Almoço de domingo - filipe lutalo (2019)

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ALMOCO , DE DOMINGO Filipe Lutalo

Ilustrações de Edusá

1a edição Contagem/MG Filipe Lauro Dias 2019

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Catalogação na Publicação (CIP) __________________________________________________________________________________________ L973

Lutalo, Filipe Almoço de domingo [recurso eletrônico] / Filipe Lutalo ; ilustrações de Eduardo Sá. – 1. ed. – Contagem (MG) : Ed. do Autor, 2019. Recurso eletrônico

Formato: PDF Requisitos do Sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web ISBN 978-65-901079-1-6 (recurso eletrônico)

1. Literatura juvenil 2. Ficção brasileira - contos I. Sá, Eduardo II. Título

CDD: 808.899282 __________________________________________________________________________________________ Bibliotecária responsável: Cleide A. Fernandes CRB6/2334


No céu é sempre domingo. E a gente não tem outra coisa a fazer senão ouvir os chatos. E lá é ainda pior que aqui, pois se trata dos chatos de todas as épocas do mundo. Mario Quintana



Ă€s minhas mĂŁes: Gracinha, sempre guerreira; Laurinda e Marta, que sempre tiveram histĂłrias para contar.



Ao meu amigo Jorge, que fez a travessia e nunca se esqueceu de me olhar com ternura e dizer: “Escreva, eu quero ler�.



Sumário 11 ... Prefácio 17 ... Notas do autor 23 ... Voto 29 ... Dia de finados 33 ... Na casa da sogra 39 ... A filha quase pródiga 41 ... O frango e a cana-de-açúcar 47 ... O clássico 51 ... Fedapulto 57 ... O velho cocheiro 63 ... Dia das mães 67 ... Almoço de Natal 71 ... O tio de mentira! 75 ... Mousse de limão 79 ... Telespectadores de concreto 83 ... Caiu no poço 87 ... Barão 91 ... Cirurgia de catarata 95 ... Infantes de domingo 97 ... Almoço de domingo 105 ... Encontros e despedidas 9


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Prefácio

Almoço de domingo, tradição entre nós. Nele o que, decerto, mais importa é o sentido da comunhão, da comensalidade em família; da partilha de afetos – e mesmo desafetos –, de expectativas e projetos. Ali, nesse momento que reúne múltiplas temporalidades, a oportunidade de elaborar memórias e atualizar os sentidos da existência. As histórias que, generosa e habilmente compartilha conosco o autor, poderiam ser corriqueiras, comuns a qualquer família brasileira. Mas – neste ponto, tomo a liberdade de sugerir a você leitora ou leitor, que volte a este Prefácio em outro momento, caso deseje vivenciar, em sua originalidade, a experiência de leitura destas histórias –, o que se apresenta aos nossos sentidos, neste livro, é de outra natureza. Filipe Lutalo evoca, em narrativas primorosas, a agência de pessoas que, como já anunciava Leda Maria Martins, em seu Afrografias da Memória, trazem inscritos em seu corpo/corpus africano e de origem africana “os signos culturais, textuais e toda a complexa constituição simbólica fundadores de sua alteridade, de suas culturas, de sua diversidade étnica, linguística, de suas civilizações e história”. Gente que teve e tem sua humanidade ameaçada pela violência do racismo que fundamenta e estrutura a sociedade e as relações de poder nela constituídas e que, graças à capacidade de transfluir, de se recriar a 11


partir das referências culturais ancestrais, constituem contraponto transgressor aos projetos coloniais – leia-se, ainda, de modernidade e desenvolvimento econômico de modelos excludentes. Pois, a despeito das opressões cotidianas que constituem traço de continuidade histórica entre os povos de origem africana e das comunidades originárias do continente americano, as raízes culturais desses povos é vigorosa a ponto de que seus textos, como segue afirmando Leda Martins, inscritos nos corpos/corpus, permanecem, “mesmo que atravessados pelo palimpsesto do outro (do colonizador)”. A escrita de Lutalo se nos apresenta como um portal, através do qual nos é dado vislumbrar as diferentes camadas daquilo que historicamente nos oprime – também enquanto sociedade. Ao acessá-las, somos profundamente afetadas por uma experiência dolorosa, por vezes, mas conduzida com o cuidado e a maestria de quem sabe que tem na palavra a possibilidade curativa da poesia, da potência criadora da interlocução com quem lê. Um portal, sim, ao qual atravessamos para vivenciar, junto às personagens e suas histórias, experiências que se nos apresentam também como memória que nos reporta ao diálogo passadopresente-futuro, de maneira por vezes catártica. Pois, com efeito, tal como a personagem que deixa para trás um objeto que evoca uma “triste flâmula mortuária”, algo ali se finda, para germinar em liberdade. A dimensão individual dessa experiência, contudo, nas narrativas de Lutalo, estão imbricadas naturalmente nas vivências familiares das personagens. Sem isto, o senso de pertencimento quando, por alguma razão, ameaçado ou 12


impossibilitado repercute em desenraizamento, em ausência de sentido à própria existência. É no seio da família, em suas mais diversas configurações e nem sempre limitadas por Chronos, mas em diversas vezes matizadas por Tempo/Iroko, que se projetam e reformulam as identidades individuais e coletivas. Ali, a possibilidade de rememorar e reelaborar os elementos de africanidade que desde as origens constitui cada corpo/corpus – esse corpo que assim consagrado e protegido, pode lançar-se ao mundo e transformá-lo. As cidades – Ouro Preto, Belo Horizonte –, enunciam-se como espaço-tempo de narrativas que evocam elementos de representação ficcional de realidades que se desdobram em experiências sociais mais amplas, para além dos limites do urbano. Quanto a Belo Horizonte, em especial, literatos e memorialistas já a tomaram como “palco” ou inspiração para suas obras. Contudo, diferentemente destes autores, Lutalo traz à cena uma Belo Horizonte historicizada a partir da narrativa ficcional protagonizada por mulheres, homens, pelos mais novos e pelos mais velhos – todas/ os pessoas negras, em relação com uma sociedade racializada e fortemente orientada pelo referencial de poder da branquitude. O autor insere-se, neste aspecto e pela qualidade com que o desenvolve, a uma tradição que se apresenta em obras literárias de autoria negra como as de Conceição Evaristo, Cidinha da Silva e Toni Morrison. A cidade que se dá a ler nos corpos, no pensamento, nas falas, nas agências, enfim, das personagens desse Almoço de Domingo é a que, inelutavelmente, têm expostas suas feridas antigas. Afinal, a capital projetada para comunicar os signos 13


da modernidade e do progresso, em contexto de PósAbolição e do golpe da instauração da República Brasileira, já nascera fundamentando-se na segregação racial do espaço e no aniquilamento da existência simbólica da população negra que existia no antigo Curral Del Rey e daquela que se avolumava no imenso canteiro de obras que se tornara o lugar, desde 1894. Os ecos desta violência histórica são perceptíveis nas interdições que se apresentam à trajetória de personagens como a trabalhadora doméstica Ângela; ou na expressão de racismo religioso tão cuidadosamente abordada em “Fedapulto”; ou ainda, nas agruras do amor cerceado pelos condicionamentos sociais, em uma relação interracial. Frente a tudo isto, desenvolve-se a astúcia, a sabedoria política das personagens – especialmente das mulheres –, forjada e empregada na tessitura cotidiana da liberdade: Dona Gracinha; a mãe que leva as crianças à Festa de Ibeji; Don’Ana; Dona Marta, a santa! Que do alto de seus 92 anos anuncia: “Que Deus abençoa a todos nessa casa. Quem está com Ele, encontra a felicidade!” Com todas elas, aprendemos sobre um tipo de poder que, mesmo em condição de ameaçadora e profunda adversidade, torna possível que nasçam flores na rachadura da vida. Na cidade produzida e narrada por gente de origens africanas, os signos da ancestralidade se inscrevem também nos modos de morar – o lote com três casas familiares, os elementos africanos, recriando o domus, em Diáspora: cabeça de boi descarnada, pintada em preto e vermelho, de festejar, de conexão com o divino. Mas na mesma cidade, o direito sagrado ao morar é ameaçado e não passa despercebido aos olhos do autor. 14


No aprendizado das resistências cotidianas a que esta obra nos convida, há uma que merece atenção especial. Uma é a leveza das crianças, a que o autor nos conduz de maneira tão delicada e por isto mesmo registrada como acalanto em nossos sentidos. Ele nos diz, deste modo, sobre a importância da ludicidade evocada pelas memórias da infância a nos sinalizar que também no emaranhado das subjetividades constituídas na experiência do racismo, há que se cuidar do pensar “confuso”, em ebulição, das crianças – ali reside o cerne da agência na confabulação de outras formas de ser. Em tempos de agravamento de sistemática violência e de elevação dos índices de letalidade contra pessoas negras – em especial dos jovens negros – um dos méritos especiais deste livro é inspirar o fortalecimento do afeto emancipatório entre nós. A você que, tendo aceito ou não minha sugestão inicial, chegou até aqui, desejo que seja bem acolhida (o), como fui, pela força transformadora da experiência estética desta obra.

Josemeire Alves

Belo Horizonte, maio de 2019.

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Notas do autor

O domingo é o dia que a família brasileira e muitas outras no mundo escolheram para se reunir. É um dia de encontros e desencontros. Poderia ser no sábado. Mas sábado ainda é um dia útil, ou meio útil, nunca sei. De qualquer forma, o dia do Senhor é aquele que todo mundo vai visitar avós, tios, amigos da família, que seu pai e sua mãe insistem para que você os chame de “tios”. Quando falo de “Almoço de Domingo”, não quero dizer somente daquela hora em que os talheres batem nos pratos, os copos de sucos ou refrigerantes são servidos, a comidinha caseira de vovó é devorada avidamente ao som de exclamações de “delícia”, de “hum”. Falo, também, das horas que precedem a chegada, do tempo de permanência e do convívio. Ah! No convívio estão as relações, os afetos, os amores e o ódio, sentimentos que presidem as horas de brincadeiras com os primos, as brigas e as despedidas. Amargas despedidas. Dependo da idade, essas horas de seio familiar são agradáveis. Às vezes, intermináveis, porque alguém, de muito bom senso, resolveu resgatar aquela estória antiga que lhe deixará muito envergonhado. À medida que envelhecemos, esses encontros começam a se tornar mais espaçados. O círculo de amizades, responsabilidades e preguiça aumentam. 17


Outrora, é a nossa paciência que não está lá essas coisas, afinal, vivemos na sociedade do estresse. Há também a internet, um obstáculo para que os encontros de família aconteçam. É fácil suprir a saudade com horas de bate-papo pelo “chat” do “Facebook”. Senão, basta dar uma espiadinha na “timeline” dos parentes que você saberá de todas as novidades. Fulano viajou! Beltrano passou no vestibular. E Ciclano? Ah, esse não deu em nada. Continua o mesmo imprestável e vagabundo de sempre. Mas, chega uma hora que não tem como escapar. A vovozinha que não acessa as redes sociais e não possui “WhatsApp” lhe manda um recado pelo seu primo para que você apareça. Não é apenas um recado. É uma intimação! E acompanhada de chantagem. “A vó mandou perguntar se você vai esperar que ela estique as canelas para ir vê-la?” Você sabe. Seu primo não inventou nada. Ele apenas repetiu as palavras, com uma entonação sarcástica e repreensiva. Chegou a hora. Tirar o domingo para ficar com a vovó e o resto da família.

Filipe Lutalo

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Voto

Maria das Graças (ou Gracinha) levantou-se cedo, apreensiva. Nem dormiu. Estava ansiosa para caminhar até a seção eleitoral e cumprir seu dever cívico. Aquele de digitar os números de candidato para presidente na urna eletrônica e, em seguida, apertar o botão verde para confirmar o voto. Era uma senhora simples, mas que sabia das coisas. Negra, viúva, já na casa dos sessenta, tinha quatro filhos criados e formados na faculdade e, por isso, carregava aquele ar de dever cumprido. Todos no bairro conheciam a sua façanha. Alguns vizinhos a admiravam, outros, nem tanto. Desconfiava que estes, os invejosos, fizessem feitiço, mas se protegia com um santinho de São Jorge em sua bolsa e todas as noites rezava o padre-nosso, a ave-maria e o credo. Às vezes, até acendia uma vela para as almas. Em seu caminho até as urnas, vários encontros com vizinhos e conhecidos do bairro. Deve ter cumprimentado uns cinquenta em poucos minutos de caminhada. “Mãe, porque não se candidata a vereadora?” – lembrou-se das palavras de seu filho que ficava impressionado com a massa de pessoas que conhecia a “Maria das Graças”. 23


— Oi, Gracinha, está cedo. Já vai votar? — Claro, vou cedo porque na volta passo na feira e compro as coisas para fazer o almoço. Sabe como é, hoje está todo mundo reunido lá em casa. Todos vieram votar e almoçar. — Vota direitinho, hein!? “Votar direitinho”, que expressão mais descabida! A frase daquela conhecida a encabulou. Será que votar era como escolher um sapato? Vai-se às lojas Elmo, compra-se um par de bons sapatos e descobre-se que ele a aperta o joanete. O sapato é fácil de lidar, o candidato escolhido não é. Esse é eleito para administrar o país por quatro anos e Deus sabe o que ele vai fazer com tanto poder. Será que a pessoa escolhida era a certa? Maria das Graças agora estava atormentada. As propagandas políticas dos dois candidatos que disputavam o segundo turno para Presidente eram como um confronto de traficantes na favela. Tiros que não acabavam mais. Denúncia de corrupção, improbidade administrativa, xingamentos de ambos os lados — a velha baixaria. O candidato escolhido seria o certo ou apenas votaria no “menos pior”? As opções eram tortuosas. Votar no candidato da situação e que concorria à reeleição ou no da oposição, antigo governador de seu estado. Com qual se identificava mais? Difícil saber. Todos sabiam fazer promessas mas, cumprir o prometido era outra história. Sua sessão eleitoral estava cheia. Enquanto esperava na fila, outra conhecida passou e a cumprimentou. À sua frente, um homem com a camisa do candidato da oposição fazia campanha para seu 24


escolhido. Alguns se opunham a ele. Parecia que a qualquer momento estouraria uma guerra nada fria. — São todos uns burros quem reeleger esse governo corrupto! - esbravejava o homem. — Você não sabe de nada! Vai votar em quem construiu um aeroporto para a família? - retrucava outro. “Achei que fosse proibido fazer boca de urna” – pensou Maria das Graças. As pessoas se polarizaram em torno de duas ideologias que, grosso modo, não tinham muita diferença. O importante era discutir. Enfim, a fila começou a andar. Uma senhora bastante idosa e amparada pelo braço por sua filha, também avançada nas primaveras, saiu da sessão. Possivelmente, tiveram dificuldade. Os mais velhos, acostumados a votar na cédula de papel, sempre se embaralhavam na hora de apertar as teclas. Dominar a urna fazia Maria das Graças sentir-se jovem. Era apertar dois números, visualizar a foto do candidato, confirmar na tecla verde. No bolso, tinha um papel com o número de seu escolhido anotado. Não faria feio, não esqueceria. Chegou a sua hora. Entrou na sessão eleitoral, uma sala de aula do colégio estadual pela qual seus quatro filhos passaram. As paredes eram de tijolinhos vermelhos à mostra. As esquadrias de ferro pintadas de verde. As carteiras estavam empilhadas no fundo para deixar livre o espaço até a urna. Entregou o título e a carteira de identidade para os mesários. Assinou o livro de votação. Dirigiu-se para a urna. Apertou o número do candidato e viu a imagem do seu escolhido aparecer. Apertou a tecla 25


verde. Dever cumprido. Pegou o comprovante de votação. Saiu da sessão eleitoral. Imediatamente foi para o mercado. Comprou tomates, alface, cebolas e outros ingredientes para o preparo do almoço. Em casa, mãos à obra. O cardápio seria arroz, pernil assado, farofa de ovo refogada na manteiga e cebola, salada de alface-crespa. Não podia esquecer um molhinho para regar a carne. Para a salada, apenas o bom azeite e o vinagre balsâmico, iguaria introduzida na dieta há pouco tempo. Enquanto cozinhava, sentia-se realizada. Em sua infância, só arroz e chuchu para comer durante a semana. Muitas vezes, ela e seus cinco irmãos saiam para catar vagem mangalô em lotes vagos. Aos domingos, sua mãe fazia arroz, feijão batido e macarronada com molho de tomate e, quando muito, acrescentava uma sardinha para variar o sabor. Matava-se uma galinha gorda apenas quando a coitada parava de botar ovos. Mais coitada que a pobre era uma família que tinha que esperá-la parar de botar para comê-la. Os filhos chegaram. O mais velho trinta e cinco anos a beijou no rosto. — Bênça, mãe! Tudo bem? — Tudo bem, filho. — Como está o coração? — Está bem. — E essa cara? — Nada, só estou cansada. Muito remédio. — Oi, Gracinha, tudo bem? Saudade! — Mary era uma amiga de seus filhos que chegou acompanhando 26


o mais velho. Ele a trouxe para o almoço. “Bem que ele podia ter avisado” — pensou Maria das Graças. Todos se sentaram em volta da mesa da copa. Começaram a discutir em qual candidato haviam votado. Os ânimos se exaltaram. Ela olhou para eles e viu cinco crianças brigando para provar quem estava certo. Todos com mais de trinta anos, perdidos em uma discussão infantil. Começou a colocar os alimentos sobre a mesa. Então, todos olharam para Maria das Graças. Seus olhares suplicavam para que a mamãe colocasse fim à discussão. Que falasse qual dos filhos estava certo. — Então, mãe, em quem a senhora votou? Maria das Graças olhou para eles estupefata. Será que eles não aprenderam nada na faculdade? Decidiu ensinar-lhes. — O voto é secreto. Alguém quer pernil?

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Dia de finados

Estava parado de pé em frente a um túmulo cujas palavras grafadas na lápide diziam: “Nílson de Souza (1931-1965)”. O túmulo pouco tinha a ver com ele. Nílson era o nome de seu pai, também já falecido, mas o sobrenome da sua família era “de Deus”. O homem fitava a fotografia em preto e branco em um pequeno porta-retrato de vidro incrustado no granito da lápide. O trabalho era bem-feito, mas o vidro transparente não a protegeu do sol. A imagem estava quase apagada. Uma grama bem aparada e verde cobria toda a sepultura. Um cravo, ainda fresco, repousava sobre ela. Talvez tivesse sido deixado por um parente neste mesmo dia. Aproximou-se da lápide, sem pisar na cova para não profanar a ossada ali sepultada a sete palmos. Não que o morto iria se importar, mas sabe-se lá. Fitou bem a foto do dono da sepultura. Ele falecera com trinta e quatro anos. A mesma idade que o seu pai tinha quando deixara essa vida. O morto tinha os cabelos pretos e lisos, olhos escuros e pele branca. Vestia um terno e uma gravata lisa. Realmente, aquele homem não era o seu pai. O seu nunca andou de terno e gravata, tinha cabelos pretos e cacheados. Usava calça boca de sino e camisa aberta até o meio do peito. Eram as lembranças que tinha e a imagem que fotos antigas eternizaram. Quando chegou à secretaria do cemitério, 29


perguntou sobre Nílson Anunciação de Deus, falecido em 1984. A pessoa que o atendeu logo perguntou: — Vocês compraram um jazigo perpétuo? Óbvio que não. Pobre não compra jazigo perpétuo. É enterrado em uma cova e, após cinco anos, toda a ossada é removida para um ossuário coletivo. Entretanto, o homem só queria a confirmação: — Nílson Anunciação de Deus foi enterrado aqui? — perguntou novamente. Sentia-se desconfortável em estar ali. O que procurava? Seu pai tinha morrido há trinta anos. O atendente olhou sem esperança para alguns livros de registros, bastante empoeirados e comidos por traças. Com muita preguiça, pegou um deles. Uma traça correu sobre a página aberta. Procurando no ano de falecimento, o atendente anunciou: aqui.

— Não tem nenhum Nílson Anunciação de Deus

— Como não!? Minha mãe me garantiu! — retrucou o homem. Com a sensação de ter perdido sua manhã de dia dos pais, saiu da recepção. Porém, antes de voltar para casa, resolveu andar pelo cemitério. E se deparou com o túmulo do outro Nílson. Ajoelhou-se, ao lado da cova. Lembrou-se do dia que anunciaram que seu pai havia morrido. Naquela época, com quatro anos, tinha a inocência da infância. Caminhava na rua de mão dada com sua avó paterna. Eles iriam à mercearia comprar balas. Subindo a rua, em sentido oposto, vinha uma prima. Ela parou e encarou a velha senhora de cabelos brancos e olhos azuis. Depois, olhou para seu primo pequenino. Ela não esperava encontrar a criança. 30


Tinha sido incumbida de dar a agourenta notícia para a avó. — Você viu o meu pai? — adiantou-se o menino. Desconcertada, a prima não sabia o que falar. Tinha vindo pelo caminho ensaiando as palavras certas, mas agora elas fugiam de sua mente. — Não, mas recebi notícias dele. Ele foi embora. Nunca mais voltará. Aliviada por ter conseguido dar a notícia, abraçou a avó. As duas choraram ali mesmo, na calçada. Mas o menino não chorou. Não acreditou naquela mentirosa. Seu pai o amava e nunca o abandonaria. Mas ele não voltou. O desgraçado nunca mais voltou. Não foi ao enterro. Não foi à missa de sétimo dia. Muito menos foi ao cemitério no dia de finados para dizer quanta falta aquele pai ingrato fez. Ou para cuspir em sua cova e xingá-lo por ter abandonado a esposa com cinco filhos e a sogra. Em sua casa, pouco se falava sobre. Sua mãe trabalhava para sustentar os filhos. Na rua, antigos amigos de seu pai comentavam quando, com a mochila de escola nas costas, passava em frente ao boteco. — Lá vai o filho do Nílson Caraca. Sua mãe, depois, explicou o motivo do apelido. Seu pai e sua avó não eram muito adeptos do banho e a sujeira deles era vista a metros de distância. Outros ainda diziam: “Olha, o filho do Nilson. Grande pescador!” Ou então: “Seu pai era um cruzeirense chato”. E sua mãe, novamente atormentada pelas perguntas de um filho que insistia em juntar lembranças de um pai falecido, respondia: 31


“Seu pai pescava no Pantanal”. “Era torcedor do Cruzeiro”. Assim, o menino se tornou aquele homem ajoelhado ao lado da cova de um Nílson qualquer. Não sabia o que era luto. Entretanto, conhecia no seu âmago a dor da ausência e do abandono. Seus olhos marejaram. Lágrimas queimaram a sua face. Lembrou-se da sua trajetória. Uma infância sem pai, numa casa com a sua avó, sua mãe e suas quatro irmãs. De trabalhos escolares que, nos Dias dos Pais, eram feitos para alguém que tinha ido embora e que o forçavam a entregar de presente para um tio ou para a mãe. — Eu queria era entregá-lo a você – falou o homem ali de joelhos, perante a cova de outro Nílson. — Você não foi embora, pai. Simplesmente, morreu. Senti sua falta, lá no fundo. Por muito tempo, queria que estivesse aqui. Hoje, penso que, se estivesse vivo, eu não seria o que me tornei. Só queria lhe falar o que não tive oportunidade de lhe dizer quando estava vivo: “Feliz Dia dos Pais”. Com certeza, Nílson de Souza não se queixou de receber o desabafo de um estranho e que agora se afastava, caminhando entre os outros túmulos.

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Na casa da sogra

Quando Arthur molha o umbigo na pia, não há talheres ou panela que fiquem mal lavados. Tudo brilha, reluz, ao ponto dele enxergar a pele preta, o nariz achatado, os olhos castanhos arredondados e o rastafári bem cuidado, preso em um rabo de cavalo. O avental conferia uma certa delicadeza ao corpo forte e atarracado. Às vezes, ele enxergava até o que não gostaria de ver: a própria alma. Estavam todos na área de churrasco. Almoçaram o frango ao molho pardo que a sogra cozinhou. Enquanto ela e as filhas fumavam e jogavam palavras ao vento, ele assumia a tarefa de dar cabo da louça. O sogro, sorrateiramente, esgueirava-se para a rede e começava a sesta. Acostumado a ser servido, insistia que isso continuasse em sua velhice. A pia era o que restava à Arthur. Desde que começou a namorar Soraya, percebeu que a relação com a família da moça seria conturbada. A sogra o olhou de cima e anunciou: “Não é por causa da sua cor, mas eu não gosto de você, ainda. Gosto da minha filha. Te darei uma chance de me conquistar”. O sogro apenas falou: “Fazer o quê?, Respeito as vontades da minha filha. Prazer.” A educada frieza dada a Arthur não passou despercebida ao casal. Nas festas de família, ele era o 33


único preto. Todos se referiam a ele como um negro de primeira linha. Nunca rendiam muito assunto. Poucos acreditavam que ele cursava o terceiro período de Direito na Universidade Federal. Sempre que começava um assunto, o cortavam e diziam ser catedrático demais. Voltavam para o truco, o futebol, as mulheres. A família apenas se inflamava para discutir algo sério quando o assunto era cotas. Unanimidade: todos contra. “Racismo reverso”, era o que diziam. Certo dia, enjoado dos assuntos medíocres e ébrios, entrou na cozinha e se deparou com a sogra, dona Arminda, enrolada com o almoço. O restante da família estava no quintal, alheio à dificuldade da matriarca. “Precisa de ajuda, dona Arminda”. “Não, pode deixar, estou meio enrolada e o gás acabou. Ninguém aqui presta para trocar o botijão”. “Deixa comigo, eu troco.” “Me dá essa batata, eu descasco. É para a maionese?” “Enquanto, a senhora vai cozinhando, eu lavo. No final, ficam apenas os pratos.” O almoço saiu. Ficaram os pratos, que também foram lavados por Arthur. Dona Arminda ficou agradecida e passou a lhe dar a posição de “quase da família”. O filho que não tivera. Desde então, Arthur passou a ajudá-la a cozinhar e depois com a louça. O método que ele usava para deixar tudo brilhando era sofisticado. Primeiro, lavava o que não tinha gordura, ranço. Depois, com muito sabão, lavava o resto. Separava tudo na pia pelo grau de sujidade. Copos, talheres, vasilhas de plástico, panelas. Começou o esfrega-esfrega pelos copos de vidro. Ensaboou todos e, depois, enxaguou-os, dois a dois. O líquido do primeiro era despejado sobre o segundo para retirar o excesso de detergente e economizar 34


água. Por fim, um arremate e não sobrava um resquício de sabão. — O Bruno Gagliasso está lindo na novela – falou a cunhada. — E não está!? Ah, se eu tivesse chance... – completou Soraya. — Filha, olha como fala perto do seu marido – repreendeu Dona Arminda. — Mamãe, Arthur não é ciumento. Eu amo esse negão. Um dos copos, em meio ao enxágue, escapuliu da mão de Arthur e espatifou na pia. — Amor, é para lavar. Não é para quebrar – zombou a esposa. Arthur desculpou-se. Foi buscar um jornal para embalar os cacos, mas ele não conseguiu embalar o amor-negão. As mulheres continuaram a conversa sobre o dote peitoral do galã televisivo. As cenas de amor. A pegada dele. Cacos no lixo, Arthur continuou o processo. Agora ensaboava as vasilhas de plástico. Enxaguadas, foram para o escorredor. — Filha, e o meu netinho? — Mamãe, Arthur e eu estamos conversando sobre isso. Achamos que vai demorar. — Não me diga que… — Não, Marlene, estamos bem. Só estamos com medo de colocar um filho nesse mundo racista — Arthur teve um sobressalto na pia. — Ah! Irmã deixa de mimimi. Sabe muito bem que em nossa família, não tem nada disso. 35


— Amor, que aconteceu aí? Você se cortou? Está distraído hoje! A mão ferida por uma faca encontrou o sal grosso. O sangue tingia-o de carmim. Algo dentro dele se esvaia pelo corte. O desejo de ser pai era grande. Ele e a esposa haviam conversado muito e a resposta era sempre negativa. As desculpas dela se revezavam. Hora as dificuldades financeiras, hora o medo de não aproveitarem a juventude. Nunca falaram sobre racismo. Se dedicou às panelas. Tirar toda a gordura, o ranço. O trabalho era executado com esmero. Arthur olhou para o fundo de uma panela limpa. Observava como a película de água escorria sem formar bolhas, nada de gordura. No fundo, apareceu o seu rosto, uma imagem sem forma. — Mamãe, você tem razão, acho que está na hora.— falou a esposa. — Isso, filha. Sabe que mulher tem prazo. Já até imagino ele loirinho igual a um querubim – respondeu a mãe. — De olhos azuis, seria lindo! — falou a mulher, empolgada. — Irmã, me imagino mordendo aquela bundinha rosadinha. — Casa de novo, Soraya. Ou não percebeu que nossos filhos serão pretos? Pretos como eu. De olhos castanhos, como os nossos. Se quer um filho branco e loiro, de bundinha rosadinha, casa com o Bruno Gagliasso. Comigo, não vai ter. Será que é por isso que adia a gravidez? Não sabe como serão? Ou sabe? — falou a imagem de Arthur, refletida no fundo da panela. 36


O sogro acordou, não sabia o que dizer. A cunhada olhava para Arthur e pedia calma. Soraya, com os olhos cegos pela sua brancura, gaguejava um “não quis dizer isso” como desculpas. — Auto lá, negão! Aqui em casa, pássaro-preto não canta de galo – seu Joaquim, o pai, se manifestou. — Senhor Joaquim, melhor o senhor secar as louças. Arthur deixou a panela sobre a pia, passou pelo sogro e jogou o pano de prato para ele. Dirigiu-se para a rua. Não aguentava mais ficar ali, na pia, o lugar permitido. O avental, estampados com jacintos, ficou pendurado no portão da casa e ali balançava como uma triste flâmula mortuária.

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A filha quase pródiga

— Mãe, decidi voltar a morar com você. — Decidiu? — Não pode? — Claro, filha, mas… — Não se preocupe. Já pensei em tudo. — Em tudo? — Sim. Em tudo. Só preciso de um quarto e um lugar para montar o ateliê. — Mas… — Pensei em ocupar o quarto da Joyce. Ela se mudou, não? Foi morar com o namorado. — Foi, mas… — Mãe, ela é mesmo folgada, né? Muda e deixa as tralhas dela para trás. Brin-ca-de-i-ra, pô! — Não, é que… — Não se preocupe, mamãe. Senti que precisava voltar. A senhora está precisando de mim. — Eu!? — Sim, claro, por que não? — Precisando? — Sim, de ajuda. 39


— De ajuda? — Mamãe, já percebeu que, depois que me mudei, essa casa virou uma bagunça? — Acho que está do mesmo jeito. — Tá nada, mãe. Veja só, parece que essa sala não vê uma vassoura há dias! — Parece? — E seu filho é tão imprestável, tão imprestável que é incapaz de pegar na vassoura. — Ele está dormindo. Chegou tarde. — Claro, né!? Aposto que estava com alguma vagabunda. “Take it easy”, mãe! Já pensou como deus escreve certo por linhas tortas? — Hã? — Sim. Se eu não tivesse perdido o emprego, não poderia voltar para cá e te ajudar. — Aham! Estou vendo. — Mãe, acho que a senhora não gostou. — Não, filha, é... eu adorei. Só que… — Ai, mãe, que bom que a senhora concordou. Vai fazer o quê de almoço hoje? — Lasanha… — Ai, mãe, que saudade dessa lasanha de domingo. Hummmm…

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O frango e a cana-de-acúcar ,

Todos os domingos, na parte da tarde, Dona Noêmia se sentava na escada da cozinha, a que dava para os fundos da casa, com uma faca na mão e um pedaço grande de cana colhida no pé plantado em um canto do quintal. Antes de colher, ela passava a faca no cimento da escada. De um lado para o outro. Do outro para o lado. Ia e voltava com a lâmina até que estivesse bem amolada. Depois, com o dedão, pressionava de leve o fio da faca, atestando o trabalho. O barulho do aço raspando o chão era suficiente para chamar a curiosidade dos cinco netos, que ficavam na expectativa. Mas, naquele domingo, Dona Noêmia começou o trabalho de amolação da faca antes do almoço. Os netos estavam na rua, jogavam futebol na viela recém-asfaltada, algo que era uma sensação para toda a vizinhança. Dona Noêmia tinha uma missão dada por sua nora, Silvana: a de preparar a carne de almoço. E lá estava a carne. Coberta de penas brancas e uma crista vermelha. Ciscava em busca de minhocas suculentas. Bicava um raminho de capim ali, outro acolá. Mandava para o papo um tatuzinho bola, uma lacraia ou uma pedrinha. Se alguém chegasse perto, a carne, digo, o frango esbanjava o seu desejo de 41


virar galo. Cacarejava e riscava a terra, batia as asas e mostrava as esporas crescidas. “Esse terreiro é meu! Cocoricó” — era o que dizia o galináceo. Ele chegou à casa ainda pintinho. Penugem amarelinha, quase branca. Assustado e com seus dois irmãozinhos. Muito bem, pode ser exagero falar que pinto de chocadeira possui irmãos, pois, nem sabemos se vieram da mesma galinha. O que importa é que os três eram muito parecidos e cada um deles era fruto de troca de uma garrafa de cerveja com o catador de ferro-velho. Na residência da família, os três pintinhos viraram a sensação das crianças. Foram bem cuidados. Receberam canjiquinha todos os dias e restos de alimentos do almoço e do jantar. Quando as crianças estavam em casa, o que compreendia o período da tarde, os pintinhos praticamente não sabiam o que era o chão. Ficavam passando de mão em mão até que Silvana, a mãe, mandasse que os filhos deixassem os pobrezinhos em paz. O primeiro pinto morreu. Foi um dia de tempestade, o bicho esqueceu-se de voltar para o galinheiro improvisado em um antigo banheiro e morreu de frio, ou afogado em uma poça de água. Ninguém soube explicar. Apenas encontraram o corpinho ensopado. Foi um chororô só. As crianças lamentavam a morte do bicho. Abriram uma cova, rezaram o pai-nosso e fincaram uma cruz de gravetos amarrada com barbante na cabeça da sepultura. O lamento só passou depois da cerimônia fúnebre. O segundo durou mais tempo. Duas semanas. Ele simplesmente desapareceu. Não se encontrou nenhuma pena para servir como pista. Como o pinto era muito pequeno, suas pegadas eram impossíveis de serem seguidas pelas crianças que se tornaram detetives de fim 42


de semana. Durante toda a tarde, eles interrogaram a mãe, a avó, os vizinhos e a cadela Bolinha que apenas rosnava e não respondia nada. Repararam também que o gato do vizinho, um vira-latas cinzento com rajas brancas, parou de frequentar o muro que separava as duas casas. Por fim, concluíram. Foi o gato! Ele comeu o pintinho e, agora, era um foragido da justiça infantil. O terceiro. Esse era o galo. Sobreviveu à chuva, ao gato e aos excessos de amor. A penugem amarela estava branca. As esporas, grandes. A crista também. Essa maior que tudo. Já tinha esporado a cadela que nem chegava perto dele e as próprias crianças que já não conseguiam carregá-lo. O bicho era sorrateiro. Um vilão! Você estava distraído e ele vinha silencioso. Só cacarejava na hora do bote, ou melhor, a esporada. E, foi assim que ele recebeu a jura de vingança de Silvana, que tomou uma esporada enquanto torcia as roupas mergulhadas na água do tanque. — Dona Noêmia, passa a faca no frango que hoje ele vai para a panela. — Mas, Silvana, os meninos vão aguar. — Vão nada! Eles nem vão ver! Estão todos na rua e hoje não tem nada para servir de almoço! — Eu tenho uns cruzeiros guardados ali, pode comprar uma linguiça. — Não, Dona Noêmia, você já me ajudou semana passada. Além disso, tem remédio para comprar. — Tá bom. É melhor fazer agora, pois depois a carne dele vai ficar dura. — Pois é, isso mesmo. E esse vilão já está esporando todo mundo. 43


— Ele se vê como o dono do terreiro – caçoou Noêmia. — Se via, passa a faca que ele vai para a panela. Assim foi dada a sentença de matança. Noêmia cumpriu a ordem. Tinha experiência. Jogou um pouco de arroz cozido para o bicho. O infeliz, mais que depressa veio comer, com satisfação. Com um golpe, a senhora prendeu-o pelo pescoço e, com presteza, amarrou suas pernas. Uma vasilha estava pronta. A faca, amoladíssima, cortou a jugular do bicho. Enquanto o sangue formava um laguinho vermelho no recipiente, a água fervia em um caldeirão no fogão, isso para facilitar a retirada das penas. O bicho morreu, sem um pio. O frango, agora carne, foi escaldada, limpa e cortada em pedaços. Já estava dura, mas muito dura. Silvana decidiu fazer dele, do frango, um ensopado na panela de pressão. Temperou-o com todo o carinho, colocou salsa e cebolinha, um pouquinho de massa de tomate. Apurou o sal. Entretanto, nenhum plano é infalível. Alguém deu um chute forte na bola lá na rua. Ela tomou a direção do vento e caiu no quintal, local do frangocídio. Dona Noêmia tinha esquecido a faca e a vasilha cheia de sangue à vista. A bola, ao quicar em uma pedra, escolheu terminar seu percurso xna vasilha. Uma das crianças veio buscar o instrumento de brincadeira. Olhou para a cena. Sem dar uma palavra, pegou a bola ensanguentada e a lavou no tanque. Voltou para a rua e anunciou para seus irmãos e irmãs: “A mamãe matou nosso galo!”. Os cinco irmãos se olharam e permaneceram calados. Não derramaram uma única lágrima. Guardaram o ódio. 44


eles:

Exatamente às treze horas, Silvana gritou por — O almoço está na mesa, venham almoçar.

As crianças entraram. Lavaram as mãos e os rostos suados. Sentaram-se à mesa, calados. Serviram o arroz, o feijão e a maionese. Até quem não comia salada, colocou um pouco de alface e tomate no prato. A panela de frango ensopado ficou intocada. — Uai, gente, vocês não vão comer o cocó? – perguntou Silvana, com todo o carinho de mãe. — Está muito gostoso! — Não é cocó. “Sabemu”, é o nosso galo! – respondeu a caçulinha. E ninguém comeu o frango. As crianças, Dona Noêmia e Silvana, ninguém. Depois do almoço, todos foram para o quintal. Dona Noêmia, com a mesma faca que ceifou a vida da mascote da casa, cortou um pedação de canade-açúcar. As crianças se sentaram em volta dela e chuparam os gominhos. A tristeza se diluiu naquele caldinho doce regado à lágrima salgada.

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O clássico

— Bom dia, ouvintes da Rádio Favelinha! Estamos aqui, direto do campo Amarildo Social Clube. Arquibancadas cheias. A charanga não para de tocar. Até Papai Noel desceu no terrão de helicóptero da polícia, disparando para a multidão uma chuva de balas e confetes. O time visitante prepara para entrar no terrão. O UPP, formado inteiramente por seguranças do batalhão, vem vestido com camisa rubro-negra, calção preto, meião preto. O time da casa, nosso querido Amaril-dããão, formado pelos moradores da nossa comunidade, está de camisa azul e branca, calção azul e meião branco. Os juízes, todos de verde-limão. Como está o terrão, CamelÔÔÔÔÔ? — Negobala, o terrão está perfeito! Um vermelhão batidinho, sem buracos ou morrinhos artilheiros. As traves foram pintadas e a rede é novinha. A bola só vai pipocar naquele cantinho em que o mato tá um pouco alto. O sol não dá trégua, trinta e três graus nesse meio de manhã. Quem está pegando fogo é a torcida! Não para de cantar. Creio que o time visitante vai sofrer com o calor e com a pressão. E lá vem eles, Negobala. — Os dois times entram em campo, a torcida vai à loucura! Tiros (é pegadinha), foguetes estouram no alto do morro saldando o time da casa, nosso Amarildããão. E vem o time visitante, carregando uma faixa branca pedindo paz. Opa, vaias? Que nada, foram substituídas rapidamente por algumas palmas.... — A escalação, Negobala: o time visitante vem 47


de Peçanha no gol, Silva, Caveirão, Morteiro e Hélvio, na zaga. Capitão Dolores, Braga, Dias e Santos. No ataque, Cabo e Severo. Já o Amarildo foi escalado com: Muralha no gol, Anjo, Barraco, Fosso e Ligeiro, no meio. Trator, Thiago e Crack. No ataque está o trio fulminante formado por Bereta, Sócrates e Adriano. — Perfilam os jogadores para ouvir o Hino Nacional. Após o hino, teremos um minuto de silêncio em homenagem às vítimas dessa guerra sangrenta que hoje termina. — Início de partida. Bola pralá, bola pracá. Opa, é falta em Bereta! Na trave! Ataca a UPP. Cabo vai para cima de Fosso, passou, chutou… Muraaaaaaaaaaaaalha! Aguenta coração! O jogo está pegado. Nenhum dos times quer perder. Opá, estourou a confusão. Caveirão deu uma entrada assassina em Bereta. Como está a situação, CamelÔÔÔÔÔ? — Bereta se contorce de dor. Parece que vai para o necrotério. Chamaram o rabecão, mas o juiz ainda não autorizou a entrada. A confusão toda começou porque a falta foi dentro da área, mas Caveirão deu um passo para fora do recinto, alterando a cena do crime. — O juiz consulta o bandeira. É pênalti! É pênalti! A UPP vai pra cima do Bandeira. Cadê a polícia? Opa, são eles mesmos. E quem vai bater? É o Bereta, que milagrosamente voltou do cemitério. Correu, bateu, sambou. É gol! Que felicidade! É gol! O meu time é a alegria da cidade! Amaril-dããão, 1, UPP, 0. — Segundo tempo. O jogo está tenso. A UPP avança. A pressão é grande, implacável! Muralha salva uma, outra. Não deixa passar nada! Opa, o que aconteceu aí, CamelÔÔÔÔÔÔ? — Na batida de escanteio, Caveirão soltou uma 48


cotovelada em Muralha. O goleiro está caído, mas parece que vai se levantar. Amarelo, Caveirão está amarelado.” — A torcida pede a expulsão. As coisas não estão fáceis! Segue o jogo. São quarenta e três minutos. Amaril-dããão, 1, UPP, 0. Severo entrou na área, cortou muralha, bateu… tira com a mão Barraaaaco! Agora o Barraco caiu, tomou um soco na cara. Está todo mundo na briga! O Prefeito e o Secretário de Segurança Pública gritam: calma! A torcida pede o fim do jogo. Alguém liga uma mangueira e joga água nos cães raivosos. O trio de arbitragem foi para o vestiário. A água, os pedidos da torcida: tem criança na arquibancada, olha o exemplo! Parecem que surtiram efeito. — Negobala, alguém foi chamar o juiz. O jogo só termina no apito final. O Secretário quer o fim da partida. Está com medo que vire tragédia. Lá vem o trio de arbitragem: Barraco foi expulso. Nem precisou sair de campo. Está no banco com um bife de picanha no olho roxo. Caveirão foi expulso também! Os jogadores precisaram arrastá-lo para fora de campo. Ele grita. Está inconformado com o juiz. — A ordem está reestabelecida. Bola na cal! Quem vai bater é Capitão Dolores. Muralha no gol. Capitão Dolores contra Muralha, o goleiro que pega até aedes aegypti de olhos fechados! Tomou distância o Dolores. Cinco, seis, nove passos da bola. Não se houve um pio na torcida. Até a charanga parou o sopro. O samba morreu. Se fizer, fica tudo igual. Se perder, Amarildããão sai vencedor desse confronto histórico. Está todo mundo tenso. Bereta e Caveirão estão fazendo sinal no banco, um para o outro. Isso não vai prestar! A paz está ameaçada! Correu Capitão Dolores, fulminou o tiro… É gol! Que felicidade! É gol! O meu time é a 49


alegria da cidade! Converte Dolores. O juiz apita o fim do jogo! Caveirão e Bereta correm, um ao encontro do outro. Ai, meu Deus, minha Santa Bárbara, meu pai Ogum, machado de Xangô, a coisa vai azedar, por Oxum, vai ter morte! Eles se abraçam, eles se abraçam e comemoram o empate!. O que é isso, CamelÔÔÔÔ? — Negobala, Caveirão e Bereta são irmãos, filhos de dona Miralda, mãe de santo do terreiro Ossain traz a Cura, lá do Beco dos Remédios. E lá vem ela, puxando os atabaques. E, atrás dela, a escola de samba! Este ano, o samba enredo a homenageia! — Tudo explicado, CamelÔÔÔÔ! É hora da resenha, com muito samba e churrasco. Fim da transmissão, minha gente!

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Fedapulto

O ônibus Renascença 1209 abriu sua porta dianteira com aquele chiado de ar despressurizado que lembrava um filme de ficção científica. No entanto, o mecanismo estava desregulado e a porta bateu no fim do seu curso com muita força. As quatro crianças, negras de diferentes tons de pele, esperavam junto à mãe na calçada, na parada de ônibus da Rua Curvelo. No momento em que a porta se abriu, as crianças subiram a escada em disparada, empacando as quatro na roleta. Alguém gritou que se sentaria à janela. Outras vozes, não menos competitivas que agressivas, discordaram sobre quem ficaria no melhor lugar do ônibus. A mãe, logo atrás, muito sem graça, menos pela descompostura de seus filhos e mais pelos olhares irritados do motorista e do trocador, ordenou que as crianças passassem, duas a duas, pela roleta porque, assim, pagaria, com a dela, apenas três passagens. Precisava economizar, afinal, do bairro Sagrada Família até o Renascença, eram duas conduções para ir e duas para voltar, o que totalizariam 12 passagens. Passou a roleta e caminhou até os bancos onde os filhos haviam se sentado. Eles ocuparam um assento cada, no lado esquerdo do ônibus, bem ao lado da porta central. Para evitar uma reprimenda qualquer do trocador por usarem mais assentos que 51


havia pagado, a mãe pegou uma das filhas, Angelina, e a sentou em seu colo, deixando Selênia no canto. No banco à frente estavam o garoto Fausto à janela e a que parecia ser a caçula, Estefânia, no assento do corredor. Assim que a mãe se sentou, a caçula começou a chorar para ir junto à janela. O trocador olhou para a mãe, demonstrando mais uma vez insatisfação, como se as crianças tivessem tirado a tranquilidade de todos os passageiros. — Fausto, deixe sua irmã ir na janela. — ordenou a mãe. O garoto cedeu o lugar, com muita raiva. O choro de sua irmã não derramara uma lágrima. Era uma artimanha para conseguir o que desejava. — Vai demorar muito, irmão? — perguntou ela, sorrindo com a vitória ao se acomodar junto à janela. — Cala a boca, sua bebê chorão — respondeu de forma grosseira, ainda, irritado por ceder o lugar. — Vamos ganhar doce na festa de “Corre Caminhão”? Passageiros próximos que escutavam a conversa das crianças pouco silenciosas gargalharam com a troca dos nomes dos santos Cosme e Damião. — Não é a festa de Cosme e Damião. É a festa dos Ibejis, sua burra Os olhos da garotinha, agora marejaram com o xingamento. — Ibejis — repetiu ele— e se você chorar, não vai ganhar nenhum doce. A ameaça de Fausto funcionou. Júnia segurou o choro. 52


— Ibejis. Como eu e a Selênia. A vó branca falou que isso é coisa de macumbeira preta. — Mãe falou que era festa de Cosme e Damião — falou Selênia e olhou para mãe à espera da confirmação. — Mamãe mentiu pra vó, senão ela nos mandava embora de casa, né, mãe? — respondeu o garoto, olhando para trás. A mulher ruborizou sem saber como explicar o dilema familiar. Após o casamento, foi morar com a sogra, uma beata que não deixava de frequentar a igreja um domingo sequer. O marido morreu. Sua única alternativa com quatro crianças, todas com idade inferior a cinco anos, era continuarem ali, morando com a sogra. Assim fizeram. A briga, que aconteceu pela manhã, estava ligada ao sermão do padre na igreja. Ele atacou pais e mães de santo que nas festividades de Cosme e Damião davam balas enfeitiçadas para as crianças. Para evitar mais brigas, a mãe anunciou que levaria as crianças a uma celebração no Renascença. O silêncio da mãe desnorteou as crianças. Coisa de macumbeira e de preto. Tal ausência de palavras construía na cabeça dos mais velhos, Fausto e Selênia, a imagem da mãe que mentiu para a avó branca. De outro lado, as palavras da avó ficaram vivas na mente dos gêmeos. Ela falou que macumbeiras eram pessoas ruins. Mas como poderia ser má uma festa que dava balas e doces para as crianças? Além disso, a mãe e os gêmeos tinham a pele mais escura. O garoto se sentia confuso, pois não se achava mal, nem considerava a mãe ruim, muito menos sua irmã gêmea, apesar de considerá-la muito chata. Alheia a essas preocupações e conflitos, a caçula, 53


sentada bem na ponta do banco, sem que os pés conseguissem alcançar o piso, segurava com as duas mãos pequeninas a barra do banco à frente. — Como é a festa? — Dona Maria se veste de branco e benze a gente com água. Ela roda e grita, fala como uma criança. Depois nos dá balas, chicletes e bolo. Tem hora que ela brinca com um carrinho e com uma boneca — responde Fausto. O ônibus fez uma curva e a pequena quase caiu. A mãe ralhou com o garoto para que ele cuidasse da irmã direito, que passou a segurá-la pela cintura pelo resto do caminho. Deixando para trás o zigue-zaguear da Rua Jacuí, o ônibus entrou no bairro de destino. Outras ruas e outras curvas, hora para a direita, hora para a esquerda. Morro a cima, morro a baixo. Chegaram, com as primeiras estrelas a surgir no céu. A mãe levantou-se com dificuldade. Equilibrava uma bolsa no ombro com todas as coisas que as crianças poderiam precisar. Carregando Angelina, puxou Selênia pelo braço com a mão que lhe restava e desceu do ônibus. — Peraí, motorista. Anda, Fausto, pega a Júnia e desce. Júnia continuava imóvel, com as mãos cerradas na alça do banco à frente e as pernocas a balançar. Toda a conversa sobre a festa e a viagem do ônibus tinha levado o espírito dela para longe, para um mundo de sonhos somente dela. Um puxão a retirou desse limbo de pensamentos. — Anda, molenga, tá na hora – falou o irmão. 54


— Tira a mão de mim, seu fedapulto. “Fedapulto”, no gênero masculino. Logo depois, ela começou a chorar em resposta ao irmão insolente que a tirou de seus devaneios com tamanha brusquidão.

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O velho cocheiro

Domingo. Acordei e me senti um bandeirante. Daqueles que desbravaram nosso Brasil em busca de ouro e pedras preciosas. Estava hospedado em um hotel fazenda na região serrana do Espírito Santo. Fui para o banheiro do chalé e fiz minha higiene pessoal. Obviamente, isso não tem muito a ver com a vida aventureira das bandeiras mas, em um hotel, há que se estar, no mínimo, apresentável para o café da manhã. Não comi muito. Eram quase nove horas e eu queria ser o primeiro a montar o garanhão. A recepcionista me indicou o caminho das pedras e, em cinco minutos, cheguei ao estábulo. Um homem negro, cabelos brancos como algodão, magro, lá pelos cinquenta e tantos anos e ar cansado selava uma égua marrom. Outra, branca e fedida, já se encontrava pronta para ser montada. Ela estava incomodada com a quantidade de mosquitos que insistiam em pousar em sua orelha. Eu, da mesma forma. Grande bandeirante! —Bom dia. Como vai? – perguntei. —Vai querer montar? – respondeu o homem, de forma seca. —Sim. A égua marrom. Falei rápido antes que o cocheiro resolvesse me dar a égua branca e as dezenas de mosquitos. 57


O homem deu um último aperto nas amarras da sela e puxou a égua para fora do estábulo. Segurou-a para que eu pudesse apear com segurança e me entregou as rédeas. — O que falo? – perguntei encabulado, já duvidava do meu êxito como cavaleiro. — Você não sabe montar? — Não. — Eu também. Nunca montei. Só trato dos bichos. Deu um tapa na anca da égua e ela disparou em um trote leve, sem pressa e segura pela trilha em volta de um campo verdejante de golfe. Grande Bandeirante! A égua seguia o caminho como uma autômata. Eu não precisava dar nenhum comando, nem mesmo estalar os beiços. Cinquenta metros adiante e a danada empacou. Sacolejei as rédeas. Estalei os beiços. Balancei a perna como se a fosse atiçá-la com esporas fictícias. Soltei bem tímido um “Vamos, cavalinho”. Nada! Inacreditável! Nada do que eu tinha visto em desenhos animados, filmes e novelas fizeram a diaba da égua andar. Minha fantasia de ser um bandeirante acabara de se desfazer. Eis que, como se fora ligada por um controle remoto, a égua dá meia volta e começa a caminhar em direção ao estábulo com uma carga humana quase inerte em suas costas. Puxei as rédeas em vão. Ela só parou quando, no estábulo, se viu livre de mim. O cocheiro estava sentado sobre um pedaço de tronco, perto de uma árvore. Apeei, humilhado. Saí do estábulo e, ao passar pelo velho, ele me ofereceu um cachimbo. 58


— Fuma! – estendeu o braço para mim. Traguei sentindo o gosto forte do fumo. Deixeime cair em um toco perto do homem. — Pensei que montar fosse mais fácil – falei. — Na TV é fácil. — Você nunca montou, senhor… — Chico. — O senhor nunca montou, seu Chico? — Nunca. Não é importante. — Como assim? Você trabalha nesse hotel e nunca montou? — Eu só cuido dos cavalos. — Isso não é certo. Dei outro trago e devolvi-lhe o cachimbo. — O que é certo, neguinho? — Você não vai entender. — Me explica. — Queria apenas me sentir como um bandeirante, seu Chico. Achava bonito ver nos livros aqueles homens vestidos com roupas pesadas, montado e desbravando o sertão. — Aff! – Ele escarrou no chão. —Um preto como você ser bandeirante?! Se arremeta. Já viu bandeirante preto? Fiquei sem palavras. Minha mente procurou por imagens de bandeirantes. Borba Gato, Fernão Dias, Domingos Jorge Velho. — No máximo, você seria um mateiro, jovem. 59


Andaria a pé e usaria um facão para os brancos virem com seus cavalos – continuou o cocheiro. — O senhor não entende. Eu sou brasileiro. Esses caras fundaram nosso país. Estou procurando a raiz de nosso povo. — Aff! – o velho pitou o cachimbo e escarrou de novo do lado. — A raiz está dentro de você. Está na nossa comida. Conversa com a Conceição, minha esposa. Ela está fazendo um frango caipira ensopado. Minha casa é humilde, mas vai gostar da comida, menino. Seu Chico bateu com o cachimbo no toco para limpar as cinzas e depois o guardou em seu bolso. Fechou a porta do estábulo e me levou por uma trilha arborizada até um casebre de telhas francesas e parede de adobe pintada de branco. As janelas e portas eram de madeira, muito maltratadas pelo tempo. Nos aproximamos. Ele colocou o indicador sobre a boca me pedindo silêncio. — A veia não gosta que eu traga visita de surpresa, mas vai gostar de você. Espere aqui até ela te chamar. Ele me deu as costas e entrou na casa. Fiquei ali, a porta do casebre. O cheiro da galinha aguçou meu apetite. O sol estava a pino e o calor infernal. A espera me angustiou e resolvi pedir um copo d’água. — Seu Chico? — bati palmas à porta do casebre. — Entra menino — ouvi a voz de uma senhora. — Licença – entrei. — Senta. Já vou te servir. A velha senhora, gorda e uma pele tão escura que lembrava a noite cozinhava em um fogão a lenha. 60


Observei que seu Chico não estava no único cômodo que servia de quarto, sala e cozinha e que não havia outra porta diferente da que eu e ele havíamos entrado. — Prazer. Me chamo Gilson. Onde está seu Chico? A senhora riu e apontou para um quadro na parede. Lá estava a pintura de seu Chico, sentado num toco e fumando o seu charuto. O mesmo charuto que eu tinha pitado. — Filho, ao convidado de Preto-velho não se nega água ou comida.

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Dia das Mães

A torta de frango, ainda quente, cheirava a sala de triagem. Sossô, uma senhora no auge dos seus quarenta e tantos anos, negra, que adorava perfume e nunca se esquecia de manter a tintura do cabelo impecável, esperava a sua vez de passar pela revista. A agente penitenciária olhou para ela e pediu os documentos. Comparou a foto da carteira de identidade com o rosto de Sossô. — Quem é o preso que a senhora vai visitar? — Meu filho, Alvimar Manga. — O que tem na sacola? — Uma torta de frango com catupiri. — Abra. Abriu. Era uma torta de frango feita em casa e com carinho. A massa dourada e o cheiro fizeram com que a agente penitenciária salivasse de desejo de um pedaço. A comida do dia não havia sido boa. Ela não tivera tempo de preparar o seu lanche. Aquela torta aguçara sua fome. E sua raiva. — Está cheirosa, hein? Esses vagabundos comem melhor do que a gente nos dias de visita. Pode deixar a torta ali, ela vai passar pela revista também. E a agente penitenciária meticuloso trabalho.

continuou

seu 63


— Tira toda a roupa. Pode se sentar nessa cadeira. Abre as pernas. Abra mais. É para abrir, porra! É surda? Nossa, a senhora está com corrimento, deveria ter avisado. Sossô ruborizou. Todas as vezes, sempre, a mesma humilhação. Visita sim e outra também, a guarda procurava diminuí-la. Não era a mesma pessoa, mas as atitudes vexatórias eram padrão. — Essa tá limpa. Não tem celular no cu e nem na buceta – falou a agente para uma outra que anotava. —Pode se vestir e aguardar seus objetos na outra sala. Sossô se vestiu. Na outra sala pegou, a torta. Estava em pedaços, amassada, esmigalhada, reduzida a farelos. Talvez pudesse mentir para o filho e dizer que era um salpicão. Uma outra agente penitenciária a conduziu por um corredor até um pátio. A mulher negra se perguntava o por quê de tamanho sofrimento. Não bastava o filho cumprir a pena. A família tinha que cumprir junto, dividindo as humilhações, as angústias do preso e ser tratada como uma criminosa? Sua mandíbula latejava. Seu filho já havia cumprido dez anos. Artigo 121. Sossô se lembrou, como se fosse ontem. O marido havia chegado bêbado e começou a reclamar da comida. Tinha meses que ele não trabalhava. Um bico ali, outro acolá. O dinheiro nunca aparecia, nem a cachaça, pois ele bebia antes. Sossô falou que, se ele não bebesse todo o dinheiro, teriam algo o que comer. A repreensão não durou mais que uma frase. Sua mandíbula explodira com o murro. Ela caiu e recebeu um chute no estômago. O desgraçado sabia bater. Não era a primeira vez. Depois sentiu as mãos em volta do seu pescoço, 64


apertando, apertando, deixando-a sem ar. Pouco antes de desfalecer, sentiu as mãos se afrouxarem. Alívio. Alvimar, seu filho arrancou o pai de cima dela e, com uma faca de cozinha, deferiu dezoito golpes no peito e no rosto do infeliz. Sossô desmaiou. A mandíbula latejava. Seu filho se entregou. O advogado prometeu que ele não ia pegar cadeia, mas fugiu com o dinheiro. O defensor público não tinha muita competência, era novo. O juiz determinou o encarceramento. O sol de meio-dia arrancou-a das lembranças do parricídio. Caminhou pelo pátio. Seus olhos procuravam o filho, Alvimar Salvador. Assim ele era conhecido entre os outros encarcerados. Alcunha recebida por ele ter libertado a mãe de anos de espancamento. Os presos vestiam o habitual uniforme laranja. Filhas, irmãs e esposas rodeavam seus “presoentes”. Em um banquinho de concreto, coberto por uma toalha, estava a esperar por ela, seu filho. Era alto. Os cabelos raspados para não pegar piolho. Sua careca preta estava encharcada de suor. Ao reconhecê-lo, os olhos de Sossô se encheram de lágrimas. Não conseguiu dar um passo a mais. Alvimar se levantou e foi até a mãe. Abraçou aquela mulher catatônica. Depois, a conduziu para o banco coberto pela toalha e pelo sol escaldante. Tirou uma flor de dentro de uma caneca com água que estava escondida embaixo do assento para que aguentasse esperar o momento certo da entrega. A flor era daquelas que dava em qualquer lugar, mesmo numa rachadura de concreto, numa rachadura da vida. Ofereceu-a para a mãe e, com um sorriso e algumas lágrimas que adensaram as de Sossô, falou: — Feliz Dia das Mães! Se abraçaram. 65


Falaram sobre a vida lá fora, sobre a não-vida lá dentro. Sossô estava juntando dinheiro para pagar outro advogado. Alvimar seria titio. Sua meia-irmã daria a luz com 19 anos. A mãe preferia que ela tivesse estudado, mas depois que a criança desmamasse, ela ia ter que voltar a estudar. O pai da criança? Um traste. Desapareceu. A hora voou e tocou a sirene em toda a prisão. Em todos os cantos os parentes se despediam. Prometiam trazer coisas de primeira necessidade para seus entes, mesmo que criminosos, muito queridos. Sossô e Alvimar se despediram com um abraço apertado. — Semana que vêm estou de volta, filho. Fica com Deus. — Só Deus, mãe! Só Deus! Amém. Portas se abrem e se fecham para permitir a saída dos visitantes. Sossô pensa na semana que está por vir. Ela não contou a seu filho que o homem que engravidara a irmã era um traficante e que ele fora assassinado. Preferiu mentir, para não preocupá-lo. Assim que chegou à recepção, ela encontrou com uma das agentes que a revistou. — Nossa, aquela torta estava uma delícia. Da próxima vez, a senhora me traz a receita?

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Almoco , de Natal

Esperava no ponto de ônibus, após sair da casa da patroa. Havia trabalhado como uma diaba para deixar toda a ceia de Natal no jeito. — Você bem que podia servir a ceia para nós… Pago um extra, Ângela. — Dona Roberta, não posso. Minha família está me esperando. — Fique. Você me disse que não costuma fazer ceia de Natal em sua casa. Almoce com eles amanhã. Aproveita e leva as sobras do peru. Sempre sobra. Sobras! Será que ela não entendia. Sobras! O que ela pensava? No outro Natal ela falou a mesma coisa. O extra, não saiu. Quando eu embrulhava o pernil de manhã, para levá-lo, insinuou que eu só gostava de coisa boa. “Deixa o pernil e leva o frango”. Frango, na minha casa tem, pensei. Não, dessa vez não. Não ficaria. O ônibus se recusava a passar. Acho que até os motoristas de coletivo ceiam na véspera de Natal. Depois de tanto trabalho, Seu Juca, o patrão, bem que poderiam me ter dado uma carona. Melhor não. Já peguei ele me olhando estranho. Melhor evitar a fadiga. Nenhum táxi. Apenas eu, nas ruas escuras da 67


região hospitalar, sozinha, como um dos três espíritos natalinos em um filme qualquer. Desci a Francisco Sales para chegar até a Alfredo Balena. Perto do hospital, sempre tinha táxi esperando. Para a doença, não existe data ou horário. Quando se deixa o HPS, após uma espera de dez horas para ser atendido e, ainda ouvir o médico falar que é só uma virose, nós pobres e moribundos estamos loucos para chegar às nossas casas. Além disso, por lá passavam outras opções de ônibus. Opa, um: “Táxi” – gritei e acenei. O motorista fez sinal que estava cheio. Acelerou e continuou o seu caminho. De uma sacada, um jovem cantarolou: “Preta, preta, pretinha”. Mudei de passeio e recebi uma bofetada sonora em minhas costas: “Que nega metida! Vadia!” Lágrimas. Não me contive. Era quase Natal. Onde estava o espírito cristão de amor ao próximo? Acho que estava em alguma caixa de presente que aquele filho de uma puta abriria logo mais. A raiva, a vergonha e a humilhação me sufocavam. Cheguei à Praça Hugo Werneck. Outras pessoas, trabalhadoras como eu, também esperavam por seus ônibus. Senti um pouco de segurança ali, no meio de gente como a gente. Uma senhora comentava com uma colega sobre o preço do Chester no Extra, um hipermercado próximo. — Baratinho, nega. Comprei – dizia ela. —Muito mais gostosa que peru. Carne de peru é seca. Não gosto. Essa aqui será sucesso amanhã no almoço. — Quando eu era mais nova, nossa ceia era com 68


frango assado – falou a colega. — Hoje me dou o direito de comer outras coisas. Comprei um pernil pr’amanhã. — Isso mesmo, fia. Damos duro o ano inteiro e ‘tamo cheia’ de privações. Agora, no Natal, quero comer é bem. Até “Jesuis” tomou vinho no Natal. — Uai, vinho não é na Páscoa! – sorriu a outra. — Num’mporta. O que digo é que “Jesuis” era pobre e bebia vinho. Eu também posso. Trabalho de sol a sol. De chuva a chuva. Não devo um centavo na praça. Me dô o direito. Olhei para o Extra. A conversa das senhoras acendeu em mim o orgulho de me sentir alguém. De poder. A patroa tinha atrasado o décimo terceiro e alegou que eu tinha que dar graças a Deus de estar empregada nessa crise. Crise! Ela tinha dois carros na garagem e os filhos estudavam em escola particular. Farinha pouca, meu pirão primeiro, diz o ditado. Caminhei até o hipermercado, comprei um Chester, uma garrafa de vinho e uma Coca-Cola. A ave já estava temperada, mas não ficaria pronta antes da meia-noite. O que importa é que, até o dia nascer, ainda é noite de Natal. Assim que saí, o ônibus vinha preguiçoso. Parecia que ele só estava esperando que eu terminasse minhas compras. Me sentei num banco duplo e coloquei as compras no assento ao lado. No balançar da viagem escrevi um “WhatsApp” para a patroa: “Fique cun as sobras. Ñ preciso dele. 2feira vo no Minist. do Trab. Procurar meus direitos. Me demito. Feliz Natal”.

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O tio de mentira!

Vitinho estava eufórico essa manhã. Sua mãe e seu pai falaram que no domingo receberiam o seu tio Marcelo. Estava com cinco anos de idade e sentia-se como um verdadeiro rapazinho. Sabia das coisas. Na escola, estava aprendendo as letras e já sabia cantar várias músicas. Há muito não fazia pipi na cama e havia ganhado várias cuecas estampadas com os seus superheróis favoritos. Até o corte de cabelo ele mesmo decidia. Adotou o black power e falava para todos que era mais bonito que o Will Smith. Estavam todos na cozinha. Sua mãe Margarida, seu pai Pedro que, carinhosamente, chamavam de Pepê e ele. Todos juntos faziam o almoço para o tal tio Marcelo. Pedro, ou Pepê, ostentava também um black power marcante. Com pouco mais de trinta anos, estava grisalho. Nariz achatado, olhos castanhos e barba também grisalha. Orgulhava-se de ter um corpo esbelto e de ser um bom cozinheiro de fim de semana. Usava um avental preto, mas descartou o chapéu de chef para não atrapalhar o penteado. Para Vitinho, Margarida parecia uma rainha africana saída dos livros de história. Seu cabelo era crespo e estava trançado até a metade da cabeça. O 71


restante, solto, a coroava como a uma rainha. Trajava um vestido longo com estampas coloridas, o que a deixava com um ar leve. Era magra e alta. Os olhos da cor de mel rendiam-lhe vários elogios. Vitinho imaginava que sua mãe flutuava nas nuvens quando andava. — O Marcelo casou, Pepê? —Margarida perguntou ao pai de Vitinho. — Não, amor! Marcelo é um solteirão convicto. Depois que seus pais faleceram, começou a viajar pelo mundo, aquele cabra safado. Semana passada, me mandou uma foto pelo zap lá da Índia. Tinha que ver só. Parecia um guru. — Pepê, você me mostrou. Ri horrores... A família serviria uma galinhada. Vitinho não sabia que prato era esse mas, durante a noite, sonhou com uma festa cheia de galinhas cacarejando por todo o apartamento. Afinal, uma galinhada era feita de muitas galinhas juntas. Ouvindo a conversa de seus pais, ficou assombrado. Seu pai acabara de falar que os pais do tio Marcelo morreram. Se ele era seu tio, o morto havia de ser irmão de sua mãe ou de seu pai. Não o tinham comunicado. E agora, seu pai vinha com essa notícia? “Os pais de tio Marcelo morreram”. Falou com tanta naturalidade e nem pensaram em prepará-lo para ver seus avós no caixão, no cemitério. Entretanto, qual dos avós? Vitinho observou que seu pai estava feliz. Concluiu logo que não era o vovô Eli, nem a vó Quitéria. Então, só podia ser a avó por parte de mãe, vó Laurinda. Mas, sua mãe também estava animada com a chegada desse novo tio. Estranho, pensou ele. 72


Na última semana, o pai de Jorge, seu amiguinho de sala de aula, falecera. Vitinho viu todos tristes. Sua mãe explicou que, quando um parente querido morre, as pessoas ficam de luto e choram. Naquele domingo, ali, ninguém estava de luto. Ao contrário, seu pai e sua mãe estavam muito felizes. Os pais continuavam a conversar animados, alheios ao sofrimento do filho. Crescemos juntos mas, depois que entrei para o exército, nos separamos – falou Pepê. — É mesmo, amor? Não sabia! Qual foi a última vez que se falaram? — Ah, acho que foi na faculdade de Direito. Ele tinha decidido largar o curso e fiquei irritado com essa decisão. Estávamos no quarto período. — Nossa, e aí? — Nunca mais nos falamos. Na mente de Vitinho, as coisas começavam a se explicar. Ele nunca fora decentemente informado por seu pai que tinha um tio chamado Marcelo porque os dois estavam brigados. “Mas, então, foi o vô Elias e a vó Quitéria que tinham...” — Você convidou seus pais para vir almoçar aqui? — perguntou Margarida. As lágrimas que pensavam em saltar dos olhos de Vitinho secaram. Ele não entendia mais nada. Resolveu então, continuar atento à conversa dos pais. Precisava de mais informações. Quase tudo pronto, chegaram vô Elias e vó Quitéria. Em seguida chegou o tal do tio Marcelo. Era um homem calvo, branco e de olhos azuis. Na testa 73


tinha uma pinta vermelha. A barba era grande e ruiva. Em nada aquele homem parecia com seus avós e tão pouco com seus pais. — Vitinho, esse é o tio Marcelo – apresentou seu pai empurrando o moleque para perto do recémchegado. –Cumprimenta ele. — Ele não é meu tio! Meus sentimentos por seus pais — apertou a mão do estranho como um adulto que conhece bem as coisas.

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Mousse de limão

— Amor, vamos para a casa de mamãe?—perguntou Magda, esticando os braços e as pernas como se ela pudesse alcançar as duas paredes opostas do quarto. — Claro, evitamos cozinhar, respondeu Tarcísio, beijando-a no pescoço. Todos os domingos era a mesma coisa. Acordar, fazer sexo, tomar café, um banho e ir para a casa dos pais. Tudo programado. Às vezes, Magda se sentia entediada. Nem sempre estava disposta a ir. Também achava que seu marido, muitas vezes, queria ficar em casa lendo ou caminhar pelo parque próximo ao apartamento dos dois, mas um acordo entre eles estipulara essa rotina. Um domingo, na casa dos pais dela. O seguinte, na casa dos dele. Enquanto tomavam o café, Magda olhou para Tarcísio escondido atrás do jornal. Dois anos de casados e ele tinha engordado um pouco. Usava óculos com aro de resina que o deixava com um ar intelectual. Os cabelos estavam grisalhos, um orgulho que o levava a falar que ficaria igual ao do Toni Tornado. Ela tinha que admitir: ele estava charmoso. Pensou em si. Magda estava em seu auge. Tinha vinte nove anos, frequentadora de academia três vezes por semana. Agora estava tomando uma infusão de limão, gengibre e pepino para emagrecer e chegar aos 75


cinquenta quilos. No bairro, ela percebia quando as vizinhas a olhavam invejando sua beleza e coragem de assumir os cabelos crespos. Algumas chegaram até a sugerir que ela fizesse uma progressiva. “Idiotas” – pensou ela enquanto sorvia a beberagem. Tarcísio passou as folhas do jornal de forma brusca, demonstrava estar irritado. Como uma criança pirracenta, ele praguejou baixinho. — Aconteceu algo? – perguntou Magda. — Não. — Está chateado? — Não… Suspirou. — Quer conversar? — Não tenho nada para dizer. — Tem certeza que não aconteceu nada, Císio? — Magda, dá para parar de me encher! Não tenho nada para falar. — Eu estou te enchendo? Eu te encho? — Não estou a fim de brigar. — Então porque está gritando? — Não estou gritando? – explodiu em berros. — Porque não admite que não quer ir na casa da minha mãe, Tarcísio? Admita! — Já conversamos sobre isso. — Não estou te obrigando, homem! — Amor, você não me obriga a nada. — Cristo, se você não quer ir, porque não propõe outra coisa? 76


ir.

— Não falei em nenhum momento que não quero

Tarcísio ficou calado. Há muito queria sair com os amigos. Voltar a jogar futebol. Sua barriga estava virando motivo de chacota entre o pessoal do trabalho. A rotina de almoçar com os pais todos os domingos estava entediante. Entretanto, sentia-se pisando em um campo minado. Pensava que a esposa gostava de estar junto da família. Para completar, a sua sogra cozinhava melhor que a esposa. Ele pensou no que a sogra prepararia. Joelho de porco assado, farofinha. Não podia deixar de passar no supermercado e comprar umas cervejas. Impossível recusar. “Se ele propuser qualquer outra coisa agora, eu topo. Não aguento mais minha mãe cobrando que eu engravide” – pensou Magda. — Sua mãe está nos esperando, amor. Magda soltou um grito estridente. Deu as costas para Tarcísio e entrou no banho. Trabalhavam muito. Quitaram o carro e faltava pouco para terminar de pagar a casa. Financeiramente, estavam independentes de seus pais. Estáveis. Entretanto, pareciam que não tinham saído do ventre da família. Não conseguiam cortar o cordão umbilical. Sempre tinham que ir à casa dos pais aos domingos. Às vezes, às quintas-feiras também. A água morna do chuveiro descia pelo seu corpo e lavava as marcas da briga com o marido. Essas discussões começaram a ficar frequentes. Nenhum dos dois sabia quando começavam, os porquês ou quando acabavam. Às vezes, não acabavam. Os dois 77


caiam em um silêncio que durava dias. Conversavam apenas o trivial. “Bom dia”… “Tudo bem?” “Como foi o trabalho?”. Depois de certo tempo, tudo estava debaixo do tapete, acumulado, esperando alguém descobrir e levantar o pó de novo. Magda saiu do chuveiro. Vestiu-se. Encontrou o marido a esperando no carro ligado. Ela teve que abrir o portão. Ela sempre abria o portão, enquanto ele ficava com o cotovelo apoiado na janela do carro e a mão na testa, com ar de impaciência. “Será que o portão eletrônico não seria mais consertado?”. “Por que ele nunca abre esse portão e me espera na rua com o carro?” Ele arrancou com o carro e parou na rua. Esperou ela fechar o portão. Ela entrou e sentou-se no banco do passageiro. — Magda, pensei e acho que podemos fazer algo diferente hoje. Vamos almoçar na Vale Verde? Sei que sua mãe vai ficar chateada por desmarcarmos em cima da hora, ela fez um joelho de porco esperando a gente, mas você tem razão, para que ir na casa de nossos pais todo o domingo? Magda olhou para Tarcísio. Os óculos escuros escondiam a sua cara de coitado. Sua cara acusando-a de abandonar a mãe dela no domingo. Magda olhou para ele e falou: — Amor, esqueci na geladeira a mousse de limão.

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Telespectadores de concreto

A parede de janelas vista de outra janela. Da sacada dominical, olhos solitários assistem à vida alheia, como se assistisse à TV. Na janela do terceiro andar, cortinas de crochê que durante a semana permanecem cerradas como se escondessem um tesouro milenar, hoje encontramse escancaradas. A família de uma velha senhora veio para o almoço. Dois garotos, uma jovem e uma senhora com rugas tão idosas quantas as da anfitriã. Um dos garotos brinca na janela com um aviãozinho de plástico, simulando um voo longe do chão. Os adultos, talvez estejam colocando o papo em dia ou, apenas, se lembrando de quando tinham uma idade menos triste. Ele muda de canal. É uma coisa tremendamente simples mudar o canal da TV de concreto. Não precisa apertar nenhum botão. É o desejo ou o tédio de bisbilhotar aquele almoço em família que faz a visão procurar outra janela. Duas à esquerda da velha. Um casal despido cultua Afrodite. Um lençol branco esconde partes do corpo da mulher. O parceiro, um belo rapaz, passa manteiga em uma torrada e oferece a ela, que retribui com um sorriso e um beijo. “Isso são horas de se tomar café?”, pensou o telespectador oculto, sem saber que para o amor não existe hora.

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Uma gata chama-lhe a atenção. Preta e raquítica, ela caça uma mariposa no batente da janela acima do apartamento dos amantes. Ela olha para baixo, incerta da altura que a separa do chão. Dá um salto. Sua presa lhe escapa. A gata desequilibra. Ah, se não fosse aquela tela de proteção… Sua dona a chama: “Pagú, vem cá”. Seu rosto entra em cena. Um cacheado preto e curto. Sotaque carioca. Trata o animal como se fosse uma filha. Nada de anormal, pois os animais domésticos são quase como filhos. Muitas vezes, os únicos filhos. O telespectador se pergunta: “Será que ela pode me ver, em minha plenitude?” Não! Ela, de sua janela com a gata no colo, vê apenas um solitário. Um homem que nem um passarinho tem para preencher a solidão. O que ela vê é apenas uma imagem composta por ela. É apenas a verdade dela, pois dessa distância é incapaz de vê-lo por dentro. Dois homens. “São gays, tenho certeza”. O telespectador é preconceituoso, mas nem por isso lhe convém trocar o canal. Eles recebem duas moças. Parecem amigos de longa data. Bebem cerveja, conversam e riem alto. Talvez a inveja de ver o encontro de pessoas que se gostam o mantém observando-os por longo tempo. Amigos, esses lhe faltam. Estão longe, cuidando de suas próprias vidas. “Depois que casei, não tenho tempo para nada” – dizia um. “Não dá para encontrar. Minha mulher não abre mão de almoçar todo domingo com a sua mãe. Eu sou intimado a ir”. Sempre desculpas esfarrapadas. Gritos o tiram de sua autocomiseração. Quando se assiste a uma TV de concreto, os canais mais interessantes berram por atenção. Uma mulher ruiva e gorda repreende o marido que está bêbado. Ele a 80


empurra. Ela devolve a violência com um jarro que se espatifa em uma parede. Ah! O amor após alguns anos de casado é assim? Desfaz-se em migalhas, em cacos como os de um jarro de porcelana? Novos espectadores sintonizam o mesmo canal. Olham, balbuciam alguns impropérios e retornam para suas vidas invadidas pela indiscrição do casal. Nosso espectador observa a solidão ácida e gélida de seu apartamento. Nenhum gato a ronronar, nenhuma mosca. Nenhuma música para competir com o barulho da fervura da água em uma caneca no fogão. Ele pega um prato cheio de iscas de alcatra com cebolas em rodelas. O cheiro é convidativo, mas o sabor é insosso. Falta o tempero da vida. Quem convidaria para repartir essa solidão? A mulher do gato? O vizinho de porta? Aquele parente? Um amigo? Sorve um gole de cerveja quente de tanto esperar no copo. Olha para o prato. Aproxima-se da janela e arremessa a sua própria carne destemperada no vazio. Agora, de suas janelas, antigos protagonistas sintonizam ao mesmo tempo uma cena no asfalto quente.

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Caiu no poco ,

A paixão no fim da infância é avassaladora. Ela provoca palpitações apenas em se pensar na amada. Estar frente a frente com ela é como se enfrentássemos um exército inimigo apenas com a coragem, justamente a que, muitas vezes, nos falta. A paixão, matreira, deixa marcas profundas para toda a vida. Passamos o fim de semana no sítio de Tia Fátima. Na verdade, era nossa prima, mas como seus filhos eram da nossa idade, a chamávamos carinhosamente de tia. A turma de crianças e adolescentes enchiam duas mãos. Kátia e Estefânia, minhas irmãs que são gêmeas, mais novas. Débora e Ricardo, irmãos, nossos amigos. Theo, Banha e Manda, meus primos, filhos da anfitriã e Lili e Dayse, amigas deles. Tínhamos idades parecidas e apenas quatro anos separava o mais velho do mais novo. Almoçamos na cozinha, sentados em bancos longos de madeira. No centro, um fogão aquecido a lenha crepitava já por dois dias e duas noites sem parar. Panelas enegrecidas pela fuligem, agora quase vazias, nos proporcionaram um almoço farto, de frango com quiabo, arroz, couve, batatas fritas, salada de alface e tomate. Nas paredes rústicas estavam penduradas outras tantas vasilhas de cobre. Em prateleiras, arranjavam-se copos e pratos, além de outros apetrechos necessários para preparar e comer as refeições. 83


— Fia, quando pretende ir? – perguntou minha mãe, encostada com o umbigo na pia e lavando os pratos e os talheres de quem acabava de comer. — Uai, Graça, vamos às cinco! Assim não pegamos a estrada à noite. Cinco horas! Diabos, já eram duas da tarde. E foi com muitas lamúrias que conseguimos estender o horário de partida para as seis, alegando que estávamos no horário de verão. Desesperados, como crianças e adolescentes prestes a serem mandados para um colégio interno após as férias, trocamos olhares e insinuações pouco sutis sobre a piscina e nos levantamos, todos juntos, para sair daquela cozinha antes que o calor do dia e do fogão transformasse em cinzas nossas últimas horas de diversão. — Nada de piscina ou correria. O sol está quente e vocês acabaram de almoçar. Vão ter uma “congestã” – tratou logo de falar minha mãe quando chegamos à porta dos fundos. Maldita palavra esta: congestã!. E não é congestão, como diz o dicionário, pois mamãe pronunciava daquela maneira mesmo. Tal palavra que todas as mães repetem quando querem que os filhos se aquietem após o almoço. Famigerada, estraga prazeres! Não deveria existir no vocabulário das mães e nem no Aurélio. Uma vez saída de sua boca, era como se brincássemos, sofridamente, de estátua. Nada se podia fazer. Correr, nadar, soltar pipa - nada. Tínhamos de esperar por duas horas para que nosso estômago, preguiçoso, fizesse a tal digestão. Nesse momento, os ponteiros do relógio adquiriam um passo brincalhão; saltavam dois segundos e voltavam um. Mas sabíamos 84


que, assim que aquelas horas passassem, estaria quase na hora de deixar o sítio. Nos deixaram ir para o pomar, que tinha uma sombra generosa. Os pés de manga ubá e de manga espada estavam com muitos frutos, mas ainda verdes. As laranja-da-terra estavam no ponto de colher e prometiam um ótimo doce. Vez ou outra, uma brisa balançava as amoreiras carregadas, passarinhos extrovertidos bicavam o fruto e voavam de volta para seus ninhos com os bicos manchados. Uma galinha ciscava com seus pintinhos que piavam e se fartavam com uma minhoca recentemente desenterrada. Emburrados, nos sentamos à sombra das árvores. As meninas conversavam e falavam sobre namorados da escola. Theo e Banha disputavam quem dava o soco mais forte na barriga do outro, coisa que acabaria em briga e renderia um castigo para os dois. Ricardo tinha escalado uma mangueira e arquitetava em sua mente a construção de uma casa nos galhos grossos. A mim, restou apenas nutrir um amor platônico por Manda e desenhar um coração com nossas inicias com meus dedos no chão. Ato que não fugiu à percepção de Ricardo. Banha deu um soco mais forte em Theo. O pobre começou a chorar e ameaçou de contar à tia Fátima. Banha ameaçou a quebrá-lo em mil pedacinhos durante o resto da semana, caso o dedurasse. Enquanto, tentávamos acalmar os dois infelizes, Lili teve uma ideia. — Ei… eeeeeeiiii! – gritou ela. – Parem! Já brincaram de “caiu no poço”? — Não, como é isso? — perguntou Dayse. — É simples, falou Ricardo, que também conhecia 85


o jogo. — Tampamos os olhos de um de vocês, que deverá apontar para alguém e desejar pera, uva, maça ou salada mista. Pera é aperto de mão. Uva, um abraço. Maçã é um beijo no rosto. Salada mista é um beijo na boca. Meninos enfileirados de um lado e meninas do outro. Ninguém tinha coragem de pedir salada mista. Até que Manda foi escolhida. Ricardo cochichou algo no ouvido de Lili. — Caí no poço – anunciou Manda já com os olhos vendados. — Quem te tira? – perguntou Lili. Ela conduzia o braço da garota. — Meu bem! – respondeu e soltou um sorriso que disparou meu coração. — É esse? – Lili apontou o braço de manda para Banha. — Não. — É esse? – a pontaria agora estava em Theo. — Não. — É esse? – o braço agora sobre Ricardo. — É esse? – o braço continuou em Ricardo. Depois de mais três perguntas, o braço sempre era apontado para Ricardo e Manda respondeu. — É esse. Salada mista. Ricardo olhou para mim com satisfação e sarcasmo e falou bem baixinho para que eu ouvisse: “Mané!”. Um beijo roubado, um coração partido e um inimigo para o resto da vida foi o resultado daquele fim de semana. 86


Barão

Barão era um vira-lata de pelagem amarela misturada com marrom e uma pança bem nutrida a angu e restos de comida. Os dentes inferiores proeminentes lhe davam uma aparência hedionda e agressiva. E, realmente, o era. Todos os domingos, quando chegávamos à casa da vovó Martha, no Renascença, ele arrumava um furdunço no portão de madeira, querendo nos impedir de entrar. Tia Marilda o segurava pela coleira e o diabo latia até babar. — Entra… Entra, que isso é só teatro! Ele não morde. Era pisar no quintal que ele nos cheirava e começava a abanar o rabo. Depois, saía com um andar aristocrático, como se tivéssemos recebido as devidas licenças e permissões para andar por sua corte ou se tivéssemos perdido a importância. Ele não corria. Andava em um passo decidido, senhor de si, em trote. Vez ou outra, parava para mordiscar uma pulga ou se coçar. Logo após o almoço, desaparecia. Não era encontrado em sua casa ou em qualquer outro lugar. Só reaparecia no fim da tarde, quando estávamos tomando café nas canequinhas esmaltadas que, com a quentura do líquido, nos queimavam os beiços. O esperto queria um pedaço de pão molhado no café ralo e muito doce.

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Almoçamos como de costume, espalhados pelo grande quintal que ficava à frente da casa. Como a mesa da cozinha estava ocupada por roupas por passar, minha mãe nos servia no próprio fogão. Nos dispersávamos, comendo em pratos também de metal esmaltado. Naquele dia, me sentei próximo à porta da cozinha. Ali era coberto e estava mais fresco. Além disso, tinha um degrau de altura ideal que levava para um banheiro no fundo do lote e que me serviu como um excelente banco. Dispus o prato no colo amparado por um pano de prato, para não me queimar. Saboreava a comida de domingo: arroz, frango assado, feijão batido, salada de tomate e macarronada. A comida na casa de vó era um pouco sem sal e, para esse garoto, o feijão sem bagos era muito esquisito. Não era um tutu, era um creme. Como sempre, Priscilla, minha irmã, recusava-se a comer e saiu com o prato para bem longe dos olhos de qualquer adulto. Barão, nesse momento, deixou a fidalguia de lado. Assumiu a sua realidade de vira-lata e, sentado sobre as patas traseiras, esperava por algum osso. Ficou ali, perto de mim, com a orelha em pé, bem em frente à porta da cozinha. Seus olhos no pedaço de coxa do meu prato e seus ouvidos, iguais aos meus, atentos à conversa de mãe e vovó. — Que história é essa de despejo? — Nada, fia. De último, sua tia Lilica veio aqui e falou que vai me tirar do lote. — Como assim, mãe? Isso é perigoso! Tem que olhar. — Marilda tá olhando. 88


— Mãe, tia Lilica não teria coragem, teria? — Fia, eu alimentei todo mundo. Minha morada sempre esteve aberta. Quando vinham de passagem ou para passar dias aqui, comiam do pão que essas mãos tiravam do tanque. Vó Martha mostrou as mãos enrugadas pela água das duas trouxas de roupas lavadas nessa manhã, no tanque, usando água reservada em tambores porque, de vez e outra, a Copasa dava de cortar o abastecimento do bairro. — Preocupa não, fia! Deus não há de permitir. Vó Martha fez o sinal da cruz e olhou para o forro da cozinha, como se Deus estivesse ali, a protegendo. — Mãe, isso é grave! Não acredito que Tia Bilinha vai permitir. — Não, não. Irmã Martina há de rezar do convento. – minha mãe havia explicado que nossa tia-avó, depois que entrou no convento, adotou esse nome. — E tio Sebastião? – perguntou minha mãe. — Seu tio está bobo. De último, não fala coisa com coisa. — E Raymunda? — Essa só anda junto com Lilica. — Mãe, mãe… — Despreculpa, fia. Deus tudo sabe! O domingo terminou assim, cheio de incertezas. No dia seguinte, o oficial de justiça acompanhado de dois policiais, cumpriu a ordem de despejo. Barão, nunca mais foi visto. Recusou-se a entrar no caminhão de mudança e, nas ruas do Renascença, possivelmente, continuou seu trote despretensioso e aristocrático.

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Cirurgia de catarata

Três gerações se reuniam naquele fim de tarde frio. Julho dava adeus e abria passagem para um agosto morno e sem sal. Entretanto, para dona Martha de Assunção dos Santos, senhora distinta e mãe de seis filhos criados na labuta de lavar roupas para os de perto e os de longe, o mês começava com muita reza e fé para que a cirurgia de catarata desse certo. Conceição e Consuelo, suas filhas, Filipe, filho da primeira e Bruno, filho da segunda, conversavam na sala. A quantidade de móveis no cômodo limitava a circulação. Quem entrasse pela porta da sala, observa um sofá-cama logo à esquerda. Seguindo o sentido horário, havia um sofá de três lugares, uma estante com toda sorte de badulaques junta à parede em frente à porta e um sofá de dois lugares, encostado na parede à direita. No centro, uma mesa com quatro cadeiras. Acima do portal que levava para a cozinha repousava em moldura redonda a foto do marido de Dona Martha, falecido há 60 anos. Destacava-se, ainda, um cuco e uma escrivaninha com um computador coberto por capas plásticas no vértice que sobrou entre a estante e um dos sofás. A velha matriarca saiu de seu quarto, pronta para ir pernoitar na casa de Conceição. Carregava duas sacolas de plástico, dessas de supermercado, com roupas e outros apetrechos que ela poderia necessitar. Lembrou-se de pegar um vestido de passear pois, 91


durante a sua recuperação, deveria ir ao posto de saúde e gostava de estar bem-vestida. O vestido que cobria a pele negra era estampado. Ia até os joelhos e possuía dois bolsos na parte da frente. No esquerdo, o terço, objeto importantíssimo para quem precisa de uma graça do Divino Espírito Santo. Meias de lã pretas até o joelho protegiam as pernas do frio. Sandálias de couro pretas revelavam o desenho dos pés deformados por dois calos nas partes externas de cada um dos dedões. Um lenço branco amarrado na nuca, em algodão, cobria-lhe a cabeça e a ponta das orelhas. Precavida. Tomar friagem nessa idade não era apropriado. Além disso, como conhecedora de si e da vida, sabia que velho morre mais de pneumonia do que de qualquer outra coisa. Enquanto esperava pela hora de partir, sentou-se ao lado de Filipe, filho de Conceição. — Tudo igual. De fim, de finalmente, não tem diferença nenhuma – falou para Filipe. — Como, vó? – perguntou o neto, desconhecendo o jogo de palavras. — É como se diz, meu filho. Começou. Agora tem que acabar. — Vai dar tudo certo, vó. Como ficou o olho que já operou? — É esse aqui – colocou a mão sobre o olho direito para indicar. – Vejo tudo. O outro, só vulto. Agora, consigo diferençar as feições d’ocês. — Vai dar tudo certo, vó. — Meu fio, tá na mão de Deus. Divino Espírito Santo há de alumiar e não há de acontecer nada cumigo. Noventa e dois anos. Ninguém intende. Eu é que sei. 92


— Como assim, vó? — Elas (aponta para as duas filhas que conversam entre si). Num tem cabimento. De último, decidi não ir na missa. Enquanto o olho não ficar bom. Mas pego o ônibus. Os chofer tudo me conhece. Às vezes, ajudam a velha a subir. Outras, é o próprio pessoal do ponto. Desço perto da igreja. Lá, todo mundo gosta de mim. Sente a minha falta. — Todo mundo, vó? — Fui confessar com o padre e ele me disse. “Você é uma santa, santa Martha” – soltou um sorriso. — Uai, como assim? — Menino, cê num sabe. Foi muito sofrimento. Seu vô não deixava eu trabalhar e caia no mundo. Tinha que dá conta. Nenhum filho meu virou bandido. Cuidei da família. De último, ele adoeceu. Cuidei dele até ele morrer. — Ele fez falta? — Xi. Foi é bom! Depois que ele morreu que eu conheci a cidade. Num podia sair, num te falei? — Mas e a história da santa? — Uai, o padre disse que quem levou uma vida sofrida como eu é santa. O padre disse que eu não tenho pecado. — Vamos embora – falou Conceição. Durante o trajeto, a velha senhora sente uma estocada no estômago. É a ansiedade que pede passagem. Antes da primeira cirurgia, teve diarreia só em pensar de ter aquele monte de médico em volta, raspando seu olho. Depois a recuperação. Pinga-pinga de colírio, de quatro em quatro horas, mesmo de noite, 93


sofrimento. Não reclamava. Sua filha mais nova sabia o que era bom para ela. É a vida! Quem cuidou de seis filhos, agora, recebia o cuidado. O carro parou em frente à casa da filha. Com muita dificuldade, ergueu seu corpo para a calçada. A primeira reprimenda de sua filha: “Firma o corpo, mãe”. Dona Martha procurou o apoio do braço do neto ao cruzar o portão. Quatro degraus precisam ser descidos, pois a casa fica abaixo do nível da rua. — Mãe, já te ensinei a descer essa escada. Deixa disso. Dona Martha ri, sem dentes, com gengiva a mostra. — Num disse! De fim, de finalmente, é tudo igual — entra na sala e anuncia com o sorriso na face. —Que Deus abençoa a todos nessa casa. Quem está com Ele, encontra a felicidade!

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Infantes de domingo

Voltando da padaria, domingo de manhã, meu andar se emparelha com uma mãe e seus dois filhos. Um garoto, de aproximadamente quatro anos e uma garotinha, de pouco mais de dois. Esta, em toda a sua pureza, vendo a saco de pão em minhas mãos, dispara a falar: — Já comi ali. Aponta para a padaria. —Vai comer onde? — Lá em casa —respondi. — Onde mora? — Do lado. — Qual o seu nome? — Flávio, e o seu? Ela fala, mas eu não entendi. O irmão ajuda: — Josiane. A mãe desconcertada: — Você é muito dada. — Quantos anos tem? – pergunto. Ela me mostra três dedos. — Três? – falo incerto olhando aqueles pequeninos dedinhos tentando mostrar a idade. — Ela tem dois – acode o irmão. 95


—Tchau, moço—despedem-se uníssonas as duas crianças. —Tchau. Abro o portão e entro no condomínio. Eles continuam seu caminho matinal e dominical, com a pureza e a inocência da infância.

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Almoco , de domingo

Don’Ana levantou lúcida em seu octogésimo aniversário, graças aos seus chás, ervas, rezas e mandingas. Alguns diziam que ela enterrara, embaixo de uma mangueira com o dobro da idade dela, um cajado que significava a sua alma. Por causa dessa lenda, os vizinhos afirmavam que, somente no dia que aquela mangueira morresse, Don’Ana faria a travessia. O lote de sua humilde morada tinha três casas nas quais filhos, filhas, noras, genros, netos e netas se apertavam. Uma quarta construção chamava a atenção. Era um quartinho tosco, minúsculo, sem janelas, de reboco mal feito e pintado de branco, telhado de palha, a mesma que cobria a entrada chamada de porta e sobre a qual uma cabeça de boi descarnada pintada em preto e vermelho fazia a ornamentação. A velha, descendente de escravizados, se dirigiu ao quarto dos segredos. Lá, acendia velas para divindades esquecidas, colocava cartas e fazia feitiços para agradar os clientes que desejavam atrair riquezas, amantes, afastar desamores, botar ou tirar quebrantos. Evidente, tudo em sete dias! Queria saber como seria o seu dia. Acendeu a vela, encheu um copo com água de uma bica e embaralhou um maço de cartas. A carta da morte apareceu. A água tingiu de vermelho. As galinhas cacarejaram. Saiu do quarto e foi até o galinheiro que ficava na parte de trás 97


de sua casa. Um ovo choco estava quebrado com um pinto mal formado dentro, morto. Era certo que algo tenebroso aconteceria em seu aniversário. Tinha que ficar atenta para evitar o malfeito. Os familiares começaram os preparativos. Montaram um palco para os sambistas. Às onze horas, o terreiro parecia um formigueiro. Toda a vizinhança e parentes de perto e de longe estavam lá. Tomavam a benção da matriarca, uns por respeito, outro por admiração, outros por medo. O cavaquinho, a cuíca, o surdo, o violão, os instrumentos estavam todos afinados. Samba, pagode e um chorinho, vez ou outra, animavam a todos que falavam alto, tomavam cerveja gelada e comiam o saboroso churrasco acompanhado de farofa, vinagrete e arroz. As crianças endiabradas corriam entre os convidados e as mesas, sem provocarem acidentes graves. Don’Ana fitava a todos. Quando mais jovem, a algazarra a entretinha. Agora, sentia o peso da idade, da responsabilidade de ter criado tantos. Apesar de adultos, enxergava sua prole como crianças que ainda lhe traziam problemas. Muitos trocaram os presentes por desculpas esfarrapadas. Olhou para Bentinho, já na casa dos sessenta. Gordo, roliço, sentado em um banco de madeira reforçada. Não chegaria aos setenta. Nina, a mais nova entre as filhas, tinha um filho atrás do outro. “Podia tomar juízo”, pensou. Os homens que ela arrumava sumiam depois de descobrir que estava prenha. Don’Ana acolhia os rebentos quando nasciam. “Neto meu não dorme na rua”, dizia. Vagner e Neném estavam no palco. O primeiro, 98


agredia o surdo, o outro, alisava o pandeiro. As pancadas de Vagner ensurdeciam o surdo como se o instrumento fosse calar o mundo. As brigas do casal eram constantes. Muitos diziam que a mulher, Valéria, o traia. Neném, depois que encontrou Valderez, os dedos e mãos ganharam outro ritmo. Eram alegres, mágicos. Fora difícil para Don’Ana aceitar os dois rapazes juntos. Estava tudo superado. Ninguém negava que o casal se amava. Cici, essa viajou para os Estados Unidos a trabalho. Fora ganhar a vida. Simone se entocou em um canto. Estava brigada com a família porque decidira ser mãe por produção independente e, óbvio, todos foram contra. Renato, onde estava o caçula? Era problemático. Cada dia uma mulher. Às vezes, tinha duas esperando por ele no portão. Em outro dia, o marido de outra queria matá-lo. O beijo dele no rosto da mãe ainda estava quente. Para onde foi? O surdo desafinou. O cavaquinho ralhou com Valter e pediu para ele maneirar. Don’Ana observou Valéria escorregar para dentro da casa. Em meio a tanto barulho, a velha escutou o cacarejar daquela galinha matutina. Pressentiu o perigo e foi atrás. Recusou todas as mãos que queriam ampará-la enquanto se levantava da cadeira. Entrou sozinha na casa. Atravessou a sala. Ao entrar na cozinha ,pegou a espada de São Jorge que descansava em um chifre de boi cheio de água preso à porta. Chegou ao quintal dos fundos. Sem pensar meia vez, desfez nas costas de Renato a espada de São Jorge. Seu filho encochava a cunhada, 99


perto do galinheiro. Tão rápido surgiu o vergo nas costas do filho sem camisa, os amantes se recompuseram, silenciosos. Nem as galinhas cacarejaram. Os olhos de Don’Ana queimavam em brasa. Os dois tinham desrespeitado a sua casa. — Oceis num tem vergonha – apontou para Renato. — Seu fio acha que é de outro pai. — Não tenho filho, mãe – argumentou Renato. — Cala! O fio de Valter com essa aí é seu fucinho! Valéria começou a chorar. Don’Ana acariciou a barriga da nora com a ponta da espada. — Cê tá grávida de novo. Já contô pra esse traste aí? Mas cê num vai te esse fio, tá morto — os amantes se olharam. —Chispa. Valéria enxugou as lágrimas e voltou para a festa. Renato ia junto. Ela o parou com a espada. — Espera pru pessoal não desconfiá. O silêncio foi interrompido por “Domingo no Parque”, que tocava no som do vizinho. A vergonha de Renato ardia na garganta. O filho dele com a cunhada foi concebido com o consentimento de Valter. Lancelote, Renato, Arthur, Valter, Guinevere, Valéria dividiram a mesma cama. — Renato, isso é segredo nosso – falou a matriarca e tomou o braço do filho para voltarem para a festa. Don’Ana sentiu-se pesada com a idade. No coração do filho, um novo segredo entupia mais uma artéria.

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Num domingo qualquer, qualquer hora Ventania em qualquer direção Sei que nada será como antes, amanhã (Nada será como antes, Milton Nascimento)

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Encontros e despedidas

Marquinhos corria morro acima. As ladeiras de Ouro Preto, entre casas centenárias tombadas pelo patrimônio histórico e pintadas de azul e branco colonial, expressão singular do barroco mineiro, exigiam vagareza de qualquer mortal. Parar, vez ou outra para tomar fôlego e esfriar a moleira na sombra de uma loja, abrigado do sol do meio-dia para, só depois continuar, lentamente. Mas, a situação exigia pressa e respirou fundo, ignorou as câimbras e continuou, correndo, correndo e driblando turistas de algum país europeu, subindo escadas, escapando de um balde de água suja que alguém resolveu jogar da sacada de uma casa. Parecia caso de vida e morte. Assim que entrou na pequenina rodoviária, dirigiu-se, ainda apressado, para a área de embarque. Avistou dois ônibus da empresa Pássaro Verde estacionados nas plataformas A e B. O assistente de bagagem alojava os volumes no compartimento. Depois de etiquetá-los devidamente, devolvia ao dono o canhoto para que pudesse recuperá-los no destino final. Ondas de calor saiam dos motores ligados. Em breve seguiriam viagem. Na plataforma, Zé Ruela, o apelido de Zeferino Horta, nome pouco comum para quem nasceu em 1975, se despedia da família. Era esse o motivo da maratona que Marquinhos, sozinho, acabara de disputar. Seu 105


amigo estava de partida e ele não podia deixar de se despedir. Zé Ruela já havia lhe confidenciado sua decisão há alguns meses. Iria para Portugal e, depois, para a Inglaterra, onde residiria permanentemente. Marquinhos, entre a tristeza e a felicidade, apoiava a decisão do amigo. Afinal, não se sentia com o direito de solapar os sonhos dos outros. Amigos, sim. Amigos de longa data. Daqueles que se vão, mas que sempre deixam um pezinho para trás. Que dividem momentos, dores, dúvidas, sonhos, desilusões, amores. Aproximou-se lentamente do companheiro prestes a partir. Observava os familiares dele se revezarem entre abraços e choros. Tempo necessário para que o suor de Marquinhos secasse e os batimentos cardíacos adquirissem compasso menos acelerado. Lembrou-se de fatos que marcaram a convivência dos dois. Os carnavais nas ruas e nas repúblicas, sempre sensacionais. Aline, a ex-namorada de Marquinhos que, na mesma época, Zé Ruela também namorou. Traição que todos sabiam, mas que nunca, nenhum havia revelado ao outro. Partidas de xadrez memoráveis. As discussões sobre literatura. A grande aventura de assistir ao filme “O Senhor dos Anéis” em sua estreia em Belo Horizonte. Essa última, não seria digna de nota, se os dois não tivessem deixado de fazer a ceia de Natal com as suas famílias para dormir na rua, lá na capital e serem os primeiros a comprar os ingressos. Falharam. Tiveram que se contentar com o segundo e o terceiro lugares. A primeira fora Aline. A cumplicidade desses companheiros não passou despercebida aos olhos tradicionais das famílias 106


e ao escárnio dos colegas. Às vezes, por trás dos ombros, eram chamados de Aquiles e Pátroclo. Das ofensas e insinuações, Marquinhos era quem mais se incomodava. Entretanto, Zé Ruela, mais calmo e maduro, dizia-lhe para ignorar. “Os tolos nunca entenderão o que se passa entre nós” – falava e olhava para Marquinhos de forma desconcertante. Talvez fosse por isso que Zé Ruela procuraria por outros parafusos, em outros lugares para se encaixar. Novas perspectivas, experiências, outros amigos. A insegurança de ver o companheiro partir se revelou uma fincada no estômago. Marquinhos, a poucos passos de Zé, pensava: “Ele se esquecerá de mim.” A família abriu espaço e Marquinhos se aproximou. Os dois se olharam. Pupila contra pupila, refletiam a imagem um do outro. Os dois se abraçaram e lágrimas frias rolaram pelas duas faces, a preta, de Marquinhos, e a branca, de Zé Ruela. Um abraço demorado, abraço de nunca mais. Zé puxou uma sacola de algum lugar. Apenas disse antes de entrar no ônibus: —Esse presente é para nunca se esquecer de mim, porque nunca me esquecerei de você. Era um box com a triologia do filme “Senhor dos Anéis” em DVD. Na caixa, escrito a mão, os dizeres “Para Quito. Te amo, meu amigo, meu irmão”. Assim, partiu Zeferino, partiu Zé Ruela, partiu Aquiles, com “Paula e Bebeto” e “Canção da América”. Ficou Marquinhos, ficou Pátroclo, com “Encontros e Despedidas” e “Nada Será Como Antes”, nessa ouropretana tarde ensolarada de domingo.

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Copyrigth© 2019 Editor Filipe Lutalo Capa Edusá Projeto gráfico Filipe Lutalo Alexandre de Sena Revisão Filipe Lutalo Fernanda Moraes Apoio

Este livro segue as novas regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Todos os direitos reservados a Filipe Lutalo. É vetada a reprodução por qualquer meio, sem a permissão por escrito do editor, de parte ou totalidade do material escrito. Este livro foi impresso em julho de 2019, na Gráfica e Editora O Lutador, em Belo Horizonte/MG. O papel de miolo é Polen Bold 70g e o de capa é em Supremo 250g. Tiragem: 500 exemplares Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles.

Filipe Lutalo Rua Manoel Pinheiro Diniz, 453. Contagem. Minas Gerais. CEP 32041-140 Telefone: 31 988732880 www.filipelutalo.com.br

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Filipe Lutalo nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 1979. Atualmente, reside em Contagem-MG. Graduado em Química (licenciatura) pela UFMG, é professor e coordenador voluntário na rede Educafro-MG e analista de materiais poliméricos no setor privado. Estreia como autor na Editora Andross com o conto “Cães” na antologia SEDE, CONTOS DISTÓPICOS DE UM FUTURO SEM ÁGUA (2015). O conto ficou entre os cinco melhores do Prêmio STRIX 2015, concurso realizado pela editora para escolher o melhor conto da antologia. ALMOÇO DE DOMINGO é um livro que surge de observações do ser humano sendo humano. É a primeira obra solo do autor. Seus principais hobbies são: jogar RPG, ler e cozinhar para os amigos. Mantém os blogs RPGames Brasil e Filipe Lutalo (escritor e químico). e-mail: filipe.lutalo@gmail.com site: www.filipelutalo.com.br



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