Negritude Infinita: o cinema é negro

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A despeito da verticalidade da imagem, não há uma hierarquia entre as sujeitas da fotografia. São mulheres negras com suas cabeças apoiadas umas nas outras. São cabeças que, como a própria artista diz, “são o resultado de uma reunião em que os Ancestrais decidiram que alguém deveria contar as nossas histórias”². Não sou eu quem conta essa história, são elas. É Juh Almeida. São as Ancestrais. Outra coisa que me assombra nessa imagem é a força espiritual do uso do preto e branco. O crespo dos cabelos, as bocas, essas expressões de completa atenção ao que nós somos, ao que nos precede, ao que nos ampara - tudo isso me lembra a primeira vez que vi uma cerimônia fora do barracão de minha casa de Candomblé. No meio do terreiro, com os pés no chão, apenas a luz da lua e de algumas poucas velas, vi Obaluaê dançar. Por algum motivo essa imagem feita por Juh me evoca isso, esse momento onde vi o Rei da Terra pisando o chão, o Orixá das pestes, mas também da cura, aquele ao qual pedimos vida longa com saúde. Essa fotografia me fez querer viver mais, ver mais dessa gente, saber mais do que fala Juh. Por algum motivo a minha memória desse ritual parece ter sido “captada” como nesta fotografia: preto e branco, uma luz que nos revela corpos afetuosos, a dignidade inabalável dos Orixás. No fim das contas eu percebi que essas mulheres (Shai Andrade, Rani, Kerolayne Kemblin, Gabriela Palha e Jaqueline Oliveira) contavam também a história dos meus ancestrais, de uma terra que esse corpo físico nunca pisou. Elas contam de si um mistério que não posso habitar, mas que amo como amo ao meu mistério. Aquela onda que era a fotografia do homem branco passou. É interessante e me enche de alegria saber que existem possibilidades de vida. O dispositivo fotográfico evoluiu de maneira racista. Evoluiu como o mundo ocidental moderno precisava - as imagens das pessoas negras, sempre orbitando a tragédia das plantations não era, nunca foi, o objeto do brinquedo burguês. O desenho técnico dos tipos de africanos escravizados em terras brasileiras já anunciava que para essa máquina de visão nós éramos invisíveis. Literalmente. Ajustado à pele branca, o filme sensível apagava, senão completamente, de maneira eficaz os traços da pessoa negra. Éramos vultos. O oposto da luz. Mas disso, essa violência, já se sabe.

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