Corpo de festim [antropoemas]

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– espelho, agulhas, frutas – (em seguida, em “Retrogressão”); é a caracterização, digamos assim, da incerteza e ambiguidade inerentes a toda vida física. A viagem se iniciara manifestamente no útero, e a linguagem de Guarnieri se tensiona, quase sem mediações referenciais no esmiuçamento que chega ao cérebro (ou “sua esponja suja”, na estupenda imagem do autor). Aqui, à medida que ingressamos também no território de surda destruição que cerca o velho e todas as categorias de seres humanos (“sejam bem-vindos sempre / ladrões / pilantras / cidadãos de bem /amigos / esta é a hora da vossa própria estrangulação”), a gente recorda o desamparo e a sanguinolenta crueza do corpo no pioneirismo hiper-realista de Frida Kahlo (que rejeitava com veemência a atribuição de surrealismo a suas opções mais poderosas: era a “sua realidade” que ela expunha). Na verdade, há igualmente amplos sinais de hiper-realismo no trabalho de Guarnieri, e isso se pode observar claramente neste Corpo de festim, por sua anatomia plástica e intransigentemente figurativa: afinal, sua matéria-prima são órgãos do corpo humano, compõe-se deste, como, nas artes plásticas, a obra de outro inquietante artista do nosso tempo, o australiano Ron Mueck (*1958): vai além dele, porém, o poeta brasileiro, já que invade o organismo fisiológico e lhe retrata cada um dos componentes, desde o testemunho de sua fecundidade primeira em do óvulo revelado eva adentro, é toda fértil a terra materna, com essas duas últimas palavras de viva síntese cosmológica. Sabe, porém, que surpreende no sangue a dinâmica maior dessa temática vital: e sabe-o, mais ainda, sujeito à circunstância do tempo, em que tudo se faz e se desfaz: só o óleo dos glóbulos/passa ( o plasma )/quando não é pálido/( na ampulheta viva “[...] Apesar disso, de verbalizar a vida material em sua aflitiva fluidez, notemos um achado de aspecto curiosamente paradoxal, à beira da transcendência que insiste em marcar a fragilidade do humano: no texto do “crânio”, “trono [que] ocupa o topo desta cúpula / uma armadura de juntas, parcialmente recoberta por ranhuras em cruz, pelas quais, de sua furna interna ( o antro intracraniano )”, os vocábulos ‘trono’, ‘topo’,


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