Revista de Política e Cultura da ADUFF Ano V - nº 4
Mega-eventos
Cidades brasileiras sofrem processo de intensificação da exclusão social
Essa edição é dedicada a Carlos Marighella, um lutador incansável do povo brasileiro
ADUFF SSind
Seção sindical do Andes Filiado à CSP/CONLUTAS
SUMÁRIO
Associação dos Docentes da UFF
“Cantamos porque chove sobre os sulcos... e somos militantes desta vida. E porque não podemos e nem queremos deixar que a canção se torne cinzas.” (Mário Benedetti)
Revista da Associação dos Docentes da UFF. Rua professor Lara Vilela, 110. São Domingos, Niterói-RJ. CEP: 24.210-590.Tels: (21) 2622-2649 e 2620-1811. Correio eletrônico: revistaclasse@uol.com.br EDIÇÃO GERAL e REDAÇÃO: Alvaro Neiva. PROJETO GRÁFICO: Cláudio Camillo e Stela Guedes Caputo. DIAGRAMAÇÃO: Luiz Fernando Nabuco. ESTAGIÁRIO DE JORNALISMO: Andrew Costa. Conselho Editorial: Gelta Terezinha Ramos Xavier, Juarez Torres Duayer, Armando Cypriano Pires, Larissa Dahmer Pereira, Eblin Joseph Farage, José Raphael Bokehi, Sonia Maria da Silva, Dora Henrique da Costa, José Luiz Cordeiro Antunes, Júlio Carlos Figueiredo, Marcos Pinheiro Barreto, Teresinha Josefa Monteiro, Elza Dely Veloso Macedo, Catharina Marinho Meirelles, Vania Lúcia Rodrigues Dutra. Gestão: “Lutar na Voz Ativa - Compromisso com a Universidade Pública, os Direitos dos Professores e a Unidade dos Trabalhadores” ISSN: 2176-9605 Impressão: Gráfica EDG. Tiragem: 4000 exemplares
Editorial A Classe está de volta ...................................................................................... pág. 2 Contra Corrente István Mészáros Crise estrutural necessita de mudança estrutural ......................................................... pág. 4 Miguel Vedda Notas sobre a atualidade de Lukács ................................................................................. pág. 18 Vozes da resistência contra Belo Monte .............................................................. pág. 24 Marina Pita A saga de um grupo de teatro classista ............................................................... pág. 32 Cecilia Maria Bouças Coimbra Comissão da Verdade: mais uma farsa, mais um engodo .................................. pág. 38 Edson Teixeira da Silva Junior Marighella: presente! ........................................................................................... pág. 42 De Capa Megaeventos para quem? .................................................................................. pág. 44 Vila Autódromo: uma comunidade que teima em resistir ..................................... pág. 52 Comunicação Bráulio Araújo, João Brant e Veridiana Alimonti Os caminhos para a universalização da banda larga ........................................... pág. 56 Filmes João Leonardo Medeiros Verdade por trás da crise - resenha do filme “Trabalho interno”................................... pág. 62 Nossa resenha Maurício Vieira Martins O laboratório de Marx - Grundisse ...................................................................... pág. 66 Diálogos com a cidade Desabrigados das chuvas sofrem com descaso .................................................. pág. 70 Hiperfocal AF Rodrigues - fotógrafo de dois mundos ......................................................... pág. 74
Editorial
A Classe está de volta Após um intervalo de exatos dois anos desde a publicação da última edição, é com satisfação que a ADUFF anuncia a retomada da Classe. A revista foi lançada em maio de 2008, durante a gestão da então presidente Marina Barbosa Pinto – atualmente presidente do ANDES-SN – e com projeto e edição geral sob responsabilidade da jornalista Stela Guedes Caputo. A idéia era ousada, mas muito importante. “Um jornal sindical é espaço para fazer circular as informações numa perspectiva de classe distinta daquela que encontramos nos veículos dos grandes monopólios da comunicação. Mas nem sempre garante espaço para a reflexão mais cuidadosa, para a divulgação das formas alternativas de entendimento do mundo em seus produtos estética ou culturalmente mais elaborados”, afirmava o editorial da primeira edição. Por isso surge Classe – para ser o espaço da reflexão mais cuidadosa, da divulgação de formas alternativas de entendimentos do mundo. Por diversos problemas, tivemos um longo hiato na publicação de Classe, mas agora retomamos
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o projeto, com as mesmas motivações que levaram o sindicato a criá-la naquele momento. Se em 2008 vivíamos o início de uma crise econômica global, essa crise se acentuou de maneira importante nos últimos anos, e tomou conta do mundo. A última edição da revista, lançada no início de 2010, trazia na seção Contra Corrente artigo do professor da UFF Marcelo Carcanholo, sobre “a crise atual do capitalismo e seus impactos para o Brasil”. Nesta nova edição, a mesma seção traz um artigo fundamental de István Mészàros, mostrando que o sistema capitalista vive uma crise estrutural e que por esta razão a sociedade necessita de uma “mudança estrutural”. Ainda tênue é possível identificar uma movimentação da classe neste cenário de crise mundial. Depois de um período de imensa supremacia ideológica do neoliberalismo e dos anúncios sobre o fim da história e da luta de classes, o capitalismo mostra mais uma vez sua alternativa para a superação das crises. Por elas pagam os trabalhadores. Ao longo dos anos recentes, vimos milhões e milhões de investimentos públicos destinados a salvar grandes
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empresas privadas, ao mesmo tempo em que crescem os ataques aos direitos dos trabalhadores, as demissões massivas. Contra essas medidas, o novo fica por conta da extraordinária movimentação de indignação e resistência popular que desde 2010 ocupa o cenário político e as ruas e praças na Inglaterra, França, Espanha, Itália, Grécia, e em vários outros países europeus. E, neste ano, no epicentro da crise, destaca-se o “Occupy Wall Street”. Na seção “Nosso filme”, trazemos uma resenha sobre “Trabalho interno”, ganhador do Oscar de Melhor Documentário em 2011. O filme traz importantes relatos que ajudam a compreender a verdade por trás da crise de 2008 nos Estados Unidos. No Brasil, talvez se possa identificar ao final de 2011, pela primeira vez ao longo dos últimos anos um certo ascenso dos movimentos de massa e algum acirramento nas lutas. Houve importantes greves de trabalhadores da construção civil, correios, mas ainda muito voltadas a reivindicações específicas e distantes de uma percepção de classe mais clara. Os trabalhadores da educação também foram protagonistas de lutas por todo o Brasil, reivindicando direitos, ao mesmo tempo em que defenderam a educação pública, gratuita e de qualidade. Na tentativa de responder à crise internacional, o governo Dilma Rousseff aumenta seus ataques aos trabalhadores. Para dialogar com essa conjuntura, trazemos uma reportagem especial, feita diretamente do Pará, sobre os conflitos em torno da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. O projeto, que faz parte do modelo de desenvolvimento praticado pelo governo federal, tem enfrentado resistência em todo o país, mas especialmente na região. A matéria de capa também está diretamente relacionada ao papel que os mega-
eventos desempenham no reposicionamento da inserção subordinada do Brasil ao capital internacional, ao mesmo tempo em que abrem um grande espaço para profundas transformações nos espaços urbanos do país. Trazemos também uma reportagem especial sobre o grupo “Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes”. Embora pouco conhecido nacionalmente, este grupo de teatro popular da periferia de São Paulo tem conquistado espaço e respeito não apenas pelo seu trabalho artístico, mas por suas posições acerca do papel da cultura em nossa sociedade. Além disso, publicamos um artigo escrito especialmente para nossa revista pelo professor argentino Miguel Vedda, que esteve na UFF em dezembro, para participar de um simpósio, sobre a atualidade do pensamento do filósofo húngaro Gyorgy Lukacs. Apresentamos ainda um artigo sobre a promulgação da “Comissão da Verdade”, seus significados e o quanto ela atende – ou não – as reivindicações daqueles militantes que enfrentaram a ditadura e daqueles tantos que seguem lutando pela memória deste capítulo da história do Brasil. Mais recentemente, com a mudança de rumos do Partido dos Trabalhadores e da Central Única dos Trabalhadores, a classe viu-se privada de instrumentos de luta que custou a construir. Embora fundamental o processo de reconstrução não será breve, nem fácil. Precisamos seguir reunindo esforços para aglutinar as lutas dos trabalhadores. De nossa parte, seguimos tentando. Em nosso sindicato. Em nossos boletins e nossos jornais. Em nossa Classe. De modo a contribuir para que a categoria aqui se reconheça e se mobilize para enfrentar os ataques a seus direitos e lutar por novas conquistas e transformações em direção a uma sociedade mais justa e igualitária.
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Contra Corrente
CRISE ESTRUTURAL NECESSITA DE MUDANÇA ESTRUTURAL* István Mészáros
Alvaro
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Neiva
Quando se enfatiza a necessidade de uma mudança estrutural radical deve-se tornar claro desde o início que isso não é um apelo a uma Utopia não realizável. Ao contrário, a característica definidora primária das teorias utópicas modernas era precisamente a projeção de que a melhoria pretendida nas condições de vida dos trabalhadores poderia ser alcançada no âmbito da base estrutural existente das sociedades criticadas. Assim, Robert Owen de New Lanark, por exemplo, que tinha uma parceria comercial basicamente insustentável com o filósofo liberal utilitarista Jeremy Bentham, tentou com esse espírito a realização geral de suas esclarecidas reformas sociais e educacionais. Ele pedia o impossível. Como também sabemos, o altissonante princípio moral “utilitarista” de “o maior bem para o maior número” reduziu-se a nada desde sua defesa por Bentham. O problema para nós é que, sem uma avaliação adequada da natureza da crise econômica e social de nossos dias – que já não pode ser negada pelos defensores da ordem capitalista, ainda que eles rejeitem a necessidade de uma mudança maior –, a probabilidade de sucesso a esse respeito é insignificante. O fim do “Welfare State”, mesmo no pequeno número de países privilegiados onde foi uma vez instituído, oferece uma lição que faz refletir sobre isso. Vou começar citando um artigo recente dos editores do mais completo jornal da burguesia internacional, The Financial Times (“US budget impasse”, The Financial Times, 2 de Junho de 2011). Falando da perigosa crise financeira, reconhecida pelos próprios editores como perigosa, eles terminam o artigo com estas palavras: “Ambos os lados [Democratas e Republicanos]
são culpados por um vácuo de liderança e deliberação responsável. É uma grave falta de governo e mais perigosa do que Washington acredita ser”. Isso é tudo o que temos como sensatez editorial sobre a pertinente questão do “débito Soberano” e dos crescentes déficits econômicos. O que torna o editorial do Financial Times ainda mais vazio do que o vácuo de liderança deplorado pelo jornal é o sonoro subtítulo desse mesmo artigo: “Washington deve parar de fazer pose e começar a governar”. Como se editoriais como esse pudessem significar mais do que assumir determinada atitude em nome de “governar”; pois a grave questão em jogo é o débito catastrófico da “casa todo-poderosa” do capitalismo global, os Estados Unidos da América, onde tão só o débito do governo (ou seja, sem adicionar débito privado individual e Corporativo) já se conta bem acima de 14 trilhões de dólares, conforme projetado em grandes números iluminados na fachada de um prédio público de Nova Iorque, indicando a irresistível tendência de débito crescente. O ponto que eu desejo enfatizar é que a crise que temos de enfrentar é uma crise estrutural profunda e cada vez mais grave, que necessita da adoção de remédios estruturais abrangentes, a fim de alcançar uma solução sustentável. Devese também enfatizar que a crise estrutural de nosso tempo não se originou em 2007 com a “explosão da bolha habitacional dos Estados Unidos”, mas sim, pelo menos, quatro décadas antes. Eu falei sobre isso, nesses mesmos termos, nos idos de 1967 (em “As tarefas à nossa frente”), antes da explosão do maio de 1968 na França; e escrevi em 1971, no Prefácio da Terceira Edição da “Teoria da Alienação de Marx”, que os acon-
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A crise periódica ou conjuntural desdobra-se e é mais ou menos solucionada com sucesso dentro da estrutura estabelecida, enquanto a crise fundamental afeta a própria estrutura em sua totalidade”
tecimentos que então se desenrolavam “salientavam dramaticamente a intensificação da crise estrutural global do capital”. A esse respeito, é necessário esclarecer as diferenças relevantes entre tipos ou modalidades de crise. Não é indiferente se uma crise na esfera social pode ser considerada uma crise periódica/ conjuntural ou algo muito mais fundamental do que isso. Pois, obviamente, a maneira de lidar com uma crise estrutural fundamental não pode ser conceitualizada em termos das categorias de crise periódica ou conjuntural. A diferença crucial entre esses dois tipos de crise, acentuadamente contrastantes, é que a crise periódica ou conjuntural desdobra-se e é mais ou menos solucionada com sucesso dentro da estrutura estabelecida, enquanto a crise fundamental afeta a própria estrutura em sua totalidade. Em termos gerais, essa distinção não é
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simplesmente uma questão acerca da aparente gravidade desses tipos contrastantes de crises. Uma crise periódica ou conjuntural pode ser dramaticamente severa, como o foi a “Grande Crise Econômica Mundial de 1929-1933”, sendo, contudo, capaz de uma solução dentro dos parâmetros do sistema dado. E, do mesmo modo, mas no sentido oposto, o caráter “não-explosivo” de uma crise estrutural prolongada, em contraste com as “grandes tempestades” (nas palavras de Marx) através das quais crises conjunturais periódicas podem elas mesmas se liberar e solucionar, pode conduzir a estratégias fundamentalmente mal concebidas, como resultado da interpretação errônea da ausência de “tempestades”, como se tal ausência fosse uma evidência impressionante da estabilidade indefinida do “capitalismo organizado” e da “integração da classe operária”. Deve-se enfatizar bem: a crise em nossos dias não é compreensível sem que seja referida à ampla estrutura social global. Isso significa que, a fim de esclarecer a natureza da persistente e cada vez mais grave crise em todo o mundo hoje, devemos focar a atenção na crise do sistema do capital em sua inteireza, pois a crise do capital que ora estamos experimentando é uma crise estrutural que tudo abrange. Vejamos, pois, resumindo tanto quanto possível, as características que definem a crise estrutural que nos preocupa. “A novidade histórica da crise de hoje torna-se manifesta em quatro aspectos principais: 1 – seu caráter é universal, em lugar de restrito a uma esfera particular (por exemplo, financeira ou comercial, ou afetando este ou aquele ramo particular de produção, aplican-
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do-se a este e não àquele tipo de trabalho, com sua gama específica de habilidades e graus de produtividade, etc.); 2 – seu escopo é verdadeiramente global (no sentido mais literal e ameaçador do termo), em lugar de limitado a um conjunto particular de países (como foram todas as principais crises do passado); 3 – sua escala de tempo é extensa, contínua – se preferir, permanente – em lugar de limitada e cíclica, como foram todas as crises anteriores do capital; 4 – em contraste com as erupções e colapsos mais espetaculares e dramáticos do passado, seu modo de desdobramento poderia ser chamado de gradual, desde que acrescentemos a ressalva de que nem sequer as convulsões mais veementes ou violentas poderiam ser excluídas no que se refere ao futuro; isto é, quando a complexa maquinaria agora ativamente engajada na “administração da crise” e no “deslocamento” mais ou menos temporário das crescentes contradições perder sua força... [Neste ponto], faz-se necessário tecer algumas considerações gerais sobre os critérios de uma crise estrutural, bem como sobre as formas em que sua solução pode ser prevista. Em termos mais simples e gerais, uma crise estrutural afeta a totalidade de um complexo social, em todas as suas relações com suas partes constituintes ou subcomplexas, assim como com outros complexos aos quais está vinculada. Ao contrário, uma crise não-estrutural afeta apenas algumas partes do complexo em questão e, assim, não importando o quão grave ela possa ser no que se refere às partes
afetadas, não pode pôr em risco a sobrevivência contínua da estrutura global. Consequentemente, o deslocamento das contradições só é possível enquanto a crise for parcial, relativa e internamente gerenciável pelo sistema, requerendo não mais do que alterações – ainda que importantes – dentro do próprio sistema relativamente autônomo. Justamente por isso, uma crise estrutural coloca em questão a própria existência do complexo global envolvido, postulando sua transcendência e substituição por algum complexo alternativo. O mesmo contraste pode se manifestar em termos dos limites que qualquer complexo social específico possa ter em sua imediaticidade, em qualquer época, quando comparados àqueles para além dos quais não pode ir. Desse modo, “uma crise estrutural não diz respeito aos limites imediatos, e sim aos limites últimos de uma estrutura global...” (citação de “Para além do Capital”) Desse modo, em um sentido bastante óbvio, nada poderia ser mais sério do que a crise estrutural do modo de reprodução sociometabólica do capital, que define os limites últimos da ordem estabelecida. Mas, embora profundamente séria em seus parâmetros gerais de grande importância, a julgar pela aparência, a crise estrutural pode não parecer de importância tão decisiva quando comparada às vicissitudes dramáticas de uma crise conjuntural maior. As “tempestades” através das quais as crises conjunturais se liberam são bastante paradoxais, no sentido de que, em seu modo de desdobramento, elas não apenas se liberam (e se impõem), mas também se solucionam, dadas
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as circunstâncias, até onde seja viável. Elas podem fazer isso precisamente por causa do seu caráter parcial, que não coloca em dúvida os limites máximos da estrutura global estabelecida. Ao mesmo tempo, entretanto, e pelo mesmo motivo, elas só podem solucionar os enraizados problemas estruturais subjacentes – que necessariamente se reafirmam repetidas vezes na forma de crise conjuntural específica – de um modo estritamente parcial e, temporariamente, de uma maneira mais limitada. E até que a próxima crise conjuntural apareça no horizonte da sociedade. Em comparação, em vista da natureza inevitavelmente complexa e prolongada da crise estrutural, que se estende em tempo histórico no sentido de uma época e não de forma episódica, é a interrelação cumulativa do todo que decide a questão, mesmo sob a falsa aparência de “normalidade”. Isso ocorre porque, na crise estrutural, tudo está em jogo, envolvendo os abrangentes limites últimos da determinada ordem, da qual não pode haver um exemplo específico simbólico/paradigmático. Sem compreender as conexões e implicações sistêmicas globais dos acontecimentos e desenvolvimentos específicos, perdemos de vista as mudanças realmente significativas e as correspondentes alavancas de potencial intervenção estratégica para afetá-las positivamente, no interesse da transformação sistêmica necessária. Nossa responsabilidade social, portanto, requer uma consciência crítica determinada da interrelação cumulativa emergente, em vez de procurar garantias consoladoras no mundo de normalidade ilusória, até que a casa desabe sobre nossas cabeças.
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É necessário enfatizar aqui que, por quase três décadas depois da Segunda Guerra Mundial, a expansão econômica bem sucedida nos países capitalistas dominantes gerou a ilusão, até mesmo entre alguns intelectuais importantes de esquerda, de que a fase histórica de “capitalismo em crise” tinha sido superada, dando lugar ao que eles chamaram de “capitalismo organizado avançado”. Quero ilustrar este problema citando algumas passagens do trabalho de um dos maiores intelectuais militantes do século XX, Jean-Paul Sartre, por quem, pelo que vocês bem sabem pelo meu livro sobre Sartre, tenho a mais elevada consideração. Entretanto, o fato é que a adoção da noção de que, superando o “capitalismo em crise” e convertendo-se em “capitalismo avançado”, a ordem estabelecida criou grandes dilemas para Sartre. Isso é ainda mais significativo porque ninguém pode negar a busca inteiramente comprometida de Sartre por uma solução emancipatória viável, nem sua grande integridade pessoal. Em relação ao nosso problema, temos que recordar que, na importante entrevista dada ao grupo Manifesto Italiano – depois de esboçar sua concepção das implicações insuperavelmente negativas de sua própria categoria explicativa da institucionalização inevitavelmente prejudicial do que ele chamava o “grupo em fusão”, em sua Crítica da Razão Dialética –, ele teve de chegar à penosa conclusão de que: “Enquanto reconheço a necessidade de uma organização, devo confessar que não vejo como os problemas que confrontam qualquer estrutura estabilizada possam ser resolvidos” (Entrevista publicada em The Socialist Register, 1970, p. 245).
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Aqui a dificuldade reside em os termos da análise social de Sartre serem estabelecidos de tal modo que os vários fatores e correlações que na realidade fazem parte de um todo, constituindo diferentes facetas fundamentalmente do mesmo complexo societário, são descritos por ele na forma de dicotomias e oposições as mais problemáticas, gerando então dilemas insolúveis e uma derrota inevitável para as forças sociais emancipatórias. Isso está claramente demonstrado no diálogo entre o grupo Manifesto e Sartre. “Manifesto: em que bases precisas podese preparar uma alternativa revolucionária? Sartre: Repito, mais na base de “alienação” do que de “necessidades”. Em resumo, na reconstrução do individual e da liberdade – a necessidade dela é tão premente que até as técnicas de integração mais refinadas não podem permitirse não levá-la em conta”. Assim, Sartre, em sua avaliação estratégica de como superar o caráter opressor da realidade capitalista, levanta uma oposição totalmente insustentável entre a “alienação” dos trabalhadores e suas “necessidades” supostamente satisfeitas, tornando, então, mais difícil de prever um desfecho positivo praticamente viável. E aqui o problema não reside simplesmente em ele dar credibilidade em excesso à explicação sociológica extremamente superficial, mas então em voga, das chamadas “técnicas refinadas de integração”, no que se refere aos trabalhadores. Infelizmente, é muito mais grave do que isso. Na verdade, o problema realmente perturbador em jogo é a avaliação da viabilidade do próprio “capitalismo avançado” e o postulado associado de “integração” da classe trabalhadora,
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Ao contrário da integração indubitavelmente viável de alguns trabalhadores específicos na ordem capitalista, a classe operária – a antagonista estrutural do capital – (...) não pode ser integrada à estrutura exploradora e alienante de reprodução societária do capital”
que Sartre compartilha na ocasião, em grande medida, com Herbert Marcuse. Na atualidade, a verdade da questão é que, ao contrário da integração indubitavelmente viável de alguns trabalhadores específicos na ordem capitalista, a classe operária – a antagonista estrutural do capital – representando a única alternativa hegemônica historicamente sustentável ao sistema do capital – não pode ser integrada à estrutura exploradora e alienante de reprodução societária do capital. O que torna isso impossível é o antagonismo estrutural subjacente entre capital e trabalho, que emana, com uma necessidade incontornável, da realidade de classe de dominação e subordinação antagônicas. Nesse discurso, mesmo a plausibilidade mínima do tipo de alternativa falsa, à maneira
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de Marcuse/Sartre, entre alienação continuada e “necessidade satisfeita” é “estabelecida” com base na compartimentalização descarrilhante de interdeterminações estruturais globalmente arraigadas e suicidamente insustentáveis do capital – sobre a qual se baseia necessariamente a viabilidade sistêmica elementar da única ordem sociometabólica reinante do capital – na forma da separação extremamente problemática do “ca-
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pitalismo avançado” das chamadas “zonas marginais” e do “terceiro mundo”. Como se a ordem reprodutiva do postulado “capitalismo avançado” pudesse se sustentar por qualquer período de tempo, e mesmo no futuro indefinidamente, sem a exploração existente das mal compreendidas “zonas marginais” e do “terceiro mundo” dominado pelo imperialismo. Faz-se necessário citar aqui na íntegra a passagem relevante em que esses problemas são explicados detalhadamente por Sartre. O trecho em questão dessa esclarecedora entrevista é o seguinte: “O capitalismo avançado, no que se refere à consciência de sua própria condição, e a despeito das enormes disparidades na distribuição de renda, consegue satisfazer as necessidades elementares da maioria da classe trabalhadora – permanecem, naturalmente, as zonas marginais, 15 por cento de trabalhadores nos Estados Unidos, os negros e os imigrantes; permanecem os idosos; permanece, em escala global, o terceiro mundo. Mas o capitalismo satisfaz a certas necessidades primárias e também satisfaz a certas necessidades que ele criou artificialmente: por exemplo, a necessidade de um carro. Foi essa situação que me levou a revisar minha ‘teoria das necessidades’, uma vez que essas necessidades não mais estão, em uma situação de capitalismo avançado, em oposição sistemática ao sistema. Ao contrário, tornam-se, parcialmente, sob o controle do sistema, um instrumento de integração do proletariado em certos processos produzidos e dirigidos pelo lucro. O trabalhador esgota-se para produzir um carro e para ganhar o suficiente para comprar um; essa aquisição lhe dá a impressão de ter sa-
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tisfeito uma necessidade. O sistema que o explora lhe estabelece ao mesmo tempo uma meta e a possibilidade de alcançá-la. A consciência do caráter intolerável do sistema não deve mais, portanto, ser buscada na impossibilidade de satisfazer necessidades elementares, mas, acima de tudo, na consciência da alienação – em outras palavras, no fato de que esta vida não vale a pena ser vivida e não tem sentido, que esse mecanismo é um mecanismo enganoso, que essas necessidades são artificialmente criadas, que elas são falsas, que elas são extenuantes e só servem ao lucro. Mas unir a classe com base nisto é ainda mais difícil”. Se aceitarmos essa caracterização da ordem “capitalista avançada” ao pé da letra, nesse caso, a tarefa de produzir uma consciência emancipatória não é apenas “mais difícil”, mas quase impossível. Mas o fundamento duvidoso através do qual podemos chegar a uma conclusão apriorística, imperativa e tão pessimista – prescrevendo do alto dessa “nova teoria das necessidades” o abandono pelos trabalhadores de suas “necessidades artificiais aquisitivas”, exemplificadas pelo automóvel, e sua substituição pelo postulado completamente abstrato que coloca para eles que “esta vida não vale a pena ser vivida e não tem sentido” (um postulado nobre, mas antes abstrato e imperativo, e efetivamente negado, na realidade, pela evidente necessidade dos membros da classe trabalhadora de assegurar as condições de sua existência economicamente sustentável) – é tanto a aceitação de um conjunto de afirmações totalmente insustentáveis quanto a omissão igualmente insustentável de alguns traços vitais determinantes do sistema do capital realmente existente em sua crise estrutural historicamente irreversível.
Para começar, é extremamente problemático falar sobre “capitalismo avançado” – quando o sistema do capital como modo de reprodução sociometabólica encontra-se em sua fase declinante de desenvolvimento histórico e, portanto, é apenas capitalisticamente avançado, mas não em nenhum outro sentido, sendo, então, capaz de sustentar-se apenas de um modo ainda mais destrutivo e, portanto, em última análise, autodestrutivo. Outra afirmação: a caracterização da esmagadora maioria da humanidade – na categoria da pobreza, incluindo os “negros e os imigrantes”, os “idosos” e, em “escala global, o terceiro mundo” – como pertencentes às “zonas marginais” (em afinidade com os “excluídos” de Marcuse), não é menos insustentável. Na realidade, é o “mundo capitalista avançado” que constitui a margem privilegiada totalmente insustentável do sistema global de há muito tempo, com sua desumana “negativa elementar da necessidade” para a maior parte do mundo, e não o que é descrito por Sartre em sua entrevista ao Manifesto como as “zonas marginais”. Mesmo no que diz respeito aos Estados Unidos da América, a margem de pobreza é muito diminuída, como se fosse de meros 15 por cento. Além disso, a caracterização dos automóveis dos trabalhadores como nada mais do que simplesmente “necessidades artificiais”, que “apenas servem ao lucro”, não poderia ser mais unilateral. Ao contrário de muitos intelectuais, nem mesmo aqueles trabalhadores relativamente ricos, sem falar nos membros da classe trabalhadora como um todo, têm o luxo de encontrar seu local de trabalho ao lado do seu quarto. Ao mesmo tempo, ao lado das omissões
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É extremamente problemático falar sobre “capitalismo avançado” – quando o sistema do capital como modo de reprodução sociometabólica encontra-se em sua fase declinante de desenvolvimento histórico e, portanto, é apenas capitalisticamente avançado, mas não em nenhum outro sentido”
espantosas, algumas das contradições e falhas estruturais mais graves estão faltando na descrição sartreana do “capitalismo avançado”, virtualmente esvaziando o significado de todo o conceito. Nesse sentido, uma das necessidades mais importantes sem a qual nenhuma sociedade – passada, presente ou futura – poderia sobreviver, é a necessidade de trabalho. Tanto pelos indivíduos produtivamente ativos – incluindo todos eles em uma ordem social completamente emancipada –, quanto pela sociedade em geral, em sua relação historicamente sustentável com a natureza. A necessária falha em solucionar esse problema estrutural fundamental, que afe-
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ta todas as categorias de trabalho, não apenas no “terceiro mundo”, mas até mesmo nos países mais privilegiados de “capitalismo avançado”, com seu desemprego perigosamente crescente, constitui um dos limites absolutos do sistema do capital em sua inteireza. Outro grave problema que enfatiza a inviabilidade histórica presente e futura do capital é sua mudança calamitosa em direção aos setores parasíticos da economia – como a especulação aventureira produtora de crise que incomoda (como uma questão de necessidade objetiva, frequentemente deturpada como irrelevante fracasso pessoal) o setor financeiro e a fraudulência institucionalizada, intimamente associada a ele – em contraposição aos ramos produtivos da vida socioeconômica requeridos para a satisfação da genuína necessidade humana. Essa é uma mudança que se ergue em nítido contraste ameaçador com a fase crescente de desenvolvimento histórico do capital, quando o prodigioso dinamismo expansionista sistêmico (inclusive a revolução industrial) devia-se predominantemente às realizações produtivas socialmente viáveis e mais intensificáveis. Temos de acrescentar a tudo isso cargas econômicas maciçamente desperdiçadoras impostas à sociedade de maneira autoritária pelo estado e pelo complexo militar/industrial – com a indústria de armas permanente e as guerras correspondentes –, como parte integral do perverso “crescimento econômico” do “capitalismo organizado avançado”. E para mencionar apenas mais uma das implicações catastróficas do desenvolvimento sistêmico do capital “avançado”, devemos ter em mente a transgressão ecológica global proibitivamente devastadora do nosso modo de reprodução
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sociometabólica não mais sustentável no mundo planetário finito, com a exploração voraz dos recursos materiais não renováveis e a destruição cada vez mais perigosa da natureza. Dizer isso não é “ser prudente depois do acontecimento”. Na mesma ocasião em que Sartre deu a entrevista ao Manifesto, eu escrevi que “Outra contradição básica do sistema capitalista de controle é que ele não pode separar avanço de destruição, nem progresso de desperdício – por mais catastróficos que sejam os resultados. Quanto mais destrava a força de produtividade, mais ele desencadeia o poder de destruição; e quanto mais amplia o volume de produção, mais deve enterrar tudo sob montanhas de lixo sufocante. O conceito de economia é radicalmente incompatível com a economia de produção de capital, que, por necessidade, piora ainda mais as coisas, primeiro esgotando com desperdício voraz os recursos limitados de nosso planeta, e então agrava ainda mais o resultado poluindo e envenenando o meioambiente humano com seus resíduos e efluentes produzidos em massa” (Isaac Deutscher Memorial Lecture, The Necessity of Social Control, London School of Economics, 1971). Desse modo, as afirmações problemáticas e as omissões de importância seminal da caracterização de Sartre do “capitalismo avançado” muito enfraquecem o poder de negação do seu discurso libertário. Seu princípio dicotômico que repetidamente defende a “irredutibilidade da ordem cultural à ordem natural” está sempre à procura de soluções em termos da “ordem cultural”, no nível da consciência dos indivíduos, através do trabalho de “consciência sobre consciência” do intelectual comprometido. Ele
recorre à idéia de que a solução exigida estaria em aumentar a “consciência de alienação” – isto é, em termos de sua “ordem cultural” –, ao mesmo tempo descartando a viabilidade de basear a estratégia revolucionária em necessidade pertencente à “ordem natural”. Necessidade material, isto é, a que se diz já atender à maioria dos trabalhadores, e de qualquer forma constituindo um “mecanismo falso e enganoso” e um “instrumento de integração do proletariado”. Para estar seguro, Sartre envolve-se profundamente com o desafio de voltar-se para a questão de como aumentar “a consciência do caráter intolerável do sistema”. Mas, como assunto de consideração inevitável, a própria influência indicada como condição vital de sucesso – o poder da “consciência da alienação” enfatizado por Sartre – precisaria ela mesma de algum amparo objetivo. Caso contrário, além da fraqueza de circularidade autoreferencial da influência indicada, a natureza imperativa de suas palavras “pode prevalecer contra o caráter intolerável do sistema” permanece predominante como uma advocacia cultural nobre, mas ineficaz. Isso é deveras problemático até mesmo nos próprios termos de referência de Sartre, quando, em suas palavras bastante pessimistas, a necessidade é de derrotar a realidade tanto material e culturalmente destrutiva, quanto estruturalmente entrincheirada “deste miserável conjunto que é nosso planeta”, com suas “determinações horríveis, feias e ruins, sem esperança”. Assim, a questão primária diz respeito à demonstrabilidade ou não do caráter objetivamente intolerável do próprio sistema. Pois, se a intolerabilidade demonstrável do sistema falta
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em termos substantivos, como proclamado pela noção de habilidade do “capitalismo avançado” para satisfazer as necessidades materiais exceto nas “zonas marginais”, o “longo e paciente trabalho na construção da consciência” advogado por Sartre permanece quase impossível. É esse conhecimento básico objetivo que precisa ser (e, na verdade, pode ser) estabelecido em seus próprios termos abrangentes de referência, requerendo a desmistificação radical da crescente destrutividade do “capitalismo avançado”. De modo a ser capaz de superar a dicotomia postulada entre a ordem cultural e a ordem natural, a “consciência do caráter intolerável do sistema” só pode ser construída nessa base objetiva – que inclui o sofrimento causado pelo fracasso do capital “avançado” em satisfazer até mesmo as necessidades elementares de alimentação, não nas “zonas marginais”, mas para incontáveis milhões, como claramente evidenciado nos motins por comida em muitos países. Em sua fase ascendente, o sistema do capital afirmava com êxito suas realizações produtivas com base em seu dinamismo expansionista interno, até agora sem o imperativo de um esforço monopolista/imperialista dos países capitalisticamente mais avançados para a dominação mundial militarmente assegurada. Contudo, pela circunstância historicamente irreversível de entrar na fase produtivamente descendente, o sistema do capital tornara-se inseparável de uma necessidade de aumento constante de expansão militarista/monopolista e ampliação de sua base estrutural, cuidando no tempo devido do plano produtivo interno para o estabelecimento e a operação criminosamente
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destrutiva/devastadora de uma “indústria de armas permanente”, juntamente com as guerras necessariamente a ela associadas. De fato, bem antes da deflagração da primeira guerra mundial, Rosa Luxemburgo claramente identificou a natureza deste desenvolvimento monopolista/imperialista no plano destrutivamente produtivo, escrevendo em seu livro “A Acumulação do Capital” sobre o papel da produção militarista massiva que: “O próprio capital, no fundo, controla este movimento automático e rítmico de produção militarista através da legislatura e da imprensa, cuja função é moldar a chamada ‘opinião pública’. É por isso que esse ramo específico de acumulação capitalista parece, a princípio, capaz de expansão infinita.” A outro respeito, o crescente esbanjamento de energia e recursos estratégicos de material vital trouxe consigo não apenas a sempre mais destrutiva articulação das autoassertivas determinações estruturais do capital no plano militar (pela “opinião pública” legislativamente manipulada e nunca sequer indagada, quanto mais propriamente regulada), mas também no que se refere à crescente invasão destrutiva na natureza pela expansão do capital. Ironicamente, mas de modo algum surpreendentemente, essa volta do desenvolvimento histórico regressivo do sistema do capital enquanto tal também trouxe algumas consequências amargamente negativas para a organização internacional do trabalho. Na verdade, essa nova articulação do sistema do capital no último terço do século XIX, com sua fase imperialista monopolista inseparável de sua ascendência global plenamente amplia-
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da, abriu uma nova modalidade de dinamismo expansionsta (muito antagônico e fundamentalmente insustentável) com o esmagador benefício a apenas alguns países imperialistas privilegiados, adiando desse modo o “momento da verdade” que acompanha a crise estrutural irreprimível de nosso próprio tempo. Esse tipo de desenvolvimento imperialista monopolista deu um impulso importante para a possibilidade de expansão do capital e acumulação militaristas, qualquer que fosse o preço a ser pago em seu devido tempo pela destrutividade cada vez mais intensa desse novo dinamismo expansionista. Na verdade, o dinamismo monopolista militarmente embasado teve até mesmo de assumir a forma de duas devastadoras guerras mundiais, bem como da aniquilação total da humanidade implícita em uma potencial terceira guerra mundial, além da perigosa destruição atual da natureza que se tornou evidente na segunda metade do século XX. Em nossos dias, estamos experimentando a aprofundada crise estrutural do sistema de capital. Sua destrutividade é visível em toda parte, e não dá sinais de diminuição. Em relação ao futuro, é crucial saber como conceituar a natureza da crise a fim de prever sua solução. Pelo mesmo motivo, faz-se também necessário reexaminar algumas das principais soluções pensadas no passado. Aqui não é possível fazer mais do que mencionar, com concisão estenográfica, as abordagens contrastantes que foram oferecidas, indicando ao mesmo tempo o que de fato lhes aconteceu. Primeiro, temos de lembrar que foi mérito do filósofo liberal John Stuart Mill tecer considerações sobre quanto seria problemático o interminável crescimento capitalista, sugerindo como solu-
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Até mesmo hoje, quando tamanha destruição é causada pelo crescimento inadequado e pela mais esbanjadora distribuição de nossa energia vital e recursos materiais estratégicos, a mitologia do crescimento é constantemente reafirmada”
ção para esse problema “o estado estacionário da economia”. Naturalmente, tal estado estacionário, sob a égide do sistema de capital, não passaria de uma ilusão, porque é inteiramente incompatível com o imperativo de expansão do capital e acumulação. Até mesmo hoje, quando tamanha destruição é causada pelo crescimento inadequado e pela mais esbanjadora distribuição de nossa energia vital e recursos materiais estratégicos, a mitologia do crescimento é constantemente reafirmada, sendo associada ao plano especioso de “reduzir nossa marca de carbono” até o ano 2050, quando na realidade está se movendo na direção oposta. Assim, a realidade do liberalismo veio a ser a agressiva destrutividade do neoliberalismo.
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Sorte semelhante afetou a perspectiva social-democrata. Marx formulou claramente suas advertências sobre este perigo em sua Crítica do Programa de Gotha, mas elas foram totalmente ignoradas. Aqui, também, a contradição entre o prometido “socialismo evolutivo” bernsteiniano e a sua realização em toda parte tornou-se flagrante. Não apenas em virtude da capitulação dos partidos sociais-democratas e dos governos ao engodo das guerras imperialistas, mas também pela transformação da social-democracia em geral – inclusive o “New Labour” britânico – em versões mais ou menos abertas do neoliberalismo, abandonando não apenas a “estrada do socialismo evolutivo”, mas, até mesmo, a outrora prometida implementação de reforma social significativa. Além disso, uma solução muito alardeada para as repulsivas desigualdades do siste-
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ma do capital foi a prometida difusão no mundo inteiro do “Welfare State”, após a Segunda Guerra Mundial. Entretanto, a realidade prosaica dessa pretensa conquista histórica tornou-se não apenas fracasso absoluto na instituição do Welfare State em qualquer parte do chamado “Terceiro Mundo”, mas ainda liquidação atual das relativas conquistas do Welfare State – na esfera da segurança social, serviço de saúde e educação –, mesmo no pequeno rol de países capitalistas privilegiados em que elas foram instituídas. E, é claro, não podemos desconsiderar a promessa de realizar a fase mais elevada do socialismo (por Stalin e outros) através da derrota e abolição do capitalismo. Tragicamente, sete décadas depois da Revolução de Outubro, a realidade converteu-se na restauração do capitalismo de uma forma neoliberal regressiva nos países da antiga União Soviética e do leste europeu. O denominador comum de todas essas tentativas fracassadas – a despeito de suas diferenças principais – é que todas elas tentaram atingir seus objetivos dentro da base estrutural da ordem sociometabólica estabelecida. Entretanto, como penosas experiências históricas nos ensinam, nosso problema não é simplesmente “a derrota do capitalismo”. Mesmo à medida que esse objetivo possa ser atingido, com certeza será apenas uma realização instável, porque tudo o que pode ser destruído pode também ser restaurado. A verdadeira – e muito mais difícil – questão é a necessidade de mudança estrutural radical. O sentido palpável de tal mudança es-
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trutural é a completa erradicação do próprio capital do processo sociometabólico. Em outras palavras, a erradicação do capital do processo metabólico da reprodução societária. O capital em si mesmo é um modo geral de controle; o que significa que ele ou controla tudo ou implode como um sistema de controle reprodutivo da sociedade. Conseqüentemente, o capital enquanto tal não pode ser controlado em alguns de seus aspectos enquanto deixa os demais no lugar. Todas as tentativas de medidas e modalidades para “controlar” as várias funções do capital em uma base duradoura falharam no passado. Tendo em vista sua incontrolabilidade estruturalmente arraigada – o que significa que não há poder concebível dentro da base estrutural do próprio sistema do capital por meio do qual o próprio sistema possa ser submetido a um controle duradouro. O capital deve ser completamente erradicado. Este é o significado central do trabalho de toda a vida de Marx. Em nossos dias, a questão do controle – por meio da instituição de mudança estrutural em resposta ao aprofundamento de nossa crise estrutural – está se tornando urgente não apenas no setor financeiro, devido ao desperdício de trilhões de dólares, mas em todo lugar. As principais revistas financeiras capitalistas queixamse de que a “China está sentada em três trilhões de dinheiro em caixa”, idealizando mais uma vez soluções para “o melhor uso daquele dinheiro”. Mas a verdade que faz pensar seriamente é que o agravante débito total do capitalismo chega a dez vezes mais do que o montante dos dólares não utilizados da China. Além disso, ainda que o imenso débito atual pudesse ser, de algum
modo, eliminado, embora ninguém saiba dizer como, a verdadeira pergunta permaneceria: como foi gerado, em primeiro lugar, e como se pode assegurar que não será novamente gerado no futuro? É por isso que a dimensão produtiva do sistema – a saber, a própria relação do capital – é que deve ser fundamentalmente mudada a fim de superar a crise estrutural através da mudança estrutural adequada. A dramática crise financeira que experimentamos nos últimos três anos é apenas um aspecto da trifurcada destrutibilidade do sistema de capital. (1) na esfera militar, com as intermináveis guerras do capital desde o começo do imperialismo monopolista nas décadas finais do século XIX, e suas mais devastadoras armas de destruição em massa nos últimos sessenta anos; (2) a intensificação, através do óbvio impacto destrutivo do capital na ecologia, afetando diretamente e já colocando em risco o fundamento natural elementar da própria existência humana, e (3) no domínio da produção material e do desperdício cada vez maior, devido ao avanço da “produção destrutiva”, em lugar da outrora louvada “destruição criativa” ou “produtiva”. Esses são os graves problemas sistêmicos de nossa crise estrutural que só podem ser solucionados por uma completa mudança estrutural.
* Texto-base da conferência homônima proferida por István Mészáros em várias cidades brasileiras, em junho de 2011. Tradução feita pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
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Notas sobre a atualidade
Lukács
de Miguel Vedda1 Tradução: Juliana Caetano
No início de dezembro, o professor Miguel Vedda, da Universidade de Buenos Aires, esteve na UFF para ministrar um mini-curso sobre “A estética de Lukács”, durante o “Colóquio Nacional Marx e o marxismo”, realizado pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo (Niep-Marx). O Colóquio comemorou os 140 anos da Comuna de Paris e homenageou o filósofo húngaro Gyorgy Lukács por ocasião dos 40 anos de sua morte. Vedda é uma referência mundial na pesquisa da obra do pensador húngaro Gyorgy Lukács e a pedido da Classe escreveu esse belo artigo, inédito no Brasil.
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Somente a ideia de considerar um filósofo como Lukács já encerra por si mesma uma provocação e um risco. Não tanto porque ele pertence, como se costuma dizer, à vasta sociedade dos pensadores esquecidos e “superados” pelas vicissitudes históricas e mudanças nas modas filosóficas, pois a contínua e profusa aparição de livros e artigos sobre sua obra basta para relativizar este mito, mesmo se cada novo estudo inicia com uma advertência a respeito da “inatualidade” do tema escolhido. O principal obstáculo enfrentado ao nos depararmos com a teoria lukacsiana é, talvez, o denso emaranhado de mal-entendidos2 tecido em torno da obra e da pessoa do filósofo; testemunho disso oferecem as incontáveis tentativas de vincular suas teorias a um marxismo economicista, para cuja teoria a consciência se constitui somente a “tabula rasa” em que se inscrevem os dados fornecidos pela realidade
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externa. Esta acusação foi acompanhada de outra não menos errônea, segundo a qual a estética lukacsiana representaria uma tentativa de restringir a literatura e a arte à função de reproduções “fotográficas” da realidade externa. Num e noutro caso, se atribuem ao filósofo justamente as afirmações que, durante anos, o marxismo dogmático esgrimiu contra ele, sobretudo o da União Soviética. Dito em outras palavras: vincula-se Lukács, por um lado, à teoria do conhecimento objetivista e, portanto, adialética que, desde Tática e Ética até a Ontologia do Ser Social, ele procurou demolir; por outro, a um realismo obstinado em reduzir o papel da subjetividade e em converter a obra artística em imperfeito sucedâneo do conhecimento científico. Até mesmo um leitor ocasional dos textos de Lukács pode recordar que a hostilidade do autor de Balzac e o Realismo francês em relação à estética naturalista se relaciona, precisamente, com o empenho desta em liquidar a subjetividade e subordinar a criação imaginativa à análise científica. A defesa da figuração literária (Gestaltung) contra a reportagem e frente a certas aplicações da técnica de montagem revela uma similar oposição ao objetivismo; mas essa tendência tendência, que se nota tão bem nos escritos menores, mostra-se ainda mais ostensiva nas obras mais importantes: cabe recordar que, entre os princípios fundamentais de Estética, encontra-se a convicção de que só na criação artística é plenamente válida a tese de que não há objeto sem sujeito. O pensador que, desde Filosofia da arte (1912-1914) até a Estética da velhice, jamais deixou de afirmar que o objeto da atividade estética é a criação de um mundo sob a forma de sujeito considerava que, nessa capacidade de emancipar o sujeito dos limites impostos pela experiência cotidiana, residisse talvez a função utópica primordial da arte dentro de um mundo coisificado. A inconsistência das imputações é tão patente
que talvez seja supérfluo seguir acumulando contraargumentos; mais interessante seria interrogar-se sobre as causas que motivaram semelhante dissociação entre o Lukács falsificado pelos críticos e o verdadeiro. Os leitores dos artigos que integram Goethe e sua época recordarão seguramente a veemência com que neles se insiste na necessidade de explorar e revelar o conteúdo ideológico das lendas históricas construídas pelos críticos. O “caso” Lukács oferece um material apropriado para este gênero de exploração, sobretudo na medida em que uma análise atenta das tentativas de falsificação permite entrever que, na loucura, houve um certo método. Frederic Jameson já havia notado há várias décadas que, para os leitores ocidentais, uma certa ideia sobre Lukács frequentemente pareceu mais interessante do que a realidade: “É como se, em algum mundo de formas platônicas e arquétipos metodológicos, se encontrasse vago, para o crítico literário marxista, um lugar que (depois de Plejanov) só Lukács tratou de ocupar seriamente”.3 Talvez seja oportuno conceder a esta afirmação um sentido mais concreto e diverso do que lhe imprimiu Jameson, entendendo por ela que boa parte da crítica ocidental pretendeu encontrar no filósofo húngaro o bode expiatório para suas próprias estratégias estéticas e ideológicas. Um enfrentamento direto com os críticos do estalinismo pouco efeito teria, seguramente, em promover a grandeur dos críticos europeus e norte-americanos; uma manobra mais conveniente foi a de colocar na boca de Lukács toda uma série de afirmações que, na realidade, procedem do arsenal de filosofemas e declarações pertencentes aos pensadores e poetas laureados pelo Diamat. Contudo, não é nossa intenção incorporar Lukács ao panteão das personalidades irrepreensíveis e das almas belas. Acima de tudo, porque um dos resultados mais habituais das biografias
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intelectuais edificantes costuma ser a anulação de todo exame e aproveitamento reais do pensador em questão. As obras do apóstolo correm o risco de uma abordagem nos mesmos termos em que foram consideradas, muitas vezes, as próprias obras de Marx: como Escrituras Sagradas dotadas de legitimidade absoluta, e cuja análise séria deveria ser vedada, porque disso poderia se derivar a invalidação da teológica autoridade de tais Escrituras. Daí que nos pareça válido o convite de Werner Jung a evitar, a propósito de Lukács, toda a apologia simplista, pois quem ensaia essa estratégia “converte Lukács […] em cachorro morto; se limita a inventariar seu legado no museu ou biblioteca dos pensamentos mortos. Levar Lukács a sério significa, também, assinalar claramente suas falhas, seus juízos equivocados, suas deformações e distorções, suas debilidades metodológicas”.4 Em consonância com tais propósitos, o que aqui procuramos é explorar e, se possível, separar – se podemos parafrasear Croce – o que está vivo do que está morto na filosofia lukacsiana. Depois do descrédito que não pôde deixar de sofrer o marxismo durante os anos dourados do neoliberalismo, nos últimos anos parece ter-se aberto para o pensamento crítico um espaço pequeno, mas continuamente crescente para pensamento crítico, tanto em nosso âmbito, como em nível internacional. A obra lukacsiana participa hoje deste crescimento, na mesma medida em que no passado fora em particular vítima do descrédito; e pode-se dizer que a América Latina exerceu uma função diretiva nessa reivindicação. O papel de vanguarda foi cumprido pelo Brasil, onde a influência de Lukács faz-se sentir com certa intensidade já há décadas; intelectuais como Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho, José Chasin – que inclusive mantiveram
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um contato epistolar com o próprio Lukács – e José Paulo Netto, ajudaram a favorecer uma recepção que, todavia, não parece ter-se estancado. Disso servem de testemunho, por exemplo, as contribuições de Ester Vaisman, Celso Frederico, Ricardo Antunes, Maria Orlanda Pinassi, Carlos Eduardo Machado, Mario Duayer ou Juarez Duayer, para mencionar apenas alguns intelectuais empenhados na difusão da obra de Lukács, correndo o risco de esquecer outros também significativos. Na Argentina, o interesse e a dedicação dispensados a Lukács se intensificaram particularmente nos últimos anos; além de cursos de graduação e pós-graduação sobre o filósofo húngaro, organizaram-se em Buenos Aires grandes congressos internacionais centrados total ou parcialmente em Lukács, dos quais participaram não só alguns dos intelectuais brasileiros antes mencionados, mas também estudiosos estrangeiros, como Werner Jung e Janos Keleman. Em especial, é promissor o fato de que a obra lukacsiana tenha conseguido despertar interesse em estudantes ou graduados muito jovens. Também participamos dessa difusão editando textos inéditos de Lukács em espanhol; assim, em colaboração com Antonio Infranca, apareceram vários livros pelas Ediciones Herramienta, como o Testamento político (2003) e Ontologia do ser social: o trabalho (2004), além da antologia de ensaios György
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Lukács y la literatura alemana (2005). A isto se deve somar a aparição mais recente de obras como Lenin-Marx (2005), Tática e Ética: escritos políticos (1919-1929) (2005), a compilação György Lukács: Ética, Estética y Ontología (coeditada por Antonino Infranca e Miguel Vedda, 2007), e ainda Escritos de Moscou (2011). Entre os estudos mais extensos e abrangentes sobre sua obra, caberia mencionar o livro, de Antonio Infranca, Trabajo, individuo, historia: el concepto de trabajo en Lukács (2005); modestamente, poder-se-ia agregar também meu próprio livro La sugestión de lo concreto (2006), que contém vários estudos sobre a teoria estética lukacsiana. Poderíamos agregar ainda algumas palavras sobre a importância e as perspectivas de uma recepção argentina da obra de Lukács. Tendo em vista que corresponde a um campo intelectual parcialmente fascinado pelas efêmeras ondas que atravessam a superfície do capitalismo tardio, um setor significativo da intelligentsia argentina se deixou atrair pelo enganoso canto de sereias dos filósofos da moda, sobretudo os vinculados ao pós-estruturalismo. Os acontecimentos que tiveram lugar na Argentina no final de 2001, e que, além da crise financeira e política, implicaram o surgimento de novas formas de oposição e de uma ávida busca de alternativas, ajudaram também a quebrar a aparente solidez de toda uma série de propostas filosóficas, que bruscamente mostraram o que nelas havia de frívolo e entretenimento passageiro. Nessas circunstâncias, como dissemos, começamos a nos ocupar em difundir seriamente a obra de um pensador especialmente cético quanto às modas transitórias e empenhado em rastrear os verdadeiros fundamentos da realidade. É conhecido o modo em que, em Pensamento vivido: autobiografia em diálogo, Lukács se refere à fascinante influência
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Cético frente às ligeiras esperanças, mas também ao temor, Lukács sabia que o êxito superficial e imediato não é nunca garantia da legitimidade de um pensamento ou práxis determinados”
“olímpica” é, na verdade, o produto de uma compreensão mais profunda do mundo contemporâneo; é fruto de um pensamento que postula como única posição genuinamente válida uma atenção aos deslocamentos lentos e significativos, às “ramificações capilares” que ocorrem debaixo da agitada superfície do presente. Lukács estava convencido de que a “inatualidade” de sua filosofia não haveria de impedir que no final fosse admitido o seu conteúdo de verdade, em consonância com seu motto predileto, inspirado em uma conhecida frase de Zola: “A verdade está lentamente em marcha e no final dos finais nada a deterá”. Em uma carta a Frank Benseler, Lukács escreveu, referindo-se à influência de seu pensamento:
Bloch teve sobre mim uma influência poderosa, já que, através de seu exemplo, me convenceu de que é possível filosofar à maneira tradicional. Até então, havia me perdido entre o neokantismo de minha época, e agora encontrava em Bloch o fenômeno de que alguém filosofava como se toda a filosofia atual não existisse, o fenômeno de que era possível filosofar como tinha feito Aristóteles ou Hegel.5
Creio que hoje o ponto de vista filosófico de Spinoza sub specie aeternitatis se mantém vigente, mas com uma modificação qualitativa decisiva, a saber: a eternidade significa hoje a continuidade da evolução humana, que com isso se distingue, certamente, das oscilações próprias à agitação da vida empírica, mas persiste, no essencial, um componente do processo sócio-histórico. Naturalmente seria desumano, e inclusive hipócrita, declarar-se insensível com respeito à influência ou à falta de influência. Mas quando se tem a firme convicção de que o que se pensa e crê avança no sentido da continuidade da evolução humana, estas diferenças adquirem um acento essencialmente diverso.6
O pensador húngaro costuma produzir um efeito similar no leitor que hoje se enfrenta com suas obras livre dos antolhos impostos pelas teorias filosóficas da moda. À primeira vista, essas obras resultam “intempestivas”, “inatuais”, precisamente na medida em que o autor procede “como se toda a filosofia atual não existisse”, como se fosse preciso discutir no mesmo plano que o fizeram Aristóteles, Hegel ou Marx. Claro que esta atitude aparentemente distanciada e
Cético frente às ligeiras esperanças, mas também ao temor, Lukács sabia que o êxito superficial e imediato não é nunca garantia da legitimidade de um pensamento ou práxis determinados. Em sua infância, havia aprendido, lendo Homero e Fenimore Cooper, que normalmente aqueles que sofrem a derrota são os consumados portadores da verdade e da virtude ética, e essa leitura se converteu em determinante para toda sua evolução posterior. Em sua velhice, ci-
que, em um primeiro momento, Ernst Bloch exerceu sobre ele. Nas palavras do próprio Lukács:
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tava com aprovação o verso de Lucano: Victrix causa diis placuit, sed victa Catoni.7 A esses motivos do pensamento do velho Lukács – tão de acordo com sua simpatia pelos “humilhados e ofendidos” – caberia agregar outro. Sabe-se que ele insistiu na necessidade de se ter como ponto de partida da análise filosófica o “homem inteiro” da vida cotidiana: esse homem que trabalha, que produz uma objetividade e que, ao fazê-lo, produz-se a si mesmo. Semelhante ênfase sobre a cotidianidade compreensivelmente vincula-se à reivindicação de alguns dos princípios mais autenticamente revolucionários do marxismo, que o “socialismo realmente existente” havia se encarregado de postergar: referimo-nos em primeiro lugar ao modelo dos conselhos operários e às propostas de descentralização. Em Democratización hoy y mañana 8, Lukács insiste sobre a atividade autônoma das massas e propõe uma maior dimensão para a espontaneidade subjetiva; o velho filósofo crê que a autogestão democrática deve estender-se ao nível mais elementar da vida cotidiana, e, dali, expandirse para cima, de modo que finalmente o povo decida, realmente, acerca das questões mais importantes. Seria legítimo afirmar que esse mesmo espírito é o que encoraja boa parte dos movimentos de resistência que – como o das organizações piqueteiras, as assembleias de bairros ou as “fábricas recuperadas” – florescem hoje na Argentina, e que, fazendo sua conhecida “palavra de ordem” de “que se vayan todos”, reagem energicamente contra uma democracia burguesa falaciosa e desprovida de representatividade. Nesse sentido, é lamentável, talvez, que o diálogo entre a obra do velho Lukács e estes movimentos revolucionários se encontre ainda num estado embrionário. Não estou em condições de assegurar que o pensamento e a figura de Lukács cheguem a ter efetivamente um ascendente forte e sustentado nas
lutas em busca de uma democracia socialista concebida como “sociedade do amor” (Lukács) e como fundação de uma comunidade autenticamente humana; mas estou convencido de que a possibilidade de por o autor de Ontologia do ser social ou Democratización hoy y mañana em contato com os movimentos populares representa um dos desafios mais importantes que temos pela frente, nós que assumimos, na América Latina, a tarefa de repensar entusiasta, mas também criticamente, a obra de György Lukács.
Notas: Professor. Titular da Cátedra de Literatura Alemã da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires – UBA, pesquisador do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas da Argentina – CONICET. Membro do Conselho Editorial da revista Herramienta. 2 Acaba por ser irônico que uma das categorias centrais no pensamento do jovem Lukács – a de mal-entendido (Mißverständnis) – seja tão adequada para caracterizar a recepção de sua filosofia. 3 Jameson, Fredric, Marxism and Form. Towards a Dialectical Criticism. Princeton: Princeton U.P., 1971, p. 160. Em português, Marxismo e forma, São Paulo: Hucitec, 1985. (N. do E.) 4 Jung, Werner, Georg Lukács. Stuttgart: Metzler, 1989, p. 145. 5 Gelebtes Denken. Autobiographieim Dialog. Red.: István Eörsi. Frankfurt a/M: Suhrkamp, 1980, p. 59. Publicado em português com o título “Pensamento vivido: autobiografia em diálogo: entrevista a István Eörsi e Erzsébet Vézer / Georg Lukács”. São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem; Viçosa, MG: Editora da UFV, 1999. (N. do E.). 6 “Briefwechsel zur Ontologie zwischen Georg Lukács und Frank Benseler”. En: Dannemann, Rüdiger; Jung, Werner (eds.), Objektive Möglichkeit. Beiträge zu Georg Lukács’ Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins. Opladen: Westdeutscher Verlag, 1995, pp. 67-105; aqui, pp. 73-74. 7 A causa vencedora agradou aos deuses, mas a vencida [agradou] a Catão. (N. do T.). 8 “Democratización hoy y mañana” foi publicado em português com o título “O processo de democratização” na coletânea “Socialismo e democratização: escritos políticos 1956-1971/ György Lukács”; organização, introdução e tradução Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto – Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008. (N. do E.) 1
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Vozes da resistência contra Belo Monte Max Costa
Jornalista e assessor de comunicação da ADUFPA
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Renata Pinheiro
Aos 14 anos de idade, a menina Sheila Yakarepi Juruna assistiu a índia Tuíra encostar um facão no rosto do então diretor da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes, durante o Encontro dos Povos Indígenas, em 1989, na cidade de Altamira, no Estado do Pará. A cena repercutiu internacionalmente e fez aumentar as pressões para que a Usina Hidrelétrica de Kararaô – prevista para o rio Xingu – não fosse construída na época. O gesto de Tuíra marcou a vida da adolescente e despertou na menina uma inquietação e um sentimento de luta contra as violações dos direitos indígenas historicamente negados no Brasil. Mais de vinte anos depois, já com o projeto da Usina de Kararaô renomeado para Hidrelétrica de Belo Monte, Sheila Juruna se transformaria em uma das principais lideranças contrárias à barragem do rio Xingu e uma das vozes de resistência em defesa da Amazônia. Liderança da Aldeia Boa Vista e pertencente ao povo Juruna, um dos cinco que sofrerá impactos com a construção da Usina de Belo Monte, no Pará, Sheila, em conjunto com lideranças do Movimento Xingu Vivo para Sempre, sobe e desce constantemente o rio Xingu, mobilizando comunidades e explicando os motivos para resistirem à construção do empreendimento na região. Até a Europa Sheila já visitou, a convite de organizações não governamentais, para divulgar a luta contra a construção de hidrelétricas. “Quando fui denunciar Belo Monte na Europa, olhava para cima e, meu Deus, via aquele monte de concreto. É um monstro. Não dá para aceitar que um monte de concreto tome lugar da vida”, relata Sheila, preocupa-
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Otávio Rodrigues
Sheila Juruna, em ato contra a construção de Belo Monte.
da com o futuro do rio Xingu, caso Belo Monte seja construída. A atuação em defesa da Amazônia lhe rendeu, recentemente, uma medalha de honra ao mérito concedida pela Assembleia Legislativa do Pará a pedido do deputado estadual
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Edmilson Rodrigues (PSOL). Mas o principal reconhecimento que Sheila gostaria de obter era ser ouvida pelo governo federal. “Nós tentamos o diálogo a todo tempo, mas o governo não quis nos escutar. A Dilma nunca nos recebeu. Nós mandamos uma carta para ela, falando o porquê de não construir Belo Monte e quais as alternativas, mas o governo não está se atentando para isso”, afirma. Segundo ela, ao tentar construir a Hidrelétrica de Belo Monte, o governo federal está desrespeitando não apenas a Constituição Federal, mas acordos internacionais dos quais é signatário, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “O governo Lula se dizia do povo, mas foi esse governo que se diz popular que tem tentado destruir a vida do próprio povo. Quando o Lula voltou a ressuscitar esse belo monstro que é Belo Monte, para nós, foi uma violência muito grande, uma injustiça que ele fez. Grandes coisas que ele prometeu como a demarcação de nosso território, por exemplo, não foram cumpridas. E agora vem a Dilma para dar continuidade a esse processo de grandes empreendimentos”, aponta. Nas mobilizações e manifestações que participa, Sheila Juruna é firme ao denunciar as irregularidades contidas no projeto de construção da Usina. “Tudo em Belo Monte é grave, pois todo o processo é irregular. Eles estão violando as leis do país, pois não consideraram as populações locais, os indígenas, ribeirinhos e agricultores. São nossos direitos humanos que estão sendo violados”, afirma Sheila.
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Apesar dos impactos, não há diálogo com as comunidades A previsão é que a obra expulse mais de 40 mil pessoas de suas casas e terras, sendo que cerca de 15 mil indígenas sofrerão as conseqüências das barragens direta ou indiretamente. Mas até hoje, essas famílias sequer foram informadas para onde serão deslocadas. Nenhuma oitiva indígena – assegurada pela Constituição Federal – foi realizada e as audiências públicas foram promovidas em apenas 3 dos 11 municípios atingidos, sob forte aparato militar e sem que a comunidade e os posicionamentos contrários à hidrelétrica pudessem ter assento à mesa. “Foi uma grande farsa, um teatro que as empreiteiras e o governo federal fizeram para enganar a população de que houve participação popular e justificar a realização do leilão”, conta Marquinho Mota, do Fórum da Amazônia Oriental (Faor), e membro do Movimento Xingu Vivo para Sempre, que reúne mais de 250 organizações na luta contra a Usina de Belo Monte. As audiências chegaram a ser contestadas pelo Ministério Público Federal (MPF), que move mais de dez Ações Civis Públicas contra o empreendimento, questionando desde a forma como foi feito o Estudo de Impacto Ambiental (EIA-Rima) até o processo de licenciamento da obra. A construção de Belo Monte vai secar uma área de cem quilômetros da Volta Grande do rio Xingu, acabando com a biodiversidade local. Do outro lado, o represamento trará dificuldades de tráfego e navegabilidade, além do pescado não
resistir ao forte calor das águas baixas do rio. É nessa área que fica uma das aldeias do povo de Sheila, os Juruna. “Nós estamos sentindo na pele toda essa decisão que vem de cima para baixo, sem nos consultar e nos ouvir de fato. Belo Monte é um processo que vem mascarado, porque não é explicada a verdade aos parentes”, garante a líder indígena. Segundo o MPF, a estagnação das águas aumentará o número de pragas, gerando sérios riscos sanitários e a proliferação de doenças como a malária na região. A qualidade da água dos reservatórios foi questionada, inclusive, por técnicos do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) antes da concessão da licença ambiental. Porém, tal questionamento, assim como outros apontados por especialistas, foi ignorado pelo governo. Antonio Cruz/ABr
Audiência pública no Senado discute as violações de direitos humanos na região onde será construída a usina de Belo Monte.
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Para construir Belo Monte, o governo federal propaga a informação de que a Usina irá gerar uma capacidade de energia superior a 11 mil kW. No entanto, de acordo com o Movimento Xingu Vivo para Sempre, a hidrelétrica vai gerar, em média, apenas 39% de sua capacidade máxima de produção de energia, o que aponta a inviabilidade econômica do empreendimento, em função das características sazonais do rio Xingu, cujo período de estiagem vai de junho a novembro. Daí, o fato de diversas empreiteiras terem desistido, na última hora, de entrar no consórcio que vai construir a Usina. Apesar do risco econômico, o governo federal vai financiar, via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), 80% do empreendimento, cobrando juros de 4% ao ano, com um prazo para pagamento de
Lideranças indígenas debatem impactos gerados por grandes obras, entre elas, as da construção da hidrelétrica de Belo Monte. Foto: Valter Campanato/ABr
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três décadas. Todo esse investimento público sequer vai diminuir a tarifa de energia elétrica paga pelos moradores ou atender a população amazônica. Cerca de 80% vão para o mercado industrial do centro-sul do país e os 20% que ficarão no Pará, serão destinados a empresas mineradoras como a Vale e a Alcoa. “Não há essa história de geração de energia. Isso tudo é mentira. O grande interesse em tudo isso é a mineração nas terras indígenas. Em Altamira, nossas terras são ricas em minérios, principalmente ouro e outros tipos, que nem nós temos a dimensão do que tem ali, mas que eles já pesquisaram”, revela Sheila Juruna.
Especialistas também ignorados Não foram apenas as comunidades locais que o governo federal ignorou em seu projeto de construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Cientistas, pesquisadores e professores universitários que se dedicam, há anos, a estudar a bacia do rio Xingu e a Floresta Amazônica sequer foram ouvidos pelos executivos do governo. Em um documento lançado em 2009, o Painel de Especialistas, formado voluntariamente por estudiosos de diversas instituições de ensino e pesquisa do Brasil, identificou e analisou graves problemas e lacunas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) de Belo Monte. No documento, eles colocam em xeque a confiabilidade e qualidade dos dados apresentados pelo governo. Os especialistas afirmam que o governo
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subdimensiona a área diretamente afetada, a população atingida, a perda da biodiversidade e o deslocamento compulsório dos povos do campo e da cidade. Para isso, eles apontam inconsistência metodológica nos relatórios do governo, além de classificação equivocada das espécies nativas da região, correlações que induzem a erro e utilização de retórica para ocultar os reais impactos. De acordo com o Painel, o governo nega os impactos à jusante da barragem principal e da casa de força da usina e negligencia os riscos à saúde e a segurança hídrica. Apesar da relevância dos estudos apresentados, o governo federal nunca se manifestou em relação às análises do Painel de Especialistas. “Depois disso, nós, do Painel, encabeçamos uma carta à presidente Dilma com mais de 500 assinaturas de cientistas do Brasil inteiro, das mais diversas áreas. Essa carta jamais foi respondida pela presidente e é um silêncio absoluto. É como se nós não falássemos”, aponta a antropóloga e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), Sônia Magalhães, que integra o Painel de Especialistas. Enquanto o governo propagava que a capacidade de geração energética de Belo Monte superaria os 11 mil kW, os estudos do Painel de Especialistas indicaram a perda de mais de 60% entre a potência instalada e a geração de energia da Hidrelétrica. Esse dado comprovou a inviabilidade econômica do empreendimento, uma vez que é necessário uma usina ter a capacidade de, no mínimo, 55%, para ser viável economicamente. O Painel chamou a atenção, também, para a emissão de gás metano pelas hidrelétricas, que contribui para o efeito
estufa, causando um impacto no aquecimento global 25 vezes maior que o gás carbônico. Ao criticarem a construção da Hidrelétrica de Belo Monte, os pesquisadores ligados ao Painel têm se preocupado em apontar alternativas. Por exemplo, há o estudo do professor da Universidade de São Paulo (USP), Célio Bermann, que indica que se houvesse combate ao desperdício nas linhas de transmissão de energia e se as 157 hidrelétricas brasilei-
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ras fossem repotencializadas e tivessem seu parque tecnológico renovado, não seria preciso construir novas hidrelétricas no país, evitando novos impactos ambientais. Para a professora Sônia Magalhães, o silêncio do governo diante das críticas e alternativas apontadas pelo Painel de Especialistas é preocupante. “Eu fico muito preocupada, porque a energia de Belo Monte é para abrir o processo de ocupação da Amazônia, cujos contornos não estão muito claros. As hipóteses são de uma ocupação que não leva em conta o respeito à diversidade social e cultural e a preservação da biodiversidade”, indica.
Um futuro de incerteza no rio Xingu A possibilidade da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte se concretizar tem aumentado a incerteza entre os indígenas e povos da floresta e acirrado os conflitos na região de Altamira, no Pará. “Nossa luta não vai ser mais de caneta e papel, como nós tentamos fazer. O governo está pedindo, nos incitando à guerra e o povo de toda a bacia do Xingu está unido contra esse empreendimento. E nós vamos lutar até o final”, adianta Sheila. Ela responsabiliza o governo federal, caso haja enfrentamentos físicos na região, para impedir a barragem do rio Xingu. “A culpa de tudo que acontecer de agora em diante é do governo federal, porque ele está fechando os olhos e os ouvidos diante de nos-
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A possibilidade de construção da usina hidrelétrica de Belo Monte representa um risco para o rio Xingu, que já enfrenta uma situação precária, e para animais e povoados que dependem dele para sobreviver.
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Renata Pinheiro
sa causa. Nós estamos gritando e mostrando a verdade para o governo, de que há outra forma de desenvolver a região, que não seja destruidora, como é a hidrelétrica de Belo Monte”, afirma Sheila. Diante da possibilidade da Hidrelétrica ser construída, Sheila Juruna fica inquieta com tantas incertezas. “O rio Xingu é a nossa casa, é como se alguém chegasse e jogasse uma bomba na sua casa. Será que o governo não pensa? Será que não está enxergando isso? E as nossas crianças? E os mais velhos que estão nas aldeias e nem falam português? E os isolados que vivem na Volta Grande do Xingu. Isso não está sendo considerado. Esse processo é muito desumano”, questiona. Conhecida como a “guerreira do Xingu”, a líder indígena não consegue conter a emoção ao imaginar o futuro da região. “O povo sobrevive daquele rio, do peixe, da navegação, de tudo. Tem muitas praias lindas, natureza viva em nossa região. Se destruírem o rio Xingu, a nossa história vai estar só nos livros. Infelizmente, eu tenho medo de, no futuro, a nossa história ser contada só nos livros e os meus filhos não vão conseguir ver o que presenciei e estou vivendo agora”, lamenta a indígena. À medida que os canteiros de obras ganham os primeiros contornos e as máquinas chegam às margens do rio Xingu, os conflitos aumentam e o futuro é de incerteza na região. Porém, entre as vozes que se levantam contra Belo Monte, há uma certeza: só com resistência e luta, será possível barrar as barragens dos rios da Amazônia.
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A saga de um grupo de teatro classista Marina Pita Jornalista
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Fotos: Divulgação
O nome Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes ganhou projeção nacional depois do grupo vencer a categoria Especial pela pesquisa e criação de “A Saga do Menino Diamante – Uma Ópera Periférica” na 23ª edição do Prêmio Shell de Teatro. No palco, no momento de receber a estatueta, ao invés dos agradecimentos tradicionais, os artistas fizeram uma performance irônica, criticando a empresa petrolífera patrocinadora desse que é um dos mais prestigiadas prêmios da área. Na noite de 15 de março, a atriz Nica Maria jogou óleo queimado, simulando petróleo, sobre a cabeça do ator Tita Reis que discursava: “nosso coração artista palpita com mais força do que qualquer golpe de Estado patrocinado por empresas petroleiras.” À época, o coletivo divulgou nota pública lamentando que uma das premiações mais conceituadas no meio artístico seja patrocinada por “uma empresa que participa ativamente da lógica de produção de ditaduras perenes, guerras e golpes de Estado”. Ainda, criticou a lógica de premiações, por entender que, além de naturalizar hierarquias e competições, delega a grupos econômicos o poder de decidir o que é ou não é arte. Mas não é apenas por se posicionarem de forma crítica em relação a processos seletivos dos melhores espetáculos do ano, ou por apontarem o dedo para os interesses escusos da Shell que o Coletivo é tão diferente. Nem mesmo por causarem grande desconforto a um público que se considera “descolado” no momento de seu êxtase. Não por isso, tampouco. Talvez a grande diferença do grupo para os demais é o fato de se definir como classista, ao lado dos trabalhadores e em luta por uma trans-
formação social. Elaborando o que chamam de estética de combate, esses artistas buscam a arte que apóie os movimentos sociais na derrubada dos pilares do atual modelo sócio-econômico e seja, portanto, revolucionária. Para o grupo, que existe há dez anos na periferia de São Paulo, é preciso que o teatro e a autodenominada classe artística se posicionem politicamente, já que toda a arte – queira ou não – está a serviço de interesses socioeconômicos. “Qualquer arte que se afirme neutra é mentirosa. Ela está a serviço de alguém. Mesmo aquela de fruição, ao não querer transformar nada, também se posiciona”, afirma Luciano Carvalho, integrante do Dolores desde sua criação. Assim, seus vinte e cinco integrantes – classificados por alguns como os extremistas lunáticos da noite de glamour – defendem o fortalecimento do que chamam de cultura popular, aquela produzida pelos trabalhadores e para os trabalhadores. Não a entendem como aquela menor, tradicional ou folclórica. “Trabalhamos com elementos da cultura tradicional, mas também atualizamos, identificando os atritos do cotidiano e reapresentando esteticamente”, explica Érika Viana, outra representante do primeiro núcleo que originou o coletivo. Todo o entendimento do fazer cultura popular por trabalhadores para trabalhadores tem um resultado prático que os distingue de muitos outros grupos de teatros: não cobram ingresso. Desde o início de suas apresentações, não era preciso desembolsar nada para sentar na platéia porque havia uma tentativa de construir cultura na comunidade onde estavam e ainda estão sediados. Mas agora, a questão é mais crítica: ao
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receber verbas de incentivo público, o trabalhador já contribui para o fazer artístico e cobrar a entrada seria um roubo, no entendimento do Dolores. “Se pegarmos dinheiro público, de imposto de trabalhador, nada pode ser cobrado. Cinco reais é acharque, roubo ou distorção na compreensão política desse processo. Se estamos construindo algo com a riqueza produzida pelos trabalhadores, então nossa contrapartida é receber nossos soldos e oferecer de volta à classe trabalhadora sem custo adicional, o que eles já pagaram”, reforça Luciano. Com um prêmio Shell no currículo, o Dolores bem poderia agora buscar teatros de renome nacional e ganhar alguns trocados a mais, mas o grupo não está interessado em sair da Zona Leste e se apresentar no centro econômico-financeiro da capital paulista. “A gente não é lacaio pra ficar se matando para entrar em cartaz no teatro Alfa e se apresentar para a burguesia, tal como um monte de artista que vive se acotovelando para isso: servir. Se um dia a gente precisar vender nosso trabalho, vamos vender, tal como qualquer trabalhador”. Estar no bairro Cidade Patriarca fazia parte do projeto iniciado há dez anos, quando Luciano e Erika eram estudantes do curso de jornalismo em uma universidade particular da Grande São Paulo. Ali faziam o jornal Boca Aberta e participavam
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do movimento estudantil. O grupo político no qual estavam envolvidos, divertem-se ao lembrar, causou pânico na direção da escola de ensino superior ao organizar a paralisação de 600 estudantes que gritavam o slogan: “nós não vamos pagar nada.” Mas a revolta não era apenas com a universidade. A exclusão de comunidades da periferia do sistema teatral e a exclusão na qual vivem muitos artistas fizeram Luciano, Erika e outros dois conhecidos fundarem o Dolores com duas premissas: iam se estabelecer na periferia e criar um circuito teatral fora do centro. Buscar um local para os ensaios foi o primeiro desafio. “Não tinha dinheiro nenhum pra fazer isso, mas precisávamos de uma sede. Pensamos na escola pública porque entendíamos que, se o espaço era público, podíamos construir algo coletivamente”, lembra Luciano. Um projeto que propunha a troca de um espaço por um curso de teatro para estudantes interessados foi então preparado e distribuído. Depois de enfrentar a desconfiança de algumas diretorias pedagógicas, a Escola José Bonifácio os aceitou. Foi o início do trabalho e dos vínculos com a comunidade. “Nesse período demos aula para os jovens e começamos a estabelecer uma relação com o entorno porque sabíamos que isso iria nos construir”, aponta ele. Na José Bonifácio, o grupo encenou sua primeira peça: Bonecos Chi-
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neses, escrita por Caio Fernando Abreu, depois de realizada uma pesquisa de como utilizar os materiais e o espaço limitado da sala de aula para se apresentar. Durante este tempo, o coletivo olhava com interesse o Centro Desportivo Municipal (CDM), um galpão vizinho erguido em um amplo terreno durante a gestão de Luisa Erundina na prefeitura paulistana, fechado e abandonado pela gestão Paulo Maluf, entregue a um grupo de senhores chilenos na gestão Celso Pitta e reaberto durante a gestão Marta Suplicy. A história do Dolores se confunde com a política. Na época, dois grupos conservadores definiam o uso do espaço, mas o Vento Leste – movimento com tendências de esquerda – e o Dolores (sendo que havia integrantes em comum nos dois grupos), começaram uma disputa para democratizar o uso, acabar com a hierarquia na gestão e abri-lo para outros grupos. Uma das batalhas simbólicas foi a construção da Arena Arbórea, local de encenação de parte do premiado A Saga do Menino Diamante. “Eles não apenas não queriam fazer, queriam nos impedir de construir a arena, argumentando falta de relação da arena com o esporte. Tivemos de escrever um documento explicando como o tai chi chuan e a capoeira, por exemplo, se beneficiariam”. Ao fim, os integrantes do Dolores e mais alguns construíram a Arena Arbórea com 16 metros de diâmetro, um de profundidade e um de largura e, com o tempo, acabaram por cansar os demais grupos que abandonaram o espaço, que hoje se transformou em sede do Dolores. Apesar dessa vitória, os cinco primeiros anos do grupo foram difíceis. Sem recursos, os
integrantes sempre trabalharam e tinham consciência que, da forma como entendiam o fazer artístico, o teatro não traria riqueza. Esse é um dos motivos para que o grupo tenha tido diversas configurações nestes dez anos. “O lema era entra quem quer e fica quem agüentar”, brinca Erika. Mas não era apenas isso: a gestão democrática – na qual todas as decisões são debatidas coletivamente em longas reuniões – exige tempo, convencimento e resistência, explica ela. O Dolores não leva a voto nenhuma questão. Elas são debatidas até haver consenso ou alguém entender que sua opinião é minoritária e abrir mão dela, aguardando as reuniões de balanço posteriores. A vida não ficou mais fácil com a desmobilização dos grupos conservadores no CDM. O local foi fechado. O coletivo, porém, entendeu que era necessário ocupar aquele espaço e mantêlo produzindo. Ali ficou “clandestino” por cinco anos, enfrentando o abandono que trouxe usuários de drogas, traficantes, desmanchadores de carros roubados, entre outros, para o local. “Não havia banheiro. Os homens usavam o mato, as
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Marina Pita
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mulheres, um balde”, lembra Erika. O Dolores venceu pela resistência e por iniciativas que levaram moradores a usufruir do local. O irmão de Luciano, por exemplo, organizou uma escolinha de futebol que funcionava na quadra que há no fundo do terreno. Há pouco tempo, o coletivo conquistou o direito de usar o local, aberto também para outros grupos organizados da região. Em verdade, a situação melhorou a partir de 2006, quando conseguiram, pela primeira vez, recursos públicos. A Lei de Fomento ao teatro, importante lembrar, é fruto da luta de grupos ligados à produção cultural que se organizaram no movimento Arte Contra a Barbárie e que reivindicavam maior volume de recursos para a cultura e que o Dolores acompanhou quando ainda em gestação. Mas apenas em 2006 o grupo obteve recursos públicos pela primeira vez. A partir de então, avalia Luciano, foi possível ampliar o tempo de formação política dos integrantes. “A materialidade está intrínseca e ligada à formação do ser social. Se está negada à periferia e à classe trabalhadora, o acesso à materialidade, está colocado um fator determinante para a alienação. É mais difícil se emancipar”, diz Luciano. Os recursos também ajudaram o grupo a aumentar a produção. Depois de uma experiência com grupos de artistas da Zona Leste na casa onde moravam alguns integrantes, a Casa de Dolores, na qual produziram um espetáculo com trechos de textos, música e poesia, ainda na fase sem recursos, o grupo encenou sua primeira peça com texto próprio, a “Sombras dançam neste incêndio”. Nesta peça, o grupo criticava as religiões,
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que na opinião do grupo, desmobilizava as construções coletivas ao colocar uma perspectiva individual às conquistas do ser humano. O texto foi fruto da experiência do próprio coletivo que perdeu um grupo de integrantes para a prática do consumo de Ayuasca, uma bebida produzida a partir de duas plantas amazônicas. Depois dessa fase difícil, desagregadora, houve grande fortalecimento do caráter classista do grupo, tal como é hoje.
A saga do Dolores, no entanto, segue seu rumo longe da cooptação do dinheiro, desenvolvendo projetos de arte de resistência. “A Saga do Menino diamante foi premiada porque nosso trabalho trazia 300 pessoas por sábado. No último, tínhamos 600 pessoas no CDM. Mandávamos ônibus para buscar militantes dos movimentos sociais organizados com recursos de fomento público. Vinha gente de esquerda, do entorno, universitários”, conclui Luciano.
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Comissão da Verdade: mais uma farsa, mais um engodo Cecilia Maria Bouças Coimbra*
“É preciso não ter medo, é preciso ter a coragem de dizer.” (Carlos Marighella, Rondó da Liberdade)
Se acompanharmos as esparsas notícias veiculadas pelos meios de comunicação hegemônicos em nosso país, pouco, muito pouco saberemos do que trata a Comissão Nacional da Verdade, sancionada, em novembro último, pela Presidente da República. Estas pequenas notícias midiáticas vêm produzindo determinadas subjetividades hegemônicas (modos de ser, perceber, sentir, pensar, agir) sobre a história recente do Brasil. Ou seja, apenas parcelas mais conservadoras, algumas saudosistas da ditadura, empenham-se hoje — com boa cobertura destes grandes meios de comunicação, diga-se de passagem — em criticar e falar da inconstitucionalidade e ilegalidade desta Lei. Os demais, grandes segmentos médios da intelectualidade, os governos federal e estaduais, dentre vários outros segmentos, diferentes categorias profissionais... apoiam,
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quase que de modo irrestrito, esta proposta de Comissão Nacional da Verdade que, segundo afirmam, apontará as violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura. O que neste pequeno texto pretende-se mostrar é que — fugindo dessa dicotomia produzida e aceita naturalmente: os que apoiam versus os que negam — há uma outra posição que vem se afirmando, forjando outros modos de pensar uma Comissão da Verdade diferente desta Comissão do Possível. É desta “terceira via”, ainda minoritária social e totalmente silenciada pela grande mídia, que vamos falar um pouco. Para tal, há que pensar, mesmo que sucintamente, sobre a recente história de nosso país. Desde a sanção da Lei da Anistia, em 1979, ainda em pleno período de ditadura, já se questionava a interpretação hegemônica que a ela se deu.
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Ou seja, pelos chamados “crimes conexos”, todos aqueles que cometeram atos contra a humanidade (sequestros, prisões ilegais, torturas, assassinatos e ocultação de restos mortais) estariam anistiados. Alguns movimentos sociais nunca aceitaram tal interpretação e grandes juristas, como os Drs. Fábio Konder Comparato e Hélio Bicudo, já apontaram, brilhante e completamente, que não há conexidade entre os atos praticados pelos grupos oposicionistas ao regime militar e o terrorismo de Estado que à época se implantou em nosso país. Apesar disto, a perversa interpretação que ficou da Lei da Anistia é a de que os torturadores estariam anistiados. Sabemos que, desde a Anistia até os dias de hoje, acordos foram feitos entre as forças políticas que respaldaram e apoiaram aquele regime de terror, e os diferentes governos civis que se sucederam após 1985. Estes mesmo acordos — entre forças civis e militares — continuam dos mais diversos modos presentes na história política do Brasil, vigorando até os dias de hoje. Impõem, com isto, uma certa visão da história, mantendo e fortalecendo a chamada “história oficial”: a história narrada pelos “vencedores” que retira de cena as inúmeras memórias oposicionistas daquele tempo. Neste cenário de acordos e concessões mútuas, em 1995, foi sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso a Lei 9.140, que criou uma Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e concedeu aos desaparecidos um atestado de óbito. Ou seja, apenas os declarou mortos, sem no entanto esclarecer onde, quando e como ocorreram tais crimes e quem os cometeu. Em realidade, um atestado de “morte presumida”,
acrescido das provas de que esses mortos e desaparecidos estavam sob a guarda do Estado e/ou foram assassinados por agentes desse Estado deveriam ser demonstradas por seus próprios familiares. Com isto, de modo perverso, colocou-se o ônus das provas nas mãos dos familiares: e os arquivos da ditadura continuaram trancados a sete chaves. Por pressão de vários movimentos, criouse, nos inícios dos anos 2000 e em alguns estados brasileiros, Comissões de Reparação Econômica para familiares de mortos e desaparecidos e expresos políticos. Seguindo os acordos já estabelecidos, também essas comissões estaduais de reparação exigiram que os interessados provassem sua prisão, tortura, morte ou desaparecimento, visto os arquivos continuarem inacessíveis. O próprio conceito de Reparação, enunciado pela ONU e aprovado em 2005, aponta para a necessária investigação, averiguação, publicização e responsabilização desses atos criminosos e para “medidas que possam impedir e, mesmo, garantir a não repetição de tais violações”. O Brasil, de todos os países que passaram por recentes ditaduras, é o mais atrasado neste processo de reparação. Pela Lei 9.140 de FHC apenas se fez a reparação econômica, não se investigando, e muito menos publicizando e responsabilizando qualquer agente do Estado violador à época. O Brasil mal iniciou este processo de reparação. Entendemos que a compensação econômica é um direito, mas só tem sentido para a afirmação de algo novo em nossas vidas se for parte integrante e o final de um processo. Sem isto, as reparações meramente financeiras se transformam — e é o que tem ocorrido no Brasil — em um competente “cala-boca”, em uma proposta de esquecimento e silenciamento, em
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José Cruz/ABr
Manifestação em frente ao Supremo Tribunal Federal, em Brasília, critica a Lei de Anistia.
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especial para os atingidos e para a sociedade. Atravessada por todas estas tensões e acordos políticos firmados, a Comissão Nacional da Verdade foi votada como “aquilo que é o possível hoje”. Há que lembrar que, em dezembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA condenou o Estado Brasileiro a investigar, esclarecer e responsabilizar seus agentes que participaram do desaparecimento de mais de 70 opositores políticos na repressão contra a Guerrilha do Araguaia1. Estendeu esta sentença aos cerca de 500 mortos e desaparecidos políticos, afirmando que a interpretação oficial da Lei da Anistia não é empecilho para tais atos reparatórios. O Brasil deveria responder à OEA no prazo de um ano. Até hoje nada foi feito. E, é no bojo de tais questões que foi votada a “toque de caixa”, em regime de urgência urgentíssima, a Comissão do Possível. Esta proposta de Comissão, em sua 2ª versão2, é bastante limitada. Já no próprio texto do Projeto de Lei estreitava-se a margem de atuação da Comissão, dando-lhe poderes legais diminutos, fixando um pequeno número de integrantes escolhidos diretamente pela Presidente da República, não tendo orçamento próprio, com atuação apenas em 2 anos e desviando o foco de sua atenção ao fixar em 42 anos o período a ser investigado (de 1946 a 1988), minimizando na história do Brasil os anos de ditadura civil-militar (1964 a 1985). Além disso, impede-se que a Comissão investigue as responsabilidades pelas atrocidades cometidas e envie as devidas conclusões às autoridades competentes para que estas promovam a responsabilização dos criminosos. E, para culminar, a publicização de suas conclusões irá depender da própria Comissão. Ou seja, continuamos guardando sigi-
lo, produzindo segredo sobre aquele período de terror. Continuamos produzindo esquecimento. Os crimes cometidos pela ditadura civilmilitar que controlou o Brasil por mais de 20 anos permanecem desconhecidos e os documentos que comprovam essas atrocidades continuam em segredo, assim como os testemunhos daqueles que cometeram tais crimes. Só teremos uma Comissão Nacional da Memória, Verdade e Justiça se todos os arquivos da ditadura forem abertos e publicizados; se o período de terrorismo de Estado (1964-1985) for efetivamente investigado, esclarecido, publicizado. Que nossa história recente possa ser conhecida por todos, que os agentes do Estado terrorista possam ser execrados socialmente e responsabilizados por seus bárbaros atos. Há muito ainda para dizer, como afirmava Marighella, e há que não ter mede de dizê-lo. Há que não entrar na chantagem do “possível” em nome de uma pseudo governabilidade democrática.
Notas: Psicóloga, Professora Adjunta em Psicologia na UFF, Fundadora e atual Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ. 1 Movimento de resistência ao regime militar (1966-1974) na região do Bico do Papagaio entre o Pará, Maranhão e Goiás, organizado por militantes do PCdoB. 2 A 1ª versão da Comissão foi apresentada no bojo do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos, em dezembro de 2009. Houve forte pressão dos comandantes militares e do Ministro da Defesa à época, Nelson Jobim, que colocaram seus cargos à disposição por serem contrários à Comissão. O Executivo cedeu à chantagem e, em maio de 2010, anunciou a 2ª versão do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos, onde a Comissão da Verdade foi totalmente modificada. Forças conservadoras também estiveram presentes questionando vários outros pontos desse 3º Plano. Saíram vitoriosas e o Presidente à época, Luiz Inácio Lula da Silva, voltou atrás em várias questões como a do aborto, das ocupações rurais, da liberdade de imprensa, dentre outras. *
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Marighella: presente! Edson Teixeira da Silva Junior Professor do Pólo Universitário de Rio das Ostras - UFF
Era noite de 4 de novembro de 1969, num estádio de futebol, em São Paulo, Santos e Corinthians duelavam. O jogador de futebol mais badalado, na época, não era Neymar. Era Pelé. E Pelé, de boca fechada, é e foi inigualável. Se fosse hoje, Pelé seria até marca de sabonete pra cachorro. Na ocasião, Pelé aproximava-se do milésimo gol e o país acompanhava o intento com o devido mérito do atleta. Na mesma cidade de São Paulo, Carlos Marighella fora atraído a uma emboscada na Alameda Casa Branca. Dezenas de policiais o aguardavam de tocaia. Inclusive o famigerado Sérgio Paranhos Fleury, notório torturador e ocultador de cadáveres, serviçal das botas oficiais. Marighella foi alvejado de forma infame e covarde, prática correlata da ditadura civil e militar e sua tirania. Para muitos era o início do fim da guerrilha.
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Arte sobre foto do Acervo Icnographia
No entanto, o nome de Marighella não foi banido da história política brasileira. Certamente, os aparelhos privados de hegemonia da classe dominante não lembrarão do fato.Aliás, o que mais fazem é desmemorializar o conteúdo da história e sua rica constelação de brasileiros que ousaram resistir. Nomes de pessoas que merecem ser lembrados sem a necessidade de idolatria, tais como: Carlos Lamarca, Joaquim Câmara Ferreira e Virgilio Gomes da Silva, entre muitos homens e mulheres que são imprescindíveis nos dias de conformismo e transformismo exacerbado. Marighella incomoda aos conversadores e aos de esquerda por vários fatores: aos conservadores pela sua tenaz retidão política comunista. Se cometeu equívocos, se cometeu erros, não os fez conciliando. E, sobretudo, foi coerente com seu histórico de lutador incansável pela emancipação dos trabalhadores e trabalhadoras. Além disso, Marighella, um mulato baiano bem humorado, traduz uma chama de indignação que - como outras - incendeia a frieza da razão e aquece o calor da utopia. Por fim, Marighella simboliza a resistência, ou, mais ainda, a capacidade de resistir à opressão aonde ela apareça. Aos de esquerda, incomoda por formular uma concepção de organização que fez severa crítica a concepção de partido que reinava nos agrupamentos da esquerda. Se sua tática e estratégia foram derrotadas, a crítica ao modelo de partido não o foi e me parece, em alguns quesitos, bastante atual. Por outro lado, sua trajetória política nos setores de esquerda foi marcada pela tolerância e pela divergência, mas, sobretudo, pela ternura. A prática era o seu critério de verdade, como gostava de lembrar. Em 5 de dezembro último, Marighella teria completado cem anos. Certamente, outros incô-
Divulgação
Capa da biografia de Carlos Marighella escrita pelo autor deste artigo, e professor da UFF, Edson Teixeira da Silva Junior.
modos persistem. Mas os limites desse espaço e a intenção de lembrar nos impõem a singela tarefa de comemorar. De forma breve e singela. Afinal, lembrando também resistimos. Então, o jogo acabou, e Pelé não fez o milésimo gol. Naquela época, os comunistas estavam no Araguaia e em outras cercanias do país desenvolvendo a guerrilha rural e urbana. Ou organizando a luta de massas na cidade e no campo. Triste paradoxo: em tempos de democracia tutelada, os ditos “comunistas” de hoje, que não o são, escracham a sua verdadeira face em escusas tramóias. De fato, a prática é o critério da verdade.
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De Capa
Mega-eventos para quem? Realização de Copa do Mundo e Jogos Olímpicos serve de pretexto para reordenação espacial em cidades brasileiras, intensificando o processo de exclusão social Parte da área onde se situava a Vila Recreio 2, demolida para dar lugar à TransOeste
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Alvaro Neiva
Fotos: Luiz Fernando Nabuco
Quando o Brasil foi escolhido para sediar a Copa do Mundo de 2014, e o Rio de Janeiro para ser a cidade-sede dos Jogos Olímpicos de 2016, houve muita comemoração. Além da expectativa do Brasil ganhar mais destaque no cenário internacional, os projetos apontavam a possibilidade de as cidades brasileiras receberem muitos investimentos, e que ambos os eventos deixariam um importante legado social. A cerca de dois anos e meio do início da Copa do Mundo, o que observamos é totalmente diferente: vemos um processo de reorganização socio-espacial das cidades brasileiras que intensifica a segregação social, prevalecendo a implantação de um modelo empresarial de cidade. No dia 12 de dezembro do ano passado, houve atos públicos simultâneos nas 12 cidades-sede da Copa de 2014, nos quais os movimentos sociais entregaram a autoridades cópias de um elaborado dossiê, onde denunciam uma série de violações de direitos em função da Copa. O documento também foi protocolado em secretarias de governos estaduais e ministérios do governo federal, além de órgãos como o Ministério Público Federal, o BNDES, a Controladoria Geral da União e o Tribunal de Contas da União. Organismos internacionais, como a Comissão de Direitos Humanos da OEA, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), e relatorias especiais da ONU também receberam cópias do dossiê. O documento relata, entre outras coisas: casos de remoções e desapropriações arbitrárias, más condições de trabalho e superexploração nas obras, descaso com as normas de preservação ambiental, militarização excessiva das cidades, especialmente as áreas mais pobres. “Os mega-eventos estão sendo utilizados
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para fazer as modificações que há muito tempo queriam fazer em nossas cidades, mas que eram impopulares. Então, em função da paixão do brasileiro pelos esportes, em especial pelo futebol, é possível criar um consenso para realizar essa série de modificações na cidade, e impor um modelo de desenvolvimento cada vez mais excludente”, afirmou Clara Silveira, do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro, e do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), em audiência pública sobre o legado social dos megaeventos, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Segundo a Articulação de Comitês Populares, os preparativos para a realização da Copa de 2014 em 12 cidades-sede e das Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro já provocaram o despejo de mais de 2 mil pessoas pessoas em todo o país. A expectativa é que o ritmo de remoções se intensifique, com a aproximação da data dos eventos. Nas expectativas mais sombrias, a Articulação acredite que o número total de pessoas removidas pode chegar a 170 mil. “O que nós estamos insistindo é que não há informação, avisos de remoção sem nenhuma antecedência, nenhum espaço de diálogo e de participação, nenhum espaço para que as comunidades possam apresentar um projeto alternativo que minimize as remoções. Enfim, tudo isso é desrespeitado. Por outro lado, também estão acontecendo muitas violações no campo das compensações financeiras, indenizações e propostas de reassentamento. As indenizações estão com valores extremamente baixos: R$3 mil, R$5 mil, R$10 mil... valores totalmente insuficientes para que aquelas famílias possam ter acesso a uma moradia adequada; elas realmente ficam sem ter onde morar”, afirma Raquel Rolnik, Relatora Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada.
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Vila Recreio 2 removida com truculência No Rio de Janeiro, um dos exemplos importantes da truculência com que são feitas essas remoções é a Comunidade Vila Recreio 2, no Recreio dos Bandeirantes, na zona Oeste. Segundo alguns moradores, a comunidade estava estabelecida no local há cerca de 50 anos. O morador mais antigo teria chegado lá há 70 anos. A prefeitura previa a remoção da comunidade para a construção da TransOeste. O Ministério Público determinou que assim que as indenizações fossem depositadas, a prefeitura poderia iniciar a demolição das casas. Todavia, antes que qualquer indenização fosse depositada, uma ação da prefeitura realizada em 27 de dezembro de 2010 derrubou 70% das casas da comunidade. E a maioria dos depósitos que foram efetuados permanecem bloqueados até hoje, por questões burocráticas. Em abril, nova ação da prefeitura derrubou mais casas. “Estamos passando uma vida de cão. Minha casa foi derrubada em abril, com tudo dentro. Além do prejuízo, sofri uma enorme humilhação. Como eu resisti, eles me seguraram enquanto botavam minha casa no chão”, afirma Selvita Maria Rufino. “Estou pagando aluguel desde janeiro de 2011, mas os números de telefone que devemos ligar para receber o aluguel social simplesmente não atendem”, completa Selvita. Hoje, o cenário da antiga Vila Recreio 2 é desolador. Onde antes havia quase 300 casas, hoje persistem cerca de 20. Os entulhos das poucas casas derrubadas na operação mais recente – em agosto – permanecem no local. Embora o traçado da nova pista já esteja absolutamente livre, a prefeitura segue ameaçando de derrubar as casas
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que permanecem em pé. Enquanto a reportagem da revista Classe visitava o local e conversava com alguns antigos moradores, um funcionário da prefeitura se aproximou, com um pretexto qualquer, apenas para sondar do que se tratava. “Se a Justiça fosse realmente justa, esses ‘caras’ não faziam tudo isso. Os procedimentos estão errados, mas a Justiça fica de braços cruzados, deixa a prefeitura fazer o que quer. Eles são, no mínimo, coniventes”, afirma Jorge Santos, do Movimento União Popular (MUP), uma das principais lideranças da comunidade. Embora já estivesse fora do traçado da via, a casa de Jorge foi derrubada em agosto. Alguns dos moradores que resistem obtiveram, com a ajuda da defensoria pública, declaração de posse. É o caso de José Zielde Berssot Bessa que acredita que agora será mais fácil resistir aos ataques da prefeitura. Outro caso emblemático é o do Parque Linear Várzeas do Tietê, na cidade de São Paulo. Segundo o dossiê, a obra prevê a construção de uma avenida, ‘Via Parque’, para ‘valorizar a região’ [...] que fica às margens da rodovia Ayrton Senna, entre o Aeroporto Internacional de Guarulhos e o futuro estádio do Corinthians, sede paulista na Copa do Mundo, em Itaquera. Mais de 4.000 famílias já foram removidas do local sem serem consultadas sobre a implantação do parque e sem saber para onde iriam. Outras 6.000 famílias aguardam sem saber seu destino. “Pegaram nós de surpresa. Com um projeto de tamanha proporção, a comunidade no mínimo tinha que ser consultada. [...] As famílias foram morar ali há mais de 40 anos, quando ainda não era Área de Proteção Ambiental”, afirma o líder comunitário Oswaldo Ribeiro. Apesar de todas as denúncias, tanto as autoridades quanto os dirigentes esportivos prefe-
Jorge Santos, do MUP, teve sua casa demolida pela prefeitura em agosto.
rem ignorar. No final de setembro, Carlos Arthur Nuzman, presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, declarou à imprensa que “todos os reassentamentos estão sendo feitos ou por diálogo ou pela Justiça. Ninguém está sendo removido à força”. Na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, foi proposta a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, para investigar as remoções. “O que está acontecendo com as remoções no Rio de Janeiro é uma ação perversa, devido à truculência utilizada pelo poder público”, afirma o vereador Eliomar Coelho, do PSOL, autor do requerimento da CPI. A CPI não foi instalada porque não conseguiu o número mínimo de 17 assinaturas (1/3 dos vereadores). Quando faltava a assinatura de apenas um vereador, dois outros retiraram, dificultando o processo. A Mesa Diretora impôs mais dificuldades,
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inviabilizando definitivamente a instalação da CPI.
Greves paralisam obras
Roberto Stuckert Filho/Presidência da Republica
O dossiê mostra também que a pressão para entregar os estádios dentro dos prazos previstos gerou uma precarização das condições de trabalho em diversas obras. De acordo com o documento, aconteceram dez paralisações de trabalhadores nas obras de seis dos 12 estádios que sediarão os jogos da Copa (em Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Fortaleza, Recife e no Rio de Janeiro). As pautas dos operários tinham em comum pedidos de aumento salarial, concessão de benefícios, fim do acúmulo de tarefas e das jornadas excessivas de trabalho. As condições de trabalho nas obras estão relacionadas, de acordo com o dossiê, à pressa para que os empreendimentos fossem entregues. “Criou-se um fantasma que acompanhou e acompanha todo o processo de preparação para 2014 e 2016, e que,
A presidenta Dilma Rousseff visita as obras de revitalização do estádio Governador Magalhães Pinto, o Mineirão, em solenidade pelos mil dias da Copa.
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com certo incentivo dos meios de comunicação, cria expectativas sobre a possibilidade de um fracasso vexatório da Copa no Brasil”, diz o texto. Segundo o documento, essa pressão teria reduzido entraves legais, beneficiando as empreiteiras envolvidas, e abrindo espaço para violações de direitos dos trabalhadores. “[A pressão] contribuiu para os atropelos legais, aportes adicionais de recursos públicos, irregularidades nos processos de licenciamento de obras e inconsistência e incompletude de alguns projetos licitados sem qualquer segurança econômica, ambiental e jurídica”, diz o dossiê. Em muitos dos casos, houve tentativas de repressão aos movimentos grevistas. Segundo o documento, em Brasília e Pernambuco, funcionários ligados às paralisações foram demitidos arbitrariamente. Centenas de operários do Maracanã fizeram uma primeira paralisação em 17 de agosto, depois que um funcionário ficou ferido por conta da explosão em decorrência do corte de um barril com uma solda. Em paralisação, os trabalhadores iniciaram uma negociação com o Consórcio Maracanã Rio 2014, responsável pelas obras. Entre suas principais reivindicações estava a contratação de serviços médicos para o turno da noite, e queixavam-se que estava sendo servida no canteiro de obras comida estragada. Além disso, pediam um aumento no benefício referente à alimentação, para R$ 180 mensais. O consórcio prometeu atender à maior parte das reivindicações, então os trabalhadores voltaram ao trabalho. Porém, alguns dias depois pouca coisa havia mudado, e os trabalhadores voltaram a cruzar os braços. “Temos consciência de que estamos corretos, e eles quebraram parte do acordo. Estou em contato com outros estados, e sei que, pelo menos Minas
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os interesses nacionais, tudo em benefício da FIFA e seus parceiros. Por tal razão, os Comitês Populares da Copa das 12 cidades sede exigem que o Congresso Nacional rejeite a proposta do Executivo e abra um amplo debate com a sociedade sobre as medidas relacionadas com a realização dos Jogos no Brasil”, dizia nota pública da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa, divulgada no início de dezembro. Apesar do forte empenho do governo federal para garantir a aprovação da lei ainda em 2011, houve grande impasse no Congresso Nacional e a votação foi adiada para o início de fevereiro. Entre outras coisas, o projeto prevê a proibição de venda ou exposição de quaisquer mercadorias nos “Locais Oficiais de Competição, nas suas imediações e principais vias de acesso” (art. 11), sem permissão expressa da FIFA. Tal medida irá impactar fortemente sobre o comércio local, e os ambulantes serão penalizados se trabalharem nas “áreas de exclusividade” (zonas Antonio Cruz/ABr
Gerais e Bahia, estão com os mesmos problemas”, afirmou, à época, Nilson Duarte, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Pesada Intermunicipal do Rio de Janeiro (Sitraicp). Por questões burocráticas, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT/RJ) declarou a greve ilegal. Apesar de discordarem da decisão, os operários voltaram ao trabalho, mas prometeram seguir com as mobilizações quando necessário. Poucos dias depois, em 15 de setembro, em Belo Horizonte, os operários do Mineirão também entraram em greve. Justamente no estádio onde estava prevista uma solenidade pelos mil dias para a Copa do Mundo, com a presença da presidente Dilma Roussef, as obras foram interrompidas. Os trabalhadores pediam aumento salarial (equiparação com São Paulo, onde os operários recebem R$ 1.150), aumento no valor da cesta básica de R$ 60 para R$ 160 e passar o plano de saúde individual para familiar. No dia seguinte, com parte das reivindicações atendidas, os operários voltaram ao trabalho, e ocorreu normalmente a solenidade dos mil dias, com a presença de Dilma em meio às obras.
Estado de exceção Outro tema que tem gerado grande preocupação na sociedade organizada são as mudanças na legislação para atender às exigências das entidades esportivas internacionais. “O projeto de Lei Geral da Copa (PL 2330/2011), que dispõe sobre medidas relativas à Copa das Confederações de 2013 e à Copa do Mundo de 2014, cria um contexto de exceção, com alterações legais e administrativas de caráter excepcional, e atenta frontalmente contra
O presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Ricardo Teixeira, e o secretário-geral da Federação Internacional de Futebol (Fifa), Jérôme Volcker, reúnem-se com a comissão especial responsável pela análise do projeto da Lei Geral da Copa do Mundo de 2014 (PL 2330/11, do Executivo).
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de exclusão) que serão demarcadas pelos municípios, “considerados os requerimentos da FIFA ou de terceiros por ela indicados”. A proposta de lei prevê também que a União assuma a responsabilidade por qualquer dano causado à FIFA. Não se trata apenas de responsabilidade civil pessoal. A União responderá amplamente por “todo e qualquer dano resultante ou que tenha surgido em função de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado aos Eventos”. Se aprovada a lei, o Brasil se tornaria um fiador da FIFA em seus negócios privados.
Renato Cosentino - Justiça Global
Militarização e limpeza social Para transmitir ao mundo uma sensação de segurança e tranqüilidade, e reverter a imagem de país violento, o Brasil precisava apresentar resultados concretos. Como antes dos Jogos Pan-Americanos de 2007, quando houve uma grande ocupação militar no Complexo do Alemão, agora as autoridades militares intensificam a ocupação militar das áreas pobres do Rio de Janeiro. Como o Complexo do Alemão foi desocupado após o Pan de 2007, a primeira grande ocupação aconteceu no mesmo local, em novembro de 2011. Diversas outras favelas do Rio de Janeiro têm sido ocupadas, com a instalação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora. Embora alguns moradores comemorem a expulsão do crime organizado, vemos um processo de militarização absolutamente autoritário, que, em certa medida, representa a criminalização de comunidades inteiras. O Morro da Providência, “menina dos olhos” dos atuais governantes do Rio de Janei-
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Manifestantes fazem ato em frente à prefeitura do Rio de Janeiro, onde protocolaram o dossiê que denuncia as violações de direito por conta da Copa e das Olimpíadas.
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ro, como parte do processo de “revitalização” da zona portuária (revitalização também voltada para os interesses do capital, mas deixemos isso para outra edição da Classe) é uma das muitas áreas “pacificadas”. Em julho de 2011, moradores entraram em conflito com policiais, em defesa da praça Américo Brum, requerida pela prefeitura para a instalação da base de um teleférico. A construção do teleférico representaria a remoção de dezenas de casas. Além disso, a praça é a única área de lazer no Morro da Providência, amplamente utilizada por crianças e jovens. Com a ajuda de policiais da UPP local, os responsáveis pela obras invadiram a praça e a cercaram, impedindo a entrada dos moradores. Então, centenas de moradores organizaram um protesto. Crianças carregavam cartazes, com dizeres como “Meus
avós e meus pais brincaram aqui. E eu, não vou ter esse direito?”. Moradores mais antigos carregavam faixas dizendo “Nós vivemos esta praça”, “O governo quer destruir o que a comunidade construiu”. Até hoje, o impasse não foi resolvido. Esse é só um exemplo, de muitos. Sob o pretexto de garantir a segurança dos moradores, as forças policiais ocupam e depois garantem os interesses dos governantes e das empresas a que eles estão associados. O estádio do Maracanã está cercado por um suposto “cinturão de segurança”, com UPPs em todas as favelas de seus arredores. O modelo de militarização está sendo tão badalado pelos governantes e pela grande mídia no Rio Janeiro que já começa a ser exportado para outros estados brasileiros.
Torcedores criticam privatização do esporte “O que mais o nosso Governador Sérgio Cabral entregará para as empreiteiras e Eike Batista? O Pão de Açúcar, o Cristo Redentor? Não podemos deixar que injustiças como essas fiquem impunes. Querem dar o que é do povo para grandes empresários cobrarem verdadeiros absurdos por um ingresso. O estádio é patrimônio da humanidade, já descaracterizaram todo ele com essa reforma, R$ 1 bilhão de dinheiro público está sendo investido. E agora chega a Srª Márcia Lins e diz que entregará para a iniciativa privada. Nós pagamos a conta, e um seleto grupo lucra com o nosso patrimônio, não podemos deixar isso acontecer”, afirmou Marcos Alvito, professor da UFF e representante da Associação Nacional dos Torcedores (ANT), em protesto realizado na frente do Maracanã, no dia 3 de dezembro. A secretária estadual de Esportes e Lazer do Rio de Janeiro afirmou que a concessão do Maracanã deve ser realizada até meados de 2012. Ela reconhece que o grupo que vencer a licitação deve ter a receita quadruplicada antes do final do contrato. Os manifestantes citaram os péssimos serviços por concessionárias de outros serviços, como o transporte público. Indignados, acreditam que este é mais um importante argumento contra a idéia de cessão do estádio. “Se o governador Cabral levar em frente esse absurdo, vamos acionar o Ministério Público Federal. Aqui foi investido muito dinheiro do povo carioca e dos brasileiros, não vamos ficar parados”, afirmou Alvito.
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Vila Autódromo,
uma comunidade que teima em resistir Há anos ameaçada de remoção, Vila Autódromo segue mobilizada, enfrentando a pressão da especulação imobiliária Fotos: Luiz Fernando Nabuco
Placa demarca a entrada da Vila Autódromo, na zona Oeste do Rio de Janeiro, que sofre com a ameaça de remoção.
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Se a realização da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos são o pretexto que o capital – mais especificamente a especulação imobiliária – precisava para iniciar uma série de remoções no Rio de Janeiro, existe uma comunidade que, apesar de estar há anos no alvo, segue resistindo: a Vila Autódromo. Ao contrário de comunidades que já foram removidas – como a Vila Recreio 2, citada nas páginas anteriores – e as que estão ameaçadas de sê-lo em breve sob a pretensa justificativa de estarem no caminho de alguma obra importante, não existe previsão para construir qualquer coisa onde está situada a Vila Autódromo. Mas uma visita ao local nos permite entender porque tanta insistência em tirá-la dali. Dentro da lógica da cidade-mercadoria, deve ser realmente inaceitável que uma comunidade pobre tenha uma vista espetacular como aquela, às margens da Lagoa de Jacarepaguá. O fato de a Lagoa ser uma área de proteção ambiental, portanto, é usado como pretexto para tirá-los dali. Há cerca de cinqüenta anos, no local existia uma pequena vila de pescadores, que moravam ali e tiravam seu sustento da Lagoa, quando a região ainda era essencialmente rural. Na década de 70, moradores removidos da Zona Sul foram morar ali. Hoje, vivem ali cerca de mil pessoas. De alguns anos para cá, a pressão para a remoção só faz aumentar. Quando da preparação dos Jogos PanAmericanos de 2007, a prefeitura tentou remover a Vila Autódromo. “O Eduardo Paes, que era sub-prefeito, veio com os tratores pela parte de trás da comunidade, para começar a derrubar as casas. Mas nós montamos uma barreira humana na frente dos tratores, com as crianças na frente, depois as mulheres, e no final, os homens. Eles
desistiram e foram embora”, lembra, com orgulho Jane Oliveira, uma das lideranças da comunidade, e militante do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro. A Vila Autódromo já teve sua posse reconhecida pelo governo do estado com a concessão de direito real de uso válido por 99 anos. Apesar disso, a prefeitura segue visitando o local, cadastrando moradores, marcando as casas para demolição. “A prefeitura tem usado e abusado da coação, da tentativa de desqualificar lideranças, ações judiciais e laudos suspeitos. A luta dessa comunidade é muito mais do que manter suas casas e histórias. Trata-se de uma luta pelo estado democrático de direito”, afirma o vereador Eliomar Coelho, do PSOL, responsável pelo requerimento da CPI das remoções, que não prosperou na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
Casas marcadas para demolição No dia 12 de outubro do ano passado, a Secretaria Municipal de Habitação, mais uma vez, iniciou um trabalho de cadastramento das residências na Vila Autódromo. Em geral, esse é o primeiro passo utilizado pelo poder público para as remoções. As casas da Vila Autódromo, muitas das quais ainda têm a marcação da época do Pan 2007, estão sendo marcadas novamente, mas desta vez apenas com números, sem a sigla “SMH”, que identificava a Secretaria Municipal de Habitação como responsável pelo processo. Recentemente, estourou um escândalo, divulgado por toda a imprensa. O prefeito Eduardo Paes anunciou publicamente a compra de um terreno para construir novas casas para os moradores
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da Vila Autódromo. Ainda que a maior parte da imprensa não se incomode com o fato de mil pessoas serem forçadas a deixarem suas casas e se mudarem, causou grande comoção a informação de que a prefeitura pagaria uma pequena fortuna pela aquisição de um terreno da Tibouchina Empreendimentos, controlada por duas empreiteiras doadoras de campanha de Eduardo Paes e de alguns de seus aliados. Com a repercussão negativa, o prefeito desistiu do negócio e, mais uma vez, a permanência da Vila Autódromo foi prorrogada. Esteliano Francisco dos Santos, conhecido como “seu Pernambuco” vive na Vila Autódromo há 30 anos, e rechaça a possibilidade de se mudar. “Eu já morei em muito lugar, mas o melhor lugar que achei para morar foi aqui”, afirma. O pescador completa dizendo que não está interessado em nenhuma das alternativas que o poder público lhe ofereceu e não acha justo ser forçado a sair de um lugar onde mora há tantos anos.
Marcação feita pela Secretaria Municipal de Habitação do Rio de Janeiro para indicar casas que devem ser demolidas.
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Preservação ambiental “A Vila Autódromo sabe que parte de suas casas está em área ambientalmente protegida e concorda em colaborar para remediar o problema. Porém, a situação geral é perfeitamente passível de regularização urbanística, no próprio local onde estão, a um custo inferior ao da remoção pretendida. Regularização tão prometida: o caderno de Legado Urbano e Ambiental, apresentado ao Comitê Olímpico Internacional (COI) durante a apresentação da candidatura Rio 2016, afirma que a comunidade seria integrada ao projeto das Olimpíadas. Mas o radicalismo ideológico do mercado imobiliário, e de seus aliados eleitorais, não aceita essa hipótese”, afirma Eliomar Coelho. Se a Vila Autódromo sempre viveu em harmonia com a Lagoa de Jacarepaguá, o mesmo não se pode dizer dos muitos empreendimentos imobiliários que começaram a tomar a região ao longo dos últimos anos. “Quando eu vim morar aqui, a água era totalmente limpa, tinha muita tainha e robalo. Com o passar dos anos, a água foi ficando poluída, hoje é muito difícil pescar, os peixes foram embora”, afirma ‘seu’ Pernambuco. Segundo ele, todos sabem – inclusive os órgãos governamentais – que a maioria dos novos condomínios instalados ali lança seus esgotos in natura nas águas da Lagoa. Muitos deles, inclusive, já foram notificados pelo governo estadual, mas não tomaram nenhuma providência. Além do lançamento de esgoto, outro problema atinge a Lagoa: os sucessivos aterros. “Antigamente tinha jacaré, tinha capivara. Hoje, está tudo aterrado, e os animais desapareceram. Às vezes, aparece algum perdido, acuado”, acrescenta ‘seu’ Pernambuco. O motivo para o mais recente aterramento, que acabou com parte significativa do que
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Seu Pernambuco”, pescador e morador da Vila Autódromo, com a bela vista da Lagoa de Jacarepaguá; a Lagoa, que já foi sua fonte de sustento, hoje sofre com o despejo de esgoto e os aterros.
ainda existia do manguezal da Lagoa de Jacarepaguá foi a construção do terreno onde aconteceu o Rock in Rio IV, em outubro de 2011, terreno que será utilizado como Parque Olímpico em 2016. Na luta para permanecer ali, a Vila Autódromo vive um momento importante. A partir de um amplo debate entre os moradores, e com a ajuda técnica de estudantes da UFF e da UFRJ, deram início a um plano de urbanização do local. Estudantes de serviço social, arquitetura, planejamento urbano, e
outros cursos, têm entrevistado o máximo possível de moradores, para identificar as principais demandas. Depois, teve início um processo mais amplo de debates, para estabelecer sínteses, definir prioridades. Ao final deste trabalho, os moradores pretendem começar uma nova mobilização para transformar aquelas demandas em realidade, de modo a garantir a urbanização e regularização fundiária, viabilizando a permanência definitiva da Vila Autódromo no local.
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(Alvaro Neiva)
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Comunicação
Os caminhos para a universalização da banda larga Garantir internet para todos com qualidade e preços baixos depende de retomada do papel do Estado Bráulio Araújo, João Brant e Veridiana Alimonti* Bráulio Araújo e João Brant são integrantes do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social; Veridiana Alimonti é advogada do IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor
O lançamento do Plano Nacional de Banda Larga 2010 deu a impressão de que o Brasil tinha acordado. Depois de anos com o serviço de internet deixado na mão dos interesses das empresas de telecomunicações, o Estado brasileiro parecia disposto a assumir o protagonismo necessário para mudar a realidade de uma banda larga cara, lenta e para poucos. Os acordos firmados em junho de 2011, contudo, mostram que o governo não assumiu a postura capaz de lidar com esse problema, insistindo em negociar com base no que as empresas aceitam oferecer e não a partir de um plano estratégico de longo prazo. Aquilo que o mundo inteiro já sabe parece não ter ficado claro por aqui: o problema não se resolve sem forte presença do Estado seja na regulação sobre as empresas privadas seja como provedor direto da infraestrutura e dos serviços. ‘Resolver o problema’ aqui tem a ver com
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atender a quatro objetivos: o serviço deve ser universalizado, com preços acessíveis, com qualidade e velocidade satisfatórias e com garantias de que não vai ser interrompido. Tudo isso porque a banda larga, pelo que representa à concretização de direitos fundamentais – especialmente liberdade de expressão, acesso à informação, à comunicação, à educação, à participação política e à cultura – e ao acesso a outros serviços, deve ser considerada um serviço essencial e garantida pelo Estado, por meio, inclusive, do controle público sobre a infraestrutura. Mas não são só os objetivos de garantir o interesse público que justificam a necessidade de uma forte presença do Estado no setor. A própria estrutura econômica das telecomunicações faz com que o mercado seja incapaz, por si só, de prestar o serviço de forma eficiente. Isso se dá por conta do alto investimento
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inicial para instalar redes e da necessidade de o prestador levar seu sinal até a residência de cada usuário. Essas características criam fortes barreiras à entrada de concorrentes e levam a uma falta de incentivos para o mercado prestar o serviço nas áreas que demandem mais investimento ou que não tenham tráfego suficiente para gerar retorno econômico. Assim, o setor é praticamente um monopólio natural e não consegue garantir eficiência econômica por seus próprios meios. Portanto há a combinação de dois desafios: garantir os objetivos de interesse público e, ao mesmo tempo, garantir a eficiência econômica. Induzir a competição é certamente um dos objetivos da regulação, mas o setor privado, mesmo com razoável grau de competição, é incapaz de garantir o interesse público se não for obrigado a isso. As empresas não vão atuar em áreas que não ofereçam retorno econômico, e portanto serviço universal e tarifas baixas não são alcançados sem obrigações impostas pelo Estado. As experiências da Europa, Estados Unidos e Brasil mostram isso M ar ce com clareza. llo Ca
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O histórico aqui e lá fora Ainda que com modelos diferentes, a expansão dos serviços de telecomunicação nesses países foi promovida com a participação efetiva do Estado. Nos países europeus, havia monopólios estatais que garantiram universalização, controle de preços e de qualidade, entre outras obrigações. No processo de liberalização e privatização, a maioria dos países manteve participação estatal em uma companhia central e abriu o mercado para competidoras, mas sem perder a dimensão de serviço público. Nos EUA, havia um monopólio privado (AT&T), quebrado em 1983, mas sempre houve a imposição de obrigações que respondiam à essencialidade do serviço. Ao longo das últimas décadas, buscou-se ampliar a competição, especialmente na longa distância, mas a recente redução do mercado a duas empresas mostra que a tendência é mesmo de forte concentração. O Brasil teve um desenvolvimento bem particular do setor, com um início privado, um processo de estatização na década de 1960 e uma reprivatização em 1998. No início da década de 1960, apesar de contar com cerca de 900 companhias telefônicas, o Brasil estava entre os países com menor densidade telefônica do mundo – tinha apenas um telefone para cada 100 habitantes, abaixo de países
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como Estados Unidos (38), Suécia (35), Argentina (6) e Uruguai (5)1. A estrutura de telefonia do país compunha-se de operadoras privadas municipais, o que dificultava principalmente a comunicação intermunicipal e de longa distância. Em 1965, foi criada a Embratel, empresa pública que em cinco anos interligou as principais cidades das cinco regiões do país, permitindo a discagem direta à longa distância (DDD). Em 1972, foi criada a Telebrás, que incorporou a Embratel e, por meio de suas subsidiárias (as “teles”, empresas polo estaduais), adquiriu as companhias municipais, uniformizou e expandiu a telefonia fixa residencial. Valendo-se de subsídios cruzados – cobrança de taxas maiores para o sistema empresarial e regiões mais densas para financiar o desenvolvimento do sistema residencial e de regiões menos povoadas –, a Telebrás teve grande êxito em expandir a infraestrutura de telefonia fixa no Brasil. O incremento anual do número de linhas na década de 70 realizou-se a taxas sempre superiores a 15%, tendo chegado a 32% em 1976. No final da década, essas taxas caíram, principalmente por conta do uso das estatais para fazer empréstimos a fim de cobrir a dívida externa. De toda forma, de 1970 a 1990, enquanto a população brasileira cresceu 50% e o PIB 90%, a planta instalada de terminais telefônicos do Sistema Telebrás cresceu 500%. O rápido desenvolvimento das comunicações no Brasil impulsionou a indústria eletroeletrônica e atraiu empresas fornecedoras transnacionais. Ao longo da década de 1970, o Centro de Pesquisas e Desenvolvimento da
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Telebrás (CPqD) desenvolveu uma série de novos produtos, obteve patentes no Brasil e no exterior e celebrou vários acordos e contratos de transferência de tecnologia. Toda essa expansão não se deu sem problemas. Durante a década de 80 e 90, a Telebrás perdeu capacidade de investimento ao ser utilizada pelo governo brasileiro para cobrir problemas econômicos-financeiros. Além disso, o modelo de negócio – baseado em alto investimento inicial pelo usuário e assinatura básica baixíssima – começou a gerar especulação em torno das linhas e criou um mercado paralelo. Em 1994, começou-se a preparar o terreno para a privatização. A assinatura inicial, que era de R$ 0,69 mensais, subiu rapidamente para alcançar R$ 12 em 1998, ano da privatização. De toda forma, o processo histórico mostra que a participação estatal no setor foi determinante na saída de um modelo fragmentado, sem condições de se desenvolver, para um patamar de ampla expansão e ampliação do serviço que poderia ter ido ainda mais além se acompanhado por uma mudança no modelo de negócio.
Privatização e modelo atual Com a privatização, limitou-se o poder de intervenção do Estado. A Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472/97) separou a prestação dos serviços de telecomunicações no regime público e no regime privado. Para os prestados em regime público (apenas o serviço de telefonia fixa), reservou ao Estado um poder maior de regulamentação, atribuindo às pres-
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tadoras, entre outras, obrigações de universalização e continuidade dos serviços e de reversibilidade de bens. No regime privado, por outro lado, o Estado incumbiu-se de observar “a exigência de mínima intervenção na vida privada”, tomando a liberdade como regra. O processo de privatização alterou o modelo de negócio do serviço de telefonia fixa. As empresas se beneficiaram de uma base já instalada de clientes, de uma demanda reprimida e do aumento do valor da assinatura básica (mais de R$ 40, atualmente), que passou a sustentar o negócio. As obrigações de universalização impuseram a necessidade de investimentos por parte das empresas e geraram uma ampliação significativa do serviço nos anos pósprivatização, mas a fraca atuação da Agência Nacional de Telecomunicações e um problema na própria conceituação de universalização faz com que ainda vivamos um serviço limitado. Em mais de 20 anos da privatização das telecomunicações no Brasil, apenas 43% das residências têm telefone fixo, como mostram dados do IBGE2. Ainda que se possa afirmar que a infraestrutura esteja presente em praticamente todas as localidades brasileiras, grande parte da população não utiliza o serviço. Isso porque a
Lei Geral de Telecomunicações entende universalização como a possibilidade de o cidadão contratar o serviço, mas não considera que o valor da assinatura fixa constitui uma barreira econômica que impede o acesso de muitos. É como se alguém considerasse o serviço de saúde universalizado em determinada localidade simplesmente por haver um hospital privado na região. Além disso, para muitos o telefone celu-
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lar passou a substituir a linha fixa. Porém, a despeito do razoável grau de competição e do enorme número de linhas ativas, a desigualdade no acesso ao serviço móvel é uma realidade. Em 2009, apesar do Brasil fechar o ano com cerca de 174 milhões de linhas ativas, o IBGE mostrou que o número de adultos com telefone móvel para uso pessoal fica em pouco mais de 60% 3. Entre os usuários do serviço, cerca de 80% das linhas são pré-pagas com R$ 8 de média mensal de ativação de créditos em 2010, segundo a Anatel. Na prática, muitos utilizam suas linhas apenas para o recebimento de chamadas, não tendo condições para efetivamente fruir o serviço. A União Internacional de Telecomunicações confirma isso ao mostrar que o Brasil está em 121º no ranking mundial de preços do serviço. Só 37 dos países pesquisados têm serviço mais caro.
As dificuldades de expansão da banda larga Todo esse balanço é essencial para se compreender as barreiras de expansão do serviço de banda larga no Brasil, prestado em regime privado. Hoje, apenas 27% das residências têm acesso a internet, sendo 22% com banda larga4. O acesso é desigual entre as cinco regiões brasileiras, entre áreas urbanas e rurais, entre municípios mais e menos populosos e entre diferentes classes sociais. Mesmo em municípios que possuem acesso à banda larga, há grandes áreas sem oferta do serviço. As operadoras de telefonia fixa são responsáveis por 65% das co-
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nexões de banda larga, e a expansão do serviço claramente depende delas, por sua penetração. Não é à toa que o Programa Nacional de Banda Larga brasileiro se ampara nessas empresas para buscar a expansão. O problema principal do PNBL é que ele não reconhece a necessidade de o Estado atuar para impor metas de universalização e controle de preços sobre o setor privado. Os acordos assinados pelo Governo Federal com as empresas de telecomunicações no final do mês de junho estabelecem que até 2014 as empresas devem oferecer em todos os municípios um serviço de banda larga (móvel ou fixo) com velocidade de 1 Mbps por R$ 35 mensais. As letras miúdas revelam os limites do pacote: há uma inaceitável franquia de download que restringe completamente o uso da internet e impede a utilização plena do serviço. O plano permite a venda casada da banda larga fixa com o serviço de telefonia, praticamente dobrando o preço final. Além disso, não há nenhuma garantia de atendimento dentro dos municípios atendidos (o serviço acabará concentrado nas áreas rentáveis), e a velocidade estabelecida está fora do que já hoje é considerado banda larga. Apenas para se ter uma ideia, o Plano Nacional de Banda Larga dos EUA prevê universalização da internet com velocidade mínima de 4 Mbps, com 75% da população com velocidade de 100 Mbps em 2020. O plano brasileiro não estabelece a universalização nem como meta (fala-se em massificação, tomando a telefonia celular como referência), não prevê controle de preços (fora o pacote popular, os preços são livres) e não garante continuidade. Ele se ampara na ten-
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tativa de gerar competição no setor e na definição de um pacote popular com condições limitadas e diferenciadas. A internet, que deveria ser tratada como um direito de todos os cidadãos, torna-se mercadoria com qualidade diferenciada de acordo com o preço.
Qual o caminho? Obviamente não há uma fórmula mágica para se garantir um serviço barato, de qualidade, para todos, mas a experiência histórica mostra caminhos. Estimular a competição é importante, mas não garante nenhum dos objetivos listados acima. Para garanti-los, é preciso retomar o papel do Estado como organizador do setor. Aliás, o artigo 21 da Constituição Federal é claro em dizer que compete à União “explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações”. É preciso então reconhecer a banda larga como um serviço público, em coerência com o texto constitucional, e combinar investimentos diretos com forte regulação sobre o setor. Concretamente, nas regras atuais da Lei Geral das Telecomunicações, isso significa definir o regime público para prestação do serviço. Formalmente, para essa definição, basta um decreto da Presidência da República. Contudo, é preciso aprofundar o debate sobre o que isso implicaria em termos de novas regras e modelagem do sistema. As exigências deveriam ser diferenciadas de acordo com a capacidade técnica e financeira de cada empresa. Além disso, devem ser levadas em conta as
diferenças nas áreas de prestação de serviço e o poder de mercado de cada ator, definindo-se um plano geral de outorgas que aponte para a universalização do serviço. Seria preciso também definir a diferença nas obrigações das empresas que prestam o serviço junto com a TV a cabo e como a transição seria trabalhada na banda larga móvel de forma convergente e coerente com essa nova modelagem. A Telebrás, como empresa pública, poderia combinar a oferta de capacidade de tráfego no atacado com atendimento direto a áreas remotas e a áreas bastante lucrativas, para ajudar seu equilíbrio financeiro. Poderia ainda assumir o papel de fonte indutora de pesquisa e desenvolvimento tecnológico nacional. O desafio de universalizar uma banda larga barata, rápida e com qualidade impõese como necessário ao efetivo desenvolvimento econômico e social do país e à garantia de direitos básicos. Fazê-lo possível é tarefa urgente e implica assegurar ao Estado os poderes de exigir da iniciativa privada as obrigações voltadas à dimensão de interesse público na prestação do serviço. Sem isso, o Plano Nacional de Banda Larga é um passo absolutamente insuficiente.
Notas:
* Artigo publicado originalmente no Le Monde Diplomatique 1 PEREIRA FILHO, 2002, A Embratel: Da Era da Intervenção ao Tempo da Competição. Revista de Sociologia Política, n. 18, p. 33-47, 2002 e DANTAS, Marcos. A lógica do capital informação. 2. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002. 2 Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2009 3 Idem 4 TIC Domicílios 2010, Comitê Gestor da Internet
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Filmes
Verdade por trás da crise Resenha do filme “Trabalho interno” (“Inside Job”), vencedor do Oscar de melhor documentário em 2011 João Leonardo Medeiros
Professor do Departamento de Economia da UFF
As excelentes intenções que motivaram a produção do documentário Trabalho interno (“Inside Job”, no original, EUA, 2010), dirigido por Charles Ferguson, não são suficientes para isentá-lo de um juízo crítico. Mas também não se pode negar que o filme é absolutamente pertinente como registro histórico da crise financeira de 2008 – uma das maiores da era capitalista – e indispensável seja como filme em si, seja como sincera interpretação das causas da crise (por mais problemática que ela possa ser). Suas virtudes e limitações comparecem de forma igualmente aberta, de maneira que não se pode apreciá-lo sem fazer uso do raciocínio, o que é indubitavelmente o seu maior mérito. Como anunciado na sinopse oficial do filme, o documentário propõe-se a “expor a chocante verdade por trás da crise de 2008 […], que custou mais de US$ 20 trilhões, fez com que milhões de pessoas perdessem suas casas e seus empregos”. Se esse é o objetivo central do documentário, pode-se julgá-lo muito bem sucedido. O roteiro funciona de modo muito didático na decifração da complexa linguagem das finanças
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e na reconstituição da seqüência de acontecimentos que conduziram ao craque financeiro de 2008, reconstituindo ainda suas conseqüências mais imediatas. Os principais elementos de qualquer reconstrução crítica da crise estão todos lá: a desregulação dos mercados financeiros em escala mundial, a explosão dos derivativos, a temerosa alavancagem das instituições financeiras, a bolha imobiliária nos EUA, a cúmplice participação das seguradoras e agências de avaliação de risco e o suporte ideológico da ciência econômica. Para além da didática exposição sobre o vocabulário e os fatos da crise, o que realmente distingue o documentário Trabalho interno de outros registros cinematográficos da crise de 2008 (mencionados a seguir) é a tentativa de reconstituí-la com base em informações e opiniões oferecidas por homens e mulheres que, de alguma forma, participaram do (ou contribuíram para o) jogo financeiro por detrás da tragédia. Aliás, o intraduzível título original da obra, Inside job, tem obviamente a intenção de alertar o espectador para a cumplicidade dos entrevistados com relação aos desumanos desdobramentos da crise. Recorrendo a um dicionário da língua inglesa, como o Webster, pode-se retornar para a expressão “inside job” o seguinte significado, perdido na tradução literal para o português: “um crime cometido por, ou com ajuda de, uma pessoa empregada ou de confiança da vítima”. A intenção do filme, portanto, é caracterizar a crise como o resultado de um crime provocado por
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figuras-chave das corporações financeiras, das instâncias governamentais responsáveis pela regulação do setor e mesmo da universidade. A identificação dos nomes, sobrenomes, rostos, currículos, filiações institucionais etc. dos personagens que se envolveram e se beneficiaram, direta ou indiretamente, nas tramóias financeiras que antecederam e sucederam a crise é um ponto fortíssimo da obra. Isso porque é evidente que nenhum episódio crítico da vida social pode ocorrer sem a mediação de atos concretos de indivíduos de carne e osso. Em se tratando de uma crise que solapou as economias de, como se diz, cidadãos comuns aos milhões, privando outros tantos inclusive da própria residência, é de se esperar que os atos concretos que produziram a crise sejam irresponsáveis, para dizer o mínimo, e/ ou (mais provavelmente “e” e não “ou”) obscenos. Por isso é fundamental que seus agentes sejam, senão responsabilizados, ao menos identificados. Neste particular, é marcante a habilidade do documentário em desnudar o péssimo caráter e a desfaçatez absoluta de executivos das principais corporações financeiras estadunidenses, alguns dos quais também ocupantes (ou ex-ocupantes) de posições cruciais no governo dos EUA e em instituições supra-estatais como o FMI. As entrevistas são particularmente interessantes, pois o corajoso e bem-informado entrevistador (oculto) consegue, por diversas vezes, desmentir e embaraçar o entrevistado, que se vale do expediente de supor a ignorância generalizada para sustentar
A intenção do filme é caracterizar a crise como o resultado de um crime provocado por figuras-chave das corporações financeiras, das instâncias governamentais responsáveis pela regulação do setor e mesmo da universidade”
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um argumento totalmente falacioso e contra-factual. É difícil não se regozijar em ver multimilionários, sujeitos poderosíssimos, totalmente desconcertados com uma contra-argumentação bem-fundamentada empiricamente e imediata – “na lata”, como se diria na linguagem das ruas do Rio de Janeiro. Por outro lado, é bastante incômodo perceber a complacência com entrevistados não menos suspeitos de participação na construção e sustentação da arquitetura econômico-financeira que vem produzindo periodicamente crises como as de 2008. Figuras como o megaespeculador George Soros, os diretores do FMI Dominique Strauss-Kahn e Christine Lagarde, além do infame ex-presidente do FED (o Banco Central dos EUA) Paul Volcker saem ilesos no documentário. Para isso, bastou que oferecessem um discurso crítico bem-encaixado, em favor da regulação das finanças e da criminalização dos “excessos”, em lugar de assumir a atitude defensiva e mentirosa da maior parte dos demais entrevistados. De certo modo, o filme oferece a oportunidade para que sujeitos como Soros e Volcker falem distraidamente do caráter danoso da especulação financeira, como se tivessem a vida toda trabalhado outside e não – como todos sabemos que ocorreu – inside até a raiz. A complacência com os entrevistados do “discurso correto” é um apenas um indício do que julgo ser a principal limitação do filme: como interpretação das causas da crise, Trabalho interno não passa de uma reedição do clamor keynesiano pela regulação das finanças, pelo ativismo estatal, pelo retorno da presumida prioridade da produção sobre as finanças etc. Segue-se daí que as causas da crise são encontradas não exatamente no capitalismo em si, ou mesmo em sua atual fase, mas, de um lado, no limitado controle do Estado sobre a atividade financeira e, de outro, na moral pervertida dos financis-
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tas, políticos e acadêmicos por detrás dos episódios relatados no filme. Contrastando Trabalho interno com duas outras produções que abordam a crise de 2008 – Wall Street: o dinheiro nunca dorme, de Oliver Stone, e Capitalismo: uma história de amor, de Michael Moore, o primeiro como obra de ficção, o segundo como documentário –, o único que não propõe uma reflexão sobre o caráter endêmico das crises capitalistas é Trabalho interno. O resultado é que não nos é oferecido um questionamento verdadeiramente externo, negativo, da crise, mas apenas um trabalho crítico interno, positivo e propositivo. Seguindo fielmente o argumento do filme, chegaríamos à conclusão de que a história da humanidade, de repente e sem qualquer razão de fundo, foi simplesmente tomada de assalto por sujeitos que dominaram as instituições políticas e econômicas do país mais poderoso do mundo e as conduziram em benefício próprio. Ainda que essa denúncia seja fundamental, não se pode oferecê-la sem, ao mesmo tempo, explicar que não se trata de um problema administrativo, moral ou de pura e simples “tomada de poder”, mas sim de uma exigência da reprodução social. O ponto aqui é o seguinte: o capital é uma dinâmica sem sujeito, uma dinâmica do valor em movimento de autoexpansão contínua. Na década de 1970, diversos obstáculos punham freio à expansão do capital, dentre eles o próprio poder dos sindicatos e dos partidos de esquerda e a existência do contraponto do socialismo real (por mais problemática e bárbara que tenha sido tal experiência). Além das transformações técnicas e tecnológicas e do avanço da extrema direita, encarnada inicialmente em Thatcher e Reagan, que explodiram as instituições contra-capitalistas, a reorganização das finanças mundiais ofereceu ao capital oportunidades de lu-
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cratividade imediata (em geral pela expropriação e reapropriação de riqueza já criada ou a criar), mas também a possibilidade de concentrar rapidamente recursos sem os quais determinados projetos produtivos não poderiam ser executados. A conclusão dessa linha de raciocínio omitida no filme é que a reprodução capitalista, ameaçada na década de 1970, recompôs-se justamente (mas não unicamente, é claro) por intermédio da desregulação financeira. Se a nova arquitetura das finanças mundiais tem produzido crises periódicas, o que é verdade, essas crises têm cada vez mais se demonstrado um problema da humanidade, e não da reprodução do capital. Seres humanos morrem, perdem suas casas etc., enquanto os operadores do capital têm na crise apenas o subterfúgio necessário para avançar sobre os fundos públicos, sobre os sindicatos e sobre a ideologia de esquerda, tudo em favor do próprio capital. Por concentrar-se exclusivamente na atividade dos operadores do capital, o documentário perde de vista o fato de que, por mais infames que sejam, e eles são de fato, tais operadores dão corpo e subjetividade a uma dinâmica abstrata, objetiva e incontrolável, a dinâmica do capital, que se reproduz cegamente, cada vez mais sem anteparos visíveis. De todo modo, como não é possível reconstituir a história sem reconstituir
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também as mediações entre as leis de movimento da sociedade e a participação dos indivíduos que, nas suas ações, as materializam concretamente, Trabalho interno cumpre um papel muitíssimo relevante. Considerando que essa resenha dirige-se a uma publicação de um sindicato de professores, não seria possível encerrá-la sem mencionar o trecho do documentário no qual são iluminados os laços íntimos entre os professores das renomadas faculdades de economia das universidades dos EUA, em particular Harvard e Columbia, e o bemremunerado mundo das altas finanças. O documentário é, de fato, impagável neste ponto, pois consegue caracterizar magistralmente os professores doutores e pós-doutores como “espadachins do capital”, para usar a famosa expressão de Marx, levando ao conhecimento do público a total submissão da pesquisa acadêmica aos interesses corporativos mais mesquinhos. “Professores” convertidos em meros ideólogos e “cientistas” reduzidos a propagandistas é a expressão mais clara de uma ciência decadente (no caso, a Economia) e de uma universidade muito distante de seu papel, o de educar e formar seres humanos com capacidade crítica. O triste da história é reconhecer que, no Brasil, por cifras infinitamente menores, os mesmos comportamentos são emulados e difundidos.
“Professores” convertidos em meros ideólogos e “cientistas” reduzidos a propagandistas é a expressão mais clara de uma ciência decadente e de uma universidade muito distante de seu papel, o de educar e formar seres humanos com capacidade crítica”
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Nossa Resenha
O laboratório de Marx Foi lançada recentemente pela Editora Boitempo, em coedição com a Editora UFRJ, a tradução brasileira dos Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie1, manuscritos preparatórios de Marx para O Capital. Aqueles que não conhecem o trajeto marxiano, podem talvez se perguntar qual seria o sentido do investimento na leitura destes manuscritos, uma vez que a versão posterior do texto (o próprio O capital) já foi publicada. Contudo, é imprescindível frisar que existem elaborações e desenvolvimentos conceituais de Marx que só podem ser encontrados nos Grundrisse. Redigido entre 1857 e 1858, o texto tem valor próprio; trata-se de uma espécie de laboratório conceitual do próprio Marx, que ali pode ser surpreendido na gestação mesma de seu pensamento. Dentre a riqueza de questões nele presentes – virtualmente impossível de ser resumida –, destacamos apenas algumas delas.
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Divulgação / Boitempo Editorial
Maurício Vieira Martins*
Inicialmente, recordemos que os Grundrisse oferecem abundante material sobre a interlocução de Marx com Hegel (uma relação de “amor-ódio” aflitiva, nas palavras de H. G. Flickinger2), sua matriz filosófica mais duradoura. Sabe-se hoje que houve uma absorção, sem dúvida crítica, de várias elaborações hegelianas por parte de Marx, principalmente no que diz respeito à construção lógica do argumento (que por fim se revela intimamente ligada ao seu próprio conteúdo). Assim é que o leitor de A ciência da lógica - obra magna do mestre de Jena - ficará surpreso ao depararse com alguns motivos desta obra modificados e reconstruídos no texto do próprio Marx. Foi o que ocorreu com as famosas determinações reflexionantes (como forma/conteúdo, aparência/essência, imediaticidade/mediação etc.), pares de conceitos nos quais, muito brevemente falando, um dos termos é definido mediante sua referência ao outro, pois “a verdade deles, dizia Hegel, é a sua relação”. Tal entendimento reescreve de modo profundo a tradição filosófica anterior que afirmava uma dada essência como realidade auto-contida. E, no que toca ao debate propriamente econômico, explica também a recusa de Marx em, por exemplo, isolar a esfera da produção da do consumo, preferindo evidenciar sua intrínseca interdependência (mesmo que o chamado momento predominante caiba à primeira). Ainda em sua interlocução crítica com Hegel, são particularmente impactantes nos Grundrisse aquelas passagens que discutem a lógica peculiar e contraditória do processo histórico. Vejamos como o texto formula, a este
respeito, a diferença entre o capital formado através da poupança por parte do próprio capitalista daquele outro, posterior, que já é o resultado do processo de acumulação efetivado: “Para devir, o capital não parte mais de pressupostos, mas ele próprio é pressuposto, e, partindo de si mesmo, cria os pressupostos de sua própria conservação e crescimento. Por isso, as condições que precediam à criação do capital excedente I,..., não pertencem à esfera do modo de produção ao qual o capital serve de pressuposto; situam-se por detrás dele como etapas históricas preparatórias de seu devir, da mesma maneira que os processos pelos quais passou a Terra, de um mar líquido de fogo e vapor à sua forma atual, situam-se além de sua vida como Terra já acabada.” (p.378). Seguindo esta via, eis que nos deparamos com a espessura de uma ontologia encravada no interior mesmo do debate com a economia política. É uma concepção do ser como processualidade que se manifesta com força no texto marxiano, só que agora, de modo distinto do que ocorria com Hegel, em bases decididamente materialistas. Até porque em Marx é o trabalho humano – e não o Espírito - o responsável pela constituição do mundo objetivo tal como o conhecemos hoje (“mas o trabalho é e continua sendo o pressuposto” p. 323). Muito já se escreveu sobre as aquisições metodológicas presentes nos Grundrisse. Sobre isso, é valiosa a indicação existente na carta de Marx a Ferdinand Lassalle (de 22/02/1858). Nela, referindo-se precisamente ao texto em questão, podemos ler: “o trabalho que me ocupa no momento é uma crítica
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das categorias econômicas ou, if you like, uma exposição crítica do sistema da economia burguesa. É ao mesmo tempo uma exposição e, do mesmo modo, uma crítica do sistema.” Tal passagem reitera o antigo desejo de Marx nem sempre alcançado - em reunir num só movimento a exposição e a crítica das categorias econômicas. Conforme é sabido, em seus textos anteriores, a crítica à sociedade burguesa era muitas vezes feita a partir de seu confronto com uma futufutu ra sociedade de sujeisujei tos emancipados, que tornará possível que eu “cace de manhã, pesque de tarde, crie gado à tardinha...“, na conhecida formulação deste belo texto que é A ideologia alemã. Ocorre que tal procedimento tornava o jovem Marx vulnerável à reprovação de que estaria veiculando apenas e tão-somente uma utopia, de concretização inviável. Em contrapartida, o esforço de imersão na lógica das categorias da economia política, com o intuito de criticá-las de modo imanente, representa o acesso a um patamar explicativo de outra ordem, que fortalece inclusive o projeto político marxiano. E não resta dúvida que este é um dos motivos de fundo que atravessa os Grun-
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drisse, onde encontramos este intento anunciado de forma quase programática em várias passagens: “Analisemos primeiro as determinações simples contidas na relação entre capital e trabalho, de modo a descobrir a conexão interna – tanto dessas determinações como de seus desenvolvimentos ulteriores – com o antecedente.” (p. 206, grifos nossos). Ora, o que tal análise imanente vai demonstrar é a progressiva captura do trabalho humano 3 num circuito de categorias (mer (mercadoria, dinheiro, capital) que o distancia e aliena dos sujeitos responsáveis por sua objetivação; estranhamento que vem a ser, talvez, o tema mais recorrente dos Grundrisse como um todo. Um outro conjunto de questões originais destes den densos manuscritos pode ser encontrado na sua vertente propriamente econômica – lembrando que ela não deve ser isolada da já mencionada dimensão filosófica. Referimo-nos, por exemplo, às seções em que Marx analisa as mudanças trazidas pelo desenvolvimento da indústria moderna, impulsionada pelas contribuições da ciência, que potencialmente permitem uma liberação de tempo disponível para os agentes da produção. Ro-
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man Rosdolsky dizia que estas passagens dos Grundrisse são de tirar “o fôlego ao serem lidas hoje” 4, pois nelas se demonstra de modo preciso a profunda contraditoriedade do processo: o mesmo desenvolvimento tecnológico que potencialmente traria a conquista de tempo livre para os homens, finda por se transformar, sob a égide do capital, numa forma mais sofisticada de dominação. Nas palavras de Marx: “O roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o qual a riqueza atual se baseia, aparece como fundamento miserável em comparação com esse novo fundamento desenvolvido, criado por meio da própria grande indústria.” (p. 588). Só mesmo uma mudança de forma social - no sentido mais profundo do termo pode ultrapassar esta situação, fazendo-nos chegar a uma sociedade onde a medida da riqueza seja não mais o tempo de trabalho, mas o disposable time, para usarmos a expressão inglesa da qual Marx se vale neste debate. Em nosso século XXI, após as insistentes promessas midiáticas de uma liberdade que adviria do desenvolvimento tecnológico, sabemos que o que se efetivou foi uma expansão brutal da jornada de trabalho (que invade nossos fins de semana, feriados etc.), trazendo de chofre a atualidade da reflexão e do combate de Marx para os dias de hoje. Motivo adicional para a leitura do texto, a ponto de Martin Nicolaus afirmar que, se O capital se encontra “penosamente inconcluso” 5, já os seus manuscritos preparatórios permitem em alguns momentos vislumbrar melhor a íntegra do projeto marxiano. Por fim, cumpre destacar a seriedade
com que a tradução brasileira dos Grundrisse foi realizada. O Professor Mário Duayer, da Universidade Federal Fluminense, responsável pela supervisão editorial, explicitou de forma segura suas decisões conceituais, que sem dúvida contribuem para um melhor entendimento do texto. Apenas como exemplo, o Mehrwert marxiano foi coerentemente traduzido como mais-valor, ao invés da tradução usual por mais-valia, que opacifica o conceito e o converte em “algo enigmático, quase uma coisa” (p. 23). Além disso, Duayer redigiu uma “Apresentação” extremamente esclarecedora, que comenta algumas passagens seminais dos Grundrisse, bem como contextualiza a gênese do texto e sua importância no interior do pensamento de Marx. Razões de sobra, aliás, para não permitirmos que prospere a conspiração do silêncio que tantos desejam, ainda hoje, fazer em torno de sua vasta obra.
Notas:
Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de PósGraduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. Esta resenha foi publicada originalmente na Revista História & Luta de Classes. Vol. 12, agosto, 2011. 1 Marx, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo Editorial, Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011. 2 Flickinger, Hans-Georg. Marx e Hegel: o porão de uma filosofia social. Porto Alegre: L&PM/CNPq, 1986, p.32 3 Ou, para sermos mais precisos, da capacidade de trabalho, embora o texto apresente uma oscilação terminológica que, pelo menos neste caso, pode ser fecunda. 4 Rosdolsky, Roman. Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: Ed. Uerj/Contraponto, 2001, p. 354. 5 Nicolaus, Martin. “El Marx desconocido”. In: Marx, Karl. Elementos fundamentales para la crítica de la economia política. México: Siglo Veintiuno Editores, 1984, p. xxxi. *
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Fotos: Andrew Costa
Diálogos com a cidade
Desabrigados sofrem com de scaso Andrew Costa
pois depois das Quase dois anos de moradores do tempestades, antigos o receberam da Morro do Bumba nã atendimento Prefeitura o devido
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As chuvas de 6 de abril de 2010 mudaram para sempre as vidas dos moradores do Morro do Bumba, afetados pelos deslizamentos, que os colocaram na mesma situação de centenas de outros cidadãos niteroienses: a de desabrigados. O abrigo para onde foram transferidos diversos moradores do Bumba depois da tragédia, hoje é a casa de desabrigados de diversas comunidades fluminenses. Texeira de Freitas, Cova da Onça, Viradouro, Santa Rosa e Morro do Céu são algumas das localidades de onde advém parte dos moradores do abrigo localizado no 3º Batalhão de Infantaria, em São Gonçalo. A espetacularização dos deslizamentos na mídia durante o período das chuvas de 2010 fez com que o início da prestação de serviço aos desabrigados funcionasse. Logo que as famílias foram deslocadas para o 3ºBI, a prefeitura arcou com a promessa de moradia para todos em até três meses. Segurança no abrigo, professores para crianças, alimentação e atividades de lazer eram garantidas pela prefeitura enquanto o caso continuava com destaque nos programas televisivos. Um ano e oito meses depois, as casas ainda não chegaram, e o que era ruim só piorou. A retirada da segurança, da limpeza, dos médicos e também das atividades de lazer das crianças transformou a dinâmica do abrigo em algo próximo a um regime de encarceramento semi-aberto. É o que afirma Marta Silva, 44 anos, diarista, mãe de sete filhos e ex-moradora do abrigo: “Quando chegamos no alojamento só podíamos ter um colchonete e roupa de cama, todos dormíamos no chão, inclusive os idosos e deficientes fisícos. Aqui dentro do 3ºBI a população está sendo maltratada! Tem hora para comer, tomar café, levantar, jantar, para chegar. Se o abrigo é nossa casa, queremos
liberdade para poder sair e entrar na hora que quisermos e podermos receber nossas visitas. Temos horário pra visita, exatamente como em uma prisão! É como um regime semi-aberto: saímos pra trabalhar e voltamos pra dormir, tudo com hora marcada. Convivemos com esgoto a céu aberto e não temos direito nem à piscina do complexo, faltam psicólogos para as crianças, há descaso com a saúde dos moradores. Nossa condição de vida aqui é sub-humana”, afirma Marta.
Alta insalubridade Além dos casos citados por Marta, o abrigo também possui problemas sérios em relação à estrutura. Os banheiros, por exemplo: são grandes áreas divididas em dois, com canos que jorram alguma água, a iluminação é muito ruim, e as paredes são tomadas por muito lodo. O cheiro de urina e fezes é muito forte e no canto do banheiro fica um pequeno buraco destinado ao escoamento das águas do banho e também às necessidades fisiológicas dos moradores. O espaço é altamente insalubre e freqüentado tanto pelos adultos quanto pelas crianças. A existência de animais em grande número também é algo que incomoda os moradores: “São muitos! Ratos e baratas vemos a toda hora. Uma menina do abrigo já foi atacada por uma lacraia e esse monte de pombo traz muitas doenças aqui para dentro”, comenta Marta. A piscina que existe no 3ºBI é um capítulo à parte. Sem manutenção há um ano e cinco meses, a água adquiriu tons laranja e marrom e, nela, jazem um cachorro e um gato que freqüentavam o lugar. Potencial foco de mosquitos da dengue, a piscina também é um perigo para as crianças menores que podem transitar livremente por ali. “O refeitório
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possui cabos de eletricidade soltos e o chão freqüentemente está molhado, é um perigo muito grande para os adultos e principalmente para as crianças. O ônibus prometido pela prefeitura para levar as crianças ao colégio só começou depois de muita mobilização perante a prefeitura”, afirma Marta. O aluguel social é outro tema problemático. Anunciado como uma das principais políticas para sanar o problema dos desabrigados de Niterói, o aluguel social no valor de R$ 400,00 não é suficiente para cobrir os valores de aluguel da maioria das famílias e parte dos desabrigados sequer começou a receber o pagamento. Marta também comenta: “Recebia 1 mês, ficava 2 meses sem receber. Depois regularizou, mas muita gente nunca chegou a receber o aluguel social”. A especulação imobiliária tem aumentado muito em Niterói e arredores, fazendo o preço dos aluguéis aumentarem vertiginosamente. Marta é um dos exemplos de vítimas do preço do aluguel: o recente reajuste do imóvel onde vive não lhe permite pagar só com o aluguel social. Ela quer voltar para o abrigo, mas encontra dificuldades e reclama do processo de administração do espaço, que considera antidemocrático: “A administração não foi eleita por ninguém e manda e desmanda aqui den-
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À esquerda, Marta Silva, diarista, 44 anos e mãe de 7 filhos, desabrigada da tragédia no Morro do Bumba.
tro. Preciso voltar para o abrigo agora, mas a politicagem deles dificulta minha volta. O que eu faço com minhas crianças enquanto isso?”, questiona. Os moradores do abrigo do 3ºBI em São Gonçalo reivindicam apenas moradia digna. São trabalhadores, pagam seus impostos e com muito suor também pagaram suas casas antes de tudo vir abaixo pelo descaso da prefeitura com a estrutura da moradia nas regiões menos abastadas da cidade. O programa “Minha casa, minha vida” do governo federal é rechaçado pelos moradores do abrigo: “Não
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Acima, banheiro do alojamento no 3°Batalhão de Infantaria, em São Gonçalo. À direita, também no abrigo, caixa de energia anuncia perigo, em local onde as crianças transitam livremente
aceitamos esse negócio de ‘Minha Casa, Minha Vida’, ter que pagar de novo pela própria casa é um absurdo! Eu já paguei pela minha casa! A gente quer de volta o que é nosso por direito, a nossa casa. Os impostos que pagamos com muito suor vão para construir Caminho Niemeyer, Via Orla, gerar mais pobres desabrigados e nunca vem nada para construir encostas e garantir a segurança da minha casa e da minha família. É um absurdo eu ter que me endividar com a Caixa Econômica Federal pra pagar pela segunda vez a minha casa!”, conclui Marta.
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Elisângela Leite
Hiperfocal
AF Rodrigues, fotógrafo de dois mundos Dante Gastaldoni *
O cenário da fotografia é o Complexo do Alemão, em 26 de novembro de 2010, dia em que a favela foi ocupada pelas tropas encarregadas de expulsar os traficantes de drogas e criar as bases para a implantação de uma Unidade de Polícia Pacificadora naquele local. No centro do quadro, um homem corre, visivelmente assustado, protegendo o bebê que carrega em seus braços de uma ameaça que escapa aos nossos olhos. A polícia se faz presente nas extremidades da foto, mas é informação periférica: à esquerda, um motociclista cruza a rua deserta; à direita, um soldado, portando armamento pesado, corre um pouco atrás do homem com o bebê. A cena sugere um tiroteio prestes a eclodir. Contudo, a tensão da imagem advém de um
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gesto de amor: nosso olhar converge para o corpo magro do homem em primeiro plano, ligeiramente recurvado, como quem procura exercer uma instintiva proteção sobre o bebê, complementada pela posição de seus braços e mãos, espécie de escudo humano envolvendo o pequenino ser. A foto ainda nos brinda com um dado curioso, porque é precisamente desta indefesa criança que irradia o único olhar capturado pelo fotógrafo: um olhar assustado, que parece simbolizar nossa perplexidade diante da violência que oprime a população do Rio de Janeiro, em especial os moradores das comunidades populares, principais vítimas do tráfico, das milícias e da truculência policial. Feita no calor dos acontecimentos, a fotografia diz muito sobre seu autor, o fotógrafo Adriano
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Em tiroteio no Complexo do Alemão, pai tenta proteger seu filho.
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recém-formado em Ciências Agrícolas pela UFRRJ, abriu mão de uma bolsa de pesquisa para cursar a Escola de Fotógrafos Populares, na Maré, um alentado curso de um ano, com 540 horas/aula, oferecido pelo Observatório de Favelas. Naquela ocasião, eu completava 30 anos de magistério, lecionando disciplinas ligadas à área da imagem no IACS/UFF e na ECO/UFRJ, e tinha acabado de assumir a coordenação acadêmica da Escola, a convite de João Roberto Ripper, um dos maiores fotodocumentaristas brasileiros. Voluntários buscam por vítimas após o desastre “natural” em Teresópolis. O projeto da Escola é ancorado na ideia de formar fotógrafos Ferreira Rodrigues – que assina AF Rodrigues –, oriundos dos espaços populares, capazes de pronascido e criado no complexo de favelas da Maré, duzir uma documentação endógena das perifeum aglomerado de 140 mil pessoas, que margeia rias, que se oponha à visão de favela como foco de a Avenida Brasil, RJ. De cara, a imagem se con- violência, frequentemente veiculada pela grande trapõe à visão com que a invasão do Alemão foi imprensa. Ainda em 2006 apresentei o projeto à apresentada pelos principais jornais da cidade, Proex/UFF, que passou a diplomar os formandos. preocupados em mostrar os traficantes fugindo, Dentre os muitos talentos que vi brotarem em contraponto com uma população agradecida. na Maré, saltou aos olhos a qualidade da fotografia No entanto, o grande diferencial desta foto resi- de Adriano, que já havia incorporado um acento de na atitude do próprio fotógrafo, um misto de autoral antes mesmo do término do curso. Não me coragem (para se expor de peito aberto, diante do parece exagero dizer que sua ascensão profissional conflito iminente) e de olhar solidário (que optou foi muito rápida. Ao longo de 2007, ele participou de por centrar o foco na tensão dos moradores, em de- três importantes exposições coletivas: ”Esporte na trimento do heroísmo com que a ação dos soldados favela“, CCBB, RJ; ”Olhar Cúmplice“, Caixa Culfoi então louvada pela mídia). “Procuro enxergar tural, RJ; e “Belonging”, Canning House, Londres. no outro meu eu” – explica Adriano – “quando foto- E em março de 2008, Adriano e seu colega Bira grafo toda a minha história de morador da favela Carvalho, subiram ao palco do Copacabana Palace se faz presente e dirige meu enquadramento”. para receber, em nome de seus colegas, o prêmio Conheço Adriano desde 2006, quando ele, Faz Diferença do jornal O Globo, conquistado pela
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Escola de Fotógrafos Populares no ano anterior. A destacar, desde 2007, sua atuação profissional como fotógrafo na Coordenadoria Especial de Comunicação da Cidade do Rio de Janeiro, uma atividade que lhe permite o cumprimento de pautas diárias bem diferenciadas daquelas que executa em sua vivência como fotógrafo documentarista nas favelas, o que faz de AF Rodrigues um fotógrafo de dois mundos: - Meu trabalho na Prefeitura às vezes é conflitante com o trabalho documental que faço nas periferias, porque sou obrigado a respeitar uma visão institucional da cidade, que nem sempre enxerga o Rio como uma cidade partida, mas a gente sempre dá um jeito de trazer o humano para dentro das fotos”. Agora em 2012, Adriano está prestes a concluir sua segunda graduação, desta feita em Geografia, pela UFF. Hoje, além de sabê-lo um excepcional fotógrafo, na esteira de gente como Ripper, Eugene Smith e Josef Koudelka, tenho no Dri um grande amigo. A gente se frequenta e, vez por outra, quando o papo ou a saudade se impõem, vou encontrá-lo na Maré, mais especificamente na Nova Holanda, onde ele continua morando com sua companheira, a também fotógrafa e amiga Elisângela Leite. A propósito, em junho deste ano, o casal irá à Cidade Luz, representar a Agência-Escola Imagens do Povo na abertura da exposição fotográfica que estará sendo exibida pela Aliança Francesa, em Paris.
* Dante Gastaldoni é jornalista e cientista social formado pela UFF, mestre em Comunicação Social e professor de Fotografia na UFF (1980), UFRJ (1984) e Escola de Fotógrafos Populares da Maré (2004)
No alto da página: Grupo de Teatro Cia. Marginal conta história da Maré. Acima: Agente de saúde da Rocinha entrega remédios para paciente tuberculoso.
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Acima: João Bolinha passa vendendo seu brinquedo e de graça oferece suas leves alegrias pelas ruas da Maré. Ao lado: Vista do Complexo do Alemão a partir de um dos bondes do teleférico.
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A Classe está de volta Crise estrutural necessita de mudança estrutural Notas sobre a atualidade de Lukács Vozes da resistência contra Belo Monte A saga de um grupo de teatro classista Comissão da Verdade: mais uma farsa, mais um engodo Marighella: presente! Megaeventos para quem? Vila Autódromo: uma comunidade que teima em resistir Os caminhos para a universalização da banda larga Verdade por trás da crise resenha do filme “Trabalho interno” O laboratório de Marx resenha dos Grundisse Desabrigados das chuvas sofrem com descaso AF Rodrigues - fotógrafo de dois mundos
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ADUFF
SSind
Seção sindical do Andes Filiado à CSP/CONLUTAS
Ano V - nº 4 Janeiro/FEVEREIRO/MARÇO DE 2012 ISSN: 2176-9605
Canteiro de obras da TransOeste, via responsável pelo desalojamento de milhares de famílias Foto: Luiz Fernando Nabuco
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