segundaPRETA - caderno 2 (2017)

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de ferida aberta, os quatro atores do espetáculo discutem sobre as formas de fazer teatro negro. A arte discutindo si mesma. A arte como lugar em que esse riso “melancólico” se tensiona, buscando criar espaços para novas epistemes e narrativas, microproduções do desejo que interrompe com a passividade. Existe essencialismo negro, leitor? “Decifra-me ou devoro-te”. Sim. Comemoro também, reparem bem, desde o início desse texto, esse junho não de Brás Cubas, mas de Machado. Não sei se esse escrito terá cinquenta, vinte ou, quando muito, dez leitores, mas… Um pingo de retidão crítica a la Machado: “há o entendimento torto de que a produção artística negra se associa, somente, à religiosidade de matriz africana ou a males sociais, lançando muitas das produções num folclore (estático e histórico)[…] o pré-entendimento de que essa produção possui formas e “conceitos estéticos rígidos”, que, uma vez estabelecidos, propagam a falsa acepção do que é e do que não é arte negra.” Diego Pinheiro. Nos últimos dias, tenho pensado na relação próxima entre o leitor de literatura e o espectador de teatro. Assim como o leitor é criador no processo de leitura, o espectador também o é, ele se insere de maneira criativa e reflexiva não só no texto dramático, mas também na montagem das cenas ao inventar algo “novo” ou atualizar, pela imagem, o que foi e é encenado. Se pensarmos que a relação entre o artista e o espectador na segundaPRETA é tênue e ambígua, uma vez que é forjada na e a partir de uma mesma memória cultural – muitas vezes traumática – e que ambos, artista e espectador, se inventam e se constroem a todo momento como sujeito-artista-espectador preta/o, a fala de uma leitora-artista-espectadora, no momento do debate pós-peça, irrompe e traz à tona uma questão cara quando se pensa a arte contemporânea negra: como encenar de forma diferente os mesmos dramas? A espectadora argumenta que o público da segundaPRETA, na sua maioria, já passou e/ou passa pelas situações apresentadas em cena, ou seja, são ultrainiciados no racismo institucionalizado. Logo, como encenar essa ferida aberta de maneira outra, que não usando o discurso, palavra-poder já colocada para construir uma narrativa deslegitimadora da cultura negra? Como surpreender essa espectadora? Como 85


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