Cadernos Adufrj-SSind No. 1 - Que copa é esta?

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Ano 1 - nº 1 - junho/julho/agosto de 2014

QUE COPA É ESTA?

JUNHO DE 2013. No auge dos protestos, tropa posicionada diante do estádio Mané Garrincha, na capital do Brasil, durante a Copa das Confederações


LEANDRO NEUMANN CIUFFO


O Maracanã do povão e das explosões das torcidas nas tardes de domingo não existe mais. Vestiram nele a roupa do mercado para a grande festa dos negócios. A assepsia da sua nova arquitetura e os preços proibitivos interditam o acesso da cidade suburbana às suas arquibancadas que, aliás, desapareceram. Pelo simbolismo, o estádio concentra as contradições que reduziram a realização da Copa do Mundo no Brasil a uma grande encrenca. Enredaram o Maracanã em contas superfaturadas e, em seguida, veio a privatização. O Maraca foi implodido como, aliás, sugeriu certa vez João Havelange.


NO FOCO

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O público e o privado

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O sentido das palavras

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Ano 1 - nº 1 - junho/julho/agosto de 2014 Diretoria da Adufrj-SSind Presidente Cláudio Rezende Ribeiro 1ª Vice-Presidente: Luciana Boiteux de Figueiredo Rodrigues 2ª Vice-Presidente Cleusa dos Santos 1º Secretário José Henrique Sanglard 2º Secretário Romildo Vieira do Bomfim 1º Tesoureiro Luciano Rodrigues de Souza Coutinho 2ª Tesoureira Regina Célia de Souza Pugliese Coordenador de Comunicação Luiz Carlos Maranhão Editor Assistente Kelvin Melo Projeto Gráfico e Diagramação Gil Castro Foto de capa Midianinja Arte sobre foto Gil Castro

A bola vai rolar... pra que lado?

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A rua que educa

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Copa para quem? Os grandes eventos esportivos sob o olhar dos direitos humanos

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Uma publicação da Coordenação de Comunicação da Adufrj-SSind. Os artigos assinados não expressam necessariamente a opinião da Diretoria.

Grandes eventos esportivos e a cidade Quem joga e quem fica de fora? Invisibilidades na cidade dos Megaeventos Planejamento e a perspectiva do reconhecimento das desigualdades de gênero

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NO PRELO Copas e ditaduras LIVROS Coletânea da Boitempo discute Copa e Olimpíadas PORTFÓLIO Uma leitura plástica da Copa no Brasil

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O PÚBLICO E O PRIVADO

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Brasil nunca foi o território da passividade, da ausência de luta, da aceitação de injustiças. As desigualdades que acompanham sua história sempre foram combatidas de formas variadas e muito intensas, seja no campo, seja nas cidades: dentre estas, o Rio de Janeiro possui uma tradição combativa e popular extraordinária. O cenário contemporâneo reforça esta história. Por um lado, há uma política urbana que aprofunda o processo de mercantilização do solo urbano, elevando seu preço, privatizando seu uso, ampliando desigualdades, enfim, transformando a cidade do Rio de Janeiro em um negócio que, para realizar seu ganho, demanda ações violentas que perpassam pela vigilância intensiva, o retorno

às remoções, a ampliação de vulnerabilidades várias. Estas ações têm consequências drásticas no campo dos direitos sociais tais como habitação, segurança, educação e saúde públicas. Cada vez mais, o espaço da cidade naturaliza seu uso, sua finalidade e seu controle privados. Como resposta, protestos das mais diversas formas e reunindo diferentes bandeiras têm cada vez mais tomado conta da paisagem urbana, retomando, na sua concretude, o lado público do espaço coletivo através da luta. Nesta a primeira edição da revista Cadernos Adufrj, que integra a comemoração dos 35 anos da Seção Sindical, trazemos para o debate diferentes maneiras de observação crítica a respeito da resistência a este projeto hegemônico de cidade, acelerado

pela realização dos megaeventos esportivos (Copa e Olimpíadas). Ensaios feitos por professores sindicalizados de diversas áreas da UFRJ, mostrando a possibilidade de articulação que o pensamento crítico possui constrói, ao mesmo tempo, um espaço de reflexão que abre um debate para além da esfera universitária, ampliando as formas de entendimento da realidade na direção de reforçar a necessidade de resgate daquilo que é público. Neste número, participam professores das áreas de Arquitetura e Urbanismo, Direito, Educação Física, Letras e Planejamento Urbano e Regional. Além dos seus ensaios, uma entrevista traz os estudantes do DCE-Mário Prata, entidade que tem protagonizado, de forma cada vez mais ativa, a retomada da vida política de nossas ruas. Somente uma educação pública, gratuita e de qualidade permite haver este tipo de ação reflexiva autônoma. É tarefa de todos nós batalharmos para manter um espaço público de reflexão por excelência: boa leitura! Saudações sindicais, Diretoria da Adufrj-SSind

AGÊNCIA O DIA

▼▼ IMPLOSÃO A cidade sob ataque da lógica neoliberal tem o seu espaço mercantilizado por decisões autoritárias


ARTIGO

O SENTIDO DAS PALAVRAS


SAMUEL TOSTA

Uma reflexão sobre a linguagem dos muros na sua expressão simbólica e real. Muros da rebeldia, muros da segregação


ARTIGO

OS MUROS DO SIM E D ▼▼ CINDA GONDA*

prendera sobre os sentidos das palavras saudade e melancolia na linguagem dos muros. O primeiro, ligado à infância, resgatava o vulto da avó, num vestido de minúsculas flores. Era carnaval. No colo do pai, visitaria o Centro da cidade, para assistir ao desfile de tradicionais blocos de frevo: Lenhadores, Pás Douradas, Vassourinhas. Ela, a avó, ficava. Cotovelos apoiados ao muro, com as pequenas mãos a sustentarem o rosto. O segundo recuperaria a silhueta de um homem de meia-idade que, parecendo cumprir um ritual, à hora de sempre, aproximavase do muro da casa em que morava e ali se deixava ficar, com os olhos perdidos no vazio da rua. Quem por ele passava dirigia-lhe um cumprimento grave, quase * Professora da Faculdade de Letras da UFRJ

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inaudível, carregado de reverência. A casa verde talvez lhe recordasse um gramado antigo. Curiosamente, a cor seria mantida pelos futuros ocupantes. Chamavase Barbosa. Quem o via imaginava que o mesmo filme estaria rebobinado em sua mente, na tentativa frustrada de agarrar a bola que lhe escapava. Era goleiro na seleção brasileira de 50. Ao levar o gol, ao final do segundo tempo, silenciaria o Maracanã, inaugurado para a Copa daquele ano. Ghiggia, o ponta direita uruguaio, chutara com precisão. Barbosa para muitos representou o herói trágico. As imagens, arquivadas em algum ponto da memória, retornam vivamente quando se percorre as ruas do bairro. Tais instantes parecem trançar os fios de elementos fortemente arraigados em nossa cultura — o carnaval e o futebol. Ambos passaram por mudanças. Quando se julgava que o primeiro desapare-

ceria frente ao aparato empresarial, dominando as grandes escolas de samba, dos ingressos a custos inacessíveis ao público, como se fora uma Fênix renascida, surgiria revigorado, quer nas bandas dos bairros, quer na explosão dos incontáveis blocos da cidade. O futebol, parecendo acompanhar o mesmo movimento, se transformou, desapareceu dos “campinhos” de terra batida nos subúrbios, onde se praticava o esporte de pés descalços, e migrou para as quadras de futebol de salão. Ficariam para trás chutes geniais como a inesquecível “folha seca” do elegante Didi. O verde não evocaria apenas o gramado, ganhara um novo significado: o das altas transações comerciais. Um pouco da história de recantos, lugares e cidades pode ser contado na linguagem dos muros, numa intrigante trama alquímica de palavras, símbolos e fórmulas pincelados.


ROSILENE MILIOTTI

O NÃO

“Não há retorno: tudo é labirinto.” Eugénio de Andrade

Frases como Celacanto provoca maremoto, cujo enigma tentavase decifrar, ou as explícitas Abaixo a ditadura, Anistia para todos, Liberdade; ou ainda: Gentileza Gera Gentileza, remetem-nos a um passado não muito distante, em que o espaço público funcionava como palco para as reivindicações que fervilhavam. À mesma época, do outro lado do Atlântico, outras inscrições nos chegariam, mantendo por aqui a chama da esperança: Seja realista, exige o impossível, A imaginação no poder. Estávamos em maio de 68, na França. A força da juventude, como num rastilho de pólvora, parecia incendiar o planeta. Pouco depois, José Cardoso Pires, seu livro E agora, José?, nos daria notícia dos diversos aspectos da Revolução dos Cravos, que, dia 25 de Abril de 1974, pôs fim a 48 anos de regime salazarista. Ainda uma vez, os muros, até

zes, no diálogo dos muros”, [...] muito do nosso saber está resumido ali, [...] e foi escrito por toAté os muros, que antes eram ve- dos e ninguém — o homem que dações impávidas ou autoritárias passa e o militante nocturno, o (na realidade recusavam qualquer artista de mão ignorada e o proaproximação com a ameaça do feta comum”. (PIRES, p. 270) proibido: “proibido afixar”, “proiDez anos depois dos cravos, bido estacionar”) até os muros se no Brasil, viveríamos o períotornaram livres e populares. Mais do das “Diretas Já”. A votação ainda: falam, criticam a vida com da emenda constitucional Dano hábil diabólico humor do anonite de Oliveira ocorreria em 25 1 mato. Daí que, como narra o autor, de abril de 1984. Não poderia encontrássemos numa facha- se tratar de simples coincidênda de igreja a anotação: “Deus cia. O país clamava por mudané parvo!”. No dia seguinte ou- ças. Comícios fantásticos paretra mão acrescentaria: “Parvo és ciam revelar que finalmente retu. Assinado: Deus”. Numa ou- cuperávamos a cidadania. Do desejo, passou-se à frustração tra inscrição é possível se ler: “O — a emenda, por poucos vovoto é a arma do povo”. Logo em tos, foi rejeitada. Desorientado, seguida outro responde: “Se vosem que nenhum sentido, rumo tas ficas desarmado”. Prossegue ou direção lhe fosse proposto, o Pires, vivia-se o fértil período do clamor silenciou. diálogo, “diálogo a todas as voentão caiados, surgiriam em Lisboa, da noite para o dia, repletos de inscrições:

1 PIRES, José Cardoso. E agora, José? Lisboa: Moraes Editores, 1977, p. 269.

Sabemos que tudo na vida se ergue sobre contradições. Se por um lado evocamos os muros e junho/julho/agosto de 2014

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ARTIGO

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no estopim para que leis draconianas e repressivas surgissem, criminalizando o direito de protestar e semeando o medo, atrás do objetivo final de esvaziar as ruas. A prisão de dois jovens serviria como exemplo aos incautos. Um ano depois, junho retornaria, com outras palavras a anunciá-lo. Sabe-se que a escolha do Brasil para sediar a Copa e os Jogos Olímpicos trouxe profundas alterações. Algumas áreas, no subúrbio, por exemplo, assistem à destruição de bairros inteiros. Os poucos espaços de lazer, uma pracinha — onde a garotada, a cada tombo da gangorra ou do balanço, ralava o joelho, porque grama tratada é privilégio para poucos (única diversão do lugar) — teve suas dimensões drastica-

mente reduzidas. Viadutos imponentes passam pela frente de escolas, ocupam o lugar de lojas comerciais e/ou casas centenárias. Isto para não falar do processo de remoção, que agora atinge o asfalto; “as casas simples com cadeiras na calçada” desaparecem. Desorientadas, as pessoas não sabem a quem recorrer: “Aqui me criei. Nesta casa, me casei. Aqui, meus filhos e netos nasceram. Tinha o direito de aqui, em minha casa, morrer.” Vinda de muito longe, de tempos imemoriais, outra voz a ela parece se juntar, “nada responde a nada”. Em meio a tudo isso, o paradeiro das vigas da perimetral, da extensa e preciosa fiação de cobre dos bondinhos de Santa Teresa permanece desconhecido. Por onde andarão? Projetos ficam a meio do caminho, como o do Porto Maravilha. ▼▼ MURO DA VERGONHA A mobilidade se mantém preO muro que separa o México (à cária, como precárias e insufidireita) dos EUA (à esquerda). Vigilância 24 horas por patrulhas cientes são as políticas (se ao menos existissem...) de saúde e edupoliciais fortemente armadas RYAN BAVETTA

suas lições, também é certo que a simples menção à palavra vem carregada de outros significados. Da euforia pela queda do Muro de Berlim, em 1991, assistimos, não sem perplexidade, à construção de outros que se erguiam: nos Estados Unidos, demarcando a fronteira com o México; no Oriente Médio, isolando os palestinos, tendo como objetivo o de impedir a circulação de pessoas. A lógica perversa parece confirmar que o capital se move. A mão que o produz, não. O Brasil acompanharia a tendência. Há os que cercam as favelas, os das vias expressas, como nas Linhas Vermelha e Amarela. É certo que nem todo processo que separa e divide é facilmente visível, detectável. Lima Barreto, ao final do século XIX, denominaria de “fronteira simbólica” a que separava os limites entre Zona Norte e Zona Sul. A precarização do trabalho, a restrição aos direitos humanos, o sucateamento da saúde e da educação, o rápido acesso à informação se alastrando pelas redes sociais produziram um período de manifestações de rua em várias partes do mundo. Diversos segmentos da sociedade civil, servidores públicos, bancários, estudantes, médicos e professores denunciavam a precariedade das instalações hospitalares, com a crônica falta de recursos, as universidades com salas de aula que se deterioravam e o consequente aviltamento dos salários, no ensino médio e fundamental. A cada chamado, a população comparecia e correspondia, com todas as contradições que porventura ali pudessem existir. A morte de um cinegrafista se transformou


cação públicas. A carência dessas importantes áreas, os parcos recursos a elas destinados geram insatisfação, talvez por doloroso contraste com os robustos aportes financeiros destinados à agenda esportiva programada e (in)consequentes investimentos. Ainda uma vez, os muros falam: Não vai ter Copa. As palavras de Gerd Bornheim parecem ganhar confirmação: “O povo não é bobo. Compra Omo sabendo que não lava mais branco”. Não sem uma ponta de nostalgia, experimenta-se a sensação de vazio, de algo que se perde, mas que ainda não se consumou, como se um pouco de nossa história, um pouco de nossa cultura lentamente se esfumaçasse. O fim da Geral do Maracanã, não deixa de marcar o término de uma era, fixada em imagens do “Jornal da Tela”, que antecedia a projeção do filme programado semanalmente. Ali o povão explodia de alegria quando a rede balançava. A trilha sonora, com seus metais vibrantes, hoje sofre uma releitura mais apropriada, condizente com os tempos que correm. A letra da canção é sussurrada, talvez envergonhada pelo alto preço do ingresso, acessível apenas ao novo público que poderá comparecer. Tempos de FIFA, porque a ela pertence o poder de determinar regras, ou, se preferirmos, tempos de “imperialismo cultural”. Sigamos as palavras de Pierre Bourdieu em “O mundo norte-americano. A Nova Bíblia de Tio Sam”.

Joel Birman, reconhecido psicanalista, em palestra proferida na Faculdade de Letras da UFRJ (2009), considerava que a época que vivemos encontrase destituída de paixões. Ao discorrer sobre o tema, recuperava os grandes embates, que se travavam sempre, ou quase sempre, por (des)razões de amor, envolvendo estrelas e astros da MPB, como, por exemplo, Dalva de Oliveira e Herivelto Martins. Desses confrontos, resultavam os sambas-canções que expunham de forma rasgada a “dor de cotovelo”. Segundo ele, “hoje tudo é muito clean, tudo muito bem comportado”. As pistas fornecidas por Birman, talvez revelem a mudança radical da classe que frequenta o novo Maracanã. Afinal, se há algo caro à burguesia é o traço da contenção, tudo deve ser medido, con-

A difusão dessa nova vulgata planetária — da qual estão notavelmente ausentes capitalismo, classe, exploração, dominação, desigualdade, e tantos vocábulos de-

2 BOURDIEU, Pierre e WACQUANT, Loïc. O Mundo Norte-Americano. A Nova Bíblia de Tio Sam. Trad. Teresa Vaer Acker. Fórum Mundial, Porto Alegre. 2002. www.dhnet.org.br

cididamente revogados sob o pretexto de obsolescência ou de presumida impertinência — é produto de um imperialismo apropriadamente simbólico: seus efeitos são tão mais poderosos e perniciosos porque ele é veiculado não apenas pelos partidários da revolução liberal — que, sob a capa da “modernização”, entende reconstruir o mundo fazendo tábula rasa das conquistas sociais e econômicas resultantes de cem anos de lutas sociais, descritas a partir dos novos tempos, como arcaísmos e obstáculos à nova ordem nascente, porém também por produtores culturais (pesquisadores, escritores e artistas) e militantes de esquerda que, em sua maioria, ainda se consideram progressistas.2

trolado — o gesto, a palavra, o prazer — porque o processo de produção tem de ser preservado a qualquer preço. No horizonte burguês, não há história, só natureza — a burguesa, por suposto. A linguagem dos muros, como um toque de alerta, envia sinais. Grafites criativos, mensagens, continuam a significar. Rostos desenhados sem as bocas dão conta da censura, do silêncio imposto. De uma janela, avistase a inscrição recente: “Emancipa Teresa. Bairro Anarquista Já. AUTOGESTÃO.” No momento em que o Estado laico se vê ameaçado por fanatismos religiosos, em que alianças políticas impensáveis proliferam, limitando a possibilidade de escolhas em pleitos eleitorais, não deixa de ser estimulante o convite que dessacraliza o bairro antigo. Recuperemos o dia 12 de junho de 2012. Estávamos em greve e a Universidade saindo de sua letargia. Dentre as atividades programadas, panfletaríamos a Central, o Centro da Cidade. O fim da jornada nos encontraria cansados, mas confiantes. Um coração vermelho, com a frase “Saúde e Educação: Namore essa ideia”, cativou quem o recebia. Barrar os avanços da EBSERH, e a consequente privatização do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho e de outros em diversas universidades do país, foi um dos resultados da luta. Por vezes, um não é uma forma de se afirmar, funciona como um porto onde, vez por outra, ancoramos a esperança. junho/julho/agosto de 2014

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ROBERTO STUCKERT FILHO/PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

▼▼ RIO DE JANEIRO Cerimônia de sorteio preliminar da Copa do Mundo da Fifa Brasil 2014

A BOLA VAI ROLAR... PRA QUE LADO? ▼▼ CARLOS VAINER*

I. A FAGULHA E A PRADARIA

* Professor Titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Coordenador da Rede de Observatórios de Conflitos Urbanos e do Núcleo Experimental de Planejamento Conflitual.

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De junho a agosto de 2013, 10 a 15 milhões de pessoas foram às ruas, em mais de 500 cidades, nas mais diferentes regiões do Brasil. Pela rapidez com que se espraiaram, pelas multidões que mobilizaram, pela diversidade de temas postos, as manifestações ofereceram à sociedade brasileira um desses raros momentos da história em que a possibilidade de mudanças e rupturas se impõe à agenda política da sociedade, e,

em alguns casos, acaba tornando possíveis algumas transformações sociais e políticas que pareciam inalcançáveis e inimagináveis poucos dias antes. Governantes, políticos de todos os partidos, imprensa, cronistas políticos e grande número de cientistas sociais foram pegos de surpresa por eventos que mudavam a face e o quotidiano de nossas cidades. Também surpreendente a maneira com que os acontecimentos vinham desfazer, ao menos parcialmente, o paradoxo de uma sociedade ur-


ARTIGO bana que, nos últimos 10 a 20 anos, viu os movimentos sociais rurais dominarem as pautas das lutas populares. Se no processo de democratização e nos anos 1980 o movimento operário e os movimentos urbanos pareciam traduzir politicamente as contradições da modernização e urbanização aceleradas por que havia passado a sociedade brasileira desde o pós-guerra, o período que se abriu nos anos 1990 apontou para uma espécie de “ruralização da luta social”: MST (Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra), MAB (Movimento de Atingidos por

Barragens (MAB), resistência de populações tradicionais à destruição de seus meios e modo de vida ocuparam o proscênio da arena política popular. Há muito tempo, multiplicavam-se, no tecido social urbano, diferenciadas, dispersas e fragmentadas manifestações de protesto, insatisfação e resistência. O que provocou esta unidade que tantos desejaram e outros tantos procuravam evitar? Em termos imediatos e conjunturais, a resposta provavelmente estaria na arrogância e brutalidade dos detentores do poder. Sua incapacidade de perceber a velha toupei-

ra1 que trabalhava no subsolo do tecido social, promoveu, em poucos dias, aquilo que militantes, organizações populares e setores do movimento social urbano vinham tentando há algum tempo: unificar descontentamentos, lutas, reivindicações, anseios. Estamos assistindo, e ainda hoje, à prepotência dos grupos políticos e do conjunto de interesses que, em torno dos megaeventos esportivos (Copa do Mundo 2014, Jogos Olímpicos Rio 2916), 1 “Nos sinais que alarmam a classe média, a aristocracia e os infelizes profetas da reação, reconhecemos nosso bom amigo, Robin Hood, a velha toupeira que sabe trabalhar tão bem sob a terra para aparecer bruscamente: a revolução” (Marx, 1856).

MIDIANINJA

▼▼ DESPEJO Mãe e filha expulsas da Favela da Telerj no Rio de Janeiro junho/julho/agosto de 2014

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associaram a mídia, grandes corporações nacionais, especuladores, empreiteiras e o cartel empresarial internacional articulado pela FIFA e COI. Sua cegueira, autossuficiência, violência, assim como o indisfarçável ataque ao fundo público, trouxeram para a esfera da ação coletiva centenas de milhares, milhões de jovens até ontem distantes da experiência política, jovens e outros não tão jovens, que embora descontentes, até há pouco tempo achavam que nada se podia fazer... a não ser aceitar a reprodução do status quo. Chamamos a isso de autismo social e político dos dominantes: as redes de televisão não apenas projetam um mundo fictício através de suas mensagens como, elas também, parecem ser envolvidas pela mistificação que produzem. O fato é que foram rapidamente ultrapassados. Tiveram que reconhecer que estavam diante de uma ampla, poderosa, profunda e abrangente manifestação política de protesto. À margem dos partidos e organizações políticas e sindicais tradicionais, incapazes de canalizar e expressar a vitalidade e a diversidade dos protestos e reivindicações, nem por isso tratou-se de um processo “sem política” ou “sem foco”. O foco estava lá, só não viu quem olha para a árvore e não vê a floresta: transporte, saúde, educação, corrupção, democracia, desperdício dos recursos públicos, participação política, direitos humanos. Sob alguns aspectos, chega a ser surpreendente o altíssimo nível de consciência política expressa, embora de forma pouco organizada, pelos milhões que estavam indo às ruas.

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MIDIANINJA

ARTIGO

Este movimento não foi casual. Embora não estivesse escrito desde o início dos tempos que ele ocorreria, não ocorreu por acaso. E se a violência repressiva o deflagrou, não o explica. Uma fagulha pode incendiar uma pradaria, dizia Mao Tsé-Tung2. Ora, qualquer esforço de análise que pretenda examinar os processos em curso desde uma perspectiva histórica deve dirigir seu olhar não para a fagulha que deflagrou o incêndio, mas para as condições da pradaria, que, estas sim, explicam porque o fogo pode se propagar. A pradaria, como agora se sabe, estava seca, pronta pra incendiar-se. E o vento soprava de maneira intensa para espalhar o primeiro fogo.

II. A PRADARIA: A CIDADE NEOLIBERAL, A CIDADE-EMPRESA, A CIDADE-MERCADORIA A pradaria são as cidades. O que aconteceu nas cidades brasileiras nos últimos anos que 2 Texto escrito em 1930 que integrou o famoso livro vermelho que foi a bíblia da primeira etapa da Revolução Cultural.

as preparou para se tornarem não apenas o cenário, mas também, e sobretudo, o objeto e alvo das lutas de milhões? Megaeventos, meganegócios, megaprotestos. Não há como não reconhecer a conexão estreita entre os protestos em curso e o contexto propiciado pelos intensos e maciços investimentos urbanos associados à Copa do Mundo 2014 e, no caso do Rio de Janeiro, também aos Jogos Olímpicos 2016. Mas se queremos ir além da superfície, há que entender as transformações que estes megaeventos imprimem em nossas cidades e a concepção de cidades que eles expressam e atualizam de forma intensa. A adoção das diretrizes e concepções neoliberais que reconfiguraram as relações entre capital, estado e sociedade, a partir da última década do século passado, teve profundas repercussões no lugar e papel da cidade no processo de acumulação. Sob a égide do Consenso Keynesiano e do que ficou conhecido como “estado do bem-estar social”, a cidade deveria ser regida pelas necessidades mais gerais da acu-


▼▼ CIDADE DIVIDIDA Favelas sem saneamento convivem com moradias da classe média

mulação e circulação do capital, cabendo ao planejamento (modernista) a tarefa da racionalização e funcionalização do espaço urbano através de instrumentos que se generalizaram a partir da II Guerra Mundial, planos diretores e zoneamento, em primeiro lugar. Agora, com a derrocada das economias e sociedades com planejamento estatal centralizado e a crise do Consenso Keynesiano, sob a égide do Consenso de Washington, a cidade passa a ser investida como espaço direto e sem mediações da valorização e financeirização do capital. Concebidas enquanto empresas em concorrência umas com as outras pela atração de investimentos, turistas e eventos, as cidades e os territórios se oferecem no mercado global, entregando a capitais cada vez mais móveis recursos públicos (subsídios, terras, isenções). A guerra fiscal é apenas uma das formas da nova urbanidade global, que empurra coalizões locais de poder a buscarem articulações a nível nacional e internacional que assegurem a cada cidade — leia-se, aos

capitais e capitalistas localizados — uma inserção, mesmo que subordinada, no mercado global. O que caracteriza esta nova concepção, neoliberal, de cidade e de governo urbano? Em primeiro lugar, fiel à inspiração neoliberal, o novo modelo vai levar ao banco dos réus a pretensão estatista e dirigista do planejamento moderno e seus planos diretores, condenando inapelavelmente o voluntarismo dos que pretendiam, e ainda pretendem, impor os modos, ritmos e direções do desenvolvimento urbano. Na cidade, como na sociedade de modo geral, a intervenção do Estado é vista como algo nefasto, que inibe o livre jogo das forças de mercado, que os cânones do liberalismo econômico proclamam ser o mecanismo mais eficiente para uma alocação ótima dos recursos. Na cidade, por analogia, trata-se se abandonar a pretensão compreensiva e dirigista dos planejadores racionalistas e submeter a intervenção do Estado às lógicas, dinâmicas e tendências de mercado. Chegou a vez, para seguir a fórmula do Banco Mundial, do “planejamento amigável ao mercado” (market friendly planning) ou do “planejamento orientado para/pelo mercado” (market oriented planning).

III. DA CIDADE NEOLIBERAL À CIDADE DE EXCEÇÃO E À DEMOCRACIA DIRETA DO CAPITAL Descartados o plano diretor e o zoneamento, por sua rigidez e constrangimentos inaceitáveis ao mercado, ensina-se agora nas escolas de planejamento, urba-

nismo e administração, assim como propagam agências multilaterais e consultores internacionais: face à competição que lhes impõe a globalização, as cidades precisam de mecanismos ágeis e flexíveis que permitam aproveitar as “janelas de oportunidades” (“windows of opportunities”). Ao invés de regulação, negociações caso a caso, projeto a projeto, na concretização do que o urbanista francês François Ascher nomeou com a feliz expressão de “urbanismo ad hoc”3. O master plan cede o lugar ao master project4. Flexível, negocial, negociada, a cidade-negócio se atualiza, quase sempre, através de PPPs (parcerias público-privadas), novas formas de relacionamento entre Estado, capital privado e cidade. A negociação entre a municipalidade e promotores privados, à margem e, quase sempre, em clara violação do plano diretor, configura uma cidade de exceção, em que vige uma espécie de “democracia direta do capital”. Certamente, a cidade de exceção e da democracia direta do capital não são o resultado dos megaeventos. Na verdade, pode-se afirmar que os megaeventos só se tornaram possíveis, no formato que adquiriram nas duas últimas décadas, porque têm à sua disposição cidades reconfiguradas pelos novos modelos de planeja3 “O neourbanismo privilegia a negociação e o compromisso em detrimento da aplicação da regra majoritária, o contrato em detrimento da lei, a solução ad hoc em detrimento da norma.” (Ascher, 2001: 84) 4 No caso brasileiro, esta concepção foi entronizada pelo Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 10/07/2001, artigo 32), com o nome de “operação urbana consorciada”, que permite a aprovação de projetos em desacordo com a legislação vigente.

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ARTIGO mento (se é que o nome se aplica) neoliberal. Os Jogos Olímpicos de Barcelona se transformaram numa espécie de mito de origem5. Mas, ao mesmo tempo, os megaeventos precipitam, intensificam, generalizam e consolidam a cidade de exceção e a democracia direta do capital. A cidade neoliberal aprofundou e agudizou os conhecidos problemas que nossas cidades her5 Realizados em 1992, os Jogos Olímpicos de Barcelona constituem, ainda hoje, uma espécie de modelo ideal. Nesta cidade, em estreita conexão com a adoção de metodologia de planejamento estratégico competitivo inspirados nas tecnologias criadas para grandes corporações capitalistas na Harvard Business School, no final da década de 1970, o megaevento esportivo associouse a uma profunda transformação da forma e conceito de cidade. Em 1996, alguns dos ideólogos e propagadores do modelo catalão, com destaque para Jordi Borja e Manuel Castels, foram convidados a produzir texto de inspiração e diretrizes para a Habitat II — Second United Nations Conference on Human Settlements, organizada pela United Nations Centre for Human Settlements, em Istambul. O livro de Borja e Castel (1997) trasformouse numa espécie de bíblia do novo modelo — estratégico, competitivo, empresarial — de cidade e planejamento urbano, adotado universalmente pelas agências multilaterais.

daram de 40 anos de desenvolvimentismo: favelização, informalidade, serviços precários ou inexistentes, desigualdades profundas, degradação ambiental, violência urbana, congestionamento e custos crescentes de um tranporte público precário, espaços urbanos periféricos que mal merecem o qualificativo de urbano. Neste contexto, o surprendente não é a explosão das multidões que foram às ruas, mas que ela tenha tardado tanto.

IV. FOGO DEBELADO... AINDA RESTAM BRASAS? Passado quase um ano da explosão de junho de 2013, às vésperas do início da Copa do Mundo, muitos se perguntam: e agora? Algumas certezas já se consolidaram, e não apenas entre pesquisadores. Todos sabem que a Copa do Mundo e as Olimpíadas são um grande negócio, do qual poucos se beneficiam — especuladores, empreiteiras, corporações do cartel da FIFA e do INTERNET

▼▼ CAOS NO RIO Ruas e avenidas vulneráveis a qualquer chuva mais intensa

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COI, grande mídia — a indústria nacional e internacional dos megaeventos. O legado para cidade é também conhecido: no Brasil, 170 a 200 mil remoções forçadas (no Rio de Janeiro, de 50 a 70 mil), endividamento público, aumento da segregação sócioespacial, privatização de espaços e equipamentos públicos (esportivos, mas não apenas), aumento da violência policial, criminalização dos pobres e dos movimentos sociais. O governo não parece ter sido capaz de ir além de encenações de abertura ao diálogo, intensificação de marketing e ameaças de promover uma verdadeira militarização (pacificação?) das cidades. As organizações e movimentos sociais, por sua vez, muitos dos quais nascidos no calor mesmo dos embates, não parecem ter sido capazes de avançar em termos de construção de alternativas que ultrapassem os limites do valoroso e combativo protesto público. A sociedade brasileira enfrenta um dramático e aparentemente insolúvel paradoxo. De um lado, as manifestações multitudinárias expressaram a vitalidade da sociedade e promoveram um processo de intensa e extensiva politização de uma parcela da população, sobretudo de suas camadas mais jovens, reinventando os espaços públicos e a ação coletiva. Na contraface dessa politização da sociedade, os políticos, isto é, os operadores profissionais dos aparatos institucionais de representação despolitizam suas práticas, numa desqualificação sistemática e permanente da esfera pública. Neste ano de 2014, ademais,


▼▼ ESTRESSE COTIDIANO Congestionamentos em cidades emparedadas. Abaixo, o povo protesta SILVANA SÁ

SAMUEL TOSTA

MIDIANINJA

CARLOS TRINDADE

se completam os 50 anos do golpe militar que, em 1º de abril de 1964, lançou o país na mais longa e brutal ditadura de sua história. As ameaças às liberdades democráticas evocam o fantasma do Estado de exceção, quando vêm à luz muitas das barbaridades cometidas pelo aparato repressivo, graças às Comissões da Memória e da Verdade a nível federal e estadual. Enquanto a sociedade brasileira ainda luta para completar a transição democrática, que envolveria não apenas a punição dos torturadores e assassinos que continuam impunes mas também o enterro do legado legal e institucional ditatorial, como a anacrônica e continuada vigência da Lei de Segurança Nacional, novas sombras surgem no horizonte. Desafiados pela cidade de exceção, pela cidade-empresa e pela democracia direta do capital, os movimentos agora os enfrentam. Querem outra cidade, outro espaço público. A convulsão social em que o país e suas cidades foram lançados abriu extraordinárias

possibilidades de interpelação e transformação. Mas nada ainda está decidido. O jogo está aberto. A História nos revisita, nos pisca o olho, e nos lembra que uma outra cidade é possível. Serão os movimentos sociais emergentes capazes de transformar e fazer convergir sua capacidade de protestar em capacidade de construir projeto(s) alternativo(s)? Será que as elites mostrarão uma vez mais, como há 50 anos atrás, que têm mais medo do povo que amor à democracia? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Ascher, François — 2001. Les nouveaux principes de l’urbanisme. La fin des villes n’est pasà l’ordre du jour, Paris, Éditions de l’Aube. Borja, Jordi & Castells, Manuel — 1997. Local y global. La gestión de las ciudades en la era de la información. Madrid, United Nations for Human Sttlements/Taurus/Pensamiento. Marx, Karl — 1856. “Les révolutions de 1848 et le prolétariat: un discours de Marx à une fête de «The People’s Paper». (http://www.marxists.org/francais/marx/works/1856/04/km18560 414.htm)

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FOTOS MENORES: MIDIANINJA FOTO MAIOR : RAFAEL DUARTE

OS LEVANTES DE JUNHO


A RUA QUE EDUCA


OS LEVANTES DE JUNHO Um ano após os protestos de junho de 2013, estudantes do DCE UFRJ Mário Prata fazem a releitura das manifestações e apontam possíveis caminhos para os movimentos de resistência à Copa do Mundo de 2014

▼▼ MALINE DURÃES Especial para Cadernos Adufrj e Redação

A INSURGÊNCIA

O

s megaprotestos que emergiram em junho de 2013 lançaram mais de um milhão de pessoas às ruas das cidades brasileiras. O terremoto que abalou o Brasil, e rompeu a letargia política na qual o país estava mergulhado há anos, teve origem numa bandeira específica, a luta contra o reajuste da tarifa de ônibus em São Paulo. As manisfestações ganharam força e se propagaram como rastilho numa

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explosão de sentimentos represados. O país da prosperidade e pleno emprego era fictício. O que existia nas cidades eram massas de pessoas estressadas e insatisfeitas com a degradação dos serviços públicos (saúde, educação, moradia, transportes), corrupção e uma euforia artificial para justificar altos investimentos com megaeventos esportivos As massas em ruas e avenidas, a repressão insana da polícia, go-

vernos claudicantes, mídia procurando o caminho mais conservador para lidar com o que acontecia, um verdadeiro caldeirão pôs a temperatura nas alturas. Mas, afinal, o que estava acontecendo? Os setores organizados do movimento social (incluindo aí os sindicatos mais combativos) também foram pegos de surpresa. O que era, até certo ponto, surpreendente, porque afinal, as bandeiras erguidas naquele junho de 2013 eram bandeiras co-


MARCO FERNANDES

▼▼ MOVIMENTO ESTUDANTIL Gabriel, Luiza e Brenner, do DCE Mário Prata, da UFRJ

muns às forças que querem uma outra agenda para o país – voltada para os interesses mais amplos da sociedade. Na profusão de causas erguidas em placas artesanais pela multidão nas ruas, a Copa do Mundo no Brasil teve destaque. Indignada com a forma como os governos conduziram o processo de adaptação do país para receber o megaevento esportivo, a população questionava a que preço o Brasil sediaria a Copa e para que e

quem serviria o evento. Um ano depois dos acontecimentos, indaga-se sobre o legado os levantes de junho deixaram e os seus desdobramentos. Para responder a esses questionamentos e lançar novos, a revista Cadernos Adufrj conversou com três estudantes do DCE Mário Prata. Por muito tempo tachados pelas gerações precedentes como despolitizados e desmobilizados, jovens como eles tiveram protagonismo nas manifestações

de 2013. Na opinião de Brenner Oliveira, estudante de Engenharia Elétrica da Escola Politécnica (Poli-UFRJ) e diretor de Assistência Estudantil do DCE, o despertar de interesse para assuntos relacionados à Política nos jovens foi o principal fruto deixado pelas manifestações de 2013. “A juventude percebeu que pode construir a Política brasileira e interferir diretamente nos seus resultados. Hoje em dia, todo mundo quer saber o que está acontecendo no Brasil, nas ruas. Os jovens querem discutir não só o futebol que o Brasil ganha, mas a que preço o país vai ganhar. Querem saber se esse preço serão as remoções, será a exploração ainda maior das classes trabalhadoras, se será o preço de termos vários direitos básicos e elementares de vida preteridos em detrimento de interesses de uma elite econômica brasileira e internacional”. Para os estudantes, os movimentos de resistência que podem ocorrer às vésperas da Copa do Mundo de Futebol serão consequências diretas dos levantes populares de junho do ano passado. “As manifestações trouxeram muitos ensinamentos. Creio que os protestos nesse período da Copa vão ser mais claros: vão apontar um descontentamento com a Fifa, mas também com os governos coniventes com toda essa política que prioriza o evento em detrimento da Educação, Saúde etc.”, pontua Luiza Foltran Aquino, estudante da Faculdade de Letras (FL-UFRJ) e diretora de Assistência Estudantil do DCE. A opinião dos discentes contrasta com dados oficiais divulgados recentemente. Eles apontam um esvaziamento e perda de apoio junho/julho/agosto de 2014

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OS LEVANTES DE JUNHO popular dos atos. Uma pesquisa realizada em São Paulo pelo Instituto Datafolha, há algumas semanas, durante protestos contra a Copa, por exemplo, concluiu que 73% dos entrevistados acreditam que eles atrapalham mais do que ajudam. Outro que veio a público minimizar o possível efeito da resistência contra o Mundial foi José Eduardo Cardozo, ministro da Justiça. Segundo ele, as manifestações durante o evento serão menores do que os levantes ocorridos em junho passado. Pesquisas e declarações como essas são, entretanto, apenas tentativas de desqualificar a capacidade atual de mobilização do povo brasileiro, na opinião dos estudantes. “Quando a insatisfação explodiu, muita gente se assustou, principalmente os grupos que estão lucrando com essa Copa e possuem grandes interesses nela. Esses grupos, que dominam o governo e a imprensa, investem pesado para passar a mensagem que as manifestações não adiantam nada. E, por isso, é importante que a mobilização das ruas não pare”,

destaca Gabriel Guimarães, aluno da Faculdade de Letras (FL-UFRJ) e diretor de Combate a Opressões do DCE. Na visão estudantil, nem mesmo a ação policial violenta e desmedida, os confrontos com os “Black Blocs” e a previsão de aumento do efetivo de policiais nas ruas durante a Copa são suficientes para arrefecer o descontentamento da população com o evento. “A grande mídia tentou transformar a polarização entre policiais e Black Blocs no grande debate das manifestações do ano passado. Em vez de focar nas pautas de reivindicações, lançou luz sobre os conflitos. Mas aprofundar o debate por esse viés é uma clara perda de tempo”, pontua Brenner Oliveira. “O governo do estado e a prefeitura criaram um estado de sítio, alimentaram um sentimento de caos generalizado. Isso, de fato, amedrontou a população e afastou muita gente das ruas. Mas se o medo de ir aos protestos aumentou, a revolta com a Copa também. E é esse sentimento do qual nós, como

movimento social, devemos nos valer para organizar cada vez mais atos e tentar dialogar com a população, fazendo com que seja superado esse medo perpetrado de forma absurda e autoritária pelas esferas de poder”, completa a estudante Luiza Aquino.

A QUESTÃO DA REPRESENTATIVIDADE Um dos traços que mais chamaram atenção nos protestos de 2013 foi a ausência de lideranças e de articulação entre manifestantes e movimentos sindicais e partidos políticos. Em algumas cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, o repúdio ficou mais evidente, pois chegou a haver conflitos entre populares e militantes partidários que tentavam erguer suas bandeiras durante os atos. Até mesmo o movimento estudantil, que protagonizou diversos momentos importantes de reivindicação no país, entre eles o “Diretas Já”, em 1984, e o “Fora, Collor”, em 1992, apresentou dificuldades de se inserir SAMUEL TOSTA

▼▼ LARGO DE SÃO FRANCISCO Multidão reunida diante do IFCS/ UFRJ organizando protestos


SAMUEL TOSTA

enquanto movimento social nos levantes. A análise dos estudantes do DCE UFRJ Mário Prata é que a crise de representatividade explica a resistência dos manifestantes em se vincular a um ou outro movimento social e partido. “Depois de um governo como o do PT, que chega ao poder prometendo um mandato para os trabalhadores, com redistribuição da renda e mais igualdade, mas que, na verdade, cumpre o mesmo papel dos antigos governos, a gente entende porque existe esse antipartidarismo”, observa Gabriel Guimarães, lembrando ainda que a União Nacional dos Estudantes (UNE) também vem passando por um processo de aproximação com o governo e, consequentemente, por uma perda de legitimidade junto a seus representados. O DCE da UFRJ mobilizou cerca de oito mil alunos da universidade para participar dos protestos do ano passado, o que, para os dirigentes da entidade, confirma o diretório como referência no imaginário estudantil quando o assunto é

organização para lutas. A UFRJ, aliás, também cumpriu seu papel histórico de espaço democrático durante os levantes, tanto é que a Faculdade Nacional de Direito (FND) e o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS)eram dois locais aos quais os manifestantes recorriam quando precisavam fugir da ação policial e garantir sua integridade física. “O movimento estudantil nunca dormiu. Por menor que fosse, sempre resistiu à conjuntura. Se, antes, ele tinha o protagonismo, de direção, hoje em dia, ele é mais um a resistir. Es-

tamos diante de uma nova geração política, ainda sem tradição e sem muita clareza do que quer. Ainda está em processo de organização. Muitos jovens que participaram dos protestos do ano passado nunca estiveram em uma assembleia ou em uma manifestação. Não têm cultura de reivindicação. Mas a rua educa. E quanto mais gente na rua se questionando, aprendendo e se motivando, pertencendo ou não a movimentos sociais, melhor”, salienta Luiza Aquino. Para Brenner Oliveira, tanto os protestos do ano passado como os atuais sinalizam necessidade de maior atuação dos movimentos sociais. “As pessoas estão indo para as ruas com visão despolitizada, mas se estão lá, é porque têm tendência a se politizar. Cabe a nós — movimento estudantil, sindical, social, partidos políticos — organizar essa juventude e esses trabalhadores e mostrar pra eles que a rua é o espaço democrático, é o melhor lugar para deliberação e para avançarmos nas lutas”, finaliza o estudante de Engenharia Elétrica. SAMUEL TOSTA

▼▼ REPRESSÃO Barbárie policial contra manifestantes. Acima, estudantes nas ruas junho/julho/agosto de 2014

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ARTIGO

COPA PARA Os grandes eventos esportivos sob o olhar dos direitos humanos

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SAMUEL TOSTA

QUEM?

▼▼ MARIANA TROTTA

E ANA CLAUDIA TAVARES*

A

escolha do Brasil para ser o país-sede da Copa do Mundo de 2014 foi comemorada pelos governantes e pela mídia brasileira. Alardeavam os benefícios que a realização de uma Copa do Mundo no Brasil trariam para a população, como “investimentos” para o país e, em especial, para as cidades-sede dos jogos mundiais. Entretanto, conforme se desenvolveram as ações com as quais o governo brasileiro se comprometeu para sediar a Copa, os impactos negativos e os prejuízos em termos de direitos individuais e coletivos foram sentidos pela população brasileira. Uma dessas violações de direitos é a política de remoção implementada pelos governos das cidades-sede. Como aponta Carlos Vainer, nas cidades anfitriãs da Copa, 200 a 250 mil pessoas de baixa renda, moradores de fa▼▼ VIOLÊNCIA Professora é imprensada entre escudos por PMs no Rio

*Professoras da Faculdade Nacional de Direito e integrantes do Centro de Assessoria Popular Mariana Criola junho/julho/agosto de 2014

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ARTIGO velas e assentamento irregulares em geral, estão sofrendo com o processo de remoção. Esses “indesejáveis são mandados para as periferias distantes, a duas, três ou quatro horas dos locais de trabalho, a custos monetários absurdos e condições de transportes precaríssimas.”1 No Rio de Janeiro, há exemplos, como da comunidade da Estradinha, localizada no Bairro de Botafogo: em 2010, 255 moradores foram removidos para regiões distantes. Outro caso emblemático é o processo de remoção da Vila Autódromo, comunidade localizada na baixada de Jacarepaguá, ao lado de terreno que será utilizado para os Jogos Olímpicos e em uma região de avanço da especulação imobiliária. As remoções violam vários direitos dos moradores das comunidades impactadas, como o direito à moradia, incorporado nos textos legais e constitucionais brasileiros e internacionais pela pressão dos movimentos sociais de luta pela moradia nas últimas décadas. O direito à moradia foi incorporado ao rol de direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, pela Emenda Constitucional nº 64 em 2010: “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” Antes desta emenda à Constituição, o direito à mora1 Vainer, Carlos, 2013. Quando a cidade vai às ruas. In: Cidades Rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, p. 39.

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TOMAZ SILVA/ABR

▼▼ TIRO AO ALVO Não há limites para silenciar as ruas à força

MIDIANINJA

▼▼ CLAMOR O grito do menor desprotegido

dia já era reconhecido em outros dispositivos do texto constitucional, como parte do artigo 7º, inciso V, que estabelecia como direito dos trabalhadores urbanos e rurais o salário mínimo “capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia”. Instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos também reconhecem o direito à moradia, entre os quais o Pacto internacional sobre direitos econômicos, sociais e culturais, ratificado pelo Brasil, através do Decreto Legislativo nº 226, de 12 de dezembro de 1991 e a Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993. Além disso, a política de remoção é expressamente proibida pelo artigo 429, inciso VI da Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro, que estabelece o princípio da não remoção, ao prever que a política de desenvolvimento urbano visará a “urbanização, regularização fundiária e titulação das áreas faveladas e de baixa renda, sem remoção dos moradores, salvo quando as condições físicas da área ocupada imponham risco de vida aos seus habitantes”. Outra faceta da política de remoções é o uso, pela Prefeitura Municipal, de parte dos imóveis destinados à habitação popular no reassentamento das famílias removidas, embora exista uma enorme demanda por habitação popular por parte de moradores de favelas que vivem de aluguel, visto que a cidade do Rio de Janeiro tem sofrido com um “boom imobiliário”. Maricato aponta que, de 2009 a 2012, o valor dos imóveis no Rio de Janeiro experimentou um aumento de 184%. A

autora relaciona esse“boom imobiliário” com os programas de infraestrutura do governo federal, como os Programas de Aceleração do Crescimento (PAC) I e II e do programa habitacional Minha Casa Minha Vida (MCMV), que foram pensados junto aos empresários da construção civil e do mercado imobiliário. A autora explica que “enquanto em 2009, o PIB brasileiro e da construção civil foram negativos, contrariando a tendência anterior, em 2010 o PIB nacional foi de 7,5% e o da construção civil, 11,7%.” Dessa forma, para os empresários do setor imobiliário e da construção civil, a política garantiu uma expansão dos lucros. Por outro lado, “para a maioria, sobrou o pior dos mundos”, com a manutenção dos problemas de acesso ao direito à moradia.2 Esse “boom imobiliário” parece também ter chegado às favelas cariocas. No episódio recente da ocupação por mais de cinco mil famílias do imóvel da Telerj/OI no bairro do Engenho Novo, era comum escutar entre os moradores como motivos para a ocupação do terreno: a impossibilidade de pagar alugueis no valor de R$ 300 a R$ 500,00, por pessoas que viviam do trabalho informal ou com um salário mínimo mensal. Essas famílias, após violenta remoção pelas forças policiais, por determinação judicial na ação de reintegração de posse nº 0010009-86.2014.8.19.0208 que tramitou na 6ª Vara Regio-

2 Maricato, Erminia (et. al.), 2013. Cidades Rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, p.23.

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ARTIGO nal do Fórum do Méier3, passaram a ocupar a frente da Prefeitura Municipal reivindicando moradia popular. A resposta do prefeito foi a ausência de habitações disponíveis, orientando que as famílias, muitas já cadastradas há anos no Programa Minha Casa Minha Vida, continuassem aguardando. Essas medidas governamentais violam não apenas o direito à moradia, mas o direito à cidade como um todo. O Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/2001, assegura o direito às cidades sustentáveis pela cidadania, compreendida como o “direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura ur- SAMUEL TOSTA bana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações” (artigo 2º, I). As políticas empreend idas nas cidades-sede dos jogos da Copa do Mundo destinadas à mobilidade urbana agravam os problemas de acesso ao direito às cidades sustentáveis. As obras de infraestrutura dedicadas à circulação de automóveis com “investimen3 Entretanto, a propriedade que não cumpre a sua função social, não merece proteção jurídica, como defende Eros Roberto Grau (Parecer. In A Questão Agrária e a Justiça. Org. Juvelino José Strozake. São Paulo: RT, 2000, p. 200-201).

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tos em obras de viadutos, pontes e túneis, além de ampliação de avenidas, não guardam qualquer ligação com a racionalidade da mobilidade urbana, mas com a expansão do mercado imobiliário, além, obviamente, do financiamento de campanhas ”, como alerta Maricato.4 Somam-se a essas obras os inúmeros subsídios destinados aos transportes individuais (como desonerações de impostos para os veículos automotivos), que é 4 Maricato, Erminia (et. al.), 2013. Cidades Rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, p.25.

▼▼ COVARDIA Cenas assim se tornaram comuns desde junho

maior do que para os transportes coletivos. Essas políticas têm sido criticadas nos protestos que tomam as ruas desde junho de 2013. Somando-se outras lutas como a greve dos rodoviários que reivindicam melhores condições de trabalho, a greve dos professores municipais e estaduais pelas péssimas condições da educação pública, a greve dos técnicos-administrativos e a mobilização dos docentes das universidades federais pela valorização da carreira e da educação superior. Como forma de denunciar e reagir aos efeitos negativos provocados pela realização da Copa do Mundo no Brasil, diversos grupos de militantes políticos se organizaram em torno dos chamados Comitês Populares da Copa que funcionam nas cidades-sede dos jogos. Esses comitês formaram a Articulação Nacional de Comitês Populares da Copa, que relaciona uma série de pautas sobre as violações de direitos cometidas em razão da Copa no Brasil. Em Carta da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa, as remoções e os despejos forçados são consideradas “as violações mais comuns no Brasil e em outros países-sede de megaeventos”, acompanha-


das da “flexibilização das leis e suspensão de direitos antes e durante os jogos, ameaçando, assim, os mecanismos de defesa, proteção social, garantia e promoção de Direitos Humanos” 5. Além das violações correntes, diversos projetos visando aprovar legislações mais repressivas tramitam no Congresso Nacional e representaram ameaças concretas a aprofundar o estado de violação de direitos, para incorporar, por exemplo, o tipo penal de terrorismo, com possibilidade de inclusão de ações típicas dos movimentos sociais, como paralisações e greves ou obstrução de vias públicas como condutas criminosas. Por exem- SAMUEL TOSTA plo, o Projeto de Lei do Senado (PLS) 728/ 2011 pretende tipificar o crime de terrorismo, propondo penas de 15 a 30 anos para quem “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa à integridade física ou privação da liberdade de pessoa, por motivo ideológico, religioso, político ou de preconceito racial, étnico ou xenófobo”. O projeto ainda prevê o aumento da pena em 1/3 nos casos em que a ação 5 http://w w w.portalpopulardacopa.org.br/index.phpoption=com_content&view=article&id=366&Itemid=279. Acesso em: 26 mai. 2014.

seja praticada em dias de jogos nos estádios de futebol de sede da Copa.6 Projetos de lei como este, que buscam impedir protestos no período dos grandes eventos esportivos, violam direitos fundamentais como de livre reunião e manifestação política previstos no artigo 5º da CRFB/88. A militarização de territórios das favelas no Rio de Janeiro é outro impacto negativo que pode ser atribuído à realização da Copa do Brasil. Embora o papel constitucional atribuído às 6 O PLS 762 e PL 499 também tratam do crime de terrorismo.

▼▼ DENÚNCIA O papel da polícia

Forças Armadas não seja o de promover a segurança pública, o Ministro da Defesa, Celso Amorim, autorizou as Forças Armadas, através da Diretriz Ministerial nº 9, a entrarem “no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, a partir do primeiro minuto de sábado (5), em apoio às forças de segurança pública estaduais”7, per-

mitindo a elas “efetuar prisão em flagrante, patrulhamento e vistoria”. Note-se que as Forças Armadas são preparadas para atuação em cenários de guerra em combate a inimigos e a autorização de seu uso contra populações civis já indica graves violações aos direitos e garantias fundamentais. Essa ação revela ainda a violação ao direito à informação da população, tendo em vista que não foram publicizados nem o conteúdo integral da referida Diretriz Ministerial e nem da Exposição de Motivos nº 39, do ministro-chefe do Gabinete da Segurança Institucional (GSI), general José Elito Siqueira, que fundamentou a autorização da presidenta da República para o emprego de Forças Armadas 7 BRASIL, Ministério da Defesa. Maré: Forças Armadas são autorizadas a atuar em operação de GLO no Rio. In: http://www.defesa.gov.br/index.php/ultimas-noticias/8981-01-04-2014-defesa-mare-forcas-armadas-sao-autorizadas-a-atuar-em-operacao-de-glo-no-rio. Acesso em: 04 abr. 2014.

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ARTIGO (DOU, 31 mar. 2014). Conforme a Lei 12.527/2011 (Lei do Acesso à Informação), os órgãos e entidades públicas devem promover a divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas competências, de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas (art. 8º) e na divulgação dessas informações devem constar, no mínimo, “dados gerais para o acompanhamento de programas, ações, projetos e obras de órgãos e entidades” (art. 8º, § 1o, V). As violações de direitos das operações militares contam, por vezes, com o apoio do Poder Judiciário, como ocorreu na favela da Maré, com a expedição de mandado de busca e apreensão genérico em 19 ruas da comunidade. Essa autorização judicial fere determinação expressa do artigo 5º da CRFB/1988, inciso XI: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. A atuação dos poderes públicos representa, no contexto de realização da Copa do Mundo no Brasil, um retrocesso em relação aos objetivos da República brasileira: “construir uma sociedade livre, justa e solidária”; “garantir o desenvolvimento nacional”; “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”; “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, CF/1988).

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A proibição de medidas discriminatórias também está prevista em tratados internacionais dos quais o Brasil faz parte e que são normas vigentes no território brasileiro. O Pacto dos Direitos Civis e Políticos proíbe, mesmo em “situações excepcionais” proclamadas oficialmente, qualquer medida discriminatória fundada em raça, cor, sexo, língua, religião ou origem social (art. 4º). Infelizmente, não é isso que vemos nas operações realizadas dentro de “favelas” cariocas, lugares em que a população pobre é afetada por medidas discriminatórias, como Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e uso das Forças Armadas brasileiras, além das remoções forçadas e em descumprimento aos procedimentos legais existentes no Brasil. As prisões para averiguação, as legislações proibindo o uso de máscaras, o uso indiscriminado de armas menos letais (bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e armas de balas de borracha), as detenções arbitrárias e injustificadas de manifestantes desde junho de 2013, o processamento de manifestantes por crimes considerados revogados pela Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (como o desacato), todos esses fatos revelam como o Estado na prática vem impedindo ou dificultando o exercício do direito à liberdade de pensamento. Também revelam a frequente infração aos dispositivos do Pacto dos Direitos Civis e Políticos que estabelecem os direitos de reunião pacífica e de livre associação (arts. 21 e 22). Esses direitos não podem ser restringidos por “autoridades estatais” ao

ponto de tornarem “o exercício desse direito praticamente impossível”, como pondera Fabio Konder Comparato.8 Como nos alerta E. Thompson, as leis cristalizam as relações de poder das sociedades, assegurando interesses das classes dominantes, mas muitas vezes também apresentando freios constitucionais ao poder dessas mesmas classes9. Percebemos, por outro lado, que em sociedades como a brasileira os direitos e limites inscritos na lei possuem grande dificuldade em serem efetivados. Entretanto, desistir das lutas contra as más leis e procedimentos classistas pode lançar homens e mulheres num perigo ainda maior. Por isso, tornase necessário o debate sobre esses projetos de lei e políticas públicas discutindo a quem servem. Esse debate tem tomado as ruas do país por meio de manifestações, como no último dia 15 de maio, pois, como alerta David Harvey, “(…) o poder coletivo de corpos no espaço público continua sendo o instrumento mais efetivo de oposição quando o acesso a todos os outros meios está bloqueado”10.

8 Comparato, Fabio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 314-315. 9 Thompson, E. P., 1997. Senhores e Caçadores, 2ª edição. São Paulo: Paz e Terra. 10 Harvey, David, 2012. Os rebeldes na rua: o Partido de Wall Street encontra sua nêmesis. In: Ocuppy — movimentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo, p. 61.


SAMUEL TOSTA

▼▼ TORTURA E MORTE O Caso Amarildo comoveu o país e repercutiu internacionalmente


ARTIGO

AGÊNCIA O GLOBO

GRANDES EVENTOS ES


PORTIVOS E A CIDADE

QUEM JOGA E QUEM FICA DE FORA? Foi-se a Copa? Carlos Drummond de Andrade

Foi-se a Copa? Não faz mal. Adeus chutes e sistemas. A gente pode, afinal, cuidar de nossos problemas. Faltou inflação de pontos? Perdura a inflação de fato. Deixaremos de ser tontos se chutarmos no alvo exato. O povo, noutro torneio, havendo tenacidade, ganhará, rijo, e de cheio, A Copa da Liberdade.

▼▼ EM CONSTRUÇÃO. Obras da Cidade Olímpica, na Barra


▼▼ MARCELO

MELO, ALEXANDRE PALMA E LUÍS AURELIANO IMBIRIBA*

ARQUIVO / AGÊNCIA O GLOBO

ARTIGO

A

s escolhas do Brasil como sede da Copa do Mundo de 2014 e da cidade do Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos em 2016 foram saudadas em diversos meios como um retrato de um (suposto) momento positivo que viveria o país e a referida cidade, além de indicar um novo posicionamento do país nos círculos internacionais de poder. Assim, tais eventos poderiam proporcionar mostras de um novo país ao resto do mundo em diversos campos, para além dos aspectos esportivos. Tendo tais dimensões em conta, foi central a elaboração de vultosas candidaturas que envolveram os organismos esportivos nacionais (Comitê Olímpico Brasileiro — COI e Confederação Brasileira de Futebol — CBF), instâncias governamentais, organizações empresariais de diversas frações, muitos partidos políticos — embora não todos — e organizações na sociedade civil. Nesse contexto, a promoção dos Grandes Eventos Esportivos é parte central das estratégias de

* Professores da Escola de Educação Física e Desportos — UFRJ

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obtenção de consenso por parte do bloco no poder no país. Cumpre registrar que as pretensões de sediar grandes eventos esportivos (Jogos Olímpicos e Copa do Mundo de Futebol) são anteriores a 2003. Até porque o bloco no poder esportivo, representado pelas longevas lideranças de Ricardo Teixeira na Confederação Brasileira de Futebol (1989 a 2012) e Carlos Arthur Nuzman no Comitê Olímpico Brasileiro (desde 1995), acalentava esse desejo como parte de sua busca para se reposicionar no âmbito de suas organizações esportivas em nível internacional. É inegável o potencial político-pedagógico que os grandes eventos esportivos apresentam, bem como sua face dinamizadora da economia capitalista, contemplando interesses de diversas

frações empresariais (financeira/ serviços/comercial, industrial, bélica, midiática dentre outras), com vistas a alocar uma massa de capitais em busca de valorização. Bourg e Gouguet (2005) afirmam não ser nenhuma coincidência o fato de que os esportes como espetáculo de massa apresentam como um divisor de águas os Jogos Olímpicos de Los Angeles em 1984, no bojo do Governo Reagan. Nessa edição dos Jogos Olímpicos, passaram a ocorrer a privatização do financiamento e dos contratos referentes à realização dos Jogos, a exploração comercial dos símbolos dos Jogos com afirmação rígida dos direitos autorais sobre os símbolos, a criação de um programa mundial de marketing, a privatização da transmissão, com a retirada do monopólio das televisões pú-


▼▼ LOS ANGELES. Divisor de águas dos esportes como espetáculo de massas

blicas, bem como o lançamento de muitos canais privados de TV. Isso tudo adequado ao conhecido programa de desregulamentação e liberalização financeira e comercial que marca a receita do capitalismo neoliberal.

GRANDES EVENTOS ESPORTIVOS: A LUTA PELO CONSENSO E PELA EDUCAÇÃO DAS MASSAS É possível apontar que os grandes eventos esportivos, como os Jogos Olímpicos e Copa do Mundo, são momentos especiais das abordagens dominantes no âmbito dos esportes. Mais do que isso, há uma precisa combinação de diversos elementos da nova pedagogia da hegemonia (NEVES, 2005; NEVES e MAR-

TINS, 2010), tanto na apresentação dos projetos como na consecução e realização dos próprios eventos. Sua apresentação, divulgação e defesa perante o conjunto da sociedade não prescinde de elementos ditos sociais bem como de alegada preocupação ambiental e urbanística, mediante a menção constante da expressão “LEGADO”. Como dito, o Governo Federal aponta que a (suposta) herança positiva dos Jogos Pan-Americanos de 2007: ...foi a formatação do conceito de legado social associado a grandes eventos esportivos em território brasileiro. Já tendo no horizonte a candidatura a outros eventos, especialmente os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos, o Governo Federal introduziu o debate entre as partes envolvidas com a preparação dos Jogos Pan-Americanos visando a dar forma àquela ideia ainda incipiente no próprio Ministério do Esporte. A ideia central, em consonância com o ideário do Comitê Olímpico Internacional, é que os megaeventos esportivos sejam propulsores do desenvolvimento social ao catalisarem ações de amplo espectro, de diferentes origens e com diversos focos, voltadas para a melhoria das condições de vida da população das comunidades pobres da cidade-sede, em particular aquelas no entorno das instalações esportivas a serem utilizadas no evento (BRASIL. PRESIDÊNCIA..., 2009, p. 10).

Dessa forma, as melhorias estariam radicadas na geração de empregos diretos e indiretos, construção de instalações, projeção indireta da cidade e do país perante o mundo, implicando no incremento da atividade econômica em geral. Portanto, sediar tais grandes eventos espor t ivos passa a justificar uma gama

de modificações na estrutura urbana, fundiária, do aparato legal em diversas áreas que seriam viáveis ao bloco no poder, não sem duras resistências, num contexto apartado da necessidade de preparar as cidades e o país para a realização desses eventos. O direito de sediar a Copa do Mundo de Futebol em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016 implica também em algumas mudanças jurídicas que tendem a tornar algumas leis não aplicáveis a questões relacionadas a tais eventos. Analisando sua implicação, fica nítido que as Organizações Esportivas Internacionais (COI e FIFA) exigem do país-sede a viabilização de todas as condições para que tais eventos sejam rentáveis, inclusive isentando de tributos uma série de questões a que o conjunto dos cidadãos e as empresas do país ou estrangeiros em outras condições estariam sujeitos. E esses organismos esportivos internacionais são rigorosos na exigência de alterações legislativas para que um país seja considerado apto a receber edições de seus eventos.

GRANDES EVENTOS E A CIDADE Na cidade do Rio de Janeiro, em particular, Brito (2013) aponta que a simples observância dos mapas das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) indica haver uma espécie de corredor de segurança nas regiões diretamente envolvidas na realização dos grandes eventos esportivos e/ou religiosos (por exemplo, a Jornada Mundial da Juventude, em junho de 2013). Isso foi explicitado como um cinturão de seguranjunho/julho/agosto de 2014

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ARQUIVO / AGÊNCIA O GLOBO

ARTIGO

▼▼ REAGAN. Este presidente americano (1981 a 1989) chancelou a marca neoliberal nos jogos de Los Angeles

ça para Zona Sul, Centro e parte da Zona Norte de forma a minimizar possíveis danos à imagem da cidade para os referidos eventos. E para o restante da cidade e do estado sugere-se que seja mantida a lógica cotidiana. Assim, não é possível debater o significado das UPPs desconectada do “...planejamento urbano carioca à formatação e viabilização de um modelo empresarial de cidade que, além de direcioná-la para os grandes negócios empresariais, veiculase a gestão empresarial propriamente dita” (Brito, 2013, p. 97). Como exemplo, as relações expressas entre as UPPs no Centro do Rio de Janeiro e as intervenções no chamado Porto Maravilha. Tal lógica de cidade requerida pelos grandes eventos esportivos implica em profundas intervenções estatais e organismos privados com vistas a promover uma nova configuração urbana mais palatável à valorização de capital. Especulação imobiliá-

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ria demanda a expulsão de pobres do lugar que se pretende valorizar, ainda que haja necessidade de força de trabalho. A dita nova imagem da cidade e do estado — quiçá do país — demandada pelos grandes eventos esportivos implica tanto numa busca como num resultado (Barreira, 2013). Tais eventos permitem intensificar a aplicação de recursos e investimentos estatais que valorizem a terra, bem como tornar flexíveis normas legais que pudessem atrasar tais processos. Essa imagem do Rio de Janeiro como uma cidade atraente, sem conflitos e pacificada, passa por uma nova relação com as frações mais empobrecidas e exploradas da classe trabalhadora. O convencimento opera mediante a escolha muito seletiva de alguns poucos jovens pobres para atuarem em empregos direta ou indiretamente relacionados aos grandes eventos, malgrado a manutenção da precariedade para uma grande maioria. Assim, a dita pacificação representa a consolida-

ção e aprofundamento da lógica história de abordar sequelas da questão social a partir da lógica policial, com vistas a manter “...ordeiramente intactos os conflitos sociais por meio da cristalização de uma forma habitacional precária” (Botelho, 2013, p. 171); O aprofundamento da pedagogia da hegemonia dominante, descrita em detalhes em Neves (2005) e da união da direita para social com a esquerda para o capital (Neves, 2010) tem implicado na difusão em âmbitos da vida social do que Paoli (2007) chamou de técnicas sociais salvacionistas, mencionando programas estatais e/ou privados voltados aos pobres que se apresentam como capazes de redimir tais grupos de seus graves problemas sociais a partir da frequência a tais programas. Tanto que tais mecanismos salvacionistas são usados como critérios de julgamento de ações estatais e de empresas envolvidas em programas de responsabilidade social, não obstante “...sua fácil aceitação como critério de legitimidade, inclusive e combinação ótima, e em todos os sentidos rentável, com a ideia de liberdade de agir e criar” (Paoli, 2007, p. 237). Os preceitos apresentados nos documentos de candidaturas aos Jogos de 2016 são prenhes de exemplos nesse sentido. A assertiva de que a realização dos mesmos fatalmente implicará nas ditas melhorias sociais em campos diversos remetem às tais técnicas sociais salvacionistas.

QUAL O LEGADO ESPORTIVO? Tentar abordar qual o legado que tais eventos podem pro-


porcionar à adesão às práticas físico-esportivas não deve estar desconectado das questões postas anteriormente. Ademais, talvez só possamos abordar a questão do legado esportivo com mais propriedade no futuro. Neste sentido, está em curso uma pesquisa orientada por um dos autores do presente texto no Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Educação Física. A partir de dados sobre a adesão à prática de atividades físico-esportivas coletados (ou a serem coletados) em 2006, 2014 e 2017, a referida pesquisa buscará investigar o impacto que os Jogos têm sobre a adesão a estas práticas. Por outro lado, os Jogos Pan-Americanos podem ajudar a elucidar tal questão. No livro intitulado “Legados de Megaeventos Esportivos”, Carvalho et al. (2008)

manifestam que a adesão à prática esportiva e ao exercício aumentou de 29% do período antes dos Jogos para 72% durante os Jogos e caiu para 66% após os mesmos. Tal trabalho, no entanto, apresenta sérios problemas metodológicos, especialmente, porque lida com as percepções que profissionais de educação física tiveram em relação à prática de atividades físicas realizadas por outras pessoas, antes, durante e após os Jogos. Em contraste com tal dado, o Vigitel, inquérito sobre comportamentos que estariam associados a diferentes doenças, mostrou que na cidade do Rio de Janeiro a adesão à prática de atividades físicas no lazer variou de 16,4% em 2006, para 17,2% em 2007, 15,9% em 2008 e 16,1% em 2009 (BRASIL, 2007, 2008, 2009 e 2010).

Dessa forma, é possível questionar, ainda, se há, de fato, alguma política de Estado para oferecer ao cidadão espaço físico e orientação adequada para a prática de atividades físico-esportivas. Uma busca rápida no site da Secretaria Municipal de Esporte e Lazer sobre as Vilas Olímpicas da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro revelou um total de dezessete locais. Destes, dez (58,8%) foram inaugurados há mais de dez anos. Em conclusão, faltam, ainda, dois anos para os Jogos Olímpicos e pouquíssimo tempo para a Copa do Mundo. Entretanto, se o atraso em obras, infraestrutura, em planos para conter a violência ou quaisquer outros aspectos urbanos estão sempre sendo apontados, não se pode esconder que muito pouco foi feito para o legado esportivo na cidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARREIRA, Marcos. Cidade Olímpica: sobre o nexo entre reestruturação urbana e a violência na cidade do Rio de janeiro. In: OLIVEIRA, Pedro Rocha e BRITO, Felipe (Orgs.). Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. São Paulo: Boitempo, p. 129-168, 2013. BOTELHO, Maurílio Lima. Crise urbana no Rio de Janeiro: favelização e empreendedorismo dos pobres. In: OLIVEIRA, Pedro Rocha e BRITO, Felipe (Orgs.). Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. São Paulo: Boitempo, p. 169-213, 2013. BOURG, Jean-François & GOUGUET, Jean-Jacques. Economia do Esporte. Bauru: EDUSC, 2005. BRASIL. Presidência da República. Comitê de Gestão das Ações Governamentais Federais para a Candidatura Rio 2016. Rio 2016: Legado Social. Brasília: Presidência da República do Brasil: 2009. BRASIL. Vigitel Brasil 2006: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em

Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. — Brasília : Ministério da Saúde, 2007. BRASIL. Vigitel Brasil 2007: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. — Brasília : Ministério da Saúde, 2008. BRASIL. Vigitel Brasil 2008: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. — Brasília : Ministério da Saúde, 2009. BRASIL. Vigitel Brasil 2009: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. — Brasília : Ministério da Saúde, 2010. BRITO, Felipe. Considerações sobre a regulação armada de territórios cariocas. In:

OLIVEIRA, Pedro Rocha e BRITO, Felipe (Orgs.). Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. São Paulo: Boitempo, p. 79-114, 2013. CARVALHO, L.P.; MELO, A.C.; DACOSTA, L. Percepção dos profissionais de educação física do Rio de Janeiro e Espírito Santo sobre impactos dos Jogos Pan-Americanos Rio 2007. In: DACOSTA, L.; CORRÊA, D.; RIZZUTI, E.; VILLANO, B.; MIRAGAYA, A. Legados de Megaeventos Esportivos. Brasília: Ministério do Esporte, 2008. NEVES, Lúcia Maria W. (org.). A direita para o social e esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil. São Paulo: Xamã, 2010. NEVES, Lucia Maria W. (org.). A Nova Pedagogia da Hegemonia: estratégias da burguesia brasileira para educar o consenso na atualidade. São Paulo: Xamã, 2005. PAOLI, Maria Celia. O mundo indistinto: sobre gestão, violência e política. In: OLIVEIRA, Francisco e RIZEK, Cibele Saliba. (orgs). A Era da Indeterminação. São Paulo: Boitempo, pp. 221-256, 2007.

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ARTIGO

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INVISIBILIDADES


NA CIDADE

DOS MEGAEVENTOS PLANEJAMENTO E A PERSPECTIVA DO RECONHECIMENTO DAS DESIGUALDADES DE GÊNERO ▼▼ ROSSANA B. TAVARES*

INTRODUÇÃO Desde o anúncio dos chamados Megaeventos Esportivos, várias denúncias de violações de direitos humanos têm sido feitas e divulgadas através do esforço de diversos grupos, organizações, associações, fóruns, pesquisadores/as, coletivos de mídia, documentaristas, entre outros/as. Se analisar o município do Rio de Janeiro, um dos mais impactados pelas ações do Estado, tem se utilizado o discurso “de preparar a cidade” para a Copa do Mundo em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016, como justificativa para o contínuo processo de violação de direitos em diversas áreas da cidade. No entanto, atrás de um *Professora substituta da FAU/ UFRJ e doutoranda em urbanismo PROURB/UFRJ.

discurso dito universalista dos direitos humanos, ainda chamado em alguns países como direito dos homens (como é o caso da França, onde na ocasião da Revolução Francesa, adota a “Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen”), são excluídos as especificidades de minorias de raça, sexualidade, classe e gênero. Assim, destacamos a necessidade do reconhecimento da questão de gênero nesses debates, que tem tido pouca visibilidade quanto às denúncias e problemas específicos em uma das cidadessede da Copa do Mundo. O presente artigo visa trazer uma contribuição sobre o debate dos impactos sociais e urbanos no Rio de Janeiro, a partir da lógica da mercantilização do espaço em função dos Megaeventos Esportivos, caracterizandose por um processo que valoriza

a competição e não as diversas dinâmicas sócioespaciais dos diversos sujeitos sociais. Neste contexto, se radicaliza a invisibilidade das práticas sociais daqueles(as) já invisibilizados(as) pelo planejamento urbano, como as mulheres. Desta forma, pretendemos apresentar uma breve reflexão associando a relação entre planejamento e a perspectiva do reconhecimento, e como as desigualdades sociais se rebatem de modo diferente na vida das mulheres que vivem em áreas periféricas e favelas da cidade. Focaremos nossa crítica a partir dos processos em curso na área portuária do Rio de Janeiro.

O RIO PARA A COPA – UM PANORAMA GERAL Quando a ideia do Rio de Janeiro de sediar a Copa do Mundo e as Olimpíadas se torna uma junho/julho/agosto de 2014

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ARTIGO realidade, um projeto de cidade já em curso começa a se evidenciar mais brutalmente. Neste contexto, abriu-se a possibilidade de a cidade se transformar numa mercadoria. Não estamos nos referindo apenas à terra e à paisagem urbana, mas à própria vida das pessoas. Referências socioculturais e históricas, que fazem parte do cotidiano delas, tornamse passíveis de serem fragmentadas apenas com o objetivo do lucro para alguns(mas). A área portuária, por exemplo, é um desses lugares da cidade onde aqueles(as) que ainda vivem ali não sabem o que vai acontecer com suas vidas até os Jogos Olímpicos de 2016. Esta captura da vida das pessoas é um dos aspectos mais perversos dos processos de violações de direitos na cidade. A partir do discurso da melhoria da qualidade de vida e em prol da “sustentabilidade”, se legitimam práticas de gestão em que o interesse privado e especulativo se sobrepõe ao interesse público (SÁNCHEZ, 2001). A lógica do empreendedorismo urbano

▼▼ FAMÍLIA EXPULSA A injustiça fere pobres, mas o sofrimento das mulheres tem particularidades

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no planejamento, para colocar o Rio de Janeiro nas fileiras das cidades-globais, ganha força significativa nos últimos anos, tendo em vista, sobretudo, os chamados Megaeventos. Mas este projeto de cidade não é algo recente. A construção da política urbana tem sido pautada há algumas décadas pela lógica da competição de fluxos de capital internacional que, territorialmente, se materializa pela mercantilização das dinâmicas sóciourbanas: expressões culturais, identidades urbanas, modos de apropriação e de moradia das cidades, entre outras. Quando a era César Maia (19932008) deu lugar ao Planejamento Estratégico em vez do Plano Diretor da cidade (1991), deixou-se claro que a lógica empresarial e de resultado rápido iria imperar na gestão municipal. Alguns referem-se a esse período como o da desconstrução do espaço urbano carioca na qual os projetos pontuais de remodelação e reurbanização de bairros e favelas da cidade se pautavam pelo cida-

dão(ã)-consumidor(a). Por isso, a produção do espaço buscava a padronização do consumo (RIBEIRO, 2009) e não a valorização nas dinâmicas e modos de apropriação. Na “era Eduardo Paes”, por conta dos Megaeventos Esportivos, essa forma de gestão ganhou contornos mais visíveis. Com isso, é possível afirmar que estamos num período em que o planejamento pode ser caracterizado como reducionista, discriminatório e remocionista. Essa concepção de planejamento atual serve de instrumento poderoso para viabilizar as condições de reprodução do capital. Para tanto, o Executivo torna-se agente potencializador de um modo de produção do espaço urbano que favorece não só processos especulativos da terra urbana, mas também a construção de uma imagem de cidade que pasteuriza a paisagem, e a vida urbana, facilitando a constituição de superficialidades e a fragmentação em prol da mercantilização da cidade. Como consequência, assistimos a uma série de

▼▼ FUGIT OMNIHILIM iumque venime sum aut laborrum sit, nimusSed MIDIANINJA


MIDIANINJA

▼▼ VIDA INCERTA O que esperar do futuro?

violações de direitos humanos que promovem: remoções, precarização dos serviços, militarização de áreas estratégicas para os eventos. Por essa razão, a falta de transparência e de participação popular na construção da política urbana é conveniente para abrir espaço a um tipo de regulação urbana que precisa tanto da gestão local, quanto do engajamento do aparato institucional do Estado para a reprodução do capital em escala global. Essas medidas têm sido justificadas para conter a “desordem urbana”, conforme uma concepção associada principalmente à violência e à pobreza. A criação da Secretaria Municipal de Ordem Pública (Seop) é o retrato significativo da necessidade da prefeitura de regular o espaço conforme uma imagem e uma noção positivista de ordem pública. Seu principal objetivo, segundo a prefeitura, é o de ordenar os espaços públicos e fa-

zer valer as legislações municipais, inclusive o Código de Postura da cidade1. Contudo, a prioridade de ação da secretaria se aproxima daquilo que entendemos como planejamento higienista, ligado aos princípios do urbanismo francês de Haussmann, conhecido como o artista-demolidor. A reforma urbana empreendida na segunda metade do século XIX em Paris, que reverberou em cidades da América Latina, teve no Rio de Janeiro uma de suas expressões. Com intuito de transformar O Rio, tido como colonial e inadequado à nova República promulgada, em uma cidade mais europeia e mais francesa, o higienismo se expressou no aprofundamento de problemas sóciourbanos, sobretudo, pelas remoções promovidas no centro e área portuária para a abertura de vias e remodelamento 1 Decreto n° 29.881, de 18 de setembro de 2008.

da região. Um projeto de cidade mais adequado à burguesia carioca emergente do período, com um forte discurso de criminalização da pobreza. Hoje, o pressuposto higienista do período Pereira Passos (1902-1906) é revisitado através do discurso e das práticas de Eduardo Paes. O que está no caminho de seus desejos de ordenamento e criação de uma paisagem urbana adequada às imagens internacionais de cidade-global é removido e colocado abaixo. A fragmentação de políticas setoriais urbanas (habitação, saneamento e transporte) favorece a aproximação da política econômica de mercado com o planejamento, onde toda a luta pelo direito à cidade é capturada ou simplesmente deslegitimada por inúmeros decretos e pela flexibilização da legislação. Os princípios da gestão democrática e da função social da cidade conquistados através da junho/julho/agosto de 2014

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ARTIGO promulgação em 2001 do Estatuto da Cidade são postos de lado. O Porto Maravilha é uma das principais evidências desse processo, posto que, através da Operação Consorciada Urbana da Região do Porto do Rio que institui a CDURP — Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região Portuária —, todas as diretrizes de planejamento da área portuária, que constam no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município do Rio de Janeiro (2011), foram revogadas. Não estamos afirmando que este plano é uma grande conquista do movimento de reforma urbana e de outros, comprometidos com a luta pelo direito à cidade, mas minimamente considerava premissas mais razoáveis de controle do uso e ocupação do solo, segundo o significativo patrimônio histórico e cultural dos bairros portuários. As remoções de comunidades pobres das cidades é uma das faces mais perversas. Diante dessa lógica, para os(as) expulsos(as) só restam os lugares “sem cidade”, sobretudo quando são famílias residentes em favelas de áreas centrais2 do Rio de Janeiro. Para aquelas que são “beneficiadas” pelo programa Minha Casa Minha Vida, a única opção dada à maioria é o reassentamento a mais de 40 km de distância de seu bairro de origem, infringindo a Lei Orgânica do município que garante, através do artigo 429, “o assentamento em localidades próxi2 Consideramos áreas centrais, tanto o centro da cidade como os bairros que se configuram como centralidades nas regiões onde se localizam.

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mas dos locais da moradia ou do trabalho, se necessário o remanejamento”. Aos olhos do Executivo Municipal, o interesse público se torna invisível e toda a legislação que garante seus interesses, também. O não reconhecimento e a invisibilidade dada às reais demandas da população mais atingida pelos processos de violação desencadeados têm rebatimento perverso, sobretudo, aos(às) que já são invisibilizados(as), inclusive nas denúncias. Escolhemos a problemática de gênero para propor uma breve reflexão teórica, da necessidade de ampliarmos não só a perspectiva das denún-

cias como das reinvindicações na política urbana.

A INVISIBILIDADE DO DEBATE DE GÊNERO – PERSPECTIVA DO RECONHECIMENTO PARA A POLÍTICA URBANA

Grande parte dos relatos ligados à problemática dos Megaeventos no país, quando se preocupam em evidenciar as mulheres, as enquadram como mães, responsáveis por seus filhos e filhas, que têm o seu direito à moradia violado, principalmente devido às remoções forçadas.


Há um discurso ainda muito presente que reforça a naturalização do papel social das mulheres em nossa sociedade, vinculada à reprodução e ao cuidado com a família. As mulheres que não se enquadram nesse padrão sofrem de forma ainda mais violenta os impactos desse processo. Em áreas mais precárias das cidades brasileiras, sobretudo em favelas e periferias, é evidente o percentual elevado de mulheres que são as únicas responsáveis economicamente pela casa onde residem, principalmente em locais mais precários e vulneráveis jurídica e urbanisticamente. O que as submete a um maior risco de

expulsão de suas casas. Os dados mais recentes do IBGE 2010 revelam que em diversas favelas do Rio de Janeiro, o percentual pode ultrapassar os 50% das residências recenseadas. Apesar disso, outros tipos de violação vêm acontecendo e não são focados na maioria das pesquisas e denúncias, além da própria política urbana, como o impacto da atual política de segurança na vida das mulheres, moradoras de favelas “pacificadas”. É emergente cada vez mais dar visibilidade aos temas mais marginais. A relevância é evidente nos dados estatísticos. Ao olhar os dados específicos para área MIDIANINJA

▼▼ NO IMPROVISO O que será o amanhã?

portuária, nas áreas mais pobres e mais precárias da Providência, grande parte dos domicílios tem como responsáveis as mulheres, como é o caso da parte alta da Pedra Lisa (83,7%). Na Rua do Livramento, vemos inúmeras famílias vivendo nos cortiços que também apresentam número significativo de mulheres responsáveis por seus domicílios. No prédio chamado “Apê”, na Ladeira do Faria nº 125, onde foram removidas dezenas de famílias, 21 mulheres eram responsáveis por 34 apartamentos mapeados. Essa área da favela é considerada uma das mais precárias. Em 2012, através da Relatoria das Nações Unidas para o Direito à Moradia Adequada, a urbanista Raquel Rolnik foi responsável pela elaboração de uma cartilha chamada “Como fazer valer o direito das mulheres à moradia?”, conforme os esforços da ONU do chamado gender mainstreaming desde a Conferência das Mulheres em Pequim, 1995. Gender mainstreaming é um conceito de política pública que considera as diferentes implicações entre os gêneros, a partir de uma abordagem transversal que reverbere na legislação e programas em todos os níveis de governo. Compartilhamos a opinião dos limites da governança que se paute por diretrizes internacionais, uma vez que acaba por homogeneizar a problemática de gênero nos diferentes países e territórios. Tal perspectiva de transversalização de gênero está associada ao Consenso de Washington que “corresponde a uma série de programas inspirados nas abordagens de Milton Friedman e dos Chicago Boys, com o objetivo de fajunho/julho/agosto de 2014

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ARTIGO zer com que o Estado deixe pleno espaço ao mercado” (LABRECQUE, 2010, p.903). Ou seja, é preciso cuidado quando se propõe a inclusão de problemáticas que não são tidas como centrais, pois podemos recair em superficialidades ou mesmo em armadilhas que reforcem a lógica neoliberal na política urbana. Atentos a isso, não nos furtamos de ressaltar a importância do debate. Para tanto, consideramos de extrema importância a apropriação das reflexões na contemporaneidade sobre duas categorias da ciência política: reconhecimento e redistribuição, na perspectiva da justiça e da igualdade, a fim

de não recair em erros analíticos quanto ao debate sobre o enfrentamento das desigualdades de gênero no espaço urbano. A estadunidense feminista Nancy Fraser (2006) apresenta reflexões que se baseiam no que ela considera “dilemas da justiça numa era ‘pós-socialista’”, levantando o conflito político que cerca questões relacionadas à identidade, cultura e classe. Afirma que pessoas sujeitas à injustiça cultural e econômica necessitariam de reconhecimento e redistribuição. Assim, quem procura promover a diferenciação do grupo tenderia à política do reconhecimento, e quem defende a sua desestabili-

zação ou sua pulverização tenderia à política da redistribuição. Fraser assume que a sua perspectiva de justiça se relaciona à redistribuição e ao reconhecimento, mas há uma tensão neste debate, pois parecem ter, frequentemente, objetivos contraditórios: Lutas por reconhecimento assumem com frequência a forma de chamar a atenção para a presumida especificidade de algum grupo [...] e, portanto, afirmar seu valor. Desse modo, elas tendem a promover a diferenciação de grupo. Lutas de redistribuição, em contraste, buscam com frequência abolir os arranjos econômicos que embaçam a especificidade do grupo (FRASER, 2006:233).

▼▼ É DESESPERO Pra onde ir?

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Quando analisamos mulheres pobres que vivem em favelas, podemos associá-las ao que Fraser (2006) considera coletividades bivalentes, “diferenciadas como coletividades tanto em virtude da estrutura econômica-política quanto da estrutura cultural-valorativa da sociedade”3. Por isso, tais coletividades necessitariam dos dois para a busca da justiça. Na política urbana, a consideração da dimensão de gênero surge apenas naquilo que reforça os seus papéis sociais tradicionais. Por esta razão, demandas por creches, posto de saúde, praça para crianças (isto é, aquilo que remete a sua responsabilidade doméstica e do cuidado com a família) são utilizados nos discursos políticos como reivindicação das mulheres, mas, de fato, as encaram somente como mães. Sendo assim, a invisibilidade e a desconsideração da necessidade de mudanças na valoração cultural de gênero em favelas, por exemplo, não encontra solução na redistribuição, mas no reconhecimento (PHILLIPS, 2009). A experiência urbana, em muitos fatores, se diferencia entre os indivíduos e grupos sociais, principalmente se olharmos para a perspectiva de gênero. Nesta direção, barreiras tanto materiais quanto simbólicas deveriam ser quantificadas e qualificadas na política urbana e habitacional da cidade. Os programas de urbanização de favelas e de construção de moradia popular precisariam caracterizar e dimensionar estes aspectos, pois reforçam lógicas que vão contra o que chamamos de direito à cidade. 3

A política urbana na lógica de mercado, neste contexto de Megaeventos, tende a homogeneizar a tudo e a todos(as), reforçando a invisibilidade de gênero, ou mesmo o lugar das mulheres na sociedade, quando já são evidentes práticas e relações sociais que desafiam essa mística. É emergencial que o debate político acerca do direito

à cidade considere de forma coexistensiva as desigualdades de gênero frente a outros processos de opressão. Por isso, acreditamos que a vida das mulheres, em suas diversas manifestações, precisa ser cada vez mais desmistificada, a fim de gerar instrumentos de luta e pressão política para a ampliação de direitos em nossa cidade.

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FRASER, 2006, p.233.

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NO PRELO

MARCO FERNANDES

▼▼ LÍVIA. Paixão pelo futebol motivou pesquisa

▼▼ DA REDAÇÃO

COPAS E DITADURAS Livro investiga a relação entre os regimes militares no Brasil e na Argentina e o campeonato mundial de futebol da Fifa nos anos de 1970 e 1978

A

historiadora Lívia Guimarães decidiu dar amplitude acadêmica à sua paixão pelo futebol. Ela lança na primeira quinzena de julho o livro Com a taça nas mãos — sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina (Editora Lamparina).

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Trata-se de sua tese de doutorado em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Desde 2006, Lívia trabalha com o tema, quando iniciou o mestrado em Estudos Latino-americanos na Universidade Nacional de San Martín (UNSAM — Argentina). Para entender a teia de interesses que envolveu as ditaduras dos dois países (Brasil 1964-1985 e Argentina 1976-1983) e as Copas do Mundo de 1970 e 1978, Lívia percorreu arquivos em cidades de quatro países: Rio, Buenos Aires, Paris e Zurique, na Suíça, onde fica a sede da Fifa. O Brasil foi tricampeão do Mundo em 1970, no México.


Em 1978, a Argentina, do general Jorge Videla, foi a anfitriã da Copa. Lívia Guimarães pôs foco nessas fases sombrias dos dois países. Em 1970, aqui no Brasil, o general Garrastazu Médici comandava um dos períodos mais duros do regime. A conquista do campeonato mundial deixou a população em êxtase. O regime aproveitou a atmosfera para propagar uma onda de patriotismo e humanizar a figura do ditador, como mais um brasileiro apaixonado por futebol. Nos porões da ditadura, a realidade era de prisões, torturas e mortes de perseguidos políticos. Na Argentina, em 1978, laços profundos se estabeleceram entre a Fifa, presidida então pelo brasileiro João Havelange, e os

comandantes da ditadura sanguinária que durante sete anos impôs o terror ao país: números indicam 30 mil mortos e desaparecidos. Lívia Guimarães explica que o seu estudo não busca atestar o uso do futebol pelos governos ditatoriais para buscar consenso na sociedade. Isto é muito óbvio, ela diz. Nesta entrevista à revista Cadernos Adufrj, a escritora assegura que suas pesquisas a permitem superar o simplismo em relação a algumas conclusões e/ ou informações correntes sobre o assunto. Ela destaca como um dos pontos que procura desmistificar a ideia de que “o futebol é usado apenas como ferramenta de manipulação de regimes autoritários, como se fosse

ARQUIVO / AGÊNCIA O GLOBO

▼▼ DITADOR Médici, comandante do terror de Estado, ao lado de Havelange

AFP

▼▼ VIDELA. Genocida cumprimenta jogadores em 1978

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um espaço sem autonomia, sem uma história e uma dinâmica próprias”. As pesquisas da historiadora também a fizeram relativizar versões correntes sobre as relações da ditadura brasileira com a seleção de 1970. Ela contesta, por exemplo, a história segundo a qual o técnico João Saldanha foi afastado da seleção às vésperas da Copa do México, mesmo após ter vencido as eliminatórias, por ser comunista e por ter desafiado Médici. O ditador queria a escalação do atacante Dario, do Atlético Mineiro, e Saldanha teria replicado com a frase “ele (o general) escala o seu ministério e eu, o meu time”. A conclusão de Lívia é que Saldanha deixou o time porque já estava desgastado com os jogadores por causa de seu temperamento explosivo. Quando o tema é a Copa na Argentina, as investigações da historiadora trazem informações relevantes, como a de que os dois principais grupos guerrilheiro em armas no país, os Motoneros e o Exército Revolucionário do Povo (ERP) divulgaram nota apoiando o torneio porque consideravam que “a Copa não era da ditadura, mas do povo”. A Argentina havia sido indicada para sediar a Copa do Mundo de 1978 em 1966, portanto, bem antes do golpe militar de 1976. Lívia também afirma que “João Havelange, presidente da FIFA, estabeleceu relações pessoais especialmente com o Almirante Carlos Lacoste”. Esse militar chegou a ser vice-presidente financeiro da FIFA depois.

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TORCER OU NÃO TORCER A duração das duas ditaduras teve alguma relação com a conquista das Copas? Não. No caso do Brasil, a ditadura ainda permaneceu por mais 15 anos após a Copa, e no caso da Argentina, por mais cinco. Isso não tem relação com a vitória. O que as Copas geraram foi um momento de euforia, de renovação de consenso, mas de forma alguma elas podem ser lidas como responsáveis pela permanência destes regimes. Quem soube usar melhor a vitória na Copa, o Brasil ou a Argentina? Acredito que a Argentina, em função de ter sido a sede do evento. Isso lhe proporcionou diferentes ferramentas de propaganda a seu favor. Qual foi o nível de cumplicidade da Fifa com a ditadura argentina? Esse é um tema complicado. João Havelange, presidente da FIFA, estabeleceu relações pessoais especialmente com o Almirante Carlos Lacoste, Vice-Presidente do Ente Autárquico Mundial 78, o verdadeiro responsável pela organização do evento. Lacoste chegou a ser vice-presidente financeiro da FIFA depois. O fato é que as relações entre Havelange e a Junta Militar Argentina nunca foram difíceis. Além do episódio Saldanha, há outras revelações que

desmistificam algumas “verdades” tidas como incontestáveis? Acho que a principal que procuro desmistificar é a de que o futebol é usado apenas como ferramenta de manipulação de regimes autoritários, como se fosse um espaço sem autonomia, sem uma história e uma dinâmica próprias. Que conclusão (conclusões) da sua tese você gostaria de destacar? Destaco, novamente, o fato de que a leitura na dicotomia apoio/oposição não é suficiente para compreender as sociedades estudadas, não dão conta da complexidade dessas ditaduras. E isso vale também para as relações com o futebol: torcer ou não torcer para a seleção não pode ser interpretado como apoiar ou resistir à ditadura.

▼▼ HAVELANGE. Cúmplice do terror


LIVROS

COLETÂNEA DA BOITEMPO DISCUTE COPA E OLIMPÍADA

Ter um olhar crítico sobre os megaeventos no Brasil não é patriótico nem antipatriótico. É apenas o necessário olhar crítico — Juca Kfouri

Em meio a um crescente número de manifestações e uma intensa discussão dos impactos da Copa do Mundo em nossas cidades, a Boitempo Editorial amplia o debate ao lançar agora em junho a coletânea Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?, editada no calor da hora, com contribuições diversas, como o jornalista investigativo escocês Andrew Jennings; o secretário executivo do Ministério do Esporte, Luis Fernandes; a relatora especial da ONU, Raquel Rolnik; os urbanistas Erminia Maricato (USP) e Carlos Vainer (UFRJ); o jornalista Juca Kfouri (quarta capa), entre outros. Para tornar

o livro acessível ao maior número de pessoas, autores cederam seus textos, possibilitando que o volume chegue ao mercado a preço de custo (R$ 10,00). Um dos grandes méritos de Brasil em jogo é trazer argumentos dos dois lados em um embate de ideias que só tem a enriquecer o leitor. Assim, o livro apresenta perspectivas variadas sobre o papel do esporte na sociedade brasileira e na construção da identidade nacional, os impactos urbanísticos e as transformações dos megaeventos esportivos ao longo da história. A coletânea conta ainda com uma cronologia detalhada sobre os megaeventos esportivos, desde a origem até os tempos atuais.

PAIXÕES E DESCONFIANÇAS

Ao conquistar o direito de sediar a Copa do Mundo 2014 e os Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016, o Brasil aceitou o desafio de realizar dois megaeventos esportivos globais, que despertam, ao mesmo tempo, paixões e desconfianças. Há argumentos que defendem os eventos como uma janela singular e histórica de oportunidades, mas, longe do consenso, também surgem críticas que consideram tais projetos excludentes, potencializadores da desigualdade social nas cidadessede e do endividamento público.

A polêmica abre espaço para um amplo debate sobre o que significa para o Brasil sediar os megaeventos esportivos mais simbólicos do mundo na atual conjuntura política, econômica e social. É nesse sentido que a Boitempo Editorial publica a coletânea Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?, editada no calor da hora, com contribuições de Andrew Jennings, Luis Fernandes, Raquel Rolnik, Ermínia Maricato, Carlos Vainer, Jorge Luiz Souto Maior, José Sergio Leite Lopes, Nelma Gusmão de Oliveira,

Antonio Lassance, Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, João Sette Whitaker (apresentação) e Juca Kfouri e Gilberto Maringoni (quarta capa).

Título: Brasil em jogo Subtítulo: o que fica da Copa e das Olimpíadas? Autores: Vários Páginas: 96 Preço: R$ 10,00 | Ebook: R$ 5,00 Ano: 2014 Coedição: Boitempo e Carta Maior

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ARTE GILCASTRO

portf贸lio



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