entrevista carol barrteo. existe moda baiana?

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Entrevista C AR O L B A R R E T O ALEXANDRO MOTA E LUANA RIBEIRO

Moda Baiana, realidades e p erspectivas. lusa preta, calça listrada preta e branca. Mais o Black Power, sua marca tatuada no ombro, o colar e o anelão laranja não escondem que Carol Barreto, 29 anos, é uma pessoa que tem estilo. Professora de Design de Moda e Gestão em Moda na Faculdade da Cidade, na Unifacs e na UniJorge, formada em Letras com Inglês e Mestre em Desenho Cultura e interatividade pela UEFS, tem larga experiência em pesquisa na área. Em 2008, fez uma pesquisa de Mestrado sobre Moda e Expressão Sexual: redesenho e construção da aparência no grupo das travestis de Salvador.

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Qual o seu conceito de moda? Muito além do conceito acadêmico, mas pessoal, enquanto mulher, e mais além enquanto mulher baiana.

Eu acho que na verdade é indissociável esse conceito acadêmico, feminino e regional. Mesmo para profissionais que vão lidar somente com a prática, às vezes, ou com consultorias pra empresas, com o âmbito palpável da moda, ele precisa na verdade ter um aprofundamento teórico. Seja pra fazer uma blusa, pra construir uma imagem de moda num editorial ou simplesmente pra escrever sobre moda. A metodologia de um projeto de designer de moda, que é diferente do estilista, que é aquele que pensou numa peça, fez um desenho artístico, encontrou um tecido e costurou. Existe uma serie de condicionantes, de pré-requisitos e problemáticas que vão dar constituição a esse projeto. Hoje com as discussões que vão avançando, em âmbito nacional, com os congressos nacionais que a gente tem, com as publicações referentes às áreas que vem surgindo, né?! Já sabemos que a nossa área é fruto da consonância de diversas outras como a antropologia, a filosofia, a economia, na verdade é um compilado de diversas ou quase todas as áreas de estudos que a depender do foco que você tenha dentro da profissão você vai dialogar com uma serie de outras. Assim é importante se ver a moda não só como a expressão de um vestuário de um povo, não somente

como a marca de um tempo, que já é muita coisa. É por meio da roupa que a gente expressa nossa concepção estética sobre nos mesmos e sobre os outros, nossa concepção estética sobre a cidade em que vivemos, sobre a região em que nos vivemos, as influências externas e estrangeiras que a gente tem, em relação a tudo que chega como informação. A sessão da tarde que a gente só ver filme americano, a novela da Globo que reconstrói esses personagens do cinema americanos pra gente, e vende a roupa, que constrói aquela personagem, como água. Mas o mais importante compreender é que todo processo de construção da aparência que não seja acidental é considerado como moda, por que se a gente considerar a moda apensa no âmbito comercial, a gente vai dizer que ela só existe no ocidente. Que as pessoas trocam de roupa por diversas vezes com a intenção ou de se expressar, ou de se agrupar determinados nichos sociais, se desagrupar desses mesmos nichos, ou de impor hierarquias sociais, poderes e etc... Mas nas civilizações mais tradicionais, nas Tribos africanas, na china imperial, as mulheres de Girafas, que tem na sua constituição estética visual uma marca mesmo da sua história cultural. Será que isso também não seria moda? Será que isso não seria um processo de expressão cultural, assim como essa roupa que a gente compra na loja e dá graças a Deus que vai acabar

amanhã por que não assinamos um contrato pro resto da vida? A partir do momento que existe um projeto, Mesmo que não sendo um projeto escrito, gráfico metodologicamente escolhido, existe um projeto que foi feito pela sua cultura, pela sua sociedade, pela sua família que expressa na sua aparência. Mas a gente vê nessas indumentárias, na aparência dessas mulheres um diagnóstico daquilo que acontece naquela sociedade. Então tá muito além de escolher uma camisa listrada, ou uma calça jeans que a gente nem escolheu, inventaram pra gente que é confortável, que é prático, que é legal. E a gente usa todo dia no calor. Mas... Pessoalmente fora de todas as viagens acadêmicas, apesar de não conseguir separa muito, acredito que essa pele que a gente sobrepõe a nossa, são peles que carrega muito da nossa identidade. Você acha que existe um jeito baiano de se fazer moda? E o que há de diferente do resto do mundo?

Diferencia-se pela questão das cores... A moda européia usa cores mais neutras, é mais bege, mais nude. As mulheres em SP se referenciam, ficam com seus ternos, no ar condicionado e tal.... Na Bahia é tudo muito mais exposto. Uma aluna, por exemplo, disse que tava no ponto de ônibus, uma ponta da tatuagem aparecendo, uma senhora levantou a blusa

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Entrevista C AR O L B A R R E T O dela olhou a tatuagem e foi embora (risos). Isso acaba refletindo no produto, na modelagem... Temos aqui muitos trabalhos de destaque, Márcia Ganem, Vitorino Campos, Úrsula Félix... que fazem trabalhos muito bonitos, mas falta estrutura. Nas lojas, falta o mínimo: bom atendimento, por exemplo. Uma amiga minha visitou uma Louis Vuitton na França e se impressionou com a dança das mãos que as vendedoras faziam para demonstrar o produto. Aqui, o atendimento já é direcionado: você precisa parecer que mora em bairro tal, que tem dinheiro pra gastar, tem que estar bemvestido dentro das convenções do que é estar bem-vestido. Não existem bons vitrinistas, que saibam a melhor luz, o melhor jeito de dispor o vestido; são cuidados que fazem você passar por uma vitrine e dizer eu preciso desse vestido e passar por outro e nem reparar. Falta um jornalismo de moda qualificada, especializado. Urgentemente. Por que o jornalista não tá capacitado pra fazer um editorial de moda, uma boa reportagem sobre o meio, assim como o designer preparado pra escrever uma reportagem, tem que se complementar. Recentemente, tivemos a Semana Iguatemi de Moda e o Barra Fashion; temos estilistas de reconhecimento como Márcia Ganem, entretanto a moda local não tem ainda projeção nacional. Para você, o que falta para a moda na Bahia ganhar corpo?

Seria a apresentação nos eventos desses profissionais locais, não adianta eu desfilar só Fórum, Colcci, Vide Bula, Osklen, etc. Os eventos são sustentados pela colaboração dessas marcas, quem custeiam os eventos de moda são marcas já consagradas e estão interessadas na produção do seu produto, por vezes a promoção de algo que vai direto pra vitrina, ou para a arara da loja. Mas o que é que dá espaço pra moda local? Os desfiles dos novos talentos do Barra, que é onde você vê como está se desenvolvendo a força criativa local. Não adianta também que esse profissional esteja dependente desses grandes eventos. Em São Paulo a gente tem A Casa de Criadores que é um evento independente, desfilam só designers com determinado estilos de trabalho. Aqui a gente não tem um evento que se apresentam só designers de moda daqui. Falta também iniciativa pessoal, crença dos estudantes do poder criativo deles.

Existe alguma organização desses profissionais aqui na Bahia?

Ainda não, a gente vem de um histórico de egos enormes, fruto da pouca profissionalização e entendimento do que é essa área de trabalho, que é uma área de trabalho mesmo multidisciplinar, e tem que ter trabalho de equipe. Eu não sou melhor do que minha modelista, eu não sou melhor do que minha costureira, nem do que a modelo que está desfilando. Somos uma equipe e todo mundo depende de todo mundo pra o sucesso do evento, da coleção, do negocio. Mas a gente vem de um histórico de pessoas que são maravilhosas e que pensam que só o trabalho delas que são o máximo e que aquele que tá chegando não tem muito espaço. Com a profissionalização e os surgimentos das escolas isso tem mudado um pouco e que no futuro a gente tenha essa possibilidade de agrupar trabalhos idéias e construir algo... E aí então, quem sabe, vai surgir uma moda baiana. Sobre a relação sexualidade e moda. Em entrevista a Marccelus Bragg, sobre sua pesquisa a respeito de moda e expressão sexual, na exposição fotográfica no Teatro Gamboa, dois trechos me chamaram atenção. Em um você dizia que “as cores utilizadas pelas travestis servem de espelho para a mulher de forma a mostrar a quantidade de aparatos que existem na construção da imagem feminina” e outro que dizia que: “as calças, as roupas justas para evidenciar as curvas, conseguidas, construídas às custas de tanto esforço, tanto investimento, seja financeiro, psicológico, emocional...”. O reforço da identidade feminina, da sua sensualidade própria, através da moda, se estende às mulheres, para você? Como poderia ser feito isto?

A gente sabe que o gênero é uma construção cultural. A mulher do Brasil de hoje não é a que viveu no Brasil há décadas atrás, nem a que vive no Afeganistão. E essa manipulação, esse gerenciamento desses aparatos vestimentários mostram que trabalho a

gente tem pra construir essa imagem feminina. A diferença é que a partir de uma constituição biológica, com contornos diferentes do corpo feminino, se tem um esforço geralmente árduo e cronologicamente localizado: (exemplifica) A partir dos quinze anos, Sharon colocou cinco copos de silicone no peito. Com quinze anos! Mas a gente, antes de ter peito, a gente sabe que existe sutiã, inclusive que aumenta o peito, que modela de tal e tal jeito... Querendo ter peitão ou não você tem que ter, porque o sutiã vem com peito grátis, você já compra o peito na Marisa, na C&A, na Av. Sete. O cabelo também. Toda essa construção que a gente aprende ao longo da existência: “com tal idade já pode depilar a perna, com tal idade já pode tirar a sobrancelha”. E começa a ler revistinha que diz (risos) “faz esfoliação com açúcar e mel”. Tudo isso que a gente acha que é orgânico, que já nasceu com a gente é tão culturalmente construído como no universo das travestis. Mas no sentido da exploração da sexualidade, da sensualidade. Se a mulher também, do ponto de vista da moda, quer explorar a sensualidade através da calça justa, do decote... O estereótipo da...

Da piriguete... (risos) Piriguete, isso! Assim como a travesti quer reforçar sua identidade feminina, a mulher opte pela opção de também reforçar isto através da moda, de forma a se sentir desejada. Por isto a pergunta: o reforço da identidade feminina, da sua sensualidade própria, através da moda, se estende às mulheres, para você? Como poderia ser feito isto?

Há escolha a partir do momento em que ela age criticamente diante daquela possibilidade, abre essa porta e entra. Quando você já nasceu dentro daquela porta e pra você só existe aquele caminho, será que seria uma escolha?Será que não é um condicionamento social de que aquela mulher só serve, mais uma vez construído historicamente, como um elemento a ser utilizado? No momento que eu quero utilizar isso ao meu favor e de modo consciente e bem pautado ideologicamente, eu escolhi. A gente tem hoje, para você ter um exemplo palpável disso, as novas pin-ups que vão recuperar aquele movimento burlesco do início do séc. XX, que tendem a explorar sua sensualidade, sua sexualidade de modo bastante particular, criando muitas vezes uma aparência fora de todos os padrões, estranha mesmo. Por exemplo, a técnica do interlace, que vai gradativamente

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Entrevista C AR O L B A R R E T O apertando, diminuindo o contorno da cintura, pra conseguir aquela diferença enorme, como no séc. XIX entre a anca, a parte superior... Junto com isso o uso da maquiagem forte, de unhas vermelhas, é certo-não certo dizendo que tem um limite-cobertas de tatuagens, saltos altíssimos... Explorando o universo do fetiche, mas que advém de uma cultura elaborada e não de uma vitimização social. Por vezes aquela criança é estimulada desde cedo a se portar daquela maneira, tendo como única possibilidade da sua vida a conquista de um parceiro, que vá provê-la, proteger, pagar... Precisa ver até que ponto isso é um posicionamento. Quando eu saio nua na rua por que eu tenho motivo pra aquilo eu escolhi, mas quando eu acredito que - eu nem posso misturar essas coisas, é tão perigoso esse discurso, né? –o caminho para o sucesso e a felicidade feminina vem da exploração do seu corpo, da abertura mesmo da exploração sexual, como a gente tem visto nos pagodes e tal... Pergunto isso porque em outras classes sociais isso vem mais diluído, essa coisa do silicone mesmo: o reforço da feminilidade da travesti, quando põe o silicone é análogo ao da mulher.

É tão análogo isso que você falou, e é muito bom esse seu ponto de vista, que nós temos alunas, extremamente jovens, que nem tem o corpo todo formado ainda que já botaram silicone. O peito da minha mãe é bem maior que o meu peito, e olhe que eu tenho 29 anos! Minha mãe tem 52. O peito da menina de 18 anos pode crescer muito até os 25, mas “eu preciso ser sensual hoje e agora senão a felicidade não está garantida a mim”. Pense que tinha o espartilho lá que diminuía a cintura e ia colocar o peito lá em cima. A gente entra no mercado de trabalho, cria um monte de atividades além de ser a mulher bonitinha, magra e (risos) desmaiando de vinagre do marido, mas a gente tira esse espartilho de cima da pele e coloca sob a pele! Primeiro na década de 80, com excesso de abdominais, e posteriormente com o advento da cirurgia plástica que vai redesenhar essa estrutura do espartilho. E o texto que você apresentou no Enecult, sobre a manipulação da moda enquanto materialização do universo cultural? O que você acha que foi absorvido do universo cultural baiano?

Moda comercial? Quando eu falo moda aí, falo do processo gerenciamento da aparência, como eu falei dessa coisa da escolha: quando você pensa e age a partir do que já projetou em sua cabeça; que é o

não são pesquisas que não foram bem aprofundadas. Na Bahia há uma tendência de reduzir quadros, no teatro, por exemplo, a gente tem o ator, que dirige, que faz a produção, que faz a sua assessoria de imprensa...

(Interrompe) Em moda é desse jeito também, e ele só não desfila por que não dá tempo (risos) caso de travesti, drag queens, por exemplo. Do universo cultural, o que é introjetado nesse âmbito comercial da moda, talvez a necessidade do fazer artesanal da roupa, que muitos estilistas se utilizam da moulage e não da modelagem plana pra construir a peça; que vem da tradição de que nossas mãos são extremamente importantes no processo criativo. Eu mesma, além de professora, sou designer de moda e se eu construo uma coleção em que eu não fiz nada manualmente, pra mim ela não é minha: “ah, beleza, a roupa tá linda, mas eu não interferi em nada.”. As técnicas artesanais, o artesanato-não só o crochê e a renda, que infelizmente a gente utiliza muito pouco e com a pouca importância que tem no cenário mundial-e também a necessidade de evidenciar o corpo feminino. Porque em Salvador nunca, até agora, a gente faz uma roupa que vá esconder ela por completo. Por mais que eu esconda, esse tecido não é rígido ao ponto de que a estrutura da roupa seja bizantina, retangular e dura e que ninguém vá ver seio, ninguém vá ver um movimento, nada. Voltando um pouco mais pra Bahia, Sincretismo religioso é um tema sempre muito associado ao nosso estado, pra você isso se aplica também nas produções baianas de moda? Qual relação pode ser feita entre religiosidade e moda?

A relação é intrínseca, A religião vai condicionar a sua visão de mundo, que vai culminar na sua forma de vestir e nas suas escolhas, mas eu acho que muitas das vezes se privilegia essas religiões afrodescendentes por conta mesmo de uma visibilidade que anda no sentido contrário dos padrões ocidentais que a gente tem. As proporções são outras as cores, os volumes. São completamente diferentes. No momento que você se apropria de um elemento como esse você tem que se esforçar pra não reproduzir a indumentária, mas pra entender o conceito daquela veste e criar algo que tenha a referência, mas que não seja a reprodução. Muitas vezes o que a gente tem de moda afro, moda não-sei-o-que... você vê que

Isso dificulta um pouco o acesso ao mercado de trabalho, você não acha?

Mas eu acho que não é só a vontade do designer de fazer a assessoria dele, quanto contratar modelos, às vezes é falta mesmo de verba ou de conhecimento de que cada coisa tem de ser feita por um profissional, por que esse profissional sabe como fazer a assessoria, esse sabe como fazer o plano de marketing,... É a questão mesmo do recurso. Por que é uma profissão que você precisa de muita grana pra investir. E suas apostas como novíssimos nomes para a moda baiana?

Silas (Filqueiras) todo mundo conhece, começou, sumiu um pouquinho, e voltou agora muito bem, o trabalho que ele apresentou no Barra Fashion foi incrível. Agora, são dois pólos, dois elementos que temos em foco: Vitorino, que acaba de chegar e já se estabelece como uma marca profissional, que faz uma mágica; não de uma hora pra outra, mas de uma pessoa que vem trabalhando há muito tempo, mas que apareceu agora pra mídia. Quando vi na sala a primeira coisa que Vitor fez: (imita): “Ah, professora porque eu quero lhe mostrar uns croquis que eu fiz...”. Eu pensei, “Não. Tem alguma coisa errada! Como é que ninguém viu o croqui?” Aí ele me mostrava o editorial que fez sozinho, com uma fotógrafa em Feira de Santana, um trabalho extremamente profissional. Dito e certo. Assim que teve a primeira visibilidade, nunca mais parou. Mas são dois processos criativos diferentes. De pessoas mais desconhecidas e que podem ter uma propulsão de mercado... às vezes é perigoso, porque um trabalho de sala de aula que é bom, mas a pessoa não consegue mercado...Tem Nália Portela,que ainda não ganhou concurso nenhum, mas é incrível o trabalho dela, sobre indumentária eclesiástica, faz uma análise pra transformar em coleção de moda e em editorial com referência no rock’n roll e no desenho dos games. A menina é uma monstra! Eu acredito que assim que ganhar um concurso não vai ter pra ninguém! Porque lê muito, pesquisa, escreve, costura e constrói imagem de moda para editorial.

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