Viver 15 - As Tradições da Páscoa na BIS

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SENTIR A BEIRA

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3. NOÇÃO DE TEMPO E ESPAÇO. A noção de tempo natural, filia-se na matriz cultural rural, assente em relações gregárias afectuosas, solidárias e sedimentadas pelo património onde mergulham as raízes e os laços de identidade de cada pessoa ao sentir-se filho de algo: uma família, a sua terra. A aprendizagem da vida na pauta do tempo e espaço naturais, apreende as características dos ciclos produtivos, na moldura todos os anos renovada das estações do ano, nos seus ciclos de vida e de morte natural nas plantas e nos animais. Contudo, ao tempo natural contrapõe-se um tempo cada vez mais virtual, tecnológico, frio e menos afectuoso, até já em certa medida artificial. É já bastante representativo o número de pessoas, sobretudo os mais jovens que criados em ambiente urbano pouco ou nada conhecem da natureza vegetal e animal, dos ciclos produtivos, da origem dos produtos, das memórias culturais dos saberes e dos sabores dos produtos genuínos como jóias das tecnologias tradicionais humanizadas. É cada vez maior o número de jovens que não tiveram qualquer experiência viva e concreta da contemplação e entendimento dos humildes mas ricos fenómenos e acontecimentos naturais, onde a vida explode genuína e autêntica e a morte surge de modo tão natural.

4. A BOA E A MÁ MORTE. De acordo com a noção de tempo natural evoca-se a ideia da boa-morte, quando se morre em casa, na cama, rodeado pela família e vizinhos. Quase sempre tendo havido tempo para orientar as partilhas, fechar os negócios terrenos e confortado com os ofícios religiosos (se for essa a opção). Não é, assim, uma moldura de desespero e embora num ambiente de constrangimento social e familiar, a face da boa-morte é mais humanizada, integrada numa linha de acontecimentos naturais e inter-geracional. É um acontecimento social que implica toda a comunidade. Contudo, a sociedade mudou, concentrou-se e urbanizouse. São cada vez menos as famílias próximas e disponíveis e os vizinhos já quase se não conhecem. A ideia de “boamorte” vai sendo removida da sociedade e da família, começando a separação tantas vezes muito antes do colapso fíVsico e mental, pelo afastamento e isolamento no hospital e recolha num lar, tantas vezes num indigno e desumano ciclo final. Assume-se, assim, uma espécie de pré-morte pela ruptura social e familiar. É o por de lado pelo afastamento e pelo esquecimento! Não esqueçamos que se a solidão é a ausência de tempo pessoal e relacional, a solidão definitiva é a total ausência de necessidade de tempo, o limite sem recuo e alternativa. Ou seja, é o “ser” bloqueado em si próprio, sem alguém que lhe devolva a sua imagem com afecto e validade activa para a vivência dos dias. Os dias, então, sucedem-se e a auto-estima, a consideração e o

Nesta sociedade hedonista, do facilitismo, de modas e ídolos de ocasião, valorizam-se os padrões de pretensa perfeição, consumismo e beleza a todo o custo. Lida-se mal com o sofrimento, foge-se do sofrimento! Tem-se a ideia superficial e errada que é preciso evitar às crianças os eventuais traumas psicológicos do contacto e do entendimento do sofrimento e da morte! E não estaremos a criar consciências e personalidades desligadas da realidade, apenas teóricas e virtuais? Isto é, cabeças cheias mas mal feitas, desligadas da vida palpável e concreta, substituindo a realidade pelas impressões gravadas pela influência de filmes que lhes dão a noção de que o sofrimento e a morte são a fazer de conta. E os modelos de violência e ruptura encontram em tais cabeças um terreno de imaginação fértil e irresponsável. Cada pessoa terá a Páscoa que for construindo ao longo da sua vida, na vibração da pauta do sentido que foi encontrando para a sua vida. A exemplo de outros grandes marcos e vivências, uma boa Páscoa prepara-se e merece-se na partilha solidária com a comunidade e de forma tão mais autêntica quanto se estiver em paz consigo próprio.

respeito é uma chama apagada.

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