lado prático e se deixar conduzir pelo coração. De olhos fechados, Matthew permaneceu em silêncio até que uma súbita idéia o fez sorrir. Ao plano certamente faltava uma dose de elegância, mas ele tinha certeza de que funcionaria. Essa era uma das vantagens de nascer em meio ao povo. Não se importava em seguir as regras da boa educação. Impaciente para dar início ao plano, Matthew se colocou atrás da porta e ficou à espreita. O guarda sempre o encontrava deitado quando lhe trazia a comida. Naquela noite, ele teria uma surpresa. O guarda entrou como de costume. Quando percebeu que a cela estava vazia e olhou ao redor à procura do hóspede cativo, já era tarde demais. Matthew o acertou na cabeça com uma pancada. Foi usado um penico, na falta de uma arma ou de um objeto mais adequado. O importante era o resultado. O guarda tombou sem dar nem sequer um pio. O orgulho pelo triunfo do plano ficou evidente no sorriso que se estampou no rosto de Matthew. Mas não havia tempo a perder. Com renovado ânimo, ele puxou o homem para dentro da cela, fechou a porta e despiu-o. Jogou um cobertor sobre o guarda em seguida, tendo o cuidado de virá-lo de lado e de cobrir parcialmente a cabeça. Qualquer um que o visse, imaginaria que era ele embriagado. Todos os bêbados, afinal, se pareciam. Satisfeito, Matthew apanhou rapidamente a farda. Sua satisfação só não foi completa por causa do mau cheiro que teve de suportar. Por outro lado, talvez a falta de banho do outro acabasse beneficiando-o. De longe, ele seria confundido com um guarda qualquer. E se alguém pensasse em se aproximar, recuaria instantaneamente, incomodado com o fedor. Matthew saiu da cela e trancou a porta com a chave roubada. Com um pouco de sorte, levaria algumas horas até que alguém desse pela falta do sujeito e resolvesse inspecionar as celas. Isso lhe daria tempo para encontrar um meio de fugir do castelo e também para tentar descobrir o novo paradeiro de Robert. Com o molho de chaves pendurado na cintura, como vira o guarda carregá-lo, Matthew endireitou instintivamente as costas e ergueu a cabeça. Sua prova de fogo seria passar pelos guardas reunidos no final do corredor. A respiração lhe faltou ao chegar perto deles. Faltava um metro ou menos do que isso para atravessar a barreira. Agora seria tudo ou nada. Ele resolveu mover o passo e uma idéia lhe veio à mente. Não pensou duas vezes para colocála em prática. Sabia, por experiência, que a monotonia permeava o trabalho dos guardas. Para compensar a indolência, eles conversavam entre si. Ocorreu-lhe que ninguém melhor do que um daqueles homens para lhe contar o que estava acontecendo com Robert. Armou-se de coragem, deteve-se diante deles e tirou do bolso o dado que sempre carregava consigo. Propôs um joguinho e teve de conter um suspiro de euforia ao ver um dos guardas aceitar o

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desafio e se colocar ao lado dele. Acocorados em um nicho escuro, os dois rolavam os dados e conversavam. — Nunca conheci ninguém com tanta sorte — disse o jovem guarda com admiração ao ver Matthew recolher as moedas pela quinta vez consecutiva. Pronto para dar o bote, ele se pôs a brincar como dado, jogando-o de uma mão para outra. — Se eu fosse um sujeito de sorte, você acha que eu estaria guardando um castelo inacabado e com a maioria dos aposentos vazios? O rapaz assentiu. — É verdade. Os tempos mudaram. O rei já não precisa de tantos servidores como antigamente. No entanto, sua obsessão por segurança o levou a triplicar a contingência. Era chegado o momento de Matthew arrancar a informação que buscava. Ele encolheu os ombros, inclinou a cabeça para o outro e baixou a voz para um tom de confidência. — Cá entre nós, o que você acha que motivou essa obsessão? O jovem guarda olhou para um lado e para outro do corredor. — Ouvi rumores de que existe um complô contra o rei. Eu não me espantaria se um dia desses, ele amanhecesse com uma faca cravada entre as costelas. — Pelas mãos de Robert Beaumont, por certo — insinuou Matthew. — Oh, não! — o rapaz moveu a cabeça negativamente. — Desse o rei já se livrou. O mercenário não viverá o suficiente para matar mais ninguém. Matthew acompanhou o riso do outro, mas um frio de gelo se apoderou de seu corpo. Porque dessa vez ele não via como ajudar seu amigo a escapar da sentença a que fora condenado. Cessadas as risadas, Matthew procurou ganhar tempo de modo a tentar obter mais informações. — Lutei com Robert Beaumont alguns anos atrás na fronteira com Gales. Acho difícil acreditar que um guerreiro como ele fosse capaz de cometer um ato de traição. — Sim, ele era considerado um bravo. Mas isso foi antes de o obrigarem a casar com a dama disforme. Eu ouvi dizer que ela é feia como o diabo. Matthew precisou cerrar os dentes e os punhos para não se entregar à tentação de socar o nariz do imbecil. Não lhe ocorreu, naquele instante, que cinco meses antes ele compartilhava daquela opinião sobre Imogen, a jovem que ele aprendera a admirar e de quem gostava agora sinceramente. Era abominável que uma deficiência visual tivesse adquirido proporções tão grotescas. — Não deve ter sido um sacrifício tão grande para ele desposar a irmã de um homem importante como Roger Colebrook. Seria quase como se tornar cunhado do próprio rei. O guarda tornou a espiar para os lados e seu tom de voz espelhou sua vaidade em poder revelar um assunto de domínio de poucos.

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— Eles se odeiam agora. Parece que foi Colebrook quem denunciou Robert Beaumont ao rei. Talvez ele tenha maltratado a esposa e ela contou ao irmão que se enfureceu com a afronta. Inteirado da situação dramática em que Robert se encontrava, Matthew decidiu encerrar a conversa e sair o quanto antes do castelo. Inventou uma desculpa para se afastar do outro e seguiu para o pátio. Ninguém o assediou enquanto se dirigia aos estábulos. Assim que localizou o cavalo de Robert entre os garanhões do rei, Matthew o encilhou. Suava frio enquanto falava com Dagger de modo a convencê-lo a não dar demonstrações de o estar reconhecendo. — Cale essa boca, seu tolo, ou seremos detidos à saída e eu não terei como explicar o fato de ter me apoderado do cavalo de um traidor. Matthew passou pela sentinela com a respiração suspensa. Jamais teria imaginado que algum dia acharia conveniente ser velho. Pessoas de idade avançada em geral não despertavam suspeitas. Ele só precisou dizer que estava a serviço do rei para ser liberado. Mas assim que teve certeza de que estava fora do alcance da visão do guarda, curvou o corpo sobre o pescoço de Dagger e o colocou em galope acelerado. Precisava tirar Imogen do país antes que fosse tarde demais. Não podia perder nem sequer um minuto. Concluída essa missão, ele voltaria ao castelo. Robert estava precisando desesperadamente de sua ajuda. Ainda não sabia o que teria de fazer para salvá-lo, mas estava determinado a tentar alguma coisa. De qualquer forma, ele queria voltar a ver Robert. Mesmo que fosse para lhe oferecer um enterro cristão. Imogen estava voltada para o sol, mas não sentia seu calor. Seu coração estava oprimido sob um bloco de gelo. Estava morta em vida. Não tinha forças para quebrar esse gelo. Apenas seu corpo continuava se alimentando e se movendo porque assim tinha de ser. Sentia-se alvo de uma conspiração. Gostaria que a deixassem sozinha, mas as pessoas faziam questão de importunála, chegando a levar a comida a sua boca. Sentia vontade de gritar para que se comportassem da maneira de sempre em vez de falarem em sussurros e andarem nas pontas dos pés quando ela estava por perto. Mary era a única que se mostrava espontânea e natural. Teria protestado e mesmo se recusado a atendê-la naquela manhã não fosse pelo sentimento de estima e gratidão que dedicava a sua velha aia. Um instantâneo repúdio lhe percorrera o corpo à sugestão de Mary para que ela se sentasse perto da janela para tomar um pouco de sol. Não saberia explicar o que houve. Um pressentimento de que uma notícia terrível estava para chegar ou a sensação de que estava se portando e sendo considerada como uma inválida? O mal-estar aumentou à súbita impressão de que ambas as situações eram verdadeiras. O desconforto da cadeira aliado ao frio que continuava atingindo seus ossos apesar de a temperatura estar amena lhe deu ímpetos de gritar. Ela desejou ter condições para sair correndo e desaparecer da face da Terra. De que adiantava ficar sentada a um sol que não conseguia enxergar nem sentir? Sem perceber o que fazia, Imogen fincou as unhas nas palmas das mãos. A pele ficou marcada, mas ela não sentiu dor. Nenhuma dor podia se sobressair àquela que se apoderara de sua alma desde a partida de Robert.

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Emoções contraditórias a sacudiam. Por mais que se esforçasse, não conseguia entender o que se passava em sua mente. Como podia sentir medo de Robert e querer estar perto dele? Como pudera se entregar tão completamente ao marido se não acreditava que ele tivesse sido honesto e sincero com ela? Como era possível recusar um homem e depois não conseguir viver sem ele? A resposta que servia para todas as perguntas era uma só. Ela estava amando Robert, um homem proibido. Porque qualquer amigo de Roger, qualquer pessoa que estivesse do lado dele, estava contra ela. Um murmúrio se elevou aos ares. Imogen fechou os olhos e baixou a cabeça. Estava cansada. A predição de Roger se cumprira. Contra toda a lógica, ela havia se apaixonado pelo único homem que o destino a proibira de se entregar. O enviado do mal. O mal que se personificara na figura de seu irmão. Da próxima vez que Roger viesse vê-la seria ainda pior do que no passado. Ela acordaria de seu sono escuro e povoado de pesadelos e sentiria a presença dele, mesmo sem vê-lo ou ouvilo. Então se sentaria bruscamente e puxaria as cobertas sobre o corpo. Roger daria uma gargalhada sinistra e a mandaria se levantar e correr se não quisesse que ele a pegasse. Em pânico, ela tentaria uma, duas, cem vezes, retirar a tranca da porta. Depois fugiria pelo corredor e acabaria caindo e se encolhendo em um canto, aterrorizada com os passos dele batendo, ressonantes, contra o chão de madeira. Era sempre assim. A tortura só acabaria quando a morte a levasse. Roger deveria estar esperando que ela rolasse novamente as escadas. Seu irmão só ficaria satisfeito no dia que ela deixasse de existir. Um soluço ameaçou brotar do peito de Imogen e ela cruzou os braços e se curvou sobre si mesma. Odiava Robert naquele momento por ele ter semeado a esperança em 'seu coração e não esperado que ela germinasse como germinara a semente que deixara em seu ventre. Um pequeno ser havia nascido dentro de suas entranhas. Um coração ainda imperceptível pulsava sob o dela. Uma criatura inocente lutava para sobreviver no abrigo frágil que lhe fora dado. Ela existia apesar de tudo. Não podia ser negada. Tentara ignorar as mudanças em seu corpo até sentir que as roupas estavam ficando apertadas. Não lhe ocorrera que tentar negar seu filho não o salvaria da perseguição do tio. Porque ela não poderia protegê-lo mais do que podia proteger a si mesma. No afã de esquecer sua condição, Imogen procurou se concentrar no ódio que sentia por Robert. Cada dia estava se tornando mais difícil. De repente, ela se surpreendia sorrindo ao recordar os arroubos de temperamento durante as conversas, ao modo como o convencera a deixar que um cordeiro se tornasse seu animal de estimação, Mas os sorrisos, invariavelmente, morriam em seus lábios às cenas que se imiscuíam nesses quadros, arras-tando-a para as profundezas da paixão. O que lhe era negado de dia, durante a noite ela recebia como presente: a impressão de estar de volta aos braços de Robert. Imogen voltou ao presente com os gritos de Mary. Antes que pudesse perguntar o que estava acontecendo, sentiu que uma capa estava sendo colocada ao redor de seus ombros. — Milady, milady! — a voz de Mary soava ansiosa e ofegante. — Por favor, venha

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imediatamente! É uma emergência! Mary parecia fora de si. Imogen queria parar e pedir que a velha criada se acalmasse. Mas após semanas de indolência, a capacidade de lutar a havia abandonado. Mary a puxava pela mão, praticamente arrastando-a pelos degraus e pelo salão. Quando a soltou, de repente, sem prévio aviso, Imogen suspeitou de que a outra tivesse perdido o juízo. E o que parecia impossível, se provou possível. Uma onda de indignação começou a agitá-la e venceu a apatia. — O que você pensa que está fazendo? Como se atreveu a me trazer até aqui, contra minha vontade, e me largar agora sem nenhuma explicação? — A culpa não é de Mary, milady, mas de Gareth — respondeu uma voz masculina. — Ele não permitiu que eu subisse a seus aposentos porque esse procedimento poderia manchar sua reputação. — Imogen adivinhou o encolher de ombros durante a pausa que se fez. — Escrúpulos descabidos. As donzelas já não temem que visitantes de minha idade comprometam suas virtudes. Por não reconhecer a voz de Matthew de imediato, Imogen apertou a capa contra o pescoço e franziu o cenho. — Quem é o senhor? — Sua pergunta me ofende, milady. Eu me ausentei por um período relativamente curto. Não esperava que fosse me esquecer tão depressa. — Matthew? — Imogen indagou, hesitante, para sorrir em seguida, o coração batendo mais rápido à idéia de que Robert havia retornado. Suas mãos tremeram ao contato das outras, maiores e ásperas. Não mais de frio, mas de emoção e expectativa. Adivinhou, em seguida, que o velho homem estava se ajoelhando em saudação. Apressou-se a dispensar essa honra. — Não faça isso! Não é preciso! — Não há tempo a perder! Nós precisamos tirá-la desta casa o mais rápido possível! Imogen franziu as sobrancelhas, confusa, ao dar pela presença de uma outra pessoa no grupo. — Gareth? Você também está aqui? E Robert? Por que ele não diz nada? Por que vocês não dizem nada a respeito dele? O que está acontecendo, pelo amor de Deus? Um silêncio carregado de tensão foi a única resposta que Imogen recebeu durante um longo momento. Gareth olhou para Matthew e balançou a cabeça. O velho companheiro pigarreou ao adivinhar que a terrível tarefa lhe caberia. Incapaz de relatar a situação de imediato, Matthew a conduziu até uma cadeira e a fez sentar. As chamas crepitavam na lareira, oferecendo ao menos o conforto do calor. Ele se colocou de costas e precisou se conter para não abraçar Imogen e falar a verdade. Mas não tinha esse direito. Por mais que desejasse poupá-la do sofrimento que a notícia lhe traria, ela teria de saber. De braços cruzados sobre o peito, Gareth sentiu as mandíbulas travarem. Invocaria a dor

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para si, se com isso pudesse poupá-la. Imogen parecia um bibelô de tão frágil e pequena, perdida naquele salão. Temeu que ela não fosse suportar mais esse golpe. — Matthew. Por que não diz logo o que está acontecendo? Eu acabarei enlouquecendo... — Imogen protestou. Matthew apoiou as mãos nos ombros de Imogen e se preparou para contar. Retirou-as após alguns instantes, olhou para Gareth e fez um movimento negativo com a cabeça. Com um suspiro, Gareth puxou uma cadeira e se sentou de frente para Imogen. Fechou os olhos por um momento e passou as mãos pelos cabelos. Como dizer a uma mulher que seu marido já deveria ter sido condenado e morto, provavelmente, por alta traição? Um ferimento a espada deveria doer menos... — Seu irmão acusou Robert de traição e o rei acreditou em sua mentira. Robert está preso nos calabouços da nova fortaleza que o rei mandou construir, e pagará seu suposto crime com a vida. Eu sinto lhe dizer, mas ao que nos consta, talvez ele já tenha sido executado. O grito de horror e negação ricocheteou pelas paredes. — Não pode ser! Não era para ser assim! O rosto de Imogen se transformou em uma máscara. E também o de Matthew. Aquelas palavras confirmavam o pensamento tenebroso que o acompanhara durante a longa viagem. Que Imogen era cúmplice do irmão. Que os dois haviam tramado contra Robert. — Pedimos a milady o obséquio de seu esclarecimento.— Matthew se manifestou, o olhar sério e desconfiado. — O que significam essas palavras, exatamente? Gareth apertou os braços contra o peito para resistir à tentação de atrair Imogen ao seu encontro. Em seus olhos havia um brilho de advertência ao velho companheiro. Imogen, alheia às vibrações de suspeita que a envolviam, tentava absorver as implicações devastadoras do que acabara de ouvir. Em sua ansiedade, precisou se levantar. — Robert é um guerreiro. O rei lhe confiou missões importantes. Ele não é um traidor. Ele é um homem de honra. Isso não faz sentido. É a mim que Roger deseja destruir, não a Robert. Foi Roger quem o escolheu para mim. Quem me entregou a Robert como tributo a pagar em troca de receber estas terras. Por que ele o acusaria de traição ao rei? — A verdade surgiu naquele instante como um clarão à mente entorpecida de Imogen. A menos que Robert fosse inocente! Que ele jamais tivesse tido a intenção de feri-la, de se aproveitar dela, de caçoar dela... E se fosse assim, então fora ela quem cometera traição. Se Robert estava sendo sincero, então o mundo que ele lhe mostrara era real. O riso, a alegria, a paixão, era tudo verdade. E ela, tola insensata, atirara ao vento sua única chance de ser feliz. Desprezara o homem de sua vida. O melhor de todos. Por medo e por ódio, havia se fechado em si mesma e recusado a felicidade que o destino fizera bater em sua porta. Por não acreditar que o amor pudesse redimir as pessoas, havia mandado Robert para o perigo e se recusado a lhe dar a única coisa que ele lhe pedira, não em palavras, talvez, mas com suas atitudes: um voto de confiança. Tudo que Robert queria era amor e ela se fechara em si mesma. Preferira se render à dúvida a dar a ele o benefício da fé e da esperança.

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Por sua incapacidade de acreditar em Robert, entregara a Roger a arma da vitória. Enveredara-se nas trilhas de seu jogo por tantos e tantos anos que não fora capaz de aceitar a mão do homem cuja primordial intenção era conduzi-la para a luz. O homem que ela sentenciara à morte. — Robert não pode morrer por mim — disse antes que soluços de desespero a sacudissem. Embora a declaração tivesse sido murmurada e abafada pelo pranto, Matthew reconheceu que era sincera. Suas suspeitas se dissolveram como sal em água. — Essa decisão escapa a sua competência — ele respondeu, igualmente abalado pelo destino daquele que teria orgulho em chamar de filho. — O que está feito, está feito. Precisamos seguir em direção ao futuro. Robert pediu que eu a levasse para fora da Inglaterra e é isso que pretendo fazer. — Ele disse para onde deveremos ir? — Gareth indagou, a mente trabalhando rápido no sentido de organizar a viagem. — Para o sul da França. — Para onde na França, exatamente? Matthew fez um movimento negativo com a cabeça. — Não houve tempo para discutirmos sobre detalhes. Acho que qualquer lugar serve, desde que fiquemos fora do alcance do rei. Gareth concordou de imediato. — Eu tenho um irmão que mora em Florença, na Itália. Tenho certeza de que ele nos ajudará a acomodar e a proteger Imogen. Seu amo, um nobre florentino, o tem em alto apreço. Eu não conheço ninguém na França. Imogen fez um gesto de assentimento. — Parece perfeito — disse Matthew. — E quanto às despesas? — Mary lembrou, preocupada. — Com quanto tempo contamos para providenciar a mudança? — Nós só poderemos carregar conosco o que for essencial. Não poderemos levar nada que não possa ser acomodado na garupa de um cavalo. Lembre-se, Mary, de que estamos fugindo, não saindo a passeio. — Eu não acredito que meus ossos possam resistir a uma longa viagem. Estou velha demais para atravessar este país sobre a sela de um cavalo. Existe um convento a um dia de distância daqui e espero que as freiras possam me oferecer abrigo. Por outro lado, temo pela situação do resto da criadagem. O que os senhores pretendem fazer com eles? Gareth refletiu por um instante. Matthew lhe dissera que Robert não queria que nenhum habitante de Shadowsend Keep ficasse ao desamparo. — Alguns serão destacados para acompanhá-la até o convento. Os outros receberão

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permissão para recolherem tudo que puderem desta casa e também deverão partir depressa antes que o rei confisque a propriedade. Matthew deu um sorriso de antecipada vingança. — Espero que seus soldados não encontrem mais nenhuma evidência de que alguém já viveu sob este teto quando chegarem aqui. — Não há tempo a perder! — Gareth exclamou com urgência. — Precisamos alcançar a costa antes que o rei determine o fechamento dos portos para nós. — Que porto você tem em mente? — O mais distante possível do rei e o mais próximo possível da Itália. Vou consultar meu mapa e descobrir qual é a rota mais direta. — Eu não quero ir para a Itália — Imogen declarou, inesperadamente. O assombro emudeceu os presentes por um momento. — Não é uma questão de querer — Mary tentou persuadir sua ama a reconsiderar sua decisão. — Como esposa de um traidor condenado à morte e irmã de um louco perigoso, fugir é sua única opção. — Não adianta tentar me demover de minha idéia. Não vou sair daqui — disse Imogen, subitamente certa da atitude que deveria tomar. — Importa-se de nos explicar, nessas circunstâncias, o que pretende fazer para nos provar que a fuga não é o meio mais sensato de sobrevivermos? — Eu pretendo seguir os passos de qualquer esposa leal que se preze. Eu quero provar que meu marido é inocente. O silêncio voltou a permear o ambiente. — Como? — inquiriu Gareth. — Não temos provas da inocência de Robert. — Da mesma forma que o rei não tem provas de sua culpa. Gareth estreitou os olhos. — Eu daria minha vida por Robert a quem estimo como um irmão, mas recuso-me a colocar sua vida em risco, Imogen, na tentativa de salvá-lo. Eu prometi a Robert que zelaria por sua segurança e é isso que tenho de fazer. — Essa decisão não é sua, mas minha. E ela já está tomada. Ao hesitar, Gareth passou a impressão de que se recusaria a ignorar a ordem de Robert. No entanto, ele fez um movimento de concordância. — Está bem. Em vez de nos afastarmos do rei, nós seguiremos para o castelo. Tomarei providências, porém, no sentido de termos uma rota de fuga para o caso de fossos planos falharem. A respiração de Imogen soou entrecortada de ansiedade.

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— Você me acompanhará apesar de eu ter me negado a ouvi-lo? Um sorriso surgiu no rosto sério de Gareth. — Eu a seguiria até o inferno, se fosse preciso, lady Imogen. — Quase não existe diferença entre os dois lugares, eu lamento dizer — Matthew declarou, pesaroso. Imogen se recostou novamente na cadeira e escondeu o rosto com as mãos. Sentia ímpetos de gritar sua dor e seu remorso ao vento. Robert era inocente. Fora sincero em todas as suas palavras e atitudes. Elas nasciam de seu coração. O prazer e a boa vontade que ele demonstrara ao lhe ensinar a valorizar a vida eram genuínos. Robert lhe oferecera todo o seu amor e em retribuição ela lhe dera o desprezo. Agora era chegado o momento de romper o silêncio e o torpor em que se recolhera. As emoções clamavam por liberdade. Eram tão intensas que doíam em seu corpo e em sua alma. Mas não eram apenas as emoções que queimavam em seu peito. Havia um sentimento maior do que tudo. Algo que ela pensara nunca mais ser capaz de experimentar. Um sentimento chamado amor. Robert a amava. Ele havia declarado seu amor. Mas os tormentos pelos quais Roger a obrigara a passar fizeram com que acreditasse que seu coração tivesse se transformado em pedra. No entanto, contra suas expectativas e certezas, o amor conseguira criar raízes entre as profundezas do medo e da insegurança e apenas ficara adormecido até poder voltar a crescer e a desabrochar. Agora sabia que também o amava. Essa descoberta inundou seus olhos de lágrimas. Queria chorar pelo tempo que perdera, pelo milagre do amor de Robert por ela e o dela por ele, mas acima de tudo, queria chorar pela ameaça que pairava sobre seu futuro com Robert. Uma súbita força, que ela não saberia como explicar, sufocou o choro e a fez erguer a cabeça em uma proposta de desafio. Roger estava enganado se pensava que sairia vitorioso, sem luta, dessa contenda. A irmã frágil e medrosa que ele conhecia acabara de se transformar em uma mulher corajosa, disposta a tudo para salvar seu esposo. Não permitiria que Roger levasse o único bem que importava em sua vida. — Não podemos ficar aqui o resto do dia em conjeturas. Precisamos preparar nossa defesa. Ao olhar para Imogen e reconhecer nela a mulher cheia de entusiasmo que conhecera, mas que havia murchado como uma flor nas últimas semanas, Gareth sentiu um gosto doce-amargo na boca. Não que tivesse acreditado em algum momento que haveria alguma chance de felicidade para ele ao lado de Imogen. Mas isso não mudava o fato de que, em sua tolice, ele se apaixonara por ela. Com um sorriso e determinação na voz, Gareth se prontificou para atendê-la. — Estou a suas ordens, milady. Por onde deveremos começar? Em pensar que os planos pareciam tão perfeitos e a empreitada tão simples antes de eles tomarem a estrada. Quanto mais Imogen procurava uma posição que lhe proporcionasse algum conforto, mais suas costas doíam. Estava provado que nada nesse mundo era fácil. Na verdade, chegar a termo dessa viagem estava lhe parecendo uma quimera.

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Quanta ingenuidade! Sob o teto de sua casa, ela chegara a acreditar que seria possível. Eles reuniriam algumas coisas, carregariam os cavalos e cobririam a distância que os separava de Robert em um estalar de dedos. Em seus devaneios, chegara a considerar que o resgate, propriamente dito, só teria início depois que eles cruzassem o país de norte a sul. A viagem, no entanto, parecia não ter fim. O fim de sua vida talvez chegasse antes. As costas a estavam matando: O pior era não poder acusar ninguém por essa monotonia e lentidão. Porque seus olhos não eram olhos de ver, alguém precisava conduzi-la. Isso significava a necessidade de Gareth ou Matthew usarem uma corda para conduzi-la. Ela se sentia como uma criança levada pelos pais a passear com seu pônei. Seu consolo era ter conseguido convencer Gareth a deixá-la montar. Na opinião dele, a única maneira segura de empreender o longo trajeto seria pelo uso de uma li-teira. O protesto fora veemente. Imogen se recusou a ouvi-lo. Diante da insistência de Gareth, ela declarou que preferiria seguir a pé. Ou até mesmo de joelhos, se ele não se calasse. Com sua determinação, conquistara o direito de montar um cavalo, como eles. Apenas agora ela não estava tão certa de ter saído vitoriosa. As noites eram ainda mais terríveis. Alem do cansaço e das dores no corpo, Imogen precisava combater os pesadelos e os medos que a assaltavam sem trégua. Ela abominava o momento de Gareth dar a ordem de parada, a cada pôr-do-sol. Procurava disfarçar e esconder sua apreensão, não querendo demonstrar fraqueza de espírito, mas o problema era que não adiantava negar seus medos porque eles continuavam a persegui-la e a lhe roubar o fôlego. Era um medo mórbido, estava ciente disso, mas a capturava de tal forma que não adiantava tentar fugir. Os sons da noite pareciam aumentá-lo. Na ânsia de se proteger, ela cobria a cabeça com o cobertor e tapava os ouvidos com as mãos. O silêncio cego, contudo, também provocava terror. A certeza de que seus olhos não poderiam orientá-la e que dependia de sua audição, não podendo, portanto, ignorá-la, era mais assustadora do que qualquer monstro que sua mente tivesse condições de criar. O sono era seu melhor aliado nesses momentos. A seu corpo era oferecida uma bendita pausa para que ele se recuperasse. Mas o amanhecer trazia a promessa de um novo sacrifício. Em sua casa, ao menos ela conseguia se localizar. Acordar todos os dias ao ar livre trazia a renovação de sua insegurança. Mas também um aprendizado. Surpreendeu-se com a capacidade de desenvolver o senso de disciplina. Não mais chorava nem gritava diante do desconhecido. Por maior que fosse o ímpeto de extravasar suas emoções, ela se agarrava à força interior que antes não sabia possuir. Era uma força básica e primitiva. Orgulhava-se de tê-la descoberto no fundo de suas entranhas e de estar aproveitando-a para cumprir a missão a que se determinara para salvar Robert. Por mais que lhe doesse o corpo, por mais exaustiva que fosse a viagem que a levaria até ele, seguiria adiante. Não poderia esquecer que guardava consigo o único recurso capaz de salvar seu marido. Precisava vencer todos os obstáculos que estavam surgindo e que continuariam a surgir em seu caminho. Só depois que o entregasse ao rei, ela poderia se dar ao luxo de descansar e de procurar o abrigo dos braços de Robert. Ele a receberia com alívio e satisfação. Teria de ser assim. Não suportaria se o desfecho de seu plano não acontecesse conforme o previsto. — Ele está bem. Ele está a minha espera. Dará tudo certo.

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Um suspiro escapou dos lábios trêmulos. Precisava acreditar no que dizia. Precisava ser valente. Sem ter noção do que fazia, Imogen colocou uma das mãos sobre a curva do abdômen onde carregava em segredo o filho de Robert. Assim que se deu conta do perigo dessa revelação, afastou-a e tornou a segurar a rédea. Não podia deixar que Matthew e Gareth adivinhassem a verdade sobre seu estado. Temia que eles a proibissem de continuar cavalgando. Desejaria que Mary a tivesse acompanhado. A moça que ela escolheu para ajudá-la durante o trajeto não servia como confidente. Aliás, ninguém serviria. Imogen só confiaria a Mary sua alegria e seu entusiasmo pelo milagre que estava dando guarida sob seu coração. Com a recusa compreensível da velha aia em atravessar o país a cavalo, Imogen acalentara a esperança de poder viajar apenas em companhia de Gareth e de Matthew. O primeiro fora categórico sobre a necessidade de ela escolher uma outra dama para substituir a criada. Em nome das aparências. Segundo Mary, a jovem Mildryd se apresentara voluntariamente para o serviço. Imogen lhe era grata, mas achava difícil entender esse oferecimento. A moça não fazia segredo de que detestava andar a cavalo, principalmente por longas distâncias. De qualquer maneira, a presença da outra servia de distração. Era engraçado ouvir os resmungos de Matthew cada vez que ela reclamava sobre o desconforto da viagem. — É bom vê-la sorrindo novamente — Gareth surpreendeu Imogen ao emparelhar seu cavalo com o dela. O sorriso acentuou. — Eu estava recordando a conversa de Matthew com Mildryd, ontem à noite, ao tentar convencê-la a preparar uma comida diferente para o jantar. Ele disse palavras que eu nunca ouvi antes. Preciso gravá-las na memória de modo a pedir que Robert me diga o significado quando voltarmos para casa. — Nesse caso, Matthew e eu devemos ficar preparados para os berros com que ele certamente nos brindará — Gareth caçoou. — Seremos advertidos pelo modo como conseguimos fazê-la ampliar seus horizontes. Matthew deu uma risada. — Gostaria de ver a cara dele quando você pronunciar essas palavras. Imogen estava se sentindo bem como há muito não acontecia. O riso brotava espontâneo. Gareth estava certo. Robert ficaria perplexo quando soubesse que ela ampliara seu vocabulário justamente com palavras de baixo calão. O trajeto continuou em silêncio por algum tempo. Só se ouvia as patas dos cavalos em agradável cadência. — Quanto mais você calcula que falta para chegarmos? — Imogen perguntou, certa de que Gareth prosseguia a seu lado.

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Ele tentou se guiar pela posição do sol. — Eu diria que ainda faltam uns cinco dias para alcançarmos o castelo fortificado, presumindo que o rei e Robert ainda permaneçam em suas dependências. Imogen suspirou. — Cinco dias! Por minha inteira culpa. Estou atrasando vocês por não enxergar. Gareth notou que Imogen estava apertando as rédeas com tanta força que as juntas de seus dedos se apresentavam pálidas. Para confortá-la, estendeu a mão e colocou-a sobre a dela. — Não fosse por sua determinação, nós não estaríamos a caminho do castelo para tentar salvar Robert. Nós teríamos seguido as ordens que ele deu e fugido. Sem a evidência que você está levando para provar sua inocência, a chance de ele sobreviver seria nula. Gareth se calou após dizer essas palavras. Ele estava pensando, e Imogen sabia disso, que talvez fossem chegar tarde demais quando só lhes restaria trazer de volta o corpo mutilado de Robert. Um arrepio de horror percorreu Imogen. O silêncio tornou a cair sobre eles, pesado e fúnebre. Ela sentiu que Gareth lhe apertava a mão para lhe dar um pouco de conforto. Depois que ele a retirou, ela procurou se acal-mar e deixar a mente em branco. Não queria perder a esperança de encontrar seu marido vivo. Recusava-se a encarar sua derrota que conferiria a vitória a Roger. Naquela noite, Gareth montou o acampamento em uma clareira, próxima da estrada, junto a um regato. Imogen apeou com a ajuda dele e agradeceu aos céus pela condição de se manter de pé e de poder caminhar. Houvera momentos, durante o trajeto, que ela temera ver seus ossos se partirem sobre o cavalo. Esticou os braços e apoiou as mãos sobre as ancas doloridas. Em seguida, moveu a cintura e o pescoço de um lado para o outro para aliviar a tensão e a rigidez dos músculos. Percebeu que Matthew estava por perto por seus resmungos. — O que houve? Discutiu outra vez com Mildryd? — O que acha, milady? Desde que iniciamos essa malfadada viagem, eu tenho procurado ser tolerante com ela, mas não sou atendido em nada do que peço. Cheguei à conclusão de que estou desperdiçando meu tempo e minha voz porque todas as tarefas acabam ficando a meu encargo. — De minha parte, eu agradeço — disse Imogen. — Gosto de receber suas atenções e considero-o um excelente valete. Você sempre adivinha minhas necessidades sem que eu precise lhe pedir ajuda. Como agora. — Imogen deu um sorriso malicioso. — Sou capaz de apostar que você está se preparando para me levar até o regato, cujas águas estou ouvindo correr alegremente, para que eu possa me refrescar. O rabugento Matthew nunca resistia ao fascínio de Imogen. Surpreendeu-se dando uma gargalhada ao vê-la erguer a mão em oferecimento, que ele se apressou a apoiar na curva de seu braço. — De vez em quando milady parece enxergar mais do que eu.

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Antes mesmo de concluir a frase, Matthew percebeu seu deslize. Tossiu, constrangido. Imogen, em sua generosidade, logo demonstrou compreensão. — Eu entendi o que você quis dizer. Estava reclamando de algo para variar. No caso, de eu ser mais esperta do que você. Com as faces coradas, o velho Matthew tornou a rir. Eles estavam quase chegando à beira do riacho. Ajudou-a, então, a se ajoelhar na margem e mergulhou as mãos delicadas na água fria. — Vou deixá-la sozinha por alguns instantes, mas ficarei por perto. Quando quiser voltar, basta me chamar. Espero que compreenda que não poderei respeitar totalmente sua privacidade. — Eu compreendo. Você receia que eu possa perder o equilíbrio e me afogar. — Sim, milady. Imogen esperou que Matthew se afastasse. Só depois que seus passos silenciaram, ela se entregou ao prazer de lavar o rosto, o pescoço e o colo. Suas mãos trabalharam com rapidez e eficiência. O momento seria prolongado se a água não estivesse tão fria. O degelo mal começara. Se estivesse aplicando flocos de neve em sua nele, a sensação provavelmente seria idêntica. Apesar dos tremores ao final do procedimento, e de não conseguir controlar os dentes que teimavam em bater uns contra os outros, Imogen deu um suspiro satisfeito. Sentia-se revigorada. A água parecia ter levado consigo o cansaço do dia. Mas, mesmo assim, sua imaginação a transportou de volta para seus aposentos e a fez sonhar acordada com um banho quente. A impressão foi tão nítida que ela chegou a sentir um perfume de rosas em seus cabelos e um delicioso calor se espalhar por sua pele. A imagem foi tão sedutora que Imogen se entregou à volúpia da água tragando seu corpo e massageando-o com suas ondas, A sua frente, o fogo crepitava na lareira. Seus olhos, permanentemente envoltos pela escuridão, precisaram ser cerrados pela súbita luz que se fez presente, tão vívida foi sua fantasia. As chamas apresentavam todos os matizes entre o laranja e o vermelho. Elas iluminavam o quarto que Imogen conservara em sua memória dos tempos de criança. A figura que se lhe apresentou mergulhada na tina de madeira, porém, não era de uma menina, mas da mulher que ela se tornara. Imogen não se assustou com a súbita presença de um homem nesse quadro. Se em sua mente ela se via mulher, era certo e compreensível que sua mente a quisesse colocar ao lado do marido. Robert. Que saudade! Como ansiava por estar com ele outra vez. Para lhe dizer coisas que já deveriam ter sido ditas. Como gostaria de poder visualizar seu rosto! Mas Robert surgira em sua vida quando seus olhos já não conseguiam ver. Assim, a forma masculina que o fogo fazia brilhar ela sabia ser de Robert. Ele estava nu e sua pele parecia feita de bronze, mas seu rosto ficara oculto pelas sombras. Pertencia não a ela, mas à escuridão de seus olhos. O Robert que ela conhecia não era o homem visto pelos outros. Ela o reconhecia pelo cheiro, pelo sabor, pelo riso, pelo movimento de seu corpo sobre o dela, pela textura e pelo calor da pele, pelo formato do rosto tocado pelas palmas de suas mãos. Uma funda revolta a invadiu ao pensamento de que não sabia nem sequer de que cor

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eram os cabelos de Robert. Se os pêlos que lhe cobriam o peito eram da mesma tonalidade ou mais escuros, como os de seu pai. Se os olhos do amor de sua vida eram azuis como o céu, verdes como as florestas, ou castanhos da cor da madeira. Precisou conter duas lágrimas que queriam se derramar. Porque a imagem estava se desfazendo e por mais que desejasse, não estava conseguindo retê-la. Teve ímpetos de gritar o nome de Robert, de implorar que ele permanecesse com ela, mesmo em fantasia. De ordenar que ele saísse da sombra e deixasse que a luz banhasse suas feições para que ela pudesse saber como ele era. Mas era tarde demais. Robert se dissolvera no ar e as trevas tornaram a envolvê-la como um manto negro. Imogen cruzou os braços e dobrou-se sobre a cintura para tentar prolongar a sensação de calor e de conforto que a imagem lhe trouxera. Para se consolar, quis acreditar que o mais importante era ela ter tido a oportunidade de conhecer Robert, se não com os olhos, com suas mãos e com seus lábios, e de tê-lo recebido e agasalhado no interior de seu corpo. Apesar da distância, as lembranças tiveram o poder de avivar o fogo da paixão. Em um movimento instintivo, Imogen tornou a mergulhar as mãos no regato para passá-las no rosto, na esperança de acalmar seu corpo e sua mente de um desejo impossível de ser realizado. Decidiu chamar Matthew após mais alguns instantes. Como ele não respondesse, ela tateou ao seu redor e se levantou. Estava terminando de enxugar as mãos na capa que trazia sobre os ombros, quando sentiu o bebê se mexer pela primeira vez. Maravilhada com a sensação, parou de respirar. Não poderia descrever a emoção de partilhar aquele milagre de ter uma outra vida dentro de si. Matthew deveria ter notado sua transformação. Sua voz soou preocupada ao alcançá-la. — O que houve, milady? Incapaz de explicar o que estava sentindo, Imogen segurou a mão de Matthew e a colocou sobre seu ventre, no lugar onde sentira a flutuação. Ele levou alguns segundos para compreender o que estava acontecendo. — Meu Deus! — ele exclamou com um sussurro. — Santa Mãe de Deus! Imogen estava sorrindo, quando, de repente, Matthew a surpreendeu com uma torrente de palavrões. Perplexa, só então ela se deu conta de, inadvertidamente, ter lhe revelado seu segredo. Não era sua intenção. Talvez tivesse sido mais prudente continuar ocultando o fato. Mas se fosse sincera consigo mesma, Imogen admitiria que estava aliviada por poder partilhar sua felicidade com alguém de sua estima e em quem confiava como se fosse o pai de Robert. — Faz quanto tempo que você está sabendo? — ele perguntou, obrigando-se a buscar a calma de modo a enxergar uma saída para a situação que estava se complicando mais e mais. — Um mês e meio. — E de quantos meses é a gestação? — Não tenho certeza — Imogen confessou. — Segundo os cálculos de Mary, eu devo estar

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de quatro a cinco meses. Matthew passou as mãos pelo rosto. — Santa Mãe de Deus! Imogen tentou sorrir sem êxito. — Você está se repetindo. — Esperou que ele respondesse. Como o silêncio começou a se estender, ela voltou a falar. — Não faz diferença, faz? — Não faz diferença? — Matthew bradou. — Como você pode dizer que não faz diferença? Por quem nos toma? Gareth e eu somos responsáveis por sua segurança. Acha que teríamos permitido que uma mulher grávida percorresse estas terras sem fim montada em um cavalo, se soubéssemos de seu estado? Por que não nos contou a verdade sobre sua condição antes de partirmos nesta aventura? — Teria feito alguma diferença? — Claro que teria. Você não estaria exausta, neste lugar afastado da civilização, mas em segurança, a bordo de um navio com destino a um porto de clima mais quente. Mary poderia tê-la acompanhado rumo à Itália. Gareth e eu teríamos dado um jeito de salvar Robert. — Não, Matthew. Você sabe que ninguém poderá salvar Robert, exceto eu. Vocês precisavam me trazer, fosse como fosse. Eu tenho certeza de que o rei não se negará a me receber. Uma nobre terá mais chance do que homens que o serviram de maneira indireta e que ele poderá encarar, hoje, como inimigos. Você não pode esquecer, Matthew, que foram contratados como mercenários e o rei pode temer que tentem atacá-lo por ter prendido seu líder. — Eu lamento ter de lembrá-la, milady, mas nossos esforços podem ter sido inúteis. Ocorreu-lhe alguma vez que a salvação de Robert pode ser impossível? Que talvez seja tarde demais quando chegarmos ao castelo? — Matthew viu Imogen empalidecer, mas não se deteve. — Eu temo por sua vida e também pela vida dessa criança. O que acontecerá se além de não podermos salvar Robert, nós também a perdermos? Não pensou nas conseqüências de seu ato, antes de se dispor a esta louca empreitada? — É claro que pensei! — Imogen respondeu com firmeza, mas também com doçura. Sua mão estava novamente sobre seu abdômen ao prosseguir. — Eu pensei em Robert e em nosso filho. Você acha que seria justo ele nascer sem pai? Sem que eu ao menos tentasse salvar nossa família? Eu não suportaria, Matthew, passar o resto de minha vida sem o homem que amo. Meu coração sofre por ter sido a causa do sofrimento de Robert. Pensa que eu não sei que Robert estaria livre, se não fosse por mim? Que ele estaria a salvo? Imogen parou de falar por um instante, mas prosseguiu antes que Matthew tivesse chance de retrucar. Suas feições estavam crispadas. Havia determinação em sua voz. — Eu não concordo com você sobre ser tarde demais para salvá-lo. Eu me recuso a pensar assim. Robert está vivo e espera por nós. Não torne a falar como quem não acredita no êxito de nossa missão. Não me negue essa esperança.

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Matthew encarou Imogen por um longo tempo em silêncio. Sua admiração pela jovem tornara-se ainda maior agora que sabia que ela carregava uma nova vida em seu ventre e que lutava como uma grande guerreira para salvá-los. De qualquer modo, ele achava que era seu dever informar o companheiro sobre o bebê, por mais que ela quisesse convencê-lo a calar a respeito. A reação de Gareth foi ainda pior do que Imogen esperava. Após o choque inicial, suas recriminações não conheceram limites. Ele protestou e gritou e censurou-a pela completa insensatez de suas ações. Imogen suportou as recriminações com tranqüilidade e esperou até que ele também se acalmasse para voltar a lhe dirigir a palavra. Mas ele se manteve calado, recusando qualquer aproximação. Disse que precisava ficar sozinho para refletir sobre o que fazer. Era madrugada quando Gareth retornou ao acampamento. Sem conseguir dormir, Imogen o ouviu chegar e se sentar perto da fogueira. Percebeu que ele resolveu se servir da ceia que sobrara e esperou que terminasse de comer para fazer uma nova tentativa de reconciliação. — Sente-se melhor agora? — Você deveria estar dormindo — ele se limitou a dizer. Imogen se apoiou sobre um cotovelo e não notou que com o movimento as peles deslizaram deixando à mostra parte de seu colo. Gareth baixou a cabeça e respirou profundamente. — Eu tentei, mas estava preocupada demais com você. — Ouvi falar que gestantes sentem muito sono . — Algumas, talvez. Não eu. Às vezes, penso que nunca mais serei capaz de desfrutar de uma boa noite de sono. Um suspiro antecedeu o protesto. — Por que você não me contou? A mágoa estava patente na pergunta. Imogen cogitou o que poderia responder que não agravasse a situação, mas que, ao contrário, fizesse com que Gareth compreendesse sua escolha. — Não foi uma questão de eu não ter contado apenas a você. Eu não havia contado a ninguém até hoje. Mary adivinhou minha condição antes que eu própria soubesse ou quisesse saber. — Imogen fez uma pausa. — A verdade é que eu mesma não queria aceitar essa realidade. Por favor, não me leve a mal. Eu não sei explicar o que está acontecendo comigo. — Tente. Imogen custou tanto a se decidir a atendê-lo que Gareth chegou a acreditar que nunca conheceria a verdade. — Eu pensei que Robert tivesse me traído e estendi minha revolta à semente que ele deixou em meu corpo. Foi apenas quando tive certeza de sua inocência que passei a aceitar a gravidez e senti meu amor despertar pelo bebê. O início foi difícil. Eu achava que estava traindo a mim mesma por ter permitido que um emissário de meu irmão me fizesse um filho. — Imogen interrompeu o relato porque a emoção ameaçava se manifestar em soluços. — Eu não posso perder

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Robert e sou a única pessoa no mundo que, talvez, possa salvá-lo. Seja franco. Você e Matthew teriam permitido que eu os acompanhasse nesta missão se soubessem sobre meu estado? — Eu a teria amarrado em sua cama, se fosse preciso, para impedir que nos seguisse — Gareth afirmou. Imogen riu sem humor. — Está respondida sua pergunta? — Está bem. Eu entendo seu motivo — Gareth concordou por fim. — Espero que também compreenda o meu. Esta missão já era perigosa antes de tomarmos conhecimento de sua gravidez. Coloque-se em meu lugar. Eu sou responsável por você e agora também por essa criança que está esperando. — Minha permanência em Shadowsend Keep significaria a morte para Robert. Eu não poderia ficar de braços cruzados, poderia? O fato de eu ter calado significa que a responsabilidade se tornou minha. Ela não é mais sua. — Juro que nunca conheci ninguém mais cabeça-dura do que você! — Gareth exclamou e acabou rindo ao ouvi-la retribuir a observação com uma palavra de agradecimento. — Não era para ter sido interpretado como um elogio. — Eu sei, mas estou disposta a encará-lo como tal. Então, fazemos as pazes? Estabelecida uma trégua entre eles naquele momento, Imogen disse boa-noite e puxou as peles por cima da cabeça. Gareth sorriu, fingindo ter aceitado a situação. — Boa noite. O sol ainda não despontara no horizonte e Imogen, Matthew e Gareth já se preparavam para seguir viagem. Com a caneca de chá firmemente presa entre os dedos, Imogen se obrigava a ingerir a beberagem. — Quando chegaremos ao castelo? — Se partirmos logo, eu acredito que estaremos nos aproximando da fortaleza por volta do meio-dia — Gareth respondeu. — Agora falta pouco — Imogen murmurou, entre amedrontada e esperançosa. — Tão pouco que chego a ouvir as reclamações de Robert por eu ter voltado para buscálo. — Matthew olhou para Gareth de maneira significativa antes de tornar a se dirigir a Imogen. — Espero que ele não me mate quando souber que Gareth veio comigo, em vez de levar a esposa dele para fora do país. Também espero que não me mate por ter concordado que sua esposa viesse conosco colocando não apenas sua vida em risco, mas também a do filho dele. — Matthew fez uma pausa e tentou brincar. — Talvez eu deva explicar antes toda a situação, e só livrá-lo das correntes depois que tiver certeza que ele será capaz de perdoar a mim e a Gareth. Imogen procurou rir de modo a aliviar a tensão que permeava o grupo. Seus pensamentos, contudo, continuavam a atormentá-la. O medo de que Roger vencesse, de que Robert já estivesse morto chegava a impedir que respirasse.

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A fé e a esperança precisavam ser mais fortes. Ela não conseguia conceber seu futuro sem Robert. Sem poder conciliar no sono, naquela noite, rezou para que seu marido ainda pudesse ser salvo. No castelo, Ian andava de um lado para outro do altar, impaciente com o atraso de Roger. Ele deveria ter chegado uma hora antes, mas pela falta de notícias talvez ainda tardasse. Não havia escolha. Era preciso esperar sem reclamar e se agarrar a essa chance, sua única chance de libertação. Livrar-se da teia de intrigas palacianas e viver sem o veneno com que o favorito do rei contaminava todas as pessoas ao seu redor? Ele mal podia acreditar. As teias que Roger tecia para atrair suas vítimas eram infinitas. Ao que sabia, nenhuma delas conseguira escapar. Nem ele. Os registros de uma vida normal haviam se perdido na distância. Ele conseguia recordar, porém, com total nitidez, do dia em que conhecera Roger. Na época, Ian era um jovem orgulhoso e determinado. Seu maior sonho era se tornar um cavaleiro. Contava os dias para iniciar seu treinamento. E foi esse entusiasmo que o tornou uma presa fácil para Roger. Senhor da luxúria e da maldade, o maior prazer de Roger era conquistar as pessoas com seu poder de sedução para depois dominá-las de modo a satisfazerem seus desejos. Sem a malícia que só se adquire com a idade e a experiência, Ian não resistiu. Odiava-se agora por ter se vangloriado na ocasião de fazer parte do círculo de amizades de Roger Colebrook. Porque já era tarde demais quando ele percebeu que o homem que admirava era apenas uma ilusão. Tornar-se um cavaleiro do rei deixou de ser a meta de Ian. Por medo de Roger e do que ele seria obrigado a fazer para continuar nas boas graças do outro, Ian se voltou para a igreja. A paz do monastério foi uma mudança bem-vinda para sua alma pesada de culpas. Embora sua escolha não tivesse sido feita por vocação religiosa, ele não se arrependia de sua decisão. As garras de Roger, contudo, o alcançaram até mesmo além da clausura. Foi lhe atribuída uma nova missão. Sob ameaça de morte, Ian recebeu a incumbência de se tornar um espião nas terras de Imogen. — Espero que não o tenha feito esperar demais. Ian ergueu abruptamente a cabeça ao som daquela voz inconfundível. Levantou-se em seguida. E antes que pudesse responder, Roger prosseguiu. — Não afirmo que gostei do lugar onde você marcou este encontro, mas admito que era de se imaginar que um padre preferiria uma capela ou igreja a qualquer outro lugar. — Você me deu ordens de avisá-lo caso eu descobrisse qualquer outra coisa sobre lady Imogen. Ian torcia as mãos de nervosismo. O quanto antes pudesse cometer seu último ato de traição, mais depressa se livraria daquela presença hostil. Aparentemente sem nenhuma pressa, Roger subiu até o altar e apanhou um dos candelabros. — Meu caro Ian, eu confesso que me surpreendi com seu chamado. Eu o enviei a Shadowsend Keep e não me lembro de ter lhe dado ordens para voltar. Qual foi o motivo que o

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levou a me desafiar abandonando seu posto de vigilância? De braços cruzados sobre o peito, em uma tentativa inútil de se proteger, caso Roger resolvesse atacá-lo com sua espada, Ian respondeu: — Eu não podia mais continuar entre aquela gente, abusando de sua inocência e confiança, fazendo-me passar por um servo de Deus. A partir do momento que lady Imogen deixou as premissas, não havia mais motivo para minha permanência no local. — Os padres são homens abençoados. — E você foi sagrado padre. — Não que isso tenha me salvado de você — Ian retrucou, incapaz de se conter e foi esse descontrole que o perdeu. O sorriso de Roger endureceu e seus olhos adquiriram uma frieza de produzir calafrios. Ainda assim, Ian prosseguiu. — Eu recebi notícias, esta noite, de Mildryd, a mulher que coloquei a serviço de lady Imogen durante a viagem. Ela me avisou que o grupo está acampado a poucas horas daqui. Roger franziu o cenho e devolveu o candelabro ao lugar. — Nunca pensei que minha irmã fosse ousar se levantar contra mim. Roger permaneceu diante do altar por um instante e depois se virou e começou a andar em direção à saída. Ian se apressou a segui-lo. Seu rosto estava franzido de indignação. — Não vai me dizer nada? — ele bradou, incrédulo. — Por sua causa, eu atirei aos ventos meus últimos resquícios de respeito próprio e você me trata como se minha informação não valesse nada? O que pensa? Que é invenção minha? Roger se deteve e olhou para o outro interrogativamente. — Acalme-se. Religiosos não precisam de auto-respeito. E você não se deve esquecer de que deve obediência a mim, antes de tudo. — Eu estaria melhor sob a tutela do demônio. Roger lançou chispas com seu olhar. — Cautela com suas palavras, ou eu posso retirar meu patrocínio. Você conhece apenas meu lado generoso. Não queira descobrir como posso me revelar aos que não merecem minha compaixão. Os braços de Ian caíram ao longo do corpo em sinal de impotência. Sem defesa, e sem forças para continuar atacando, ele se escondeu atrás do silêncio. Roger lhe dirigiu um sorriso sarcástico. — Vejo que recuperou seu bom senso. Obrigado pela informação. Agora, eu tenho mais o que fazer. Estou sendo esperado pelo rei em pessoa. Sozinho na capela, Ian ergueu os olhos para o crucifixo no altar e se persignou. Prostrou-se de joelhos e se pôs a rezar pela primeira vez em longos meses. Não por sua alma pecadora, mas pela jovem mulher que ele vinha traindo havia longos anos. O casamento a desabrochara Por amor, ela encontrara coragem para enfrentar o mundo. Admirava-a pela valentia que a ele faltava. Mas o fato de admirá-la não o cegava para o fato de que ela não tinha muitas chances de sobreviver ao ódio

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implacável do irmão. Seria preciso um milagre para salvar lady Imogen.

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Capítulo VIII Um calafrio percorreu Imogen da cabeça aos pés ao receber a informação de que as sombras dos altos muros da fortaleza do rei William estavam se projetando sobre eles. A sensação de frio que se apoderou de seu corpo a fez pensar em um abismo que aguardava o momento de tragá-los. Em um movimento instintivo de proteção, ela se curvou sobre o cavalo e se colocou mentalmente longe daquele local desolado. Era horrível pensar que em algum lugar, por trás daquelas muralhas, estava o homem que levara luz a sua vida. Que lhe mostrara que ela poderia se libertar da escuridão em que mergulhara havia longos anos. Estivesse ainda sob o jugo de seu irmão, não acreditaria que a felicidade podia ser possível. Estaria impregnada das vibrações de ódio e de desconfiança. Não estranharia o fato de que inocentes precisassem ser sacrificados para satisfazer desejos obscuros. Mesmo que seus olhos fossem sãos, ela estaria cega para as qualidades que Robert trazia em seu coração, que eram sua capacidade de amar, de compreender e de respeitar o próximo. Essa seria a pior tragédia. Imogen sentiu que estremecia ao ouvir as patas dos cavalos contra as pedras que cercavam a fortaleza, Suas mãos apertaram convulsivamente as rédeas. Recuar tornara-se impossível. Era imperioso que lutassem por Robert. Que fizessem o que precisava ser feito. A força do sangue, a força da aristocracia, acumulada de geração a geração, se fez sentir abruptamente, após anos de ausência. Era o recurso que seus antepassados lhe conferiam e que lhe daria a confiança e a firmeza necessárias para se apresentar perante o rei. O cavalo de Imogen recuou, assustado, ao ter seu avanço impedido por um guarda. — Alto! Ninguém pode se aproximar dos portões do rei William! Gareth sentiu que todos os seus músculos enrijeciam. Por sua vontade, puxaria o cavalo de Imogen pelas rédeas e a impediria de avançar e de, talvez, ser atirada às mas-morras, como acontecera com Robert. — Eu sou lady Imogen Beaumont, de Shadowsend Keep. Eu e minha comitiva solicitamos uma audiência com o rei William. Gareth se colocou ao lado de Imogen. Era um guerreia Sua postura talvez pudesse intimidar o guarda. Seu olhar demonstrava franca desaprovação pela atitude do outro em questionar o direito de sua nobre acompanhante ver o rei Imogen ficou satisfeita com o comportamento de Gareth Não o imaginava capaz dessa confiança arrogante que despertou o respeito, senão da

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sentinela, de si própria. Desejaria se armar com esse mesmo ar de superioridade. Principalmente porque já podia sentir a curiosidade das pessoas que se encontravam próximas aos portões e ouvir seus cochichos O burburinho logo se alastrou como fogo. Poucos minutos haviam passado e todos já pareciam ter conhecimento de que a dama disforme os estava visitando. De repente, porém, ao se abrirem os portões para lhes dar passagem, um grande silêncio se fez entre a multidão. — O que está acontecendo? — Imogen perguntou sem mover os lábios de modo que apenas Gareth pudesse ouvi-la. Ele precisou conter um sorriso ao responder: — A estupefação é geral. Sua beleza os deixou paralisados. Ninguém poderia adivinhar o tumulto que se escondia por trás da aparente serenidade do rosto feminino. — Espero que eles se lembrem de que a cortesia para com os visitantes faz parte de suas funções. Até aquele momento, tudo estava correndo bem. Imogen sentia o coração bater acelerado. Os súditos do rei William estavam se comportando de maneira amigável. Ninguém parecia se lembrar de que ela era a esposa de um suposto assassino. O alívio que sentiu foi tão grande ao ouvir as correntes serem puxadas para permitir seu ingresso e de Matthew. Gareth que, por um instante, os músculos ameaçaram ceder sob seu peso, e uma ligeira tontura lhe causou a impressão de estar girando sobre si mesma. Obrigou-se a endireitar os ombros e erguer o queixo. Aquele era apenas o primeiro obstáculo. Eles ainda teriam de ultrapassar muitos até chegarem a Robert. Gareth conduziu os cavalos para dentro e os entregou a um lacaio que se postava junto aos altos portões de carvalho que protegiam a entrada principal. Em seguida, ajudou Imogen a descer da sela e a fez apoiar a mão na curva de seu braço de modo a guiá-la até o salão onde os súditos se reuniam para ouvir e servir o rei. A seu lado, Imogen tremia de nervosismo. — Você foi magnífica — ele sussurrou. — Portou-se como uma princesa. Robert ficará orgulhoso quando souber. A aproximação de Matthew ajudou-a a recuperar o controle. Como sempre, o velho homem estava resmungando e isso a fez sorrir como de costume. — Em pensar que eu tive tanto trabalho para fugir do covil de Belzebu, só para cair dentro dele outra vez! Gareth deu uma piscada para o outro. — Ainda bem que você esperou até que estivéssemos novamente a sós para tecer seus comentários. O que teria acontecido se os guardas o reconhecessem como o prisioneiro que escapou

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no outro dia? — Em vez de estarmos nos dirigindo ao salão de recepções, eles estariam nos conduzindo para as masmorras — declarou Imogen. Gareth fez um movimento negativo com a cabeça. — Esses idiotas não reconheceriam as pontas de seus narizes, quanto mais um fugitivo — Matthew continuou reclamando. — Se eu estivesse no comando, faria com que desempenhassem suas funções da maneira como se deve. O que lhes falta é disciplina e treinamento. Não foi à toa que o rei precisou contratar mercenários para defender o país. — Eu não acredito no que estou ouvindo — Gareth caçoou. — Estou certo ao deduzir que você está se queixando da incompetência da guarda real quando foi justamente esse o motivo que o ajudou a escapar? — É uma questão de princípio — Matthew tentou justificar. Imogen sorriu, mas seu sorriso estava impregnado de angústia e preocupação. — Precisamos recorrer ao elemento surpresa — murmurou, como se tivesse se transportado no tempo e no espaço e estivesse novamente jogando xadrez com Robert diante da lareira. Gareth ouviu a declaração e entendeu a linha de raciocínio de Imogen. Sem dizer nada, exerceu uma leve pressão com o braço sobre a mão que sustentava de modo a prepará-la para subirem alguns degraus. Um novo estremecimento ocorreu ao baque das portas Maciças sendo fechadas atrás deles. E mais uma vez ela ergueu o queixo e fingiu calma e confiança. Qualquer hesitação de sua parte poderia significar sua derrota e conseqüente aprisionamento de todos eles. Os guardas, porém, permaneciam como que fascinados pela oportunidade de conhecerem, finalmente, a famosa dama. A multidão aumentava a cada minuto, conforme os rumores se espalhavam sobre a aristocrática a respeito da surpreendente visita. Gareth dirigia olhares de esguelha, carregados de expectativa, à pequena e frágil mulher a seu lado, que tantas vezes já se mostrara grande e poderosa em espírito e determinação. Suas feições serenas não o enganaram em nenhum momento. Não quando o temor da morte lhe era transmitido pelo vigor com que ela lhe apertava o braço. Se estivesse ao seu alcance, ele a protegeria dos olhares e observações de toda sorte. Mas talvez fosse mais fácil alcançar as estrelas do que evitar que o povo a examinasse e a comparasse com o irmão, conhecido como o cortesão favorito do rei. Ao descobrirem a verdade, que Imogen era uma mulher linda, e que não havia nenhuma razão para que continuassem chamando-a de dama disforme, o brilho de curiosidade, principalmente nos olhos masculinos, foi substituído por luxúria. Gareth desejaria deter o poder de obrigá-los a se curvarem à passagem dela, de modo a impedir que a fitassem com cobiça e insolência. Mas para cada homem que afastasse de seu caminho, dezenas de outros se seguiriam. Dessa forma, talvez fosse melhor se ele mesma baixasse a cabeça em vez de atrair a atenção daquele povo para si e para a tarefa que tinham vindo cumprir. Com sua capacidade de percepção, Imogen procurou acalmá-lo.

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— Não permita que eles o atinjam com sua rude curiosidade. Eles não estão me causando nenhum mal. Tudo está se passando conforme eu previa. Gareth precisou respirar profundamente para manter o controle. Disse a si mesmo que se Imogen estava conseguindo enfrentar a multidão, ele também conseguiria. Tolerância, contudo, não era o mesmo que aceitação. Estava procurando gravar os rostos de cada homem que a encarava com desrespeito para depois lhes ensinar uma lição. Tal era sua concentração que não viu um dos guardas avançar em direção a eles. — O rei ordena que lady Imogen Beaumont se apresente imediatamente em sua câmara particular. Imogen, alheia ao embevecimento com que o guarda a fitava, respondeu com altivez. — Excelente. Acompanhe-me, sir Gareth. O guarda deu um passo de modo a impedir o avanço. — Lamento, milady, mas o rei demanda apenas a sua presença. Seus acompanhantes terão de aguardar do lado de fora. Uma cortina de silêncio caiu sobre eles. Ninguém se moveu. O guarda parecia aturdido com a relutância dos antigos mercenários em cumprir a ordem. Lady Imogen, igualmente, não dava mostras de atender a exigência. — Por maior que seja o respeito que tenho por meu rei, temo ser obrigada a insistir na presença de um deles. Meus olhos nada vêem e eu dependo de ajuda para me locomover. Tenho certeza de que meu soberano não me obrigaria a abandonar meus olhos. Um burburinho se seguiu ao pronunciamento. O guarda hesitou por um instante, mas logo encontrou uma solução para o problema. — Será uma honra para mim, milady, lhe servir de guia e de olhos. Não era a saída que Imogen esperava, mas era a única a seu alcance. Desvencilhouse de Gareth e estendeu a mão para o outro. Uma ordem do rei, afinal, era uma ordem do rei. Desobedecer seria uma total insensatez. — Esperem aqui por mim — ela pediu com um sus surro. — Para sempre, se for preciso — Gareth respondeu com uma mesura, no que foi imitado por Matthew. A manifestação de apoio dos homens de Robert ajudou Imogen a seguir sob a tutela de um estranho. De qualquer forma, ela não encontrou motivos para reclamar do procedimento do guarda, que a conduziu sem pressa pelos saguões e corredores. O trajeto, porém, pareceu curto demais. Em questão de dois ou três minutos ela foi convidada a aguardar para ser anunciada formalmente ao monarca. O sangue gelou em suas veias ao ouvir seu nome ser pronunciado e o rei ordenar que a fizessem entrar. Absoluto terror se apoderou dela enquanto caminhava. Quem a visse, porém, jamais adivinharia o que se passava em seu interior.

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O silêncio na câmara real só era quebrado pelo tamborilar ritmado de uma unha sobre uma superfície de madeira. Imogen soltou o braço do guarda e se ajoelhou graciosamente em uma mesura impecável. Não saberia dizer se o tamborilar persistia. O batimento acelerado de seu coração a ensurdecia para outros sons. Se tivesse a capacidade de enxergar, Imogen veria que os olhos do rei estreitaram, desconfiados, ao obrigá-la a erguer a cabeça, tocando-a no queixo com a ponta de um dedo. Era a primeira vez que via a dama disforme com seus próprios olhos, mas notícias já lhe haviam chegado de que, ao contrário do que todos esperavam, a irmã de seu cortesão era a mulher mais linda que já transpusera os portões do castelo. Seus súditos haviam se acotovelado pelo privilégio de serem os primeiros a lhe contar e a tentar descobrir se o rei a trataria com deferência por ser irmã de seu preferido, ou a mandaria trancafiar por ser casada com um traidor. As descrições variaram assombrosamente, mas a essência permanecia a mesma em cada um dos relatos. O rei se recusara a demonstrar sua surpresa e também sua indignação em ter sido o último a descobrir a verdade. Era inconcebível que Roger tivesse se omitido a lhe revelar que as histórias sobre lady Imogen eram falsas. Oportunidades nunca faltaram. Não deixava de ser estranho, aliás, que Roger nunca tivesse mencionado a existência de uma irmã até pedir sua participação na trama que o levara a consentir que seu melhor guerreiro, Robert Beaumont, fosse enviado às terras do norte para desposá-la. Inicialmente, ele não dera importância ao fato. Fora discreto com Roger. Nunca sequer lhe perguntou a razão Para que as pessoas se referissem à moça como a dama disforme. Pálido de revolta, o rei soltou bruscamente o queixo de Imogen e se virou para a janela. Odiava pensar que aquela mulher comprometeria, irremediavelmente, seu relacionamento com Roger. — O que a traz a minha presença, lady Imogen? Por que forçou sua entrada em meu castelo? Duvido que seu irmão a tenha chamado aqui. — Como qualquer esposa devotada, eu vim para apoiar meu marido, Majestade — Imogen respondeu, cabisbaixa, de modo a demonstrar humildade perante o rei. — Estou aqui, também, para provar que Robert é inocente das terríveis acusações que foram levantadas contra ele. O rei encostou-se à janela e cruzou os braços sobre o peito avantajado. Seu cenho estava franzido e seu olhar era hostil. — Como ousa implorar pela vida do homem que estava tramando meu assassinato? Faz noção do perigo a que se expõe defendendo-o? Apesar da rispidez cortante com que estava tratando a visitante, o rei não podia evitar o sentimento de admiração que ela lhe despertava com sua coragem. A maioria de seus súditos teria se encolhido diante de sua indignação, em vez de erguer a cabeça em protesto. — Robert é inocente — Imogen repetiu com firmeza. — Muitos afirmam o contrário. — Muitos... ou apenas meu irmão? — Imogen se referiu a Roger com extremo desdém. Era verdade. Fora Roger quem insistira para que o rei prendesse Robert, embora o

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mercenário nunca tivesse falhado em nenhuma das missões que lhe atribuíra. — Talvez — William admitiu, com a sombra da dúvida já se infiltrando em sua mente. — Perdoe-me a franqueza, Majestade. Espero que não se ofenda se eu lhe disser que é um tolo se prefere acreditar em Roger em prejuízo de Robert. Em outras circunstâncias, aquelas palavras teriam despertado sua ira. Naquele momento, elas o surpreenderam ao riso. — Não creio poder chamá-la de outra forma, milady. Acha prudente se referir a seu rei como um tolo? — Acho que um rei precisa saber a verdade e encará-la de frente como qualquer outro homem — Imogen respondeu, sem refletir, para se desculpar em seguida pelo comportamento inadmissível diante da situação. — Não quero ouvir suas desculpas neste momento — o rei a interrompeu. — Prefiro que continue a usar de franqueza, embora seu discurso não me seja agradável. Quero que se sente e que me conte toda a verdade. Imogen agradeceu que o rei a conduzisse a uma cadeira, apoiou as mãos sobre o colo e entrelaçou os dedos para que parassem de tremer. Sua voz, hesitante de início, foi se tornando forte e clara à medida que ela relatava os acontecimentos que culminaram na prisão de Robert. Contou sobre o temperamento irascível de Roger desde criança, sobre o ato de violência que causou a ela a perda da visão, sobre o isolamento a que ele a confinou e sobre suas constantes ameaças. O silêncio e a atenção com que o rei acompanhou o desabafo proporcionou conforto e segurança a Imogen. Antes que ela tomasse consciência do que estava fazendo, confidenciou-lhe sobre seus medos e sobre suas suspeitas de que Roger estava implicado na morte de seus pais e que acreditava que ele estava por trás dos rumores sobre Robert ter planos de assassinar o rei. — Você tem provas do que afirma? — William indagou após um longo e tenso silêncio em que Imogen cogitou se não teria caído em mais uma das armadilhas de Roger. Com um movimento de concordância, ela tirou um maço de cartas de um bolso interno da capa. Sentia o corpo todo tremer enquanto esperava que o rei as lesse. — Eu estava certo, então, em pensar que aquelas histórias estavam mal contadas — o rei murmurou como se estivesse se dirigindo a si mesmo. Imogen aguardou que ele a abordasse antes de continuar a falar. — O anel que pertenceu a sua mãe ainda está em seu poder? — o rei perguntou, por fim. Imogen tocou o frio metal ao redor de seu dedo e tirou-o lentamente, aliviada em se livrar da jóia que lhe trazia tão tristes recordações. William o pegou e colocou-o sobre a pilha de cartas, pálido ao reconhecer o anel que Roger costumava trazer preso a uma corrente no pescoço até pouco tempo antes. Ela ouviu o rei suspirar. — Bem, lady Imogen, eu agradeço sua sinceridade e sua coragem em me revelar a verdade. Posso saber quais são seus planos agora que levou a cabo seu intento?

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O tom brusco a fez questionar sua sorte, Teria errado ao tomar o rei totalmente sob sua confiança? Sem saber o que responder, ela foi honesta em admitir que não tinha feito nenhum plano além de procurá-lo. Ela o ouviu se levantar e declarar o encerramento entrevista. — Nesse caso, darei ordens para que providenciem acomodações para você e sua comitiva até obter todas as respostas de que necessito. Imogen precisou engolir em seco para desfazer o nó em sua garganta. — Posso perguntar onde está meu marido? — Tenho certeza de que ficará aliviada em saber que Robert continua no aguardo de minha sentença em um dos aposentos que compõem os porões deste castelo. Imogen ficou tão aturdida com a atitude do rei ao obrigá-la a se levantar enquanto respondia sua pergunta e dar ordens para que o guarda a levasse, que mal conseguiu respirar. Sua cabeça começou a girar e ela precisou apoiar seu peso no braço do homem. — Obrigada — respondeu. O rei fez um sinal para que o guarda a levasse imediatamente de sua presença. Detestava sentimentalismos. Mais um instante e lady Imogen se debulharia em lágrimas e ele tinha mais o que fazer, como se encaminhar para a escrivaninha onde colocara as evidências trazidas pela irmã de Roger. Seu olhar incidiu sobre o anel. Era magnífico em sua simplicidade. Odiava-o. Aquela peça de metal parecia estar gritando para que o mundo inteiro ouvisse que o rei William, filho do Grande Conquistador, se deixara trair como um idiota. Apertou-a convulsivamente na palma da mão. Mas, embora a tivesse afastado de sua visão, continuava sentindo-a como a prova de que se deixara enganar pela Pessoa que conquistara sua confiança só para poder usá-lo. Roger não gostava dele. Ele se sentira atraído pelo poder que emanava da figura real, não pelo homem que existia sob a coroa. A verdade viera à tona. Não podia mentir a si mesmo, contudo, sobre nunca ter lhe passado pela cabeça que as pessoas fingiam devoção por interesse. Que os ricos, os nobres, e, principalmente, os reis raramente eram amados por aquilo que eram, mas por aquilo que tinham e representavam. Em um arroubo de fúria, William atirou o anel de volta para a mesa. Enganara a si próprio por demasiado tempo. Era chegado o momento de parar de se comportar como um tolo apaixonado. Sentou-se em sua cadeira favorita e tomou de um só gole uma caneca de vinho. Seus olhos continuavam pousados sobre a pilha de cartas. Não havia como refutar as palavras de lady Imogen. Ele reconhecera a escrita de Roger nas cartas. A vaidade de Roger fora sua perdição. Ele próprio se condenara ao fogo do inferno ao se vangloriar para a irmã da influência que exercia sobre o rei. O jarro de vinho esvaziou até que William se satisfizesse e fechasse os olhos para descansar. Naquela noite, queria expurgar a traição que se infiltrara em seus ossos. Chamou o valete e deu ordens explícitas para não ser incomodado. Por ninguém. No dia seguinte, voltaria a assumir

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sua posição de rei e soberano. Mas naquela noite queria ter o direito de sofrer como um simples mortal.

— De que você está falando? — Roger esbravejou ao ser impedido de ingressar na câmara real. — Eu não sou qualquer um. O rei certamente não se referiu a mim quando ordenou para não ser perturbado! Eu sempre tive acesso a seus aposentos. — Eu sinto muito, milorde, mas as instruções foram claras. O rei William não quer ser incomodado esta noite. Por ninguém. Roger teve ímpetos de derrubar o valete a socos, mas conteve-se ao reconhecer que estava temporariamente derrotado em seus argumentos. Sem alternativa, girou nos calcanhares e voltou para seu quarto, sob a impressão de que estava sendo seguido por olhares maliciosos que o fizeram corar de raiva. Naquela noite, pela primeira vez desde que ocupava a posição de favorito do rei, Roger dispensou a ajuda do camareiro para se despir e se deitar. Sentou-se e passou as mãos pelos cabelos. Ian o avisara, mas ele, em sua certeza de que era dono do corpo e da alma do rei, não quisera acreditar que Imogen, em tão pouco tempo, pudesse fazer tão grande estrago. Talvez devesse ter levado a sério o aviso de seu espião de que o casamento havia mudado Imogen. Agora, talvez fosse tarde demais para deter as engrenagens. Em poucas horas, Imogen conseguira virar a cabeça do rei contra ele. Qual a outra explicação para que William se recusasse a recebê-lo? Para aplacar o ódio que o estava consumindo, Roger começou a imaginar o que faria com a irmã no instante que pusesse suas mãos sobre ela. Por mais que tentasse se acalmar, o pânico parecia ter se instalado em definitivo na boca de seu estômago. Pela primeira vez em sua vida estava perdendo o controle sobre uma situação. Tinha ímpetos de quebrar tudo a sua volta. Principalmente o pescoço da maldita. Era tudo culpa dela! Imogen conseguira conquistar a confiança do rei e envenená-lo contra ele. Era incrível que ela estivesse a poucos passos de distância. Estava acima de sua compreensão que a irmã tivesse ousado confrontá-lo. Não era para ter sido assim. De acordo com seus planos, Imogen deveria estar amedrontada a ponto de parar de respirar. Com sua figura frágil, ela deveria estar confinada a um leito, esperando por notícias da morte de Robert. Para morrer com ele. Então sua vitória seria completa. Ele triunfaria sobre a vida e sobre a morte da usurpadora. No entanto, Imogen conseguira se evadir da prisão em que ele a colocara e viera em busca do rei como um anjo vingador. Dobrara-o a sua vontade e conseguira, provavelmente, salvar o marido da morte. Talvez o jogo acabasse com a vitória de Imogen. Ela poderia vencê-lo em vida. Mas não o venceria na morte! Gareth olhou de um lado para outro do corredor antes de entrar nos aposentos de Imogen.

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Todos deveriam estar dormindo no castelo. Assim mesmo era preciso ter cuidado para garantir que ninguém testemunhasse sua visita no meio da noite. Ele nunca se perdoaria se, por sua imprudência, lady Imogen tivesse sua reputação maculada. Ela se surpreenderia e talvez fosse reprová-lo por seu atrevimento, mas ele preferia acreditar que sua boa intenção o desculparia nas circunstâncias.

O quarto estava às escuras. Gareth precisou esperar até que seus olhos se adaptassem à falta de luminosidade para fechar a porta. Virou-se, então, para o centro do cômodo e viu Imogen de pé, no balcão. As portas de vidro estavam abertas. O luar delineava o perfil feminino. A brisa primaveril soprava nos cabelos de seda, espalhando um doce perfume no ar. — Noto que você desenvolveu estratégias para passar pelos guardas. Conseguiu passar também pelo meu. Atônito com a capacidade de percepção de Imogen, Gareth atravessou o quarto para encontrá-la. Ela estava sorrindo e ele se viu imitando-a apesar do perigo que os rondava. — E eu que estava me gabando de minha competência e discrição. O sorriso acentuou. — Homens que usam armaduras como se fossem roupas não conseguem atingir o grau de discrição necessário para se moverem sorrateiramente. A conversa poderia ter enveredado para assuntos triviais, mas o momento os impedia. A vida de Robert escava por um fio. Imogen não conseguia parar de pensar na rede de intrigas que fora tecida naquela corte e que dependeria do rei acreditar em sua palavra contra a de Roger para que seu esposo recuperasse sua liberdade. — O que o rei disse sobre Robert? — Gareth perguntou. — Nada de concreto — Imogen respondeu com um sus-piro de desalento. — Afirmou que ele está vivo, mas não forneceu nenhuma garantia para o futuro. Deixou que eu falasse em defesa dele, aceitou as cartas que eu lhe entreguei e depois me dispensou, aconselhando que eu descansasse, como faria um bom anfitrião. — Imogen cerrou os punhos. — Mas qualquer anfitrião que se preze não coloca um guarda diante da porta de seu hóspede para vigiar seus movimentos. Gareth percebeu que os olhos de Imogen encheram de lágrimas. Em sua determinação, ela as impediu de rolarem. Ele precisou se controlar para não tomá-la nos braços e acalentá-la junto ao peito. — Enquanto Robert estiver vivo, haverá esperança — ele tentou tranqüilizá-la. — O melhor que poderíamos esperar era que o rei William a ouvisse e ele o fez. — Mas e se o rei decidir compactuar com Roger? Nós seremos executados ao amanhecer. Diante desse argumento, Gareth se calou. Nenhuma palavra poderia apagar essa verdade. Era notório que o rei mantinha um relacionamento com Roger Colebrook. As chances de ele reverter a situação eram grandes. — Imogen...

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— Eu preciso ver Robert — ela disse, como se não o tivesse escutado. — Eu quero estar com ele. — Você sabe que isso é impossível! Como eu poderia levá-la até ele? — Não pode ser tão difícil. Se você conseguiu burlar a vigilância da guarda do rei, certamente conseguirá me guiar até os calabouços. — Imogen se deteve e sorriu como se tivesse se lembrado de um episódio divertido. — Não diga a Matthew que lhe contei, mas a maneira como ele burlou a guarda para fugir só pode ser chamada de cômica. Francamente, o rei estaria perdido se sua sobrevivência dependesse de suas sentinelas e de seus lacaios. Gareth olhou para o pátio e confirmou que estava deserto. — Suponho que seja possível mediante alguns subornos. Mas eu insisto em demovê-la dessa idéia. Acho que seria uma loucura. Se formos pegos teremos de dar adeus às esperanças. O progresso que você conseguiu junto ao rei se anulará. Embora insistisse que eles não deveriam agir com precipitação, Gareth sabia que estava lutando por uma causa perdida. A expressão determinada de Imogen era uma prova de que sua decisão já havia sido tomada. Ela veria Robert, ou ao menos tentaria vê-lo, independente do que ele lhe dissesse. Robert o trucidaria por compartilhar daquele plano insensato, mas ele não sabia dizer não a Imogen. Bastava ela sorrir daquele jeito radiante para ele se derreter. — Vista sua túnica e jogue um manto sobre os ombros para se proteger da umidade dos calabouços — recomendou enquanto atravessava o aposento e encostava o ouvido contra a porta para se certificar de que não haveria ninguém à espreita. Ao voltar para o lado de Imogen e lhe oferecer o braço, ela se inclinou e lhe sussurrou um agradecimento. Como uma sereia, Imogen o enfeitiçava. E daquela vez, mesmo que fosse a última, Gareth não conseguiu frear as palavras que brotaram de seu coração. — Eu poderia te amar tanto... A expressão aturdida de Imogen o fez voltar a si. — Mas Gareth, você sabe que eu amo... Ele a fez calar com um toque de seus dedos. — Eu sei. Você ama Robert e ele corresponde ao seu amor. Eu reconheço que não há lugar para mim em sua vida, e me conformo com essa situação Apenas queria que você soubesse que sempre poderá contar comigo. À medida que Gareth falava, seu tom de voz se tornava mais e mais baixo. Ao traduzir seus sentimentos em palavras, ele descobriu que nenhuma poderia expressar o que ia por sua alma. Ele notou que a mão de Imogen tremia conforme ela a levantava para lhe acariciar o rosto. — Isso não é amor, Gareth. Você não me ama. Você gosta de mim, como eu gosto de você. O amor não consegue sobreviver sozinho. Não o amor verdadeiro. Ele precisa se nutrir do amor do outro. Ele tem de ser recíproco. Para acontecer, o amor verdadeiro precisa ser dividido

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entre duas pessoas. A miséria que se sente ao pensar em alguém que não temos não pode ser chamada de amor. Algum dia, você também encontrará o verdadeiro amor. Uma boa alma como você não foi criada para viver sozinha. Gareth sentiu os olhos arderem de emoção. — Você é uma mulher sábia. — Precisou fazer uma pausa para controlar a emoção e recuperar o bom senso. — Quero dizer, você é uma mulher sábia quando não insiste em perambular pelas masmorras de um castelo inimigo no meio da noite. — E você é um homem especial e eu o tenho em alta estima, quando não se comporta como um ogro investido de asas, tentando ser meu anjo de guarda. Gareth deu um sorriso. Teria de ser assim. E, naquele instante, ele decidiu esquecer seu sonho impossível e se dar uma nova chance para o amor. — Aceitarei essa observação como um elogio. O momento de descontração passou como um estalar de dedos. O risco de eles serem flagrados pelos guardas era grande. Gareth procurou não pensar, mas agir por instinto. Ele não lhe havia falhado nos campos de batalha. Imogen, então, se viu puxada para fora do quarto sem nenhuma cerimônia. Não havia tempo a perder. A costa felizmente estava livre. O número de guardas podia ser grande, mas o que sobrava em quantidade, faltava em qualidade. De qualquer forma, Gareth e Imogen mal se atreviam a respirar para não fazerem barulho. Vez por outra, Gareth captava algum movimento nas sombras. Eram os guardas escondidos pelos cantos, apostando seus magros soldos no intuito de fazê-los aumentarem. Não fora exagero de Matthew dizer que a guarda real era uma vergonha para o país. Era preciso lhes ensinar disciplina em primeiro lugar. Conduzir lady Imogen aos porões não se revelara nem sequer um desafio. Poderia descrevê-lo quase como uma aventura inofensiva. Apenas o homem que guardava a porta da cela de Robert teria de ser subornado, provavelmente. Não foi difícil comprar o silêncio do sujeito, conforme Gareth previra. Com os olhos brilhando de cobiça, ele desapareceu pelos corredores, deixando a chave e uma recomendação para que sumissem do local antes que o sol nascesse, momento em que seria feita a troca da guarda. — De quanto tempo eu disporei? — Imogen quis saber, tão logo o homem se afastou. — De cerca de quatro horas. Eu baterei três vezes para que você se despeça de Robert e saia a tempo de eu levá-la de volta a seus aposentos. A chave foi introduzida no ferrolho. O ruído do metal raspando em metal pareceu ecoar pelos corredores. Imogen se encolheu involuntariamente. Ao perceber que ela vacilava, Gareth a puxou pelo braço de modo a introduzi-la na câmara que antecedia a cela. — Avance mais dois passos e empurre a porta — ele instruiu. Em seguida, apertou-lhe delicadamente o ombro para infundir coragem e recuou. — Obrigada, meu amigo. Mesmo que eu repita mil vezes essa palavra, não serei capaz de exprimir quanto sou grata a você.

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Silêncio foi tudo o que Imogen recebeu em resposta antes de avançar para o desconhecido.

Robert abriu os olhos, instantaneamente, alerta ao som inconfundível da porta ao ser aberta e fechada em seguida. Fingiu que continuava dormindo, mas cada um de seus nervos e músculos se preparava para resistir a um eventual ataque. — Robert? — Imogen chamou com um sussurro. Incapaz de acreditar em seus ouvidos, certo de que aquilo era um sonho, Robert murmurou o nome de Imogen. Não podia ser verdade. Ele devia ter morrido e subido ao céu. Ou o cativeiro o fizera perder o juízo. Imogen não podia estar ali, mas era sua imagem que ele estava vendo, recortada contra a porta, à fraca chama da única vela que lhe era entregue todas as noites junto com uma ceia frugal. — Robert, você está aqui? — tornou a chamar, a voz agora apreensiva. — Sim, eu estou. — Ele procurou se sentar sobre a palha. — E você, por Deus, o que faz aqui? Imogen precisou se abraçar para conter o tremor de emoção que a sacudia ao ouvir a voz amada que ela temera nunca mais poder ouvir. Porque até aquele instante, parte dela não acreditara realmente que Robert estivesse vivo. — Eu precisava vê-lo. Eu tinha de estar com você. — Está me dizendo que atravessou metade deste país para me fazer uma visita? — Oh, não — Imogen se apressou a explicar. — Eu vim para libertá-lo e levá-lo de volta para casa. Eu vim para provar ao rei que você é inocente e para... Imogen interrompeu a explicação ao pressentir a ira que se apoderara de Robert e que estava se irradiando por toda a cela. — Você enlouqueceu? Eu mandei que Matthew a levasse para fora do país porque temia por sua vida e o que você faz? Em vez de me obedecer, você se atira de cabeça nessa confusão que armaram para mim! — Impotente diante do abismo intransponível que se abrira diante deles, Robert baixou a cabeça e escondeu-a com as mãos. Um instante depois tornou a erguê-la. Seus olhos estavam estreitos de desconfiança. — Quem a trouxe? Você não pode ter viajado até aqui sozinha. Quem foi o infame que a acompanhou? — Na verdade, foram dois de seus homens. Gareth e Matthew. — Eu os matarei com minhas próprias mãos — Robert prometeu, furioso. O alívio que Imogen sentira ao encontrá-lo vivo e em razoável estado de saúde começou a dar lugar a um sentimento de inadequação. Robert não parecia ter gostado de vê-la. Fora uma tola em percorrer tão longa distância só para ser recebida como se tivesse cometido uma afronta. — Você não está sendo justo com eles! — protestou. — A idéia foi minha. Matthew e

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Gareth não têm culpa de nada! Essa era a última reação que eu esperava de sua parte. Parece que você não ficou contente em me ver. — Não se trata disso! — Robert se defendeu. — Estou assustado porque você agora também está correndo perigo de vida. Estou furioso porque você está aqui por minha culpa e porque não há nada que eu possa fazer para protegê-la. — Fora de si de desespero, Robert investiu contra as correntes atadas em seus punhos sangrentos. Um gemido de dor seguiu o irracional protesto. — Eles o machucaram? — quis saber, movendo-se instintivamente em direção ao som. Sem poder enxergar, ela tropeçou em uma pedra solta e caiu antes que Robert tivesse chance de avisá-la. Mas não se importou. Machucara o joelho na queda, mas o que era isso em comparação com o que Robert estava sofrendo por sua causa? Aproveitou, inclusive, que estava no chão, para engatinhar até onde o marido estava. — Você perdeu peso — ela murmurou enquanto percorria o torso nu com as mãos ansiosas. — Embora eu esteja em um castelo, não estou sendo tratado exatamente como um hóspede — Robert tentou brincar, mas o gracejo não alcançou sua voz. Em prosseguimento ao exame, Imogen constatou que os ferimentos do rosto não eram tão severos sob a barba crescida. Fosse o alívio que a inundou, a alegria de estar novamente com Robert, a emoção e a esperança de seguirem juntos para fora daquelas paredes, ou todos esses sentimentos reunidos, ela não resistiu ao pranto. Robert não se conteve. Sem refletir sob a prudência de seu comportamento, segurou Imogen pela cintura e a colocou em seu colo, abraçando-a contra o peito. Ele queria confortá-la e o gesto confortou-o ainda mais. Ter Imogen nos braços outra vez era um milagre. Ele fechou os olhos e aspirou, fascinado, o perfume de seus cabelos. O desejo, tão longamente negado, vibrou em seu corpo. A pele macia em contato com seus lábios ressequidos foi como um bálsamo. Incapaz de resistir, ele a estreitou com força. Imogen hesitou, receosa de machucá-lo, mas não conseguiu se conter por muito tempo e correspondeu ao abraço com todo o seu amor. — Eu devo estar sonhando — Robert murmurou, ofegante. — Isto só pode ser um sonho — ele repetiu. — Se isto é um sonho, que nunca tenhamos de acordar — Imogen concordou com um sussurro, os dedos afundando nos cabelos de Robert enquanto ele cobria seu pescoço de beijos. Um gemido de emoção antecedeu o longo e apaixonado encontro de bocas e almas. Poderia ter sido Robert ou Imogen a deixá-lo escapar. Ou ambos. Seus lábios se procuraram, entreabertos, prontos para sorver a essência de cada um de modo a partilharem a felicidade que tanto buscaram e que tanto custaram a encontrar. Um beijo de alma em que Imogen descobriu que a vida e o amor eram preciosos demais para serem desperdiçados com medos e dúvidas. Nada poderia ser mais importante do que aquele encontro, onde suas bocas, suas mãos e seus espíritos se uniram em plenitude. Robert pensou que enlouqueceria de desejo se não pudesse cobrir o corpo dela com o seu.

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A força da razão o conteve. Ele estava preso a grilhões nas masmorras do rei que preferira acreditar nas intrigas do inimigo a respeitar o homem que o ajudara a fortalecer seu reino. Imogen não merecia esse tratamento. Ele não era um selvagem. Ele saberia esperar. Com determinação, Robert se obrigou a interromper o beijo. Segurou ternamente o rosto da esposa e a fez deitar a cabeça em seu peito, onde a manteve até sua respiração voltar ao normal. Era homem e um homem apaixonado. Seu corpo estava rijo de desejo. Teria sido mais fácil resistir se afastasse Imogen, mas queria ao menos poder sentir o calor daquele corpo junto ao dele. — Perdão — ele murmurou. — Eu não tinha intenção de fazer o que fiz. Não neste lugar. — Por que está dizendo isso? — ela perguntou, ainda confusa pela avalanche de emoções que os surpreendera — Por que você parou? — Porque julguei que seria melhor assim. As surpresas ainda não haviam terminado naquele encontro. Robert pestanejou ao sentir as mãos de Imogen erguerem subitamente e segurarem sua cabeça. — As decisões sempre têm de partir apenas de você? Não lhe ocorreu que eu talvez não me importasse de nos deitarmos sobre palha? Por que você nunca pergunta minha opinião? Por que você nem sequer tenta descobrir quais são os meus desejos? O que poderia ter evoluído para uma discussão revelou-se uma conversa franca entre dois amantes. Robert tocou os lábios de Imogen, ainda inchados e molhados dos beijos que trocaram. — Perdoe-me, mas eu não me sinto digno de você no estado em que me encontro. Estou atado como um animal, Imogen! Não posso me levantar e nem sequer me arrastar até o outro lado da cela. Quero estar com você mais do que qualquer outra coisa no mundo, mas não nestas condições. Ela esperou que Robert desabafasse para tornar a beijá-lo. — E o que eu mais quero no mundo é estar nos braços do homem que amo — ela confessou, seu hálito aquecendo a pele de Robert e suas palavras atingindo diretamente seu coração. — Quero esquecer o mundo lá fora, mesmo que for por alguns instantes. Quero esquecer que talvez Possa não haver um amanhã para nós. — Imogen segurou uma das mãos de Robert e a levou aos seios, impedindo-o de retirá-la ao adivinhar seu movimento. — Abrace-me, Robert. Aperte-me o mais que puder de modo que eu possa senti-lo bem junto de mim. Não percamos nenhum segundo deste tempo precioso que nos foi concedido. — A voz de Imogen falseou e ela precisou se calar antes que as lágrimas a vencessem. Robert não saberia repetir o que sua emoção o levou a dizer naquele momento. Incapaz de recusar aquele doce e generoso presente, ele abraçou Imogen como se a quisesse fundir em seu próprio corpo. Ávidas por realizarem o desejo de sua esposa, suas mãos buscaram a pele nua de suas pernas. Bastou um suspiro de Imogen para elas subirem, como se de repente tivessem adquirido vida própria, até as ancas. — Eu já lhe disse que o que estamos fazendo é uma loucura? — Robert fechou os olhos e beijou-a. — Eu concordo — Imogen respondeu com provocação. — O que acha de continuarmos?

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Com um resmungo de paixão, Robert tocou as dobras que protegiam o centro da feminilidade. A outra mão se apoderou de um seio. O gemido de Imogen foi calado com outro beijo. — Oh, minha querida — murmurou ao senti-la tremer em seus braços e vibrar aos prenúncios do êxtase, mas teve de resmungar um protesto quando na tentativa de se colocar sobre o corpo de Imogen foi detido pelo rigor das correntes. Resmungos e imprecauções se seguiram. Em silêncio, Robert tentava encontrar uma solução para o obstáculo que ousara se interpor entre eles. Jamais poderia imaginar que a solução fosse partir de Imogen. — Robert, você consegue se sentar contra a parede e esticar as pernas a sua frente? — Acho que sim. Ela o empurrou gentilmente e sorriu com malícia. — Então, o que está esperando? Robert hesitou não mais do que alguns segundos antes de obedecer. Imogen aguardou até que as correntes parassem de bater umas contra as outras e o único som que permanecesse fosse o resfolegar de seu marido. Precisava ter cuidado ao se movimentar e se sentir firme para poder fazer o que pretendia. Que era demonstrar o quanto o queria e amava. Queria apresentar a Robert a mulher que ela havia se tornado depois de conhecê-lo e de ter seu amor. Ajoelhada, Imogen se pôs a acariciá-lo a partir da parte superior dos tornozelos onde os grilhões o prendiam. A aspereza dos pêlos aumentou a sensibilidade de sua pele, transmitindo pequenos arrepios. Ela não conteve um sorriso de exultação ao ouvir a interrupção brusca da entrada do ar nos pulmões dele. Que se repetiu à medida que ela distribuía pequenos beijos pelos joelhos e pela parte interna das coxas. — Eu não sei se poderei resistir a essa tortura — confessou Robert. — Eu reservei forças e elas serão suficientes para nós dois — Imogen garantiu. Era impossível, porém, não lamentar o acontecido. Ela não precisava enxergar para notar o que as privações haviam feito com Robert. Ele estava fraco e machucado em decorrência dos maus tratos sofridos. Ela esperava que seu amor o fortalecesse. Com um movimento rápido e decidido, Imogen se despiu diante do olhar febril e incrédulo de Robert que precisou aspirar profundamente à impressão de estar tendo seu peito queimado como por tochas. Era a primeira vez que Imogen se entregava por completo a alguém. Era a primeira vez que ela se permitia sentir o puro prazer de amar e de ser amada por um homem. Por seu marido. Inclinou-se e beijou-o na fonte direta de seu desejo. Seu coração pulsava rápido. Ele gemeu alto e ela parou para lhe sorrir e para prometer que ainda estava por acontecer muito mais. Robert queria fechar os olhos pelo intenso prazer que Imogen estava lhe proporcionando, mas ao mesmo tempo queria olhar para ela. Para eles. Jamais suporia que além de lhe oferecer seu tesouro, ela o fosse guiar pelo caminho até encontrá-lo. — Robert Beaumont — Imogen murmurou, depois que conseguiu recuperar o fôlego,

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perdido durante o trajeto de Robert até seu âmago. — Eu te amo com meu corpo e com minha alma. Você me fez nascer outra vez. Você fez de mim um ser inteiro. Você me amou mesmo quando tudo o que eu tinha para lhe dar era ódio, rancor e medo. Eu jamais poderei lhe retribuir tudo o que me deu. — Imogen... Ela não permitiu que ele falasse. Precisava dizer a Robert o que estava sentindo. A verdade, por fim. — O que eu sinto por você agora, eu sentirei para sempre. Robert teve a sensação de que seu coração estava crescendo em seu peito a ponto de estourar. Com um movimento firme, ele puxou as pernas de modo a retribuir Imogen pelo prazer que ela estava lhe proporcionando. Reclamou seus lábios em um beijo ardente. O atrito de suas peles a fez arquejar. . — Solte-se, Imogen. Quero olhar para você enquanto se entrega ao êxtase. Aconteceu tão rápido que ela não teve resposta. Sua cabeça foi jogada para trás e ela precisou se apoiar nos ombros dele para não perder o equilíbrio conforme seu corpo era tomado por ondas de prazer. Os gemidos de Imogen foram música para os ouvidos dele. As contorções de seu corpo e o estreitar do casulo que o abrigava o levaram a um êxtase quase simultâneo. Suas mãos fortes crisparam ao segurarem os quadris de sua esposa enquanto ele derramava sua semente. Por alguns instantes, Robert e Imogen apenas flutuaram no espaço, sem noção de tempo ou de lugar. Robert, o primeiro a voltar a si, precisou encostar a cabeça à parede. Imogen estava inerte em seus braços. Ele a abraçou de modo a aconchegá-la em seu ombro. Imogen sentiu a pele úmida e o frio das correntes em suas costas. Não se importou. Nada importava, exceto a certeza de que Robert estava vivo, respirando em seu rosto, amando-a como jamais fora amada. — Imogen, minha doce Imogen. Eu te amo como nunca amei ninguém antes. Ela ergueu o rosto ainda corado de paixão e sorriu. — Eu também te amo. Robert abraçou-a como se com esse simples gesto pudesse protegê-la do resto do mundo. Era uma tentativa inútil, mas naquele momento quase parecia possível. Porque se Imogen o amava, então tudo era possível. Ao ouvir três pancadas na porta, Imogen abraçou-se ainda mais ao marido. Era chegado o momento de deixá-lo, mas ela não queria ir embora. Vivera um sonho de amor e ele permaneceria real enquanto ela não acordasse. Naquelas que haviam sido as horas mais preciosas de sua existência, Robert e ela se tornaram um só. A comunhão fora feita entre seus corpos, mas também entre suas almas. Eles aprenderam muito um sobre o outro. Robert lhe contou fatos de sua infância e de sua vida adulta, como mercenário a serviço do rei. Ele lhe confessou seus erros e lhe revelou

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seus anseios. Desabafou sobre sua solidão em noites frias e sobre os dias de luta pela sobrevivência. Imogen tentou desnudar seus mais recônditos segredos para ele, mas logo desistiu. Robert não estava em condições de saber toda a verdade. Nem ela de se revelar por inteiro. Principalmente sobre o filho que estava esperando. A medida, porém, que a necessidade de partir se tornava mais e mais urgente, ela pensou que não seria justo esconder de um homem o milagre de uma nova vida que se formava de sua união com a mulher amada. — Há algo que eu preciso lhe dizer... Ele não permitiu que ela continuasse. — Não há tempo a perder! Você precisa ir agora! Não importa o que aconteça comigo, você tem de se salvar. Alegue inocência e completa ignorância. Atire-se aos pés de William e clame por misericórdia. Fuja. Faça o que tiver de fazer, mas coloque-se a salvo. Ou eu não responderei por mim, se algum dia conseguir sair daqui. Imogen concordou com um gesto de cabeça, angustiada demais para articular uma palavra. Mesmo que tivesse tentado, Robert não lhe daria nenhuma chance. Ele queria guardar em sua boca o sabor dos beijos que trocaram. — Não o abandonarei. — Imogen prometeu ao se despedir. — Farei o que tiver de ser feito, doa a quem doer. Robert deu um soco no ar a essa declaração. Estava furioso por lhe ter sido roubado o direito de ir e vir. De ficar ao lado de sua esposa. De proteger a ela e a tudo o que lhe fora dado. Até mesmo a dignidade de ficar em pé para se despedir lhe era negada. Contendo um soluço ao adivinhar a revolta que se apoderara de Robert, Imogen fez, gentilmente, com que ele se ajoelhasse antes que pudesse se machucar. Robert fechou os olhos para absorver os carinhos em seu rosto e prendeu as mãos de Imogen ao sentir que ela se preparava para retirá-las. — Eu te amo, minha esposa. Eu preciso ter certeza de que você ficará bem. Imogen retirou as mãos, sobressaltada, quando as pancadas se repetiram. — Eu sei — ela respondeu, sem tentar conter as lágrimas que lhe inundavam os olhos e suplicavam por vazão, estremeceu ao som tenebroso das correntes que impediam Robert de alcançála. Era preciso ter coragem e partir antes que a despedida se tornasse ainda mais dolorosa. Ela saiu sem dizer mais nada. Imogen encostou-se à parede e chorou até não ter mais lágrimas. Mal conseguiu ouvir os passos abafados de Gareth se afastando pelos corredores. Não saberia explicar como, mas algo lhe dizia que faltava pouco para o dia raiar. O dia em que seu Robert poderia ser levado para sempre de sua vida e da vida da criança que o amor deles havia gerado. Era motivo de tristeza para ela não ter contado a Robert sobre sua gravidez, mas não de arrependimento. Refletira muito antes de tomar a decisão de se calar. Seria egoísmo de sua parte dar

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a ele mais uma carga de preocupação. Queria que Robert ficasse feliz com a notícia. Precisava se agarrar à esperança de que chegaria o dia em que Robert estaria livre para conhecer seu filho. Vencida pela dor, Imogen caiu de joelhos e se dobrou sobre o ventre como para proteger seu bebê. Chorou ainda mais ao pensar no destino que os aguardava caso Robert não chegasse ao fim daquele dia. Os soluços foram brutalmente estancados pelo sarcasmo contido na voz que veio das sombras. — Olá, irmãzinha! O pânico a impediu de respirar. Roger estava as suas costas. Ela não o ouvira entrar. Um calafrio de horror a sacudiu ao sentir a mão fria e os dedos se fecharem ao redor de seu pescoço como tentáculos. Em seguida, Roger se aproximou para lhe falar e ela sentiu que suas feições contraíam ao detectarem seu hálito. Ele gargalhou como um lunático. — Você arruinou tudo, Imogen. Por sua causa, William se recusou a me receber. — O riso parou e as palavras sibilaram impregnadas de ódio. — Você se meteu onde não era chamada, irmãzinha querida, e agora terá de pagar o preço pelo que fez. A pressão no pescoço diminuiu e Imogen ousou respirar mais profundamente. Antes que tivesse tempo de pensar em uma forma de se proteger, Roger a empurrou e ela caiu para trás.

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Capítulo IX Robert estava deitado, com os olhos fixos no teto, embora a escuridão o impedisse de ver. A vela se extinguira em algum momento da madrugada, sem que ele notasse, voltado que estava apenas para Imogen e para a consolidação do amor que os unia. Teve uma vaga impressão de que alguém se aproximava. Voltou à realidade somente ao perceber que a porta estava sendo aberta e que guardas invadiam a cela, ordenando que se levantasse para ser levado à presença do rei. Retiradas as correntes que o prendiam pelos pulsos e pelos tornozelos, Robert fez menção de se colocar de pé, mas as pernas vacilaram sob o peso de seu corpo, após tantos dias de inércia. Um dos guardas lhe atirou uma roupa. Ele a apanhou no ar. Assim que se vestiu, os guardas tornaram a acorrentar suas mãos. — Cinco guardas? — ele caçoou. — O que nosso soberano acredita que um homem mal-nutrido e desarmado possa fazer contra ele? — Robert precisou exercitar os ombros que se recusavam a responder ao comando. — Suponho que deva me considerar um ser privilegiado para conservar forças suficientes para atentar contra a vida dele, sob o regime a que estive condenado. A figura de Imogen se projetou em sua mente. Com ela em seus braços ele conseguira buscar reservas de energias que não acreditara possuir. Fortalecido pela esperança de que o rei o tivesse chamado para lhe devolver a liberdade e não para mandar executá-lo, Robert fixou seu pensamento em Imogen e se preparou para seguir os guardas pelos corredores desertos, cujo silêncio só era quebrado pelo eco dos passos cadenciados. Sua condição, sabia, era especial. Prisioneiros não eram retirados de suas celas e levados à presença do rei. William não era do tipo do monarca que se comprazia em assistir às crueldades infligidas aos condenados. Ele os entregava ao carrasco, mas não participava do suplício. Para Robert, a atitude do rei era motivo de estranheza. Por que ele o convocara? Ao interceder por ele, Imogen teria conseguido que o rei perdoasse um ato de traição? Era um cavaleiro a serviço da guerra. A morte não lhe causava medo. Levara a destruição a muitos lugares e sabia que chegaria o dia em que também seria destruído. Ninguém vivia para sempre. Soldados e mercenários tendiam a viver menos do que os outros. Até aquele dia, ele encarara a morte como algo natural. De repente, a perspectiva de encontrá-la estava lhe provocando um suor frio de medo: medo de perder a esposa amada. Até conhecer Imogen, vivia por viver. Mas sua linda noiva trouxera um novo significado a sua vida. Relutava agora em deixá-la neste mundo, só e desprotegida. Com ela em seus braços, ele sentira emoções que jamais imaginara existir. Queria tê-la outra vez. Muitas vezes. A eternidade seria pouco para eles. O medo de perder a felicidade que acabara de encontrar o paralisou. Era preciso vencer esse fantasma. Imogen estava em algum lugar naquele castelo, a poucos passos de distância, mas

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era como se ela estivesse do outro lado do mundo. Precisava encontrá-la e salvá-la. Ela, mais do que ele, fora feita vítima do inescrupuloso Roger Colebrook e só Deus poderia saber o que ainda os aguardava. Armado de uma súbita coragem, Robert entrou na câmara real de cabeça erguida. Não se curvou a despeito dos outros. Manteve-se ereto e cruzou os braços deliberadamente para que as correntes ressoassem conforme batiam umas contra as outras. William não deu mostras de se importar com a impertinência do gesto. Voltado para a janela, parecia alheio à invasão a sua privacidade. Apesar da distância, Robert pôde notar que os olhos do rei estavam injetados e que suas mãos tremiam. — Removam as correntes e deixem-nos a sós — ele ordenou, a voz empastada pelo efeito do álcool. Os guardas se retiraram em cumprimento à determinação do monarca. Robert abriu as mãos e as esfregou repetidas vezes para o sangue voltar a circular. Precisou fechar os olhos às aguilhoadas que se espalharam pelos braços até alcançarem os ombros. O silêncio se estendeu por um longo momento até que o rei, finalmente, deixou seu posto para se dirigir a uma das cadeiras. Robert esperou que ele começasse a falar. Um século pareceu transcorrer sem que ele se manifestasse. Com o cenho franzido, diante do torpor que parecia ter se apoderado do rei, Robert tomou a iniciativa de se acomodar à frente dele. Precisou fechar os olhos à bênção de oferecer aos membros cansados e maltratados um pouco de conforto. As dores foram diminuindo e a curiosidade aumentando sobre o motivo daquela inesperada atitude por parte de William. Em tempos passados, seu atrevimento teria sido castigado. No entanto, agora que o rei tinha a desculpa perfeita para castigá-lo pelo insulto, ele se comportava como se nada lhe importasse. Conforme o silêncio se estendia, Robert também se viu enveredar pelos caminhos da memória. Voltou a si com um sobressalto quando a voz de William, finalmente, penetrou por seus pensamentos. — Sua esposa é uma mulher surpreendente. — Sim, pode-se dizer que sim — Robert concordou, em tom deliberadamente neutro. — Uma pessoa como ela é incomum, para se dizer o mínimo — o rei prosseguiu, quase como se falasse consigo mesmo. — Não creio que outra teria me chamado de tolo e sobrevivido para contar. Robert tentou pensar rápido em uma desculpa para Justificar o comportamento injustificável. — Imploro que a perdoe. Imogen tem estado sob uma forte tensão. Ela... O rei acenou para que ele se calasse. — Eu sei. Eu sei. O silêncio voltou a se estabelecer no ambiente. Robert esperou que o rei explicasse o

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motivo daquela convocação, mas ele se portava como se estivesse sozinho na sala. — Poderia me dizer o que está acontecendo? — Robert perguntou, incapaz de suportar a expectativa. A sombra de um sorriso, finalmente, surgiu nos olhos de William. — Parece que temos algo mais em comum do que a terra onde nascemos e nos empenhamos em defender. Fomos atraídos e usados como peças de uma sórdida trama de família. — O rei deu um suspiro. — Você nunca pensou em me assassinar, pensou? — Do modo como fala, parece decepcionado por ter descoberto a verdade. O rei se levantou a essa inferência. A apatia desapareceu de sua voz e de seu corpo. — Confesso que eu superaria o golpe com mais facilidade. Se você fosse realmente o traidor que o acusaram de ser, nós não estaríamos tendo esta conversa. Porque eu já teria me livrado de sua ameaça. Nunca gostei de você. Abomino sua arrogância. Não tolero sua falta de respeito. Comporta-se como se fosse o rei e eu o súdito. — William tornou a se virar para a janela. Quando voltou a encarar Robert, sua pergunta se carregou de amarga revolta. — Mas você nunca planejou me matar, não é? — Não. Eu nunca pensei em matar meu rei. William pareceu envelhecer muitos anos naquele instante. Seus ombros curvaram. O brilho desapareceu de seu olhar. — Fui um idiota. Entreguei-me a uma ilusão. As surpresas se acumulavam para Robert. Conhecia William havia longos anos, mas apenas o servira nos campos de batalha. O desgosto deveria estar consumindo suas entranhas para que ele o tomasse como confidente. Ou talvez o fato de terem sido traídos pelo mesmo homem representasse um elo forte o bastante para justificar a aproximação. — O que você sabe sobre o passado de sua esposa? A pergunta inesperada fez Robert hesitar. — Pouco — admitiu. — Ela conserva seu segredo a sete chaves. Usa-o como se fosse um talismã para protegê-la de outros males. Apenas me revelou algumas partes do que imagino ser um grande todo. É de meu conhecimento, contudo, que o irmão a tem mantido prisioneira desde sua mocidade e que a aterroriza com suas ameaças. Não sei o que a prende tão absolutamente a ele que jamais tenha tentado se libertar de seu jugo. Em conclusão, o pouco que eu sei é o suficiente para que eu o mande para o inferno, se me for concedida essa chance. O rei franziu o cenho. Sua voz soou impregnada de sarcasmo ao dizer. — Eu a concedo! Robert encarou o monarca. Antes que pudesse pedir um esclarecimento, ele continuou: — Digamos que Roger se tornou uma presença inconveniente nesta corte e que ele deva desaparecer do cenário antes que o mundo tome conhecimento do drama que aqui se desenrolou.

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Robert entendeu que aquela declaração significava o encerramento da primeira parte da vida de Imogen e proclamava o erro de julgamento cometido pelo rei que levara um inocente à prisão e quase à morte. Muito ainda precisava ser dito sobre os crimes de Roger para que Robert pudesse entender a razão do terrível trauma que sua esposa carregava desde a infância. Mas a verdade era que detalhes não importavam quando a verdade viera à tona e o destino resolvera dar a ele e a Imogen uma segunda chance. Passada a euforia do primeiro instante, porém, Robert se perguntou se a solução do problema poderia ser tão simples quanto o rei sugeria. — Como ficaremos Imogen e eu nessa história? — O mais longe possível de mim. Espero que retornem para o exílio ainda hoje. Robert não poderia ter ficado mais satisfeito com a resposta. — Importa-se de me dar essa declaração por escrito? — Se esse é o preço que devo pagar para que você suma de minha frente, eu a redigirei imediatamente. Ao receber o documento formal de sua liberação, Robert quis se levantar, mas uma forte dor nas costas o impediu. — Talvez eu deva lhe pedir permissão para estender minha hospedagem por mais um dia. Ou algumas horas. Será o tempo de eu tomar um banho e recuperar minhas forças. O rei aqueceu um pouco de cera em uma colher à chama de uma vela. Lacrou o envelope em seguida. — Suponho que eu deva essa consideração a lady Imogen. A pobre não merece viajar ao lado de um marido nas condições em que você se encontra. — O rei chamou o valete e lhe deu ordens para preparar um banho e fornecer roupas limpas a Robert. Antes que os dois homens saíssem, ele apanhou algo em sua escrivaninha e entregou-o a Robert. — Entregue-lhe este anel com minhas recomendações e a promessa de que a justiça será feita. Robert agradeceu com um gesto e se afastou em silêncio, o mais rápido que suas pernas permitiram. Estava ansioso por encontrar sua esposa e levá-la de volta para casa. — Se você não parar de assobiar; Robert, eu juro que o mato — Gareth resmungou, sem abrir os olhos. — E olhe que eu não sinto nenhuma vontade de me levantar desta cama. Robert não fez caso do mau humor do amigo. Estava feliz demais por estar vivo e pela visão de uma banheira de cobre a sua espera, cheia de água quente. O desejo de estar com Imogen o impedia de pensar em outras coisas. Ele teria ido ao encontro dela antes de tudo, mas queria estar limpo e perfumado, livre dos odores do calabouço da próxima vez que a abraçasse e beijasse. Aquele seria o primeiro dia do resto de suas vidas e ele queria iniciá-lo da melhor maneira. —Admito que não acordo de bom humor normalmente, mas esta manhã eu tenho uma desculpa, você não acha? Não dormi mais do que uma hora entre ontem e hoje. E para agravar a

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situação, fui arrancado de meu sono por dois criados que vieram preparar seu banho. Robert entrou na banheira e começou a se ensaboar. Antes que desse por si, estava assobiando outra vez. — Você deveria me agradecer por estar inteiro. Eu poderia ter lhe dado uma surra pelo que fez. Imogen correu um grande perigo ao vir para esta corte. Mais ainda por me procurar nos porões. Gareth virou para o outro lado da cama. — Eu reconheço que errei. Mas não tive escolha. Entre deixá-lo furioso ou ela, eu preferi atendê-la e me acertar depois com você. Desde que a deixou em Shadowsend Keep para atender o chamado do rei, sua esposa se transformou em outra pessoa. Sua fragilidade é ilusória. Lady Imogen sabe lutar pelo que quer. — Gareth encolheu os ombros. — Você estava preso à parede com correntes; ela estava solta. Sou homem o bastante para admitir que me faltou coragem para ignorar suas ordens. — Uma sábia atitude — Robert caçoou. — Parem com isso, vocês dois — Matthew reclamou. Uma sonora risada vibrou no ar antes que Robert mergulhasse a cabeça para retirar o sabão dos cabelos. — Nada como um bom banho — murmurou ao se levantar, o sorriso ainda presente em seu semblante. — Voltei a me sentir humano. Estava sendo tratado como um animal em uma jaula. Espero nunca mais passar por uma experiência dessas. Gareth estreitou os olhos ao examinar o amigo. —Você pode estar se sentindo bem depois desse banho, mas continua parecendo um tísico de tão magro. — Pretendo resolver esse assunto antes de partirmos. O rei me deve uma compensação depois da lamentável hospitalidade que me ofereceu. — Parece castigo. Quando chegamos, você enjeitou muita comida. — Como eu poderia ter apetite quando as circunstâncias me prometiam dissabores? — Comida é comida. — Sabe o que eu penso? Que você está ficando rabugento como Matthew. — Eu sou mais novo do que você. — Um ano apenas. Matthew terminou de polir a espada e se levantou. Estendeu-a como se desafiasse Robert para um duelo. — O que houve? — Robert estranhou, seu olhar atraído para o brilho do metal sob a luz do sol que penetrava pela janela. — Vocês parecem ter esquecido que o perigo ainda espreita nas sombras. Que Roger Colebrook ainda está em cena. Robert riu com descaso enquanto vestia uma túnica azul-escura pela cabeça. Mas seus

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olhos adquiram uma expressão selvagem quando tornou a encarar Matthew. — Você está enganado se pensa que eu baixei a guarda, meu velho amigo. Aquele canalha não perde por esperar. Eu o farei pagar caro pelos crimes que cometeu contra mim, e principalmente contra Imogen. — Deseja alguma ajuda? — Gareth ofereceu. — Mandar aquele sujeito para o inferno é um prazer que não pretendo dividir. Quero apertar o pescoço dele com minhas próprias mãos. — Vocês estão falando como duas crianças brincando de guerra — Matthew observou, ríspido. — Não gostou do meu plano? — Robert continuou caçoando. — O maldito merece ser estrangulado. Aliás, eu poderia pensar em mortes piores do que essa. — Não é uma questão de ele merecer ou não morrer por suas mãos — Matthew retrucou. — O que eu estou querendo dizer é que você parece estar subestimando o inimigo e, segundo minha experiência, esse é um erro fatal. Você acha que ele está calmamente esperando, em seu quarto, que você o procure? Que implorará por misericórdia quando você desembainhar sua espada? Não acha mais provável que ele, neste exato instante, esteja se preparando para matá-lo antes que você possa ter chance de atacar? Robert ergueu o queixo com determinação. — Não importa o que ele esteja pensando ou planejando. Eu o vencerei. Desta vez ele não assombrará uma órfã frágil e desprotegida. Essa mesma órfã se tornou minha prioridade. Quando a hora chegar, ele saberá com quem se atreveu a se intrometer. — Você está se preocupando demais com Robert, meu velho amigo — Gareth tornou a se dirigir a Matthew com um sorriso de malícia. — Anda medroso demais ultimamente. — Antes um medroso vivo do que um herói morto — Matthew retrucou. Robert olhou para um e para outro. Estava começando a ficar com saudade daqueles dois. Inclusive das provocações e discussões. Robert se sentou perto da lareira para calçar as botas. A vida voltara a lhe sorrir naquela madrugada e sua liberdade estava garantida desde o final de sua entrevista com o rei. Ele se levantou, abriu os braços como se quisesse abraçar o mundo, e avisou os companheiros que estava saindo em busca de Imogen, a quem pretendia entregar o envelope selado pelo próprio William, com a liberação de ambos. — Procure sair em silêncio — Gareth resmungou. — Alguns de nós, pobres mortais, precisam estar descansados para empreender a longa viagem de volta. As últimas palavras soaram abafadas pelo travesseiro com que Gareth cobriu a cabeça. Matthew olhou para Robert, sério e compenetrado. — Tenha cuidado. Roger pode estar esperando para atacá-lo atrás de qualquer coluna. — Não tema por mim. Eu acertarei minhas contas com ele ainda esta manhã, antes de

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partirmos. Agora eu tenho de ver minha esposa para poder realmente acreditar que estamos vivos e livres. — Tolo! — A voz de Matthew alcançou Robert embora ele já estivesse fechando a porta. — Eu escutei o que você disse. Não sou um tolo. Sou um homem apaixonado. — Esse é o pior tipo de tolo. O sorriso de Robert foi trocado por uma imprecaução ao descobrir que Imogen não se encontrava em seus aposentos. Um calafrio percorreu seu corpo e se instalou no centro de seu coração à certeza de que algo terrível havia acontecido. Sua mão tateou em busca da espada que carregava na bainha. Imogen, sua outra metade, estava em perigo. Captou na alma o medo que ela estava sentindo. Estranhamente, a espada não estava na bainha. Ele se lembrou apenas nesse instante que Matthew a pegara para limpar e a deixara apoiada na parede do quarto. Teria de voltar para buscála, mas antes daria uma olhada no quarto de Roger. Estava aflito demais por descobrir o paradeiro de Imogen para raciocinar. Abriu a porta com tanta força que ela bateu contra a parede. O estrondo ecoou pela câmara vazia. Ao ser informado de que o rei havia expulsado Roger Colebrook sumariamente do castelo, Robert conheceu o real significado de um ataque de pânico. Uma sensação de aperto no peito paralisou sua respiração. Ele fechou os olhos e teve ímpetos de gritar. Recuperou o controle ao pensamento de que o que estava sentindo não era nada em comparação com o terror que deveria ter se apoderado de sua Imogen. Deus, sua esposa sobreviveria a mais esse pesadelo? Ela estava viva? Roger permitiria que ela continuasse vivendo depois de saber que por sua culpa William o banira da corte? Da vida de regalias? Salões, câmaras e corredores foram inspecionados. E também as masmorras. Imogen não estava em nenhuma parte. Ninguém sabia dizer o que acontecera. Apenas um dos guardas que estivera de vigia durante a noite suspeitava de que os irmãos haviam partido rumo ao norte. Rumo a Shadowsend Keep. Parecia lógico, Robert pensou, mas se ele estivesse errado, um tempo valioso se perderia. Tempo em que Imogen estaria à mercê do pior pesadelo de todos. Ao chegar a essa conclusão, Robert decidiu seguir seus instintos. Precisava partir para a ação. Cada segundo perdido em conjeturas era um segundo a mais de sofrimento para Imogen. Seu primeiro passo foi tentar conseguir uma nova audiência com o rei. Depois do engano quase fatal que cometera em seu julgamento, William certamente não se negaria a recebê-lo com a urgência que lhe era devida. Convidado a aguardar na antecâmara, Robert se pôs a andar de um lado para o outro. Cada segundo parecia uma eternidade. Ele se perguntava sem cessar o que estaria acontecendo para o guarda demorar tanto em lhe dar uma resposta.

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Três horas de espera sem que William se manifestasse fez Robert entender que o encontro nunca aconteceria. Que o vínculo entre o passado e o presente acabara de ser desfeito. Com passos firmes, Robert voltou para junto de seus amigos. Sua expressão estava séria. Estava se preparando para a caçada mais importante que já empreendera. Entrou no quarto em silêncio e apanhou a espada. Gareth e Matthew se entreolharam. — Estamos prontos. — Imogen desapareceu. Roger foi expulso do castelo. Pedi para o rei me receber e não tive resposta. Gareth e Matthew se apressaram a embainhar as espadas ao verem Robert amarrar uma tira de couro no braço e esconder uma adaga. Ele não precisaria se estender em explicações para eles entenderem que Imogen estava correndo perigo. — O maldito deveria estar escondido no quarto dela, aguardando seu retorno esta manhã — Robert declarou com um fio de voz. — Interroguei alguns guardas. O vigia da torre viu quando deixaram o castelo, montados em um só cavalo, cerca de uma hora após o sol nascer. Gareth cerrou os punhos ao súbito pensamento que lhe ocorreu. — Imogen mencionou algo de especial nesta noite? Robert empalideceu. Nunca fora tão feliz antes. Precisava se agarrar às lembranças dos momentos vividos com Imogen e à fé de que ele conseguiria salvá-la. A que seu amigo poderia estar se referindo? — Não entendo por que algo que tenha sido mencionado na noite de ontem possa mudar a situação em que nos encontramos agora. Gareth deu um soco contra a parede. — Como eu pensei! Ela não lhe contou nada, contou? Está evidente que não! — Gareth respondeu a pergunta que ele mesmo fez. — Se ela tivesse lhe contado, você saberia de que estou falando. — Gareth balançou a cabeça e tomou fôlego antes de prosseguir. — Robert, Imogen está grávida. O choque o deixou sem fôlego. Apenas seus olhos se moviam, aturdidos. Ele viu Gareth se aproximar como se fosse um vulto. — Ei! — Gareth precisou sacudi-lo para que voltasse a si. — Eu não disse isso para dificultar a situação. Apenas achei que você precisava estar preparado para enfrentar qualquer tipo de eventualidade. Peço que me perdoe. Sinto-me terrivelmente culpado pelo que está acontecendo. Pálido como a morte, Robert terminou de se arrumar. Ao se encaminhar para a porta, Gareth e Matthew se colocaram um de cada lado. Ele se deteve. — Trata-se de um assunto pessoal que eu tenho de resolver sozinho. Preciso que vocês se encarreguem de uma outra missão. Para isso, deverão partir imediatamente. Ao chegarem em Shadowsend Keep deverão reunir todos os homens e prepará-los para entrarem em guerra, se necessário for.

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Gareth e Matthew se entreolharam. Robert explicou a que se referia antes que eles lhe perguntassem. — Se eu não encontrar Imogen no prazo de duas semanas, seguirei para Shadowsend Keep, me reunirei com meus homens e moverei céus e terra até encontrá-la. Não deixarei pedra sobre pedra nesta ilha. Eu juro!

Imogen não tinha como fugir. Roger estava por toda parte. Ele conseguiu o que queria. Consumira-a com sua maldade. Nas sombras da meia-noite, ele se tornara sua única conexão com o mundo. Era apenas seu corpo que ela podia tocar, era apenas seu cheiro que podia sentir. Ele a mantinha prisioneira sobre o cavalo que conduzia impiedosamente pelo frio e pelo vento. A chance de escape só era dada a Imogen pela mente. Sobre seus pensamentos Roger nunca teria domínio. Ela tentava levá-los para longe para fingir uma outra realidade. Cansada demais, também tentava não pensar em nada. Talvez, se deixasse de existir ao menos não sentisse aquele corpo odioso pressionando suas costas. Por mais que lutasse para ignorá-lo era inútil, pois ele era mais forte. Um arrepio de horror sacudiu Imogen antes que ela pudesse detê-lo e a fez morder o lábio de frustração. Porque sabia que Roger se regozijaria com seu mal-estar. Conforme pressentira, ele deu uma gargalhada que a fez encolher sobre si mesma, para se colocar novamente ereta em seguida. Por pior que estivesse sé sentindo, precisava proteger seu segredo. Por mais que preferisse a morte a continuar vivendo aquele pesadelo, precisava pensar em Robert e no filho que carregava consigo. Seu bebê era fonte de sua coragem. Apesar do medo que circulava em suas veias, ela sorriu por um instante. De certa forma, ele estava conspirando para salvá-la. A dor da culpa e as lágrimas de arrependimento provocaram um nó em sua garganta. Imagens de Robert foram evocadas pela memória. Ela se despedira dele naquela noite talvez para sempre. Imogen apertou os olhos e as mãos. Se persistisse naquela linha de raciocínio, acabaria prejudicando o bebê. Robert não gostaria de vê-los sofrer. Ele ficaria mais feliz se ela sobrevivesse e continuasse amando e zelando por sua memória. Se soubesse que ela amava o filho deles e que o ensinaria a amar também. Era mais do que amor o sentimento que os unia. Robert se preocupara com ela mais do que com ele mesmo, embora estivesse praticamente no corredor da morte. Ele a completava. Ele era a outra metade de sua alma. — Por que não diz nada, irmãzinha? — Roger cochichou no ouvido dela. — Eu sempre gostei do timbre de sua voz. Você é linda e sensual como nenhuma outra mulher, sabia? Imogen sentiu o ar escapar de seus pulmões e o sangue congelar em suas veias. O corpo de Roger parecia estar absorvendo-a, tragando-a para um abismo. O que ele estava fazendo? Por

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que estava dizendo aquelas coisas? O desespero fez seus olhos inundarem. Precisava reprimir as lágrimas, fosse como fosse. De repente, Imogen sentiu uma das mãos de Roger se apossarem de um seio. Teve ímpetos de gritar. Com a voz contida, ordenou que ele a deixasse em paz. — Eu farei o que me pede — ele respondeu, irônico. — Por enquanto... Dessa vez, ela conseguiu se manter firme e impassível, ao menos em aparência. Cercou-se, como último recurso de preservação de sua sanidade, de uma densa neblina através da qual ninguém poderia vê-la, nem tocá-la. Deixou-se dissolver naquela neblina até se tornar parte dela. Imogen não saberia dizer por quanto tempo alcançou o estado de morte em vida. A volta ao presente se deu com o movimento que a tirou da sela do cavalo. Roger havia parado, mais uma vez, para descansarem. O dia deveria estar chegando ao fim. Ainda tentando se comportar como se os acontecimentos girassem em torno de outra pessoa, que não ela, Imogen descobriu que o estratagema dessa vez não tivera êxito. Ela estava ouvindo os passos de Roger ao seu redor e chegou a adivinhar seus gestos quando ele a saudou com um floreio antes de segurá-la pelo braço. — Venha comigo, milady. Vou levá-la até as águas para que se refresque. Ela sairia correndo, se pudesse. Mas não tinha para onde ir. Roger deveria ter enlouquecido por completo. Agora ele estava ameaçando tomar seu corpo. Sua própria irmã! Já não lhe bastavam os jogos de sedução e perversão a que vinha submetendo-a durante anos. O pânico a fez tropeçar, mas permaneceu calada, sem se queixar. Aprendera a duras penas que resmungos irritavam Roger. Na verdade, tudo o que ela fazia sempre o irritara, desde que eram crianças. Ele a odiava. Sempre a odiara. O burburinho das águas a distraiu por um momento. Ele a levou até a margem, que ela reconheceu pela umidade sob os pés. Agachou-se e lavou o rosto. Ao pressentir, porém, que Roger estava parado as suas costas, fechou os olhos, deixando suas lágrimas se misturarem ao rio. Com um impropério de protesto, Roger a puxou e a carregou de volta para o acampamento. Ela estava se sentindo tão fraca que não protestou. Nem mesmo quando ele a soltou rudemente, fazendo com que caísse e batesse com o ombro em uma pedra. A dor da queda, porém, não foi nada em comparação com a brutalidade com que ele a deitou de costas e se colocou por cima dela, segurando seus braços abertos. — Eu não sou seu irmão! A confissão soou como um trovão distante. Imogen se sentiu como se pairasse no ar. O que Roger estava dizendo? Ele era seu irmão mais velho. Ele já havia nascido quando ela veio ao mundo. — Eu os ouvi falarem sobre mim como se tivessem acabado de me encontrar abandonado em meio ao bosque — Roger disse aos gritos. — Eles nunca desconfiaram que eu soubesse, Eu os odiei naquele momento. Eu odiei você por ser o que eu nunca fui. Mas eu jurei que me vingaria. Que todos os bens deles se tornariam meus! E você também!

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Muda de espanto, Imogen teve uma vertigem. Voltou a si com o impacto da mão de Roger batendo em suas faces. — Você me traiu! — Roger acusou-a. — Você ousou me ignorar e se aliar a um mercenário! A menção a Robert a fez acordar do torpor e lhe injetou coragem. Com toda a sua dignidade, ela ergueu o queixo e disse: — Você perdeu! Acreditou que todas as pessoas eram iguais a você. Mas nem todos são frios e calculistas, incapazes de verdadeiras emoções. Em sua visão distorcida, você achou que poderia continuar na liderança, sem perder o controle, trazendo mais uma peça para seu jogo sórdido de vingança. Roger não estava preparado para aquela guinada nos acontecimentos. Soltou os braços de Imogen e ela se aproveitou desse instante de distração para se desvencilhar e se levantar. — Você perdeu o controle a partir daquele instante. Porque Robert não era quem você pensava que fosse. Ele veio para mim e eu o recebi. Ao entrar em minha vida, Robert me trouxe de volta o mundo de alegria e de luz que você me roubou. O mais incrível é que eu, por sua causa, não acreditei que Robert estivesse sendo sincero em sua bondade. Por sua causa, eu quase o deixei escapar entre meus dedos. Porque com seu veneno, você quase me tornou incapaz de reconhecer o amor. Imogen riu, amarga. — Que ironia! No final, ele se mostrou mais forte do que você. Você não é nada comparado a Robert. Eu lhe entreguei meu corpo, meu coração, minha alma. Você entende o que isso significa, não entende? Apesar de tudo que você fez, eu sou a vencedora. Eu ganhei o jogo. Eu venci porque, apesar de sua maldade, de suas mentiras, eu amei e fui amada. Imogen não pôde continuar. Em sua fúria, Roger a fez calar com um tapa. Mas ela não se importou. A dor em seu rosto não era tão forte quanto a sensação de triunfo que lhe inundava a alma.

Robert praguejou ao se ajoelhar diante das cinzas e senti-las frias. Por mais que ele tentasse acelerar seu passo, continuava tão longe de alcançar Imogen quanto na noite anterior, e na noite anterior a ela. Por uma simples razão. Roger não precisava se deter para procurar pegadas. Ele não estava seguindo ninguém. O desalento o impedia de dormir. Estava parecendo um sonâmbulo sobre seu cavalo. Cada vez que se recostava para descansar, visões do sofrimento a que Imogen estava sendo submetida o atormentavam. Ele se levantava, então, e procurava dominar a raiva impotente que o consumia. Porque não podia permitir que ela o vencesse. Imogen precisava de sua perícia para se salvar. Com uma nova disposição, se colocou de pé e farejou o ar. Era jovem e era forte. Imogen não deveria estar a mais de um dia de distância. Roger a estava levando em seu cavalo. Carregando apenas ele sobre a sela, Dagger certamente acabaria alcançando-os. Não perderia mais tempo procurando por marcas da passagem deles. Estava decidido a se guiar por seus instintos e eles lhe

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diziam que Roger estava levando Imogen para aquela estranha torre construída nos arredores de Shadowsend Keep. A experiência duramente adquirida ao longo dos anos em campos de batalha o ensinara a aliar a prudência ao instinto. Mas a cada quilômetro percorrido, a certeza de que estava no caminho correto aumentava. Aprendera a conhecer Roger o suficiente, pelos relatos de Imogen, para saber que os rituais para ele se revestiam de extrema importância. Ele vinha semeando a discórdia desde tempos passados. O momento da colheita final estava se aproximando. Roger não se deteria diante de nada até completar sua vingança. O prazo estava se esgotando. Robert segurou as rédeas de seu cavalo e estava se preparando para seguir viagem quando algo chamou sua atenção. Uma pequena mancha perto de uma pedra. Ele se ajoelhou e constatou com um calafrio que era sangue. Sangue de Imogen. Uma evidência de que ela sofrera uma agressão física. Uma raiva surda o assaltou. Seus punhos fecharam e suas mãos se transformaram em gelo. Os dentes cerraram e uma veia começou a pulsar em sua têmpora. O jogo de adivinhação estava, definitivamente, terminado. Se ele corresse e não tornasse a parar, talvez pudesse chegar à torre a tempo de impedir a tragédia final. A voz da razão insistia em lhe dizer que se ele estivesse errado, se Roger não estivesse se dirigindo à torre, Imogen estaria perdida. Ele optou por ignorá-la. Assim como obrigou todas as suas emoções a permanecerem adormecidas, exceto o ódio que o movia. Um nó lhe fechou a garganta e os olhos arderam como fogo. Ele rezou, naquele instante, para que suas emoções despertassem ao lado de Imogen e para que eles pudessem partilhá-las na felicidade do resto de suas vidas.

— Você faz idéia de onde estamos? — Roger perguntou depois de puxar as rédeas. Imogen mal conseguiu abrir os olhos. Sua cabeça pendia sobre o ombro. A consciência, praticamente, a abandonara nos últimos dias. A voz de Roger, no entanto, sempre conseguia penetrar pela nebulosidade que se apossara de sua mente e a fazia voltar para a brutal realidade. — Na torre — ela respondeu com esforço. Sua voz soou rouca. A garganta doía desde que Roger quase a estrangulara na noite anterior. Ou na noite prévia. Ela já não conseguia se lembrar. — Você acertou. Congratulações — ele disse, sarcástico. Apeou, em seguida, e cruzou os braços. Esperar que Imogen descesse do cavalo sem ajuda tornara-se seu mais novo ritual de sadismo. Ela se segurou na crina do cavalo e deslizou da sela: Não se desequilibrou como das vezes anteriores. Roger amarrou uma corda por sua cintura e puxou-a. Ela conseguiu se manter ereta e altiva. Seguiu-o pela passagem subterrânea sem vacilar, mas tropeçou nos degraus que terminavam no alto da torre. — Estou dando pela falta de alguns objetos — Roger notificou-a. — Você entrou aqui em minha ausência?

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— Robert... — Sim, é claro. O falecido Beaumont. — Roger estalou a língua em falso lamento. — Ele era um tolo. Uma risada sinistra ecoou pela torre. Imogen prendeu a respiração. Ela estava em seu limite. Preferiria que Roger acabasse com sua vida de uma vez. Não suportava mais seu jogo ignóbil. Por que ele a odiava tanto? Nunca fizera nada para magoá-lo. Não tinha culpa que ele não fosse verdadeiramente filho de seus pais. Eles o amavam. Tinha certeza de que eles o amavam como a ela. Robert era doente. A única explicação para seu comportamento agressivo era a insanidade mental. Sem que Imogen esperasse, Roger a empurrou, fazendo com que caísse de joelhos. Ouviuo abrir a porta e berrar um protesto. — O que seu marido fez que deixou a torre imersa em escuridão? — Ele deveria ter avançado pelo recinto pelo som de seus passos. — Ele deve ter vedado a janela com algum tecido. Imogen adivinhou que Roger estava acendendo uma vela pelo ruído que ele fez com a pedra-de-fogo. E que eles não estavam sozinhos pelo modo como perguntou, aturdido: — Deus, quem está aí? — Não é Deus, mas alguém que veio cobrar justiça! — Robert! — Imogen deixou escapar um grito de alegria em meio ao drama que estavam vivendo. Um golpe, porém, com forte impacto em seu peito, lhe arrancou um grito agora de dor e de susto. Pego de surpresa, pela ponta da espada de Robert, Roger dera um salto para trás, chocando-se contra Imogen e projetando seu corpo contra a parede. Imogen não teve tempo para agradecer a Robert por ter vindo salvá-la. Para abraçá-lo. Para chorar de alívio e de felicidade em seu ombro. Ao se afastar da parede para tentar encontrá-lo, ela foi novamente derrubada por Roger. Com o fulgor de um raio, sua mente a transportou de volta para o passado, para a outra torre, na Cornualha, para a outra queda que lhe tirara a visão. A torre que servira de modelo para a atual que Roger mandara construir para continuar atormentando-a até a morte que a estaria levando consigo naquele momento se a corda que Roger amarrara em sua cintura não tivesse ficado presa em algum lugar e impedisse sua precipitação pela escada. A figura de Robert, recortada contra a luz da vela, projetava uma sombra sobre Roger. — Você deveria estar morto! — Roger sibilou, sob a sombra de Robert, cuja figura se recortara contra a luz da vela. — Não sou fácil de matar, Colebrook. E você não é mais o protegido do rei. Agora você é seu inimigo. Eu recebi ordens para matá-lo. Roger deu um puxão na corda para demonstrar que ele ainda detinha o poder de decidir sobre o destino de Imogen. Os olhos de Robert ficaram injetados, seu rosto perdeu a cor. Ele

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avançou com a espada e encostou-a no peito de Roger. — Vá em frente, Beaumont! — Roger encarou Robert com desafio. — Por que não me mata? Porque sabe que eu levarei sua querida esposa comigo para o inferno? — Já não bastam de ameaças? Atreva-se a tocar em mais um fio de cabelo de minha esposa e eu o farei se arrepender! — Eu me atrevo a tudo — Roger respondeu, feroz. — E por isso que eu sempre ganho. Aconteceu tão rápido que não houve tempo para Robert tentar reverter a situação. Com uma gargalhada sinistra, Roger soltou a corda e Imogen se desequilibrou. Seu grito foi lancinante. Penetrou na alma de Robert com a mesma força que Roger tombou sobre a espada. Robert soltou-a e deu um salto para tentar salvar Imogen. Mas era tarde demais. Seu corpo só parou de cair quando bateu contra o primeiro degrau. Ele se prostrou de joelhos e invocou a misericórdia divina. Abraçou o corpo inerte e acalentou-o como a uma criança adormecida. — Fique comigo, Imogen. — Ele olhava para o rosto machucado de sua esposa e estremecia à intensa palidez de sua pele translúcida. — Por favor, não me deixe.

— Pelo amor de Deus, homem, pare de andar de um lado para outro como uma fera enjaulada. Estou ficando com dor de cabeça — Matthew tornou a repetir, embora soubesse de antemão que sua súplica não seria ouvida. — Dois dias! — Robert murmurou, pesaroso. — Faz dois dias que Imogen está nessa cama, como morta, e a única coisa que Mary vem nos dizer é que precisamos rezar e ter paciência. Gareth e Matthew trocaram um olhar e encolheram os ombros. Eles entendiam o nervosismo de Robert. Eles também estavam preocupados com o estado deplorável de Imogen. Robert se deteve por alguns minutos e se pôs novamente a andar de um lado para o outro. Parecia fazer uma eternidade desde que ele regressara a Shadowsend Keep no meio da noite, com Imogen nos braços. Comportara-se como um ogro, gritando com todos ao seu redor. Foram necessários três homens para segurá-lo e tirá-lo do quarto de Imogen, para que a curandeira local pudesse fazer seu trabalho. Não conseguiram afastá-lo para além do corredor. Soltaram-no mediante a promessa de que ele se comportaria e esperaria o tempo que fosse preciso até receber permissão para vê-la. E ele ali ficou. Recusou água e comida. Recusou-se a dormir. Só parava de andar para se sentar e esconder o rosto com as mãos. Gareth e Matthew não se afastaram do lado dele nessa vigília. Nada que eles dissessem ou fizessem, porém, lhe servira de consolo. Garantir que Imogen ficaria bem, eles não podiam. Eles preferiram o silêncio à mentira. Aqueles foram os dias mais longos da vida dos três homens. De todos que habitavam Shadowsend Keep. O tempo parecia ter parado. As pessoas falavam apenas o essencial. Suas vozes mal eram ouvidas. Mas Robert quase desejou que o suspense permanecesse diante da angústia que sentiu ao ver a porta do quarto ser aberta e a curandeira dar um passo em direção a ele.

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A mulher precisou se afastar do caminho ou teria sido derrubada. Robert não conseguiu esperar que ela terminasse de dizer que Imogen acabara de acordar. Ele invadiu o quarto com a precipitação de uma rajada de vento. Parou de chofre ao encontrar Imogen envolta em peles, frágil e pálida, de olhos fechados. Seu coração batia tão acelerado que o ar lhe faltou. Um nó lhe fechou a garganta ao ver as pálpebras tremerem e, finalmente, abrirem para ele. — A mulher disse que você estava acordada — Robert murmurou, sem jeito. — Mais acordada do que nunca — Imogen declarou com o sorriso mais lindo que Robert já vira. — Então você está bem? — Ele engoliu em seco. — Mais do que bem. — As mãos de Imogen pousaram sobre seu ventre. — Parece que o coração de nosso pequeno é forte como o nosso. Ele continua a bater. Robert só percebeu que havia atravessado o quarto quando se colocou de joelhos ao lado do leito e colocou sua mão sobre o abdômen arredondado. — Quando Gareth me contou, não parecia real. — Robert olhava, fascinado, para o rosto de Imogen e para seu ventre. — Nós vamos ter um bebê. Meu Deus, eu quase morri pelo medo de perdê-la e agora descubro que estou ganhando também um filho! — Eu deveria me zangar com Gareth — Imogen protestou, mas sorriu enquanto falava. — Queria ter sido eu a lhe contar. Mas ainda me sobrou um segredo e a esse ninguém poderá se adiantar. Robert a fitava com expectativa. Imogen retirou a mão que ele segurava sobre seu ventre e estendeu-a em direção ao rosto dele. Depois a ergueu ainda mais de modo que os dedos mergulhassem em seus cabelos. — Eu sempre quis saber de que cor eram seus cabelos, embora nunca tivesse perguntado. Eu deveria ter adivinhado que eles eram da cor da meia-noite. Assim como seus olhos. Robert pestanejou. Suas mãos tremiam ao segurar o rosto de Imogen. Seus olhos encontraram os dela. — Você está me vendo? — A voz brotou rouca de emoção. Ele mal a reconheceu ao comprovar a verdade antes mesmo que Imogen respondesse, pelo brilho que radiava, pela primeira, vez da profundidade daqueles olhos castanhos. — Sim. — Ela beijou as mãos dele. — Você invocou a justiça e ela foi feita! Agora eu poderei constatar por mim mesma se nosso filho se parecerá comigo ou com você. Robert sentiu uma lágrima pingar no dorso de sua mão e não soube se era dele ou de Imogen. Eles ficaram assim apenas olhando um para o outro por um longo tempo. Ele, então, se inclinou e, com extremo cuidado, deitou a cabeça nos seios dela onde se pôs a chorar convulsivamente. Em silêncio, Imogen o acariciou no rosto, no pescoço, nos cabelos. Ela chorava com ele,

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mas tambĂŠm sorria.

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EPÍLOGO Robert saltou de seu fiel Dagger e entregou as rédeas ao encarregado dos estábulos. A reforma estava quase concluída. O entusiasmo era geral. Todos pareciam contentes, embora nunca tivessem trabalhado tanto. Os materiais que ele fora comprar no sul haviam chegado em ordem. Se tudo desse certo, as obras de restauração e de fortificação da propriedade estariam terminadas para as festas de final do ano. O curto prazo se devia, em parte, à enorme quantidade de pedras encontradas no local, da torre que Robert fizera questão de pôr abaixo. Em breve, ele e todos que viviam sob sua tutela estariam protegidos como se vivessem em um castelo. Não que o fato de viver em um castelo tivesse salvado o rei William. Ele encontrara a morte em uma caçada em New Forest em um dia quente de verão, vítima de uma flecha perdida. As notícias sobre a morte do rei se alastraram como fogo em mata seca. Muitas e diferentes histórias foram contadas. Para alguns, um dos participantes da caçada, Walter Tirel, tentara acertar um gamo e acabara alvejando William. Outros afirmavam que Henry, o irmão caçula do rei, contratara Walter para matá-lo. A igreja declarou que a mão de Deus descera do céu e desviara a flecha do alvo de origem para atingir o coração perverso do rei. Fosse o motivo um acidente de caça, um assassinato ou ira divina, a versão oficial foi de um infeliz acidente com um feliz desfecho. O novo rei convocou Robert para participar da cerimônia de coroação. Os súditos o aclamaram. O próprio Robert nada tinha contra ele, exceto o fato de tê-lo obrigado a deixar Imogen e a filhinha deles, Kathryn, para viajar a Westminster. Até mesmo o ar do norte parecia mais sutil a seu corpo cansado. Estava voltando para casa. Seu lar. Ele que sempre sonhara com um lar e nunca acreditara realmente que esse sonho se realizaria. O cavalariço, que permanecera por perto enquanto Robert procurava Imogen no meio da multidão sem encontrá-la, disse com um sorriso: — Não esperávamos que fosse chegar por mais dois dias, sir Robert. Eu ouvi lady Imogen dizer esta manhã que para suportar a ausência de seu marido errante, ela precisaria da tranqüilidade e da beleza de seu jardim de rosas. Robert agradeceu a informação e rumou diretamente para o jardim murado, mal resistindo à vontade de se pôr a correr. Ao contrário. Conforme o momento do encontro se aproximava, ele diminuiu o passo. Percorreu o caminho sob a sombra das árvores para poder admirar Imogen antes que ela o visse. Seu coração batia acelerado. Imogen parecia uma deusa entre as flores multicoloridas. Parou de respirar ao vê-la colher uma rosa, levá-la até seu rosto e fechar os olhos para aspirar sua fragrância. Os olhos de Robert inundaram ao lembrar o milagre que concedera a

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cura a sua adorada esposa. Imogen estava admirando, sorridente, a linda flor em sua exuberância de forma e de cor, antes de colocá-la com as outras, no cesto que carregava na curva de seu braço. Cores. Elas se tornaram a mais recente paixão na vida de Imogen. No entanto, fora ela, inicialmente, que trouxera a cor à vida escura, o único tipo de vida que ele conhecia. Imogen parecia determinada a recuperar todo o tempo em que a luz e as cores lhe foram negadas. A música do despertar de um bebê o fez transferir a atenção para um pequeno cesto que repousava no aconchego de um canteiro. Imogen trouxera Kathryn em seu passeio. Ele sorriu, maravilhado, ao ver a esposa se curvar sobre a filha e beijá-la delicadamente. Kathryn agitou as mãozinhas como se quisesse retribuir o carinho e depois voltou a dormir. Ele não cabia em si de emoção. Parecia incrível que tivesse uma filha, que seu amor criara uma nova vida. Que uma mulher lhe tivesse dado o maior presente que ele poderia receber: seu amor. Imogen era perfeita. Ele jamais se cansaria de admirá-la. Amava-a mais a cada dia. Mas ela também o assustava com sua força e coragem. Superado o medo e o terror que a enclausuraram por longos anos, Imogen se tornara a mulher mais destemida que ele já conhecera. Em vez de ouvi-lo ou de protestar contra o que ela considerava um zelo excessivo, Imogen sorria para ele e continuava a fazer o que se determinara. Por mais que ele tivesse tentado convencêla a guardar o leito para se recuperar do esforço de trazer Kathryn ao mundo, seus discursos não surtiram nenhum efeito. Convicto de que a única maneira de mantê-la sob sua proteção seria acompanhá-la em todos os seus passos, ele resolveu deixar seus afazeres de lado por quarenta dias. Imogen sofrera uma queda quase fatal e teve de permanecer acamada durante a gestação. Como ele poderia admitir que ela se deslocasse pela casa, como se nada tivesse acontecido, depois de dar à luz? O que ela fizera? Apertara-lhe a ponta do nariz e o mandara voltar ao trabalho, porque ela nunca se sentira tão saudável antes e que não precisava mais de um enfermeiro durante as vinte e quatro horas do dia. Mas que aceitaria sua ajuda nos cuidados com Kathryn. Incapaz de recusar qualquer pedido de Imogen, ele tivera de enfrentar um de seus maiores desafios: o de segurar um bebê pela primeira vez nos braços. Como Imogen insistira em cuidar pessoalmente da filha, só permitindo a ajuda dele, e de mais ninguém, Robert aprendeu a acalentá-la e até mesmo a trocar fraldas. Nesse processo, também ele acabou se apaixonando perdidamente por Kathryn, a inocente criatura que herdara seus olhos e o sorriso da mãe. A dádiva de infinita misericórdia que ele moveria céu e terra para proteger. — Pretende passar o resto do dia apenas olhando para nós? A voz suave e divertida de Imogen trouxe Robert de volta para o presente. — Talvez — ele respondeu, comovido. — Após quase um mês sem vê-las, eu me reclamo o direito de apreciá-las sem limite de tempo. Imogen colocou as mãos na cintura e se voltou para a filha com falsa indignação.

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— O que você acha, Kathryn? Seu pai nos abandona pelo que pareceu um século, e ao nos encontrar, em vez de correr a nos abraçar, fica olhando de longe para nós! — O protesto foi interrompido pelo grito de euforia que Imogen deu ao ser arrebatada pelos braços saudosos do marido. — Onde já se viu falar mal do pai à filha? — Robert fingiu se zangar, mas rompeu em risadas ao ser fortemente enlaçado pelo pescoço e receber um sorriso irresistível em resposta. Que foi retribuído com um beijo em que ele colocou toda a sua saudade, sua veneração, seu amor infinito. O tempo pareceu parar para Robert quando sentiu seu beijo ser correspondido. Ele havia feito uma promessa de controlar seu desejo por alguns meses ainda, com medo de machucar Imogen depois da queda quase fatal, da difícil gestação e do parto demorado. — Eu não posso... — ele murmurou.. Ela o fitou séria por alguns instantes. Mas logo seus lábios tornaram a distender em outro brilhante sorriso. — Tomando para si todas as decisões outra vez, Robert? — Ela fez um movimento negativo com a cabeça. — Oh, não. Eu não deixarei que me coloque sob uma redoma de vidro. Sou mais forte do que você pensa. — Ela tomou a iniciativa de beijá-lo e de provocá-lo até que a paixão se espalhasse por seus corpos. — Com você em meu coração, em minha mente e em minha alma não há nada que eu não possa fazer. Nada que não possamos enfrentar juntos. Robert segurou as mãos de Imogen e beijou-as. Depois, se apossou de sua boca não apenas com amor, mas também com volúpia. Os tempos de restrição, de medo e de loucura estavam sendo superados. Em suas vidas, agora, só haveria lugar para o bem. E se era loucura se amarem a céu aberto, eles a aclamaram como uma divina loucura...

FIM

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