A Folha #8

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a abrir 2011 foi o ano em que se cumpriram 50 anos desde a declaração do presidente Nixon de Guerra às Drogas, que se saldou numa das mais sangrentas, corruptas e menos eficientes campanhas de erradicação de substâncias embriagantes que este planeta alguma vez conheceu. Esta cruzada moralista tirou mais vidas e provocou mais sofrimento por esse mundo fora do que aquele que pretendia evitar. A repressão armada desproporcionada, o controlo e criação de narco-estados, as operações ilícitas de financiamento de agências de informação de diversos países, entre os quais potências ocidentais, foram contas de um interminável rosário de sangue, traição, corrupção e violência sobre comunidades étnicas, religiões e cidadãos. Tudo à custa de uma falácia que, ao fim e ao cabo, serviu apenas para defender os interesses instalados.

Foi preciso passarem 50 anos desde o início desta política, para que alguns dos seus defensores e aplicadores vejam o sangue que já lhes tinge as mãos. Depois de milhões de mortos, de bombardeamentos, razia de comunidades, rusgas, famílias destroçadas, campanhas de propaganda e vidas desperdiçadas em prisões, o negócio do tráfico de droga floresceu e desenvolveu-se. Entranhou-se nas esferas do poder económico-financeiro e alastrou para a própria política, infiltrando-se nos partidos, minando a base da própria democracia. Desde o complexo militar americano até às construtoras e concessionárias de penitenciárias, existe todo um negócio florescente associado que não vai abrir mão facilmente dos lucros que a proibição lhes oferece. Nem eles nem os traficantes que ganham milhões precisamente por as drogas serem ilegais, pouco acessíveis e, logo, inflacionadas, estão interessados em alterar o status quo. Desde a declaração da Guerra às Drogas, quantos países se tornaram narco-estados? Quantos criminosos se tornaram milionários patrocinadores de campanhas políticas e beneméritos dirigentes de clubes de futebol à custa de uns tantos testas de ferro? Os cães ladram, mas a caravana passa. Sempre passou e sempre passará. Porque não há cão que não queira o seu dono, nem homem que não tenha o seu preço.

Sumário ATUALIDADE

No caso da canábis, a força reformadora emana principalmente de duas abordagens distintas: a do uso lúdico, que deixa muita gente de pé atrás, e a do uso medicinal, que sendo mais aceitável do ponto de vista da opinião pública e científica, parece suscitar o interesse das grandes corporações farmacêuticas. No entanto, a confusão instalada pela mistura das utilizações, ou melhor, pela dificuldade objectiva de distinguir uma da outra, leva a que ainda levante muitas objeções por parte dos profissionais médicos. Por outro lado, é certo e sabido que a ciência e os investigadores seguem os filões do financiamento e, sendo ampla e historicamente reconhecidas as propriedades medicinais da canábis, tratar-se-á provavelmente de uma questão de tempo até que as farmacêuticas “façam ver” à classe política as potenciais utilizações terapêuticas e as vantagens que daí poderão extrair. Nada que uns milhões de dólares não ajudem a abrir os olhos políticos para criar regulamento em que apenas essas corporações tenham acesso a utilizar a planta, ficando a sua utilização caseira e pessoal negócio exclusivo das multinacionais, reproduzindo a mesma técnica de lobby utilizada por parte das farmacêuticas que propuseram a “inocente” e felizmente reprovada moratória sobre o cultivo e utilização pessoal de plantas medicinais. [continua na pág. 9]

Déjà Vu GENÉTICA

6 16 9 [sugestões/produtos] 10 Canábis legal no País Basco? 18 João [aventuras dos 12 nossos leitores] Goulão [atualidade]

Uma das poderosas genéticas Jamaica Seeds

Déjà Vu

Indica do Himalaia

personalidade

Estala a confusão sobre a regulamentação dos Clubes Sociais de Canábis

14

CULTIVO DE INTERIOR [avançado]

Floração Relâmpago o método que permite poupar até duas semanas a 12/12h

origens

28 Arqueologia Canábica

No entanto, a realidade estremece. Há dez anos um pequeno país deu um enorme e corajoso passo no sentido de alterar o paradigma. Contra todos os avisos e pressões internacionais, semeou a semente da mudança ao aprovar a descriminalização do consumo em sede parlamentar. Pouco a pouco, com resultados à vista e cada vez mais óbvios, são cada vez mais os países e líderes que abrem os olhos e começam a ver para além da cortina da proibição. A circulação de informação a nível global permite a sua partilha e disseminação através de canais alternativos como a Internet. O movimento alastra, a ideia mostra-se adaptativa, utilizando uma terminologia oriunda do evolucionismo. Ao dar o pontapé de saída, Portugal tem o direito e o dever de fazer valer a sua experiência a nível internacional, e de se manter nessa vanguarda estabelecendo rumos alternativos. Suíça, Holanda, México, Argentina, Chile, Uruguai, Espanha, etc, estudam e implementam já alternativas que pretendem seguir e ir ainda mais longe que o “Modelo Português”, validando a ideia de que o consumo, embora ainda visto moralmente como indesejável, pode ser responsável e informado, e nesse caso, uma opção legítima cujo acesso deve ser devidamente regulado e normalizado. Informar e regular em vez de insistir numa proibição ineficaz parece agora bastante mais aceitável e lógico do ponto de vista da opinião pública do que manter os consumidores num contexto de repressão, exclusão, clandestinidade e ausência de apoio sanitário, psicológico e social, que ricamente redundaram em consumos problemáticos e na erosão da vida social e da motivação dos indivíduos, bem como na deterioração das suas condições físicas, nomeadamente no caso de drogas com forte componente aditivo.

Capa

SAÚDE

Redução de danos

terapêutico Drogas 32 Uso 33 e uso compassivo de Design

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– A Era dos Sucedâneos

[locais onde reservar] [ficha técnica]

“Está para além da minha compreensão que um ser humano possa impedir (o uso de) uma substância tão benéfica, a pessoas tão necessitadas” Stephen Jay Gould [1941-2002] Paleontólogo, biólogo evolucionista, historiador da ciência

É considerado o mais lido e conhecido divulgador científico

da sua geração. Talvez também o mais teimoso, controverso e corajoso. A história académica de Sephen Jay Gould começa na Universidade de Harvard, em 1967, onde se tornou professor na cadeira do mítico Alexander Agassiz (1835-1910), de zoologia. Ajudou Niles Eldredge a desenvolver a teoria do equilíbrio pontuado (1972), segundo a qual as mudanças evolucionárias ocorreriam de forma acelerada em períodos relativamente curtos, em populações isoladas, intercalados por períodos mais longos, caracterizados pela estabilidade evolutiva. Na perspectiva de Gould, esta teoria deitava por terra um princípio-chave do neodarwinismo: O gradualismo das mudanças evolucionárias. Uma teoria não partilhada pela maioria dos biólogos evolucionários, que a consideraram apenas uma “rectificação importante”. Stephen J. desvendou enigmas que atormentavam os seus colegas desde que Charles Darwin criou a teoria da evolução das espécies, em 1859. “O filho rebelde de Darwin” não evitava polémicas, criticava com prazer e sem remorso, obteve várias vezes o desdém dos seus pares mas o respeito de muitos outros. Nascido judeu e educado próximo do socialismo, Gould não praticou nenhuma religião organizada nem assumiu qualquer militância política. Como escritor lutou contra a opressão cultural, “divulgando a ciência a leigos”, e contra a “pseudociência legitimadora do racismo”. Publicou cerca de 30 obras, tais como: Darwin e os Grandes Enigmas da Vida, A Montanha de Moluscos de Leonardo da Vinci ou A Falsa Medida do Homem, no qual discute a subjetividade por trás do conceito

de inteligência; e mais de 300 ensaios, entre 1974 e 2001, na sua rubrica “This View of Life” (Esta Visão da Vida) na revista Natural History. Em 2000, Stephen J. Gould é eleito presidente da Associação Americana para o Avanço da Ciência, criada em 1848, e actualmente a maior sociedade científica do mundo, com 262 sociedades e academias de ciências e engenharia afiliadas, representando dez milhões de indivíduos.

Após lhe ser diagnosticado um cancro abdominal raro, em 1982, o Naturalista tornou-se defensor da utilização te-

rapêutica do canábis. Viveu teimosamente mais duas décadas além do diagnóstico que lhe sentenciou oito meses de vida. Reconheceu sempre o “importante efeito” que o canábis teve na melhoria da sua condição e no prolongamento da sua vida. Gould também depôs em tribunal a favor dos benefícios da planta, declarando: “Está para além da minha compreensão que um ser humano possa impedir uma substância tão benéfica, a pessoas tão necessitadas, simplesmente porque outros a utilizam para diferentes fins.” Ao longo dos vinte anos que o “detetive da evolução” enganou a morte, investigou, descobriu e deu a conhecer mistérios científicos incalculáveis! No seu último ano de vida, publica A Estrutura da Teoria Evolucionária e, (no original) I Have Landed: The End of a Beginning in Natural History. Duas semanas antes de partir, ainda se movimentou a custo para continuar a leccionar na sua sala da Universidade de Harvard. Embora rebelde, era rigoroso. Ninguém se atrevia a sair ou entrar a meio da aula.


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