Maio é um bom Mês para se Morrer

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MAIO É UM BOM MÊS PARA SE MORRER

Paulo Pires Moreira


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“Precisamos de um pouco de loucura, se não… não se poderá nunca quebrar as correntes e ser-se livre.” (In, Zorba o Grego, de Michael Cacoyannis)

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Ao Fudgi

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Este livro foi escrito entre Agosto de 2009 e Abril de 2010. Alguns dados quantitativos mencionados são os existentes à época (p. ex.: taxa de desemprego) os quais, logicamente, surgem deslocados em termos de presente.

Este livro não foi, por opção do Autor, escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico

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ÍNDICE DE CAPÍTULOS CAPÍTULO I - O despertar do Tatu ................................................................................. 7 CAPÍTULO II - Camarões e Berliets ............................................................................. 12 CAPÍTULO III - Macacos hidráulicos ........................................................................... 25 CAPÍTULO IV - Estratégia ............................................................................................ 35 CAPÍTULO V - Café e Shampoo ................................................................................... 43 CAPÍTULO VI - Y El Condor Pasa ............................................................................... 48 CAPÍTULO VII - Escribas e Faraós............................................................................... 55 CAPÍTULO VIII - 8 ½ ................................................................................................... 62 CAPÍTULO IX - No Resguardo Espúrio ....................................................................... 69 CAPÍTULO X - Anjos Caídos ....................................................................................... 76 CAPÍTULO XI - Os Sorvedores de Oxigénio ................................................................ 86 CAPÍTULO XII - A Tese ............................................................................................... 91 CAPÍTULO XIII - O Frankenstein Social .................................................................... 102 CAPÍTULO XIV - Colegas Maçons ............................................................................ 109 CAPÍTULO XV - Cruzadex Shakespeareano .............................................................. 116 CAPÍTULO XVI - Maio é um bom Mês para se Morrer ............................................. 122 CAPÍTULO XVII - Por um Arrátel e Meio de Bolacha Rançosa ............................... 126 CAPÍTULO XVIII - Ora pro nobis, peccatorum ......................................................... 131 CAPÍTULO XIX - Logística Inversa ........................................................................... 138 CAPÍTULO XX - Sous La Plage, La Chaussée ........................................................... 143 6


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CAPÍTULO I O despertar do Tatu Raios, onde pára minha pneuma? Sem o sopro divino enchendo este invólucro todo o resto fica sem utilidade como se eu não passasse de tosco Pinochio esculpido em madeira de vidoeiro onde cintilam uns olhos sem vida de berlinde vidrado. Olha... por breves e argentíferos momentos ainda dá para ver o fio de prata no ar onde desponta algo de vagos contornos que me faz lembrar um daqueles balões transparentes, esvoaçando no ar do arraial festivo confraternizando com algodão doce, couratos e vinho de barril. São os chamados contornos da alma, ser etéreo, fantasma ectoplásmico ou lá o que raios lhe chamam os fomentadores do esotérico. Caiu abruptamente em meu peito, acomodando-se ao recipiente carnal tal como piloto de fórmula 1 faz, ao encravar seu corpo desmedido dentro do espaço reduzido do habitáculo. Não dói; é mais um estremecimento como se aura e corpo fossem entidades diferenciadas que, no entanto, obedecessem a uma única lei da física. Lei que eu acabo de colocar em evidência ao acordar por mim próprio, escapando assim ao estribilho das notas cibernéticas do minúsculo ser chamado telemóvel. Corpo, chip e bateria, tudo amalgamado em caixinha compacta para nos tornar a vida mais fácil; marketing dixit. Penso ter sido antes outra criação do demo, esse ser inventivo que sempre procura novas maneiras de nos infernizar a vida de modo a que, na altura de nos resgatar a alma, já tenhamos feito o tirocínio. E é para este resultado final

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que são explorados tantos desgraçados que labutam enterrados até à barriga nas minas do radioactivo coltan desunhando-se para auferir míseros francos congoleses! Outros – a classe possidente - desunham-se sim mas para conquistar mais quotas de mercado aos concorrentes, sem preocupações terrenas que não sejam proceder à engorda dos diferentes cash-flow e proveitos financeiros, locupletando-se. No fundo, actuando como charcuteiros que engordam gansos à força para depois lhes venderem os fígados transformados em foie-gras. Lanço um olhar de viés ao aparelhinho, tão útil e tão desesperantemente perturbador (relembra-me mulher-a-dias expulsando-me da sala para a poder aspirar, e isso no preciso momento em que me preparo para assistir, - na TV -, ao fulgurante ataque das hienas à desgraçada gazela de Thompson). Não fosse por tal me obrigar a um esforço extremo do encarquilhado corpo, ora insuflando-se de energia vital, e atirava-o à parede! À parede não…, antes espezinhá-lo como se possuído por uma das sete fúrias, estraçalhando-o em minúsculas pecinhas e levantando no ar a insidiosa nuvem de telúrio. Pensamento inócuo, apenas para poder substituir uma frustração evidente por um praguejar silencioso. Praguejar que eu não posso ou devo quando em confronto com tanto barulho emitido por tais aparelhos, um pouco por todo o lado. O passeio dominical pelas ruas da Baixa (com a mulher a ver as montras e o marido com a orelha colada ao transístor a ouvir o relato) foi substituído pelo matraquear de ambos ao telemóvel, escutando-se tudo o que de privado deveria ser. Vivese de portas abertas e todos somos obrigados a entrar. Eis a democratização da tecnologia no seu esplendor! Mas, ainda que fosse uma mão acariciando a melena, um beijo no rosto, um mero afago na nuca ou até mesmo uma cotovelada nas costas me despertando para o novo dia, tudo bem, mas um compactado minúsculo servomecanismo entoando sons metalizados em substituição do galo anunciador, subtraindo-me da agradável companhia de Morfeu a meio de um jogo de bisca-de-nove, (e logo quando me preparava 8


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para lhe comer o Ás de Copas), isso é algo que conflitua com meus sentidos. Bem, poderia colocar o rádio-despertador, mas aí arrisco-me a acordar dolorosamente com balbucios proferidos em Esperanto, ou com fados e guitarradas de gente já morta. Ou então, enganar-me na sintonização das hertzianas e ter que despertar com acordes nativos de mornas, kizombas ou outra estranha manifestação musical deste afirmado país pluricultural, plurirracial e pluricontinental. Tomando consciência da multiplicidade de átomos e moléculas que fazem parte do meu corpo sinto-me uma constante da natureza, o meu pensamento flui à velocidade da luz, consigo sopesar a massa dos protões que se agitam dentro de meu vasilhame carnal em repouso. Recrio para minha diversão a constante gravitacional. Velho tatu, onde é que ias tu...

Espera... Desentorpecer a perna direita para escapar da inevitável cãibra costumeira... Ao final tenho que abandonar o pretenso estado anagógico e assumir que acabo de acordar como se estivesse em dia de prazenteiro campismo selvagem, envolto em mata carregada de ofertivas juvenis. No entanto, convém assinalar desde já que todas as pin-up escolhidas pelo método da entrevista directa e acabadas de sair de dentro de páginas de calendários afixados em paredes sujas de oficinas de mecânica auto, são obrigadas a ter idade mínima legal continental para “acampar.” Avançai portando seus novéis cartões de meritíssimas cidadãs, em fila única. Nada de tibiezas, vinde logo de uma vez, pois em sonho tenho tempo para todas atender. Estacas bem cravadas entenda-se, não vá a coisa voar, expondo-me aos olhares ávidos destas moçoilas de saudável ar campestre e de faces avermelhadas pelo sol meridional. Os cabelos esvoaçam lisos e soltos ao

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vento (o mistral, o sirocco e a tramontana, em simultaneidade, auxiliam esses intentos), as mãos delicadas e de unhas arranjadas empunhando tirsos e, as belas coxas – ah! as coxas, - soberbas e bem torneadas em explícita flexão. São umas camponesas nutridas e saudáveis, alimentadas a Omega 3 e a produtos pasteurizados, entregando-se a reprováveis (sempre dependendo do sistema jurídico pré-estabelecido, claro), actividades físicas, entre troncos bolbosos de oliveiras seculares, plantadas algures entre as terras de Taurus e as planícies verdejantes entre colinas de Europa. Exposto desta forma impudente sinto-me como um bosquejo vitruviano exibindo suas proporções correctas e seus atributos generosos para gáudio e garbor da gaitona assistência. Melhor sendo, neste caso tão paroquial, que o ajuntamento de báquicos se situe entre os canaviais das terras alagadiças do Paúl de Boquilobo, ou na margem dos terrenos areentos, originados pela vaza da maré, na praia dezasseis. Esta última localização soa-me melhor. Começo a fabricar o cenário envolvente, constituído por extensos colchões de chorões em flor, atapetando as arribas fósseis. Enrodilhamo-nos a céu aberto, entrechocando os endoesqueletos uns nos outros e sem mostrar respeito algum pelos estragos causados no endémico coberto de laurissilva. Já que nossas cabeças não podem ser cobertas de pâmpano e de hera, que sejam pelo menos perfumadas pela hortelã-pimenta bravia. Sula bula. Eis-me enredado num folhetim constituído por um mau enredo de duvidáveis personagens numa história decadente concebida por mente obscura. Mas este nem foi um sonho recorrente, foi mais do género atípico – incongruente e propiciador ao onanismo. É uma daquelas coisas que sempre se espera de um sonho, mas que raramente ocorrem. Não que recuse, por apriorismo, tal mordomia enviada por algum dos brincalhões que se diz serem filhos de Hipnos que, aproveitando-se de meu ocaso temporário, se imiscuiu no limbo de minha inconsciência.

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Por vezes já não sei se estou dormindo, sonhando, ou se sonho que estou a dormir. Só mesmo algum adepto da escola freudiana, para entender que se passa cá dentro desta panela de pressão. E isso só depois de muito esgravatar de joelhos no fundo da psique, armado em apanhador de lambujinha enterrado até aos joelhos na baixa-mar. Mas que tanas! Não era este o sonho que eu estava vivenciando na hora que acordei. Ou seria? Que foi feito do tipo de lenço a tiracolo, vestido de preto? E a catrefa de manápulas que me queriam agarrar? Quem me manda ficar a cogitar de olhos fechados mais uns minutos extra em vez de saltar de imediato cama fora. Desta forma a porra dos sonhos não ficam impassíveis durante muito tempo deitados na minha mesa particular de análise forense. Como discernir entre o sonhado molhado momentos antes e o sonhado a seco ao início da noite e ainda o sonhado acordado, quando o sonho cede a sua vez ao pensamento consciente? Sabendo das partidas que a toda a hora a mente nos prega, melhor nem acrescentar nada de teórico ao assunto sob pretexto de ser acusado por bizarras personalidades do meio pseudo-intelectual, de escassas habilitações para o efeito.

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CAPÍTULO II Camarões e Berliets Sete e oito… Já nem merece a pena me virar pró lado e enterrar a cabeça no fundo do travesseiro, revirando o corpo quente para o outro hemisfério da cama, mais fresco, como se fosse um hambúrguer demasiado torrado de um dos lados. Almofada de cebola para um lado, suor em pingo fervente para o outro. Gostaria mesmo era de poder marinar alguns dias em vinha de alho corporal, fazer uma cura de sono por assim dizer. Abusaria do sofrível vinho a granel como desculpa para os movimentos quebrados, para a língua pesadona e para o cérebro toldado, pois ninguém culpa o excesso cometido em serviço, e por lapso superlativo de ingredientes essenciais, de um gargântua de ocasião. Perfeito perfeito seria mesmo usufruir de uns dias numa estância termal, tudo devidamente pago por benemérita entidade patronal, a jeito de subsídio para recuperação dos danos causados por excesso de trabalho intelectual e por desgaste físico e psíquico. Dormir, dar à língua, passear pelos bosques fronteiros, fazer olhinhos aos extremos decotes das batas das massagistas termais, sorver muito líquido incolor, inodoro e insípido. Banhos de água mineral que seriam amiúde tomados como se fosse posta de paloco do pacifico a demolhar, para mais tarde ser cozinhado em doce manjar. Enrolar-me e desenrolar-me em toalhas previamente aquecidas, (após me retirarem o roupão), entregar meu martirizado corpo aos encantos de mãos experientes que me fizessem sentir

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a musculatura vibrar de emoção. Relaxar dentro de um pavilhão de sauna finlandês (depois de ter as unhas dos pés tratadas com desinfectada turquês), deambulando meu olhar por entre as junções das tábuas de madeira de choupo, e, mansamente, dormir de novo como se fosse um cachoupo. Debaixo do sol tardio do final da tarde colocaria meu esbranquiçado corpo a corar, (tal como um taberneiro albino curado pelos gases provenientes de milhões de barris de vinho tinto, que impedem a cútis de escurecer como se esta fosse parca em pigmentos de melanina). Ao final de alguns meses de profilaxia voluntária, prescindiria da comida asséptica e tentaria sintetizar directamente dos raios de sol o meu alimento, renunciando a ser alimentado por qualquer outra via que não esta, a única e verdadeiramente fonte de absorção de calorias que não representa perigo para qualquer outra espécie animal ou vegetal. No fundo e no âmago, regressar aos tempos do início das espécies e envolver-me no ciclo do líquido primordial, deixando-me embrenhar no seu abraço molecular acabando por também eu, com o passar do tempo, me tornar um elemento aquoso. Da próxima vez tentarei a experiência de sublimação, deverá ser orgásmica. Mas nem me transformo em gotas nem tão pouco me sinto refrescado. Pelo contrário, sinto o corpo bem seco como se fosse uma alfarroba pendente na ramada da mãe-árvore sob sol fervilhante. Periclitantemente pendurada por apenas um fino fio de trama vegetal, já parecendo mais uma gáspea de couro usada do que fruto comestível. Dentes remoendo em falso uns nos outros como se atacado subitamente por bruxismo. Entro numa espécie de buraco oco, uma sensação de abandono e de obrigação em que por instantes revisito a tranquilidade e a protecção perdidas. (A triste melopeia de uma gaita de amola-tesouras rompe o ar, em ríspida comunhão com o som lancinante de faca de cozinha a ser afiada no disco de amolar). Perpassa-me a sensação

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que se vive quando um cordão umbilical é definitivamente cortado, uma mão se desliga eternamente de outra, uma amizade desfeita infantilmente, o vazio deixado pelo fim de um grande amor. O que mais parecido me ocorre em termos identificativos ao comum dos humanos, é a angústia que se sente quando frente a um juiz de primeira instância de tribunal criminal, rodeado por uma cortina assustadoramente impenetrável de togas e becas negras, seja como réu ou como queixoso. “Dou início a esta sessão. Diga seu nome, morada e profissão, para que se identifique perante este Tribunal, da mui digna Comarca de Carregal do Sal. Reconhece o acusado na primeira cadeira, acusado de crime de parricídio perpetrado esta sexta-feira? Que tem a abonar em seu favor? Acha-o passível de ter praticado o crime ora em pendor? Cuidado com o perjúrio, os relapsos de rigor e falta de atenção; Fica já acomodado na masmorra da esquadra e sem direito a caução.” Eis a maldita hora em que termina meu doce torpor e me sinto como se me apartasse de algo de bom, sofrendo assim de uma espécie de ansiedade. Algo que me faz lembrar a agonia do primeiro dia de escola oficial. Mais tarde a úlcera nervosa contraída após o final do primeiro dia de trabalho e posteriormente, o nó górdio na garganta, ao atravessar os marciais portões ladeados por lúgubres guaritas, ao primeiro dia de serviço militar. Despoletaram-se então em todos esses momentos, forças ao meu redor as quais não consegui fazer inverter, deixando de ter poder de avocação. O meu futuro deixara de me pertencer.

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Felizmente não contemporizei com a guerra do ultramar, caso em que a angústia se multiplicaria caoticamente em termos geométricos tal como os lenços brancos da despedida, lá no tristemente célebre cais da Rocha. Adeus e até ao meu regresso, se ninguém se opuser e o destino o quiser… Que tivesse sido pelo menos no tempo das praças-fortes do Malabar, sempre poderia caçar as famosas galinhas autóctones, pescar com cana por entre os mangais e apanhar cocos trepando com as tarzânicas mãos aos coqueiros. Devorar jibóia às postas e macaco no espeto, sem respeito algum por éticas alimentares ou por ingestão de toxinas animais, (o vírus da imunodeficiência humana adquirida ainda estava longe de ser descoberto). De resto, esta era a única forma de sobreviver ao regime imposto nas cantinas do exército constituído essencialmente por feijão com gorgulho e arroz bichado. Além do mais sempre me seria dada a possibilidade de não viver confinado em lúgubres e insalubres aquartelamentos, rodeado de piolhosos musseques e de minas antipessoal em inóspito planalto central. Ou na foz do Cunene, envolto em nuvens de vorazes mosquitos, algures reduzido ao espaço de uma palhota situada na remota província do Tete. Bisar cerveja Cuca nas esplanadas da marginal? Camarão tigre de Moçambique comido à laia de tremoços? Praias desertas de areias brancas e de águas cálidas? Aias, criadas, governantas e amantes para congresso? O resfolegar de corpos transpirados seria encoberto pelo barulho estrepitoso do motor dos Fiat, o gorgolejar da cerveja pelo metralhar das G-3, o som surdo da mastigação pelo rodado enlameado das Berliet e o rebentar das ondas pelos escapes ruidosos dos Chaimites. Quereria fugir dali pra fora sem demora, não ter que esperar por levantamentos militares na metrópole ou por sublevações guerrilheiras na colónia.

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Meu sono não foi nada reparador, actividade cerebral em demasia originando a correspondente padecência física. Parece até fornalha de comboio a vapor com excesso de pressão, fazendo-me acordar com antecipação à hora prevista, para poder soltar o sopro de carvão antes que tudo expluda. - Ó meu maquinista-principal, a Matilde hoje tá cá com uma fome daquelas, parece a minha Maria a devorar rabanadas. - Cuidado com a pressão fogueiro, olhe que as válvulas estão no máximo. A diferença entre a sua Maria com as rabanadas e a Matilde com o carvão de coque, é que a sua quando dá um traque mete-o fora da cama; a Matilde se der um, põe-nos fora de órbita. Deixa-me primeiro descerrar devagarinho uma das pálpebras, abrir esta portada veneziana emperrada por acção de perfluxo vitrificado vindo com milhares de somníferos pestanejares. Reviver de novo para enfrentar uma vida de obrigações quotidianas aprumadas em fila, como se fosse pelotão perfilado a toque de cornetim. Uma portada, duas portadas, gelosias abertas em par. Quarto estrategicamente obscuro para que a claridade do dia não perturbe ainda mais o modo sempre brusco de despertar, mas com luz débil o suficiente para reconhecer os difusos perfis do mobiliário. Um primeiro bocejo e sinto o palato oxidado e seco por força do turbilhonamento do ar expirado rico em dióxido de carbono, como se um fole automático se encarregasse de me manter vivo durante a noite. Um fole que me alimenta de respiração artificial e que impede, por graça dos seus movimentos cadenciados, que me fine por sufoco de uma súbita apneia das vias aéreas superiores. Uma espécie de emético, no fundo. Por falar em zaragatoas e já agora, em programas partidários: nada melhor como desencaroçador do que um programa eleitoral em véspera de eleições engolido à laia de sorvete. Bem recheado de promessas vãs e com 16


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cobertura de diminuição de impostos. Pena que ao final, nada mais reste que o pau onde tudo isso estava envolvido. Os eleitores sempre votam em regime de retroacção, vota-se consoante aquilo que os eleitos fizeram ou não fizeram. Deveria votar-se em termos de futuro, mas sabendo de antemão o pouco que irá ser feito e o muito que irá ser grosseiramente incumprido. Os resultados seriam dignos de ser comparados. Nada mais desolador do que assistir ao desbotar amarelecido dos cartazes e outdoors partidários espalhados pelas ruas das cidades, após o dia seguinte às eleições. Parecem ainda mais tristes no seu âmago de promessas vãs lançadas ao vento. E até as carantonhas dos líderes partidários parecem ter perdido o pouco viço obtido através de longas sessões de maquilhagem que devem dar cabo dos nervos ao melhor dos assessores de imagem contratados para o efeito. Encarquilhados por acção dos efeitos directos do sol, do vento e da chuva fazem com que os sorrisos alegres estampados anteriormente naquelas fauces se contorçam em esgares sinistros, e que os olhos se contraiam uns sobre os outros fazendo lembrar os cataráticos olhinhos que adornam as cabeças trapezoidais dos répteis. Novo bocejo, este de tédio absoluto. Ainda estou deitado e já penso em questionar - como se fosse um pobre carpinteiro dado a profunda meditação e questionamento dos mistérios do mundo - as injustiças da vida profana. Numa incrível experiência de desinência modificada, assisto-me, por entre a multidão divertida e ociosa, a desfilar com cruz às costas e com halo ornado de coroa de arame farpado. Ecoam verdascadas de couro nas costelas subnutridas por efeitos da dieta forçada a pão-e-água, as quais me impelem penosamente a subir tropeçando até ao cume do gólgota, aquele mons in terrae proeminens. Que sinistra e íngreme é esta ladeira do monte do calvário que me obrigam a subir de cruzeiro às costas. Agora já descobri o que querem dizer

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aquelas misteriosas iniciais pregadas no cruzeiro... INRI: Infra Necessitas Resurrectione Inmediata. “Toma lá nessa lombada mais uma chibatada, por quereres desestabilizar a nossa ordem jurídica e nossa postura civilizada. Que vil ousadia, onde foste receber tal sabedoria? Ainda não saíste da pobreza, e queres logo inventar uma artificial nobreza. Mas eu queria que não tivesses essa ganância, Que eu tudo faria para te encher de abundância. Tu assim o quiseste, apela agora a teu Mestre! Toma mais uma chibatada na espinha, para ele te ajudar a chegar acima.”

Estou alagado em pluma mantélica mesmo sem o prazer de ter entrado em erupção. Nem cone nem explosão, nem lava nem pomes de abrasão. Apenas um estremeção que indica serem horas de terminar com esta reflexão. Melhor sair da cama de vez antes que me ateie a mim mesmo, fruto das correntes de convexão.

Vou ter que me desenlaçar da côdea macia da roupa da cama e expor o corpo ao exterior. Este o verdadeiro e último acto de contrição antes de enfrentar o mundo de agror. Algumas dorzinhas musculares espraiam-se fluindo ao longo dos centímetros de meu corpo até chegarem ao final dos dedos dos pés, onde refluem. Sinal que os músculos até aí em letárgico repouso estão acusando aquilo que os sinais nervosos lhes emitem através 18


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do cérebro. Desprendem-se ondas de calor corporal ao levantar a palha do ninho onde eu-dentro-de-bolsa-marsupial me aninei. Um agregado de vapores condensados de inconfundível odor de corpo em estado vegetativo assola-me as narinas. Acho que tudo isto se deveria poder engarrafar para mais tarde recordar, quando os odores fermentados pelo corpo já sejam considerados bafientos e causem repulsa a terceiros. “Deixe-se ficar maneiro e ponha as pernas dentro do alguidar, para eu me despachar que ainda tenho uns quantos que aviar. Raios do velho, se não fossem depois verificar, pelas câmaras dissimuladas ali no canto a gravar, aqui a tia, dava-te uma coça daquelas com o vasculho da pia. Que porcaria de trabalho este eu havia de arranjar, mais valia ter ficado lá na terra e galinhas depenar.” Acho mesmo que todos deveriam ter acesso ao seu próprio cheiro envasado ou engarrafado, tal como os animais dispõem para se reconhecer ou acasalar, e não um mero acessório de maquilhagem ou uma qualquer loção. Obviamente alguns mais criativos depressa encontrariam forma de o melhorar ou de o adulterar, e desse modo o poderem comercializar. Isto até que algum secretário-adjunto do ministro da saúde mais consciente do seu cargo ou forçado por lobby formado pela indústria dos perfumes, não antecipasse através de portaria: “Se o produto comercializado apresenta realmente os conteúdos que publicita, o resultado da sua utilização será prejudicial à saúde. Como tal, proíba-se. Se o produto não apresenta os conteúdos que publicita, tratarse-á de um logro. Como tal, proíba-se.”

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Prosaica maneira de legislar, tão terra-a-terra, deve ter sido assim deste modo bem telúrico que eu me devo ter sentido quando igualmente me arrancaram ao nono mês, mais dia, menos dia, de aconchego no ventre materno. “Tá-se tão bem aqui, que bem que sabe este ambiente aconchegante, de arrebatador e estonteante morno liquido amniótico. Tomara que me deixem ficar até ao final do período de gestação, e não me arranquem pela janela, devido a má reacção, a qualquer agente antibiótico. A única coisa que me irrita é esta tripa aqui pendurada, enrola-se-me à pescoçada, garroteando-me e fazendo com que se me tolhe os movimentos. E, tanta mão estranha acariciando a pele por cima de mim, vamos a ver se se satisfazem acamando a barriga, sim, e que nenhuma delas me faça alguns encantamentos. Já sinto a luz exterior que me atordoa, uma mão que me envolve a cabeça como uma coroa, e sinto uma estranha manápula que me agarra. Está visto que vou nascer e que com um palmadão no rabo, apanhado pelos pés como se fosse uma rama de nabo, vou assobiar em breve um canto de cigarra.”

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Período gestacional correcto sim, porque naquela altura não havia tanto prematuro como agora há, dizem que por causa dos ultra-sons, raios-x tirados a torto e a direito, das micro-ondas dos fornos, das ondas emitidas das rádios e televisões, da automedicação, das vacinas e até da qualidade da água. Naqueles tempos ainda era só e apenas a biologia que interferia no processo, daí se nascer com tempo e peso certos. Esperneando agarrado pelas pernas como cria de cabrito, braços nutridos de parteira dando chapadonas no tenro rabiosque para activar a respiração e, já está! Mais um acabadinho de entrar no nosso maravilhoso mundo para o qual contribuíram óvulo, espermatozóide e acaso. Acaso e libertinagem com descaso, filhos da mãe. Afirmo isto convictamente porque nada nem ninguém me solicitou de véspera se eu queria a este mundo pertencer. “Senhor doutor, antes de o tirar pra fora do ventre pergunte-lhe se ele deseja adquirir personalidade jurídica ou não. Já sabe, um pontapé para sim e dois para não. Não quero que mais tarde ele me dê com esse esquecimento em cara.” E sim, eu podia não ser eu. Podia ter dado origem a outro ser diametralmente oposto. Mais bonito/feio, mais gordo/magro, alto/baixo. Enfim, uma pouca-vergonha de possibilidades sem conta. Nasci nado-vivo, mas podia ter nascido nado-morto. Cessante causa, tollitur effectus. Pelo menos nasci com tudo no devido lugar e em número certo. Sei lá, no meio de tantas incógnitas o que é que podia ter sido fermentado. Vir ao mundo com outro pendurado a mim, uma réplica de indesejado siamês em regime de comensalismo, engordando às minhas custas que nem garçaboieira alimentando-se de carrapato, o parasita. Ou pior ainda que, num tétrico jogo de probabilidades mais que prováveis, apresentar espinha bífida, hidrocefalia, retardamento mental, fenda palatina… Lá diriam os

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médicos pediatras da caixa de previdência da não-sei-quantas e das empresas associadas, olhando para o que estava depositado em cima da marquesa no espartano gabinete do posto-médico (envolto em cheiro a sulfamidas, éter e amoníaco): “Humm, hmmm, complicado, de momento o que há a fazer será criar condições para que o jovem alevim usufrua do melhor que se lhe possa ofertar em termos de conforto familiar. Infelizmente, com os conhecimentos médicos actuais, não lhe podemos mitigar o sofrimento; esperemos por novos desenvolvimentos, lá fora estão sempre a descobrir novas coisas. Tenham fé e voltem cá daqui a um ano.” Talvez até tivesse sido minha fortuna ter nascido com alguma espécie de defeito congénito que possibilitasse minha entrada directa no Guiness. Desse modo ser-me-ia atribuída uma lauda maquia por direitos publicitários podendo ainda fazer umas horinhas extras me exibindo em talk-shows, circos ou feiras de monstruosidades. “Vinde espectadores! observem por apenas um níquel o homem mais horripilante jamais visto. Paguem uns trocados e ponhamse na pele da coisa mais espantosamente mal-formada de sempre. Desembolsem uns cobres para sentirem o bafo mefistofélico de tão aberrante ser. Meninos! não toquem no pirilau da criatura, ele detesta isso. Ou ter desenvolvido, posteriormente, qualquer capacidade que me permitisse diferenciar dos restantes mortais a qual me outorgasse respeito, fama e proveito. Talvez comer terra de cemitério como se atacado de febril desejo de geofagismo, ser imune à radioactividade como as sinantrópicas baratas, beber ácido muriático como se não passasse de inofensivo óleo de fígado de bacalhau, devorar repulsivos vermes, subtrair-me de armadilhas,

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de correntes e de caixões selados, bem no fundo do rio e à saída da cloaca maior. “O homem não vem à superfície, nenhum humano pode suportar, já se passaram quase cinco minutos, o tempo máximo sem respirar. Os paramédicos à espreita estão, não se sabe se, mergulhando, um cadáver encontrarão. Foi a chave da fechadura trocada, a mão que, trôpega, deixou cair a gazua na enlameada? Terá ficado engasgado com a poluição? se o foi, decerto teve uma morte de aflição.” Já que não nasci em berço de ouro, potencial herdeiro de quinta brasonada, com cavalos e vinhedo DOC centenário, pelo menos isto que me safe: inteirinho e proporcionado.

Melhor levantar e dar início ao meu automatismo ambulatório para ir tratar da vidinha, de modo a não sofrer as devidas cominações expostas no tratado de relações humanas que é o código do trabalho, virtuoso e intrincado instrumento mais parecido com detalhado trabalho de ourives. Esse elaboradíssimo codex que espartilha os limites das relações entre patrão e trabalhador por conta de outrém e que faz as delícias de qualquer corporativista em regime de avença. 23


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O complicado que será tentar satisfazer as duas partes envolvidas, escutar os lamentos de uns e os queixumes de outros. Procurar esbater a arrogância de uma maré cheia formada por ondas de irados administradores espumando de raiva ao bater na condescendente rocha de mexilhónicos assalariados. Abespinham-se uns, dramatizam outros, agredindo-se verbalmente como se fossem uns gangsters de baixo coturno. Cedem aqui, logo procuram tirar proveito dali. Deste modo não há docente de pósgraduação em gestão de conflitos que aguente! Em termos figurativos, tudo isso se parece com uma papa de criança sendo desfeita a garfo, com toda atenção dada a medidas correctas, por modo que não fique nem muito líquida nem com muitos grumos. - Senhores do sindicato, que têm a dizer acerca do novo projecto-lei? - Hmmm, para nós está demasiado líquido, até se vê o fundo ao tacho, tacho que é o que vocês querem, os trabalhadores vão sofrer de inanição. - Senhores das confederações patronais? - Hmmm, para nós está demasiadamente grumoso, vamos ficar engasgados se engolirmos isto.”

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CAPÍTULO III Macacos hidráulicos

Felizmente é verão e o choque térmico não se faz sentir, mas custame o simples acto de colocar os pés no chão, sentir-me bípede e dar início à movimentação da carcaça. Cuidado com a gingadança no escuro... “Se desprevenidamente caio de costas no chão, e bato com a cervical na cama sem protecção, posso ficar a apodrecer, como seca rama, dentro do apartamento, até fenecer. Esperar que, por força do fedor, em algum momento, algum vizinho delator, em sublime cumprimento, se arrogue um telefonema fazer, e a força policial se faça irromper.” Pareço quase um trólei, subindo a encosta íngreme de uma montanha, tentando ganhar força extra a partir do cabo da catenária, extraindo milhões de kilovóltios da cablagem. Ou como anão tentando crescer por duvidosos métodos extensíveis. Que bom seria possuir corpo longitudinalmente anguiliforme, escorregaria cama abaixo e assim me arrastaria pelo caminho, recolhendo com minhas escamas as bolas de cotão e os pelos do cão.

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Ossatura, carniça e ligamentos, tudo soerguido, vá! Agora tenho que reaprender a andar em apenas uma rapidíssima e improvisada sessão de fisioterapia caseira. Primeiros passos titubeantes, pernas trémulas, ainda como efeito do narcótico potente que é o sono. Mãos tacteando no escuro procurando desviar do caminho obstáculos invisíveis. Semi-entrevado, revoluciono o ar à minha volta como se fosse um boneco de vudu trespassado por inúmeros e rombos alfinetes-de-ama, esganado na vertical por mão de ventríloquo ausente. Mecanismo de relógio biológico oscilante, pêndulos e ponteiros bailando sem nexo, como bússola subitamente enlouquecida por não encontrar o norte magnético. Em posição fetal, de defunto ou de fumador de ópio, o certo é que o corpo se adapta convictamente ao molde que se lhe oferece seja em que situação for, por mais desagradável ou incomodativa. A posição erecta obriga-me a distender as costas e as nádegas em movimento de concertina, esticando as rebarbativas escaras até estas estalarem. C´os diabos! Pareço um autómato inepto construído com circuitos integrados comprados algures no sudeste asiático, sem período de garantia nem atestado de proveniência. Ou bêbedo acabado de sair de mais uma crise de delirium tremens, ainda afastando com as mãos os últimos insectos gigantescos que teimosamente insistem em esvoaçar ao redor. Cuidado pra não dar nenhuma topada no pé da cama. Toma também redobrado cuidado para, na semipenumbra, não pisares o pobre do cão, pardo como é torna-se invisível, diluído nas sombras do quarto. “Será que é ele ali? Não, é a sombra da ventoinha. Ali? Também não, é o volume do lençol caído no chão. Acolá? Também não me parece. Bom, deve estar algures no corredor, esparramado no fresco chão de mosaico como leão deitado sob a sombra de uma acácia, no pino do verão austral.” Pé ante pé, se o pisar que seja na pontinha da cauda, para isso concentrando meu peso no eixo da gravidade como bailarina em pontas, em 26


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que a superfície de toque com o chão é reduzida ao máximo. As costas direitas e o rabo fechado como se tivesse lá uma moeda presa. Esse moedeiro com as badanas bem cerradas! “Trés bien.” Sortudo, ainda dorme tranquilamente alheio ao início de minhas movimentações, com base naquilo a que se chama selecção natural das espécies. O cão não evoluiu fisiologicamente porque não estabeleceu necessidades a nível social que o obrigam a cumprir horários artificiais. Imagino o boby agora envergando sobrecasaca e atendendo o telefone para mim: “Au, donino bem já… au, donino quido, ua minina pa ti, au.” Ou a comer de faca e garfo, com babete atado ao pescoço e com as patinhas já adaptadas devidamente a tal manipulação. “Enchi cop di ceveja pó tu minino donino quido, tê muta sedi.” Mutação genética essa que se poderia equiparar à libertação da mão nos humanos, ou ao polegar sobressaliente nos primatas. A destreza da mão, condição sine qua non para quem se preze, de poder evoluir cerebral e fisicamente para um patamar superior na escala da evolução. A revolução da libertação do dedo que, segundo os especialistas, fez com que o homem saísse da copa das árvores para o perigo exposto do solo e começasse a utilizar ferramentas, tornando-se com esse expediente capaz de descer pró meio do capim e ferroar uma valente bordoada no primeiro quadrúpede que passasse. Acho que deveria ter pensado em ser croupier ou cirurgião plástico, as mãos foram feitas para mexer com dinheiro ou com mamas. De qualquer modo, ambos são sinónimos de sucesso. Mas o meu bobby não tem essa capacidade e como tal pode continuar a dormitar placidamente enquanto eu entro na espiral da rotina repetitiva. A mim ninguém encherá a malga de comida gratuitamente. Não se fartam de apregoar os economistas de serviço às estações de televisão que não existem almoços grátis? Esta mensagem em cifra apenas quer dizer aos magotes de gente anónima que devem ir trabalhar sem resmungar, caso

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contrário não vai haver sopa pra ninguém. E que esqueçam essa historieta com laivos de marxismo requentado, propalada pelos sindicalistas mais ortodoxos, de luta por salários dignificantes. É o que há e não tosse! A economia do país - eternamente em crise - não o permite. Boa, já saiu o primeiro sofisma político-decadente e ainda nem entrei na banheira. Cuidado, ao entrares, para no tapete antideslizante, não escorregares. Cuidado para ao saíres, um trambolhão evitares. Primeiro que tudo xixi. Minha masculinidade certificada in loco e em primeira mão... Esperar que sua excelência tome as devidas e correctas proporções de modo a poder executar o serviço. Segundos eternos que se aproveitam para percorrer paredes e tectos a jeito de inspecção minuciosa às disposições arquitectónicas suportadas pelas mestras, não vá ter acontecido algo de invulgar durante a noite... O característico som de água expelida através de agulheta faz terminar o exame de engenharia de estruturas. É a olhar para a virtude do fiozinho que corre a partir de nossa válvula purgatória que sabemos se o nosso interior continua a funcionar devidamente ou não. (E se necessitamos de proceder, com urgência, a um exame de palpação...) “A única vez em que desejei perder a minha virilidade, foi quando, com espanto significativo, vi a sair de dentro de minha glande, sem grande ambiguidade, bolas de ureia de tamanho inimaginativo. Nem pensar em coisas de prazer numa altura dessas. Apenas queria terminar com meu sofrimento, e daquilo me livrar às pressas. Tudo cortado de uma vez, desde a raiz ao pensamento.” Cor, cheiro e intensidade do jacto parecem O.K. Pedra no rim não devo ter ainda, pelo menos ainda não desceu de modo a entupir a estreita via de acesso ao exterior. A minha Calçada de Carriche ainda consegue 28


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algo que a sua homóloga asfaltada não - fazer escoar o tráfego úrico sem grandes tropeções, e sem “pára-arranca” algo que transposto para esta realidade urológica se traduz por agulha de cateter abrindo caminho pela via calcinada abaixo. Que coisa: imagino a algália a penetrar fundo, percorrendo hesitante mas decididamente, minha uretra até atingir o odre de líquido excrementício. “Vá, não resista que é bem pior. Relaxe o corpo e os membros... todos eles de preferência.” Várias sacudidelas infindáveis de prepúcio, num sem fim irritante fazem lembrar o parafuso de Arquimedes, tentando drenar até à profundidade extrema o lençol de água do subsolo de área pantanosa. Agora sei porque é que alguns decidem ser circuncidados; com a idade as gotas tendem a se acumular irritantemente nas dobrinhas de pele, parece que fica sempre uma gotinha residual para ser expelida. Ao final é a auréola amarelo-encardido despontando, na urdidura do tecido, a nos demonstrar o quanto a nossa dúvida tinha de veracidade. Por falar nisso, é verdadeiramente uma pena não sermos translúcidos para podermos observar todas nossas vísceras e órgãos a trabalhar em sintonia. Seria um prazer poder assistir ao desenrolar de todo o processo a que se chama digestão, como se comêssemos papa radiológica todos os dias.

Água quente brotando em torrente, aaah! Isso; ainda faz apetecer mais voltar para a cama. Estou a pensar verdadeiramente voltar para o macio leito e tentar através de sufoco do pensamento terminar com todas estas agruras que me infestam como incomodativo enxame de moscas do mijo, esvoaçando ao redor dos mictórios públicos. Agora não, já não tens volte-face, atingiste o ponto do não retorno, voltar pra cama agora seria o

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mesmo que voltar atrás em dia de matrimónio, deixando os convidados famintos entregues ao dilema de iniciar o copo d´água mesmo sem noivos, ou irem embora de barriga vazia. Bom, talvez aliciassem a destroçada noiva através de largos e cheios copázios de bebida narcótica a comemorar mesmo in absentia sponsu... Zzz, zzz. Água fria também não que a esta hora não é compatível, faz lembrar a duradoura incompatibilidade entre carne e ferro. Ferreiro e forja, operador e guilhotina, aprendiz e quinadeira, incompatibilidade de princípios, meios e fins, eis a verdadeira essência desta logística dicotómica. Não quero perder mais tempo com estas comparativas estéreis, o que sei é que ainda não estou preparado para enfrentar a fase ascética de minha vida e, castigando o corpo em mortificação hipostática, atingir outras emoções mais metafísicas. Claustro, gruta, cave, prisão… claustro. A cobrinha que jaz adormecida e enrosquilhada na base daquela que outrora foi minha cauda, (hoje resumida ao insignificante cóccix), que se mantenha lá quieta! sua kundalini impaciente. Até que me converta a qualquer seita de escolhidos, vais ter que aguentar. Por ora, meu caduceu empertigado, ainda me satisfaz usufruir os bens materiais e mundanos. Muito embora, desde há muito, eu desejasse me tornar vegetariano e poder ingerir apenas comida limpa poupando deste modo a hecatombe de milhares de animais, todas as segundas-feiras. Sempre me preveniria deste modo singelo contra essa torrente de doenças que agora os animais nos tentam a jeito de vingança, nos pegar. Sabem lá vocês o que é sentir o cérebro ser esburacado até se parecer com um pedaço de corticite? Ou sentir os miolos como se fossem pedaços de torresmos soltos? Pergunte-se ao Creutzfeld e ao Jacob que nos expliquem de uma vez por todas essa história do espongiforme... Sabemos que os mais miseráveis e incognoscíveis dos animais, os mais imensamente pequenos e apenas discerníveis através de ampliada visão microscópica, são os que mais adoram tramar a raça humana. Percorrem o nosso corpo como macacos à 30


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solta pelas savanas africanas, galgando as árvores branquiais como se estas possuíssem lianas de vasos sanguíneos estendidas. Trespassam terreno vedado como se houvesse trampolins escondidos no mato do tecido adiposo para esse efeito. Roubam sangue e nutrientes como se fossem bananas penduradas por um cordel ao dispor do freguês. Felizmente temos um exército secreto para os combater que será inoculado através de seringa e pistão, ou de drageia milagrosamente comprimida envolta em sacarose (que se encarregarão igualmente de, em doses cavalares, sorver as magras reformas dos pobres pensionistas, a título de prémio por fastígio). Nada portanto residente no prontuário das doenças catalogadas que se compare aos ataques mortais de um vírus, de um prião ou de uma bactéria. Deixemos pois em paz os tubarões brancos, os elefantes africanos e os crocodilos de água salgada. Melhor misturar quente com fria. Até tem uma coisa que se chama, para esse efeito, misturadora. Isso, essa peça cromada em forma de bico de ornitorrinco que sai, prolapsa, de dentro da parede, pá!!. Pontinha do dedo improvisada como termómetro – fugaz - acusa temperatura tépida. Contacto corporal com o meio líquido realizado, o qual, por força das naturezas antagónicas, produz efeito relaxante. Marte incorpora-se em Vénus, fogo dilui-se na água, Áries envolve-se com a constelação de Peixes... Cantarolar no banho qual quê? Nem minhas cordas vocais estão ainda preparadas para entoar a carmina burana em decibélico vozeirão, como nem encontro assim tanta alegria contida para libertar. Melhor começar a fazer contas mentais aos dias que faltam para receber. “Ora, x dias, vezes y ao dia, menos z prestações...”. Isso também não... entro já em estado maníaco-depressivo. Vou antes fechar os olhos e tentar suspender a respiração, como li faz uns tempos algures, numa dessas obras que nos ensinam a curar através do poder da mente. Ou numa daquelas revistas, recauchutadas à imagem da eterna Maria - essa verdadeira instituição

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nacional - e que nos ensinam a nos livrarmos da acne juvenil, da casca de laranja nas coxas celulíticas e do cancro nos ossos através de receitas caseiras e que, por motivos que escapam ao comum dos mortais, se transformam em verdadeiros best-sellers de vendas. Não sei se existirão motivos lógicos, antropológicos ou culturais que expliquem tal fenómeno mas sei que, desafiando a lógica do mercado e o ciclo de vida do produto, ei-las semanal ou quinzenalmente a aparecer religiosamente nas bancas digladiando-se para serem a número um do ranking de vendas das edições de imprensa especializada. “… a modo de matéria fecal expelida por outro modo que não o usual. Clister opaco cerebral, recebido através de doutrina radical ou de bula pontifical.” Por Ratzinger! Que se atice uma matilha maltratada de cães de ciganos às pobres Marias! Que uma infelicidade corrija outra, tal como dor de dentes se cura com uma cefaleia e uma cefaleia se cura com uma entorse cervical e uma entorse cervical com uma quadriplegia. “Minha mais deslumbrante experiência médico-cirúrgica por excelência, deveu-se à necessidade de extrair da sola do pé um pedaço de vidro que formava uma saliência. Era quase do tamanho de um gargalo de garrafa, mais parecia uma excrescência. Felizmente lembrei-me então, de espetar os dedos na tomada eléctrica e, por força desse mal, por electrocussão, olvidar a dor original.” Rimou que nem uma beleza!

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Vou tentar limpar estes últimos pecadilhos e experimentar antes iniciar uma sessão de ioga debaixo do chuveiro. Sempre me admirei da força de vontade necessária para tais actividades metafísicas bem como da destreza do esqueleto para com aquelas posições de contorcionistas que os tipos fazem. É preciso muito penar e esforço praticar, de modo da mediocridade se poder escapar. Já estou até visualizando o monge tibetano entoando mantras e a levar com a cachoeira de água gelada pelas costas, no sopé dos himalaias onde até o verão é uma antecâmara do inverno. Morro de inveja de tal guru suportando com estoicismo a dura provação exigida pelo rito iniciático até atingir o estado de yogi. “Namasté yor riguró na´much.” Esses sim são de louvar em sua busca pela perfeição da alma, os gurus da economia são, contrariamente, reprováveis. Desde o tempo do avô Smith, apenas procuram a ascese em termos macroeconómicos. E desgraçadamente nunca a atingem, mesmo quando afirmam o contrário, como malogradamente se tem vindo a descobrir para azar das optimistas projecções governamentais. Ele é cá um malabarismo de sobe e desce nos quadros dos indicadores económicos que até o melhor dos prestidigitadores ficaria boquiaberto. “E agora mesdammes et messieurs, um coelho cego a partir dos índices de consumo privado; uma pomba estropiada nascida dos dados do ICEP; uma doninha negra espontaneamente gerada dos números do IEFP.” Um dos erros que não se podem cometer é o de incentivar o consumo por produtos produzidos exclusivamente no país, isso fará com que todos os países o façam, estagnando a trocas comercias a curto prazo e afectando todas as nações. Então por que razão a AEP anda a publicitar exactamente o contrário, estampado nos sacos de supermercado? Ao contrário das ideias ou correntes filosóficas de valor extrínseco as económicas podem sair-nos bem caro a todos. Já nos tornámos há muito

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meras cobaias de laboratório em que alguns fulanos exercem o controlo total doseando a seu bel-prazer as fórmulas matemáticas que se revelam difíceis de traduzir em termos humanos, bem mais arriscadas e incomprovadas do que aquilo que suspeitamos. Chamam-lhes com ironia leis vivas do mercado às quais estamos todos vinculados e temos que obedecer, mas são ao final a submissão à ditadura dos números, das cifras e dos cifrões. Contrariando o pretendido, a economia não é nenhuma ciência exacta, usa sim em seu proveito as ditas ciências formais a título de subsidiárias e, através de plágio, reveste-se de uma aura científica. Que raio de método cientifico esse, o de usar o mundo como laboratório e fazer de cobaias todos nós. No entanto, estas tentativas de matematizar a economia produzem mais variáveis que constantes e surgem nos relatórios dos centros de monitorização de estudos sociais como notas ambíguas e periféricas (a única coisa que os seres humanos são realmente bons é a tolerar ambiguidades), são, dizem-nos, custos marginais, e todos sabemos quais os verdadeiros custos e de que forma são contabilizados, tanto como teorias inventivas quer como em acção real sobre os destinatários.

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CAPÍTULO IV Estratégia

Cedo demais para este tipo de considerandos. Já a pensar na economia, ainda nem Wall Street abriu as portas a esta hora. Deixa repousar mais umas horinhas o Dow esse farol da finança, dos mercados de futuros e das commodities que alumia o planeta e sobre ele jorra seu manancial de dólares bem como o cortejo de misérias. A metáfora do miserável cortejo lembra impudicamente o desfilar da carreta dos mortos causados pela pestífera pandemia da alta idade média. Só que nesses tempos o mal vinha do oriente e agora vem do ocidente. A ratazana preta, o pulguento ratus norvégicus, foi substituído pelo sub-prime e pelos lixos financeiros tóxicos. Aliás, a análise de toxicidade parece que vai ser uma das funções entregues aos técnicos de actuariado os quais irão receber formação específica em riscos biológicos. No fundo, aquilo para que de inicio foi criada tão concupiscente ciência – a mortalidade das populações. Pelo caminho que as coisas levam, transformando-se as agências bancárias em surtos epidemiológicos, qualquer dia tem que se começar a envergar equipamento de protecção NBQ quando se entrar num banco. “Quero depositar cinquenta morabitinos na minha conta à ordem, se faz favor.” Dito através do bocal da máscara em tom de voz metálico.

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“Fav-oor assi-naar een baixx.” Responderá o caixa através da sua, hiper-oxidada. Melhor esquecer este anátema e tratar de moi. E de barriga vazia ainda por cima. Sabe-se que fazer compras com a barriga vazia nos torna consumidores ainda mais compulsivos. Tal como a patológica cleptomania já há muito identificada e catalogada, igualmente se deveria atribuir um nome a esta disfunção comportamental. O mesmo se deve interpretar acerca dos cálculos de cariz economicista, esses mandamentos que se regem apenas e unicamente pela divina propriedade associativa da adição. Ah, se pelo menos conseguisse ficar quatro segundos que fosse sem pensar em nada. Há quem afirme que atingido esse tempo se consegue entrar em êxtase. … 1 …2 ... 1; de novo… Impossível! O caraças do cérebro não consegue ficar sem pensar seja no que for. Foge-me constantemente para pensamentos que eu não controlo. E será mesmo possível tal coisa, ficar sem pensar em nada? Sensação de escritor autodidacta a olhar, decepcionado, para o branco da folha de papel quando nada lhe surge para escrever… Ou de contribuinte forçado a pagar a chamada contribuição para o áudio-visual, em portaria dissimulada entre os consumos a vazio e os fora de vazio na conta da luz, assistindo mudo de estupefacção ao tele-lixo diário das estações por si taxativamente subvencionadas. “Mas é isto que eles chamam de televisão? Só programas da treta cheios de publicidade sublimada em cada frase proferida por esses apresentadores meio invertidos. Já que tenho que pagar para assistir a esta bosta, preferia mil vezes que passassem o vídeo daquele fulano a sacar a bola zero do totoloto. Isso sim, foi um must da tv nacional. Ou o outro em

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mesa redonda, reunido com a nata dos cientistas comentando sobre o extraterrestre autopsiado. Isso era televisão!” De qualquer modo que ganharia eu em entrar em êxtase? Ainda se conseguisse por qualquer meio levitar, ou melhor, desaparecer por completo, com todos meus pertences tilintando na algibeira das calças e, materializar-me depois, inteirinho, no trabalho. Puff! Aí estaria eu pronto para picar o cartão a horas decentes. Mas, nem um simples esboceto fracamente modelado de holograma consigo projectar, por muito que minhas parcas capacidades mediúnicas o desejem. Filmes como “Guerra das Estrelas” são os culpados por fazerem perdurar, durante décadas, estas cenas de ficção-científica na minha memória de modo imorredouro. No fundo já todas as personagens da saga estão presentes no meio de nós, desde sapientes estetas de espadas cintilantes, aos bichos felpudos envergando cinturões, aos anões emitindo guinchos e aos robots falantes. É só fazer uma extrapolação, em conjunto com um dedo de imaginação e eis o quadro pintado bem em frente dos nossos vinte-e-um-seculares olhos: ou seja, líderes mundiais bafejados pela capacidade de premonição, talibans barbudos carregando mísseis terra-ar, crianças prodígio afectadas pelo autismo e máquinas, fruto da investigação em Inteligência Artificial, executando tarefas humanas. Melhor é saltar do banho pra fora, creio que o essencial da lavagem foi realizada e não estou propriamente dentro de um elefante azul franchisado, em que a pré-lavagem dá lugar ao banho de espuma e depois ainda ao banho final com cera protectora. E ainda falta todo o restante ritual de embelezamento a olhar para a imagem invertida no espelho… “Ai meu senhor e dono legitimo proprietário, que do refugo do Ikea trouxeste, este teu servil refractário, contra vários e insignes pareceres, não duvido dizer que sois o mais belo de todos os seres,

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tenho a certeza de meu saber multitudinário, e assim o proclamo em decreto de direito consuetudinário.” Secado por toalha como se estivesse puxando lustro (roçegar bem as costas e rabo), isto numa ânsia próxima da paranóia de modo a fazer com que os pontos negros venham à tona onde melhor se poderá vê-los, (e onde será mais fácil - a alguma solícita candidata dedicada - espremê-los)! Cuidado para não esquecer secar bem nas virilhas e no meio dos dedos dos pés, os fungos adoram esse ambiente como coelho adora se reproduzir. (Por momentos sinto-me como se fosse um caçapo perseguido em pleno giestal, correndo que nem louco, acuado por cães e por montaria, imaginando que em breve terminarei produzindo, dentro de panelão de ferro, uma farta cocção a qual, depois de amigavelmente repartida, todos eles comerão). ”Olho que não vê, carne que não sente…”

Lavado nas partes inferiores, passemos ao topo. Barba. Que treta nascidiça havia de crescer agarrada à cara. Só mesmo para complicar é que alguém se lembra de encher de pêlos a fronha de um gajo. As mulheres pelo menos depilam-se nas vésperas de encontros amorosos - pelo menos as que não têm buço - ou então quando têm que mostrar as pernas em público sem meias que as camuflem. Agora um tipo não tem camuflagem para espetar na cara. Só se espetasse com uma burka pela cabeça abaixo, idealizo o que seria o simples acto de tomar pequeno-almoço na pastelaria... - Meia torrada e um galão, s.f.f. - O senhor prefere que lhe traga uma palhinha? - Não obrigado, eu levanto os estores.

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Todos os dias deveriam ser de carnaval. Uma caraça bem sorridente sempre cumpriria essa função, a de camuflar, e ao mesmo tempo poderíamos escolher uma, mesmo que com sorriso imbecil, que se adaptasse, na perfeição, aos centímetros quadrados da área do rosto. Embora espumássemos de raiva por baixo da máscara, pelo menos nosso interlocutor receberia sempre um sorriso de personagem disney a ele dirigido. Imagine-se a situação no guichet da repartição de finanças: - Tome a sua guia para proceder à liquidação do pagamento especial por conta. - Obrigado seu… seu… pateta. - De nada, seu pato! Vou ter de novo que desfazer esta arbustagem mal crescida que faz lembrar ervas daninhas despontando por entre a relva no parque público que, embora seja arduamente composto, nunca se consegue complanar. E se crescem todos os dias, os sacaninhas. Bem os sinto quando passo com os dedos de modo a certificar-me, tal como qualquer inspector do S.E.F. faz ao passaporte de um imigrante oriundo de país terceiro: - Onde tem o visto? - Mas… estamos isentos... Schengen. - Chega? Eu é que sei se chega ou não. Perscruto e descubro. Há ali, no quadrante inferior direito, entre o começo da dobra da orelha e o final das belfas, uma espécie de canteiro que insiste em não ser desbastado. Sou compelido a retroceder várias vezes com o instrumento de ceifa, esta foice rectificadora produto da tecnologia do bem-estar. Obrigado a passar pelo menos três vezes no mesmo sítio – algo a que nenhum jardineiro camarário se obriga… Não me estou a ver a afiar a lâmina todos os dias, na cinta de couro, tentando encontrar o ponto óptimo em que o fio da navalha se transforma

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em gadanha. Fazer deslizar a fria lâmina pelo pescoço tentando evitar as borbulhas como se fosse aspirante à carta de condução evitando os pinos no circuito de exame prático. Pena não viver e trabalhar no campo. Qual o mal de ir cavar batatas de barba por desfazer, ou de ir ao café do Jaquim matabichar despenteado, ou mais tarde ir ao lugar da dona Ana comprar toicinho a cheirar mal do sovaco? Ou ainda ir à noitinha à taberna do Tijoão emborcar umas “mines” e coçar, frente-a-frente à restante pandilha, os fundilhos das calças ou a micótica colhoada. - Ó Zé, vais ó jogo ó nau? Pára com essa coisa de tocar guitarra com as partes. - Péra aí pá, tenho aqui uma coceira nos tomates que parece que estão em fogo. - Atão, mas tu tás a coçar o rabo também. - Pois é, parece que esta merda se está a espalhar, deve ser do carago do bicho do restolho, tenho que espalhar pó de piretro quando chegar a casa.” Mas não vivo no campo, esse repositório da alma lusitana, esse retornar às origens profundas da nacionalidade em que tudo estava no sítio certo e onde deveria ter ficado, congelado no tempo. Recolectores profundos, aproveitadores do que a mãe-terra dava e do que a natureza muitas vezes resgatava. O azul monárquico imperava pelas paredes caiadas, os servos eram humildes e sem consciência de classe, temerosos a Deus no alto e a seus representantes cá em baixo, simples rendeiros subservientes nas terras de seus avós. Terras as quais eram fonte de seu sustento e de sua vassalagem. Sustento em nabos e lutas com ardor, vassalagem aos cabos e sujeição ao feitor. Parece que hoje o tempo está mau pra cavar batatas. Pela mirada que dei de soslaio à janela pareceu-me ver bátegas, gotas obesas de água a escorrer pelas vidraças. Aproveitar para matar saudades de água destilada a 40


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cair do alto. E já agora para ver se a área ardida este ano será menor do que o costume por força das condicionantes climatéricas. Bem, também já não deve restar muito para arder, qualquer ano só restará mato rasteiro e árvores de fruto dentro dos quintais. O infindável alisar da peruca natural, ainda felizmente sem cãs e sem entradas demasiadamente pronunciadas. Reconheço, agradecido e de novo, ao património genético. Filosoficamente falando estamos perante um dilema socrático, pura maiêutica. Por falar em cabelo, está na hora de pensar em fazer uma visita ao salão do barbeiro e assistir abismado e perplexo, àquele ritual de ver fazer passar repetidamente pela concha da mão aberta, a lâmina com que me irá rapar o pêlo do pescoço. Deduzo ser o equivalente ao ritual do junkie que, após ter esterilizado a ponta da agulha com que irá enviar a mortífera droga veia abaixo, passa a lâmina pela boca fazendo com que todos os germens lá fiquem agarrados, como bolinhas de esferovite se agarram a um dedo pegajoso. Profilaxia do quê? Mas eu deveria mesmo era ser careca e poupar, através desse aparente handicap, preciosos minutos matinais. Não me parece; chegaram os meses em que fui obrigado a pente dois lá naquela coisa sem explicação chamada tropa. Sim, parecia que estávamos prontos para entrar em guerra a qualquer momento. Tal como os albaneses, tínhamos as praias juncadas de fortes, fortins e casamatas. Eles que viessem, fosse quem fosse! Orgulhosamente sós, mas bem barricados e tesos de roer. E tudo estava guarnecido com bom material de peças de Artilharia de Costa que desdenhavam desses mísseis teleguiados cheios de modernices. Nada como a boa e velha pontaria a olho. Agora, tantos anos volvidos, até condeno a insensata decisão de terminar com o serviço militar obrigatório, acho que até o deveriam estender a ambos (!) os sexos e por período não inferior a quatro anos. A delinquência juvenil cairia a pique sob o verdugo do sistema penal e

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correccional militar. As ruas ficariam mais limpas, o desemprego sofreria uma descida como nunca antes se assistiu, o ruído nocturno das discotecas e bares baixaria para volumes suportáveis, o consumo desregrado de álcool e de drogas seria melhor controlado, bem como o excesso de testosterona sem necessidade de proceder a vasectomias. E, fruto da disciplina férrea dos quartéis, as mancebas não engravidariam tão cedo nem em tão fortuitas condições. E uso não faltaria para toda esta mancebada aquartelada e respectivas patentes que não fazem nada. Seriam considerados pela primeira vez como tecido produtivo da nação. Esta, contra muito boa ideia em contrário, minha forte convicção.

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CAPÍTULO V Café e Shampoo

Melhor esquecer e preparar o café para poder fumar sem ser em jejum, como se fosse tirar sangue para análise. Excesso de glicemia no sangue, emitiria insensível a máquina em tirinha de papel, para meu aborrecimento e posterior sofrimento. Yogurte? Ná... fico com o café apenas. Café simples já dá aquela sensação de barriga cheia e serve igualmente pra matar o bicho, despejando-lhe o líquido quente por cima como caldeirão de azeite fervente sobre tropa invasora. Atenção para não deixar cair nada ao chão nem partir copos ou outros objectos de vidro. Começo de mau augúrio logo pela manhã, ter que andar dobrado a apanhar os múltiplos cacos, um a um. Levantar-me cheio de bicos-de-papagaio para ao final ter que me curvar de novo, e de novo, e de novo, guinchando insistentemente, como se a mola helicoidal padecesse de síndrome de esforço recidivante. Cigarro aceso largando miríades de faísquinhas sobre a toalha de mesa. Poupa a coberta de linho, pode ser que ainda sirva para receber visita importante. Ministro não digo, é duvidoso, mas autarca em plena campanha eleitoral é possível. De preferência, um daqueles que têm por nome a sua onomástica cidade e que ficam perfeitos em seu esplendor, em sua aura política e grandeza humana. Sofredores por causa alheia e defensores de insignes desígnios, lutadores de justas temerárias por mão de pobres donzelas carentes de água corrente ou por direitos a serviços médicos

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básicos, a serviçais usurpados. Até à morte, já que o voto dos cidadãos lhes permite governar até ao final inscrito nas perpétuas calendas. Perpetuam-se no poder para poderem oferecer seus chatins serviços a toda uma classe social opaca que sem eles, apenas vegetaria em estado larvar como se não passassem de bandos de moscas do vinagre, sem guia e sem liderança. Pena não viver numa daquelas freguesias parecidas com cotos privados de caça em que até oferecem canetas, baralhos de cartas e electrodomésticos contra-voto. Isso sim, é democracia popular na verdadeira acepção da palavra. Nem os pobres norte-coreanos têm tal a seu alcance, esta espécie de tribalismo em formato ocidental, onde os chefes de aldeia e respectivos xamãs se eternizam no poder. Eles e seu nepotismo. Melhor começar a puxar fumaças sôfregas, pois com sorte pode ser que consiga fumar o cigarro até ao fim antes do esfíncter me transmitir, sensorialmente, aquela necessidade despudoradamente imperiosa. “Acumulação perigosa de gases detectada. Pressão nos manómetros assustadoramente superior a 2 bars, nível crítico prestes a ser atingido. Preparar para evacuar todo o pessoal. Em contagem decrescente… dez… nove….” Aí está! A típica reacção do organismo à substância estranha que, peristalticamente é revolteada tal como se estivesse no interior de uma máquina de lavar roupa, centrifugação máxima. Aflito; diz-se do apanhado com as calças na mão, contorcendo-se, desesperadamente procurando por lavabo, latrina, toilette, casa de banho, retrete, urinol ou sentina pública, onde, em paz consigo mesmo e com o à vontade oferecido pela íntima intimidade de uma porta fechada, pode dar azo, nesse recôndito cubículo, a uma actividade fisiológica comum a todo o mortal. Melhor não arriscar saindo para a rua sem obrar. E por minha sanidade mental, directamente dependente de meu bem-estar corporal, melhor fazer o serviço intramuros. Nas latrinas do mundo exterior somos 44


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ainda por cima obrigados a ler aqueles versículos sentinícos que junto com outras quadras, piadas de conteúdo duvidoso e graffitis mais ou menos explícitos - espalhados por todos esses dazibans - dão forma à dita cultura laica, popular e republicana. Eis o que se segue: boxers pretas, lavadinhas e cheirosas como se tivessem sido acabadas de comprar em loja da especialidade lá no famozérrimo Outlet em quinzena de super-desconto. Cortadas, moldadas e cozidas algures na já não tão detestável Indonésia. Mãos pequeninas as trataram com desvelo, para que os ocidentais as possam comprar e arrumar ao pêlo. Cuidado a ver se não estão rotas ou descosidas, se me der um quebranto e tiver um acidente quero estar devidamente composto em minha nudez mais profunda e, desse modo, imune a qualquer vergonha ou embaraço. Ser transportado de urgência para o hospital, libertado por mãos pouco cuidadosas de minhas vestes e ser surpreendido sem roupa interior é um de meus medos mais profundos. “Cueca, logo existo.”

Pé dentro da meia, escorregando, preguiçosamente, até ao paredão final imposto pela entretecida costura. O pé ainda não está pronto para ser embrulhado desse jeito, distendido durante a noite por efeito do relaxamento parece-se mais com um chouriço a ser enchido em tripa sintética. O sapato calçado num abraço entre o couro duro e frio apertando como torno manual meus pés-de-meia, tal como bancada de serralheiro estremecendo por dificuldade imberbe no manuseamento dos materiais e ferramentas. Eis o passo seguinte: a camisa a compor o conjunto religiosamente elaborado, como manequim de loja que se veste e despe consoante os artigos promocionais. Ao final do dia seguir-se-á o mesmo por

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rigorosíssima ordem inversa. Faz lembrar meretriz em sempiterno despe, veste, despe, veste… Tudo religiosamente preparado de véspera, não vá haver algum tremor de terra durante a noite e ser obrigado a fugir em pelota, tentando desesperadamente me lembrar onde raios ficaram penduradas as calças na noite anterior. Sair prá rua nú e assistir ao bloco de apartamentos a ruir, me preocupando todavia, no meio de tal desastre natural, com minha calamitosa situação particular, é de facto uma cena de animação. Falta agora a dentadura ser manualmente areada através de movimentos ritmados de cerdas já gastas. Não há cá tempo para esses fios dentais efeminados. Há sempre um preço a pagar tal como tudo na vida. Se mais tarde perder os dentes devido à erosão provocada na camada de esmalte, à piorreia que provoca gengivite, que provoca por sua vez que eles caiam como frutos maduros, já saberei a quem culpar: à falta de tempo pra fazer as coisas devida e organizadamente, pois claro! Se eu tivesse tido um vislumbre da manteia, do porvir, ou pelo menos tivesse seguido os conselhos transmitidos pelos primeiros agentes comerciais nacionais, já lá vão tantos e desperdiçados anos, hoje, decerto, conseguiria fazer rodopiar uma cadeira com meus dentes, coisa que evidentemente está para lá de minhas ortodônticas capacidades. Ter-me-ia poupado uns quantos incisivos, outros tantos molares e muita hora de anestesia. Agora já não dá para chorar por cima do leite derramado, ou melhor, no buraco aberto pelo dente arrancado. “Recordo aquela noite de aflição tal que me passou pela cabeça uma coisa nunca antes igual, com um pedaço de guita ou de barbante, atar o dente à maçaneta e bater com a porta até se acabar meu pranto.”

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Melhor passar ao lado deste silogismo de algibeira e começar a despachar-me. Convirá mesmo aligeirar os procedimentos standard de início matinal, não tardará e parecerei o coelho tresloucado da Alice. Cão à espreita, já adivinhou que vou sair. Agitado, pudera, vai ficar umas boas horas sózinho. Anda vá, rua. E depressa que está a chover. Sempre esta última obrigação para terminar o primeiro período do dia. Responsabilidade gratuita e a pedido, não há que lamentar. Tentar por baixo das varandas para molhar o menos possível. Piorou! As goteiras fazem cair fios grossos sobre minha cabeça. Parecem as gárgulas de NotreDame urinando para cima de um já de si pobre vieux clochard. Esta última foi cair bem em cima de mim depois de ter procedido à lavagem prévia da varanda por onde andou. Camisinha branca com este tempo não é... Paciência, já está, já está. O tempo vai levantar, isto é apenas uma chuvada que não sabe que está fora de tempo. Anda cá, ao pé de mim! Não vás para aí, tás mesmo a meter as patas dentro da poça. Xii. Olha pra isso, os soquetes peludos todos ensopados, as pantufinhas alvinegras todas a pingar água, logo ficarão feitas croquetes de areia já que a próxima etapa vai ser pisotear por cima daquele monte de detritos arenosos. Meia-volta e chega. Hoje tens que ficar por aqui. Não há tempo para solicitamente ficar à espera da cagada do rapazinho. Tens os jornais antigos em casa para qualquer outra aflição que te dê. Já que não os lês que lhes dês o merecido uso. “Pisident di Re… republi… afirm… ou… brrrrrrrrrrrrrrr, puff.” Ficou com as patas numa desgraça todas encharcadas, ao secarem dentro de casa depressa ficarão com aquele odor tão típico a maresia, a pantanal, a terra alagadiça, a lodo de sapal apodrecido pelo sol de Agosto. Bom, faz tudo parte do dia de trabalho. Lembrar que o champô dele está a acabar, ter que comprar mais.

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CAPÍTULO VI Y El Condor Pasa

Qual molha-parvos qual quê! Afinal até está a cair bem. E com trovoada a ribombar nas abóbadas do tecto de nuvens, à mistura com relâmpagos a iluminar os céus, nas alturas. “Ab initio Deo create terrae et mare, et cello… “ Depois, como não contente com a opus de abertura, criou o Homem... E deu cabo de tudo. Raios partam esta cerimónia de anunciação. Se este é logo o primeiro prato do dia veremos que me espera mais lá pelo final da manhã. Só espero que à hora da sagrada refeição o tempo me dê tréguas de modo a poder usufruir da comida de rancho servida na institucional cantina. Que meu desiderato seja possibilitado, ou apenas me restará optar pelos serviços disponibilizados por uma casa de esquina com comida servida a assalariado de baixos recursos. Casa de pasto de outros tempos desobediente - por norma - de regras de etiqueta e ignorante - por regra - de normas sobre a higiene na confecção de alimentos, com balcão de oleado, mesas de fórmica e requintado chão de serradura sepultado. Que local idílico este para devorar o prato que qualquer cozinheiro sem pretensões sabe cozinhar - bitoque com acompanhamento - decorado com o ovinho estrelado da praxe. Aqui, nesta minha chuvosa manhã de saída para o trabalho, um mau augúrio, presságio, prognóstico ou vaticínio toma conta de mim. O ovo decerto será substituído por uma cáustica caganita de pombo ou de gaivota 48


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temerosa de tempestade no mar. Neste último caso passaria antes a caganitão – por efeitos da envergadura da ave e do correspondente dejecto tamanhão. Nem imaginar ou porventura desejar que vivesse nos Andes, tás a ver o tamanho de uma bomba aérea feita de guano, assobiando do alto e emitida por um Condor? Se fosse andino decerto viveria numa cidade de tijolos de adobe chamada qualquer-coisa-caca e oraria de joelhos e às escondidas do cura da aldeia à deusa Orejona. Trabalharia o precioso oricalco em fundição alimentada a frio, comeria coração de inimigo derrotado em batalha de ébrios pela chincha, olharia as entranhas de animais à procura de sorte, fortuna e sortilégios e mascaria folhas de coca, esta já não tão às escondidas. Tentaria erigir templos assentes em pedra não argamassada, mas, perdidas que foram minhas capacidades herdadas de meus avitos, tudo ruiria vale abaixo. Ver-me-ia na obrigação de me tornar um simples e ordinário pedreiro na grande cidade, construindo para os ricos, mas vivendo no pardieiro. À noite, olharia o mapa do céu tentando descortinar mais para lá da Láctea. Acenderia fogos e lançaria ao céu, junto com as faúlhas crepitantes (e com o flogisto), minhas orações e meus mais profundos sentimentos de repungente repugnância. Mas é com o elemento líquido que tenho agora que lidar. Água do céu, água na boca, água que cai em cima de mim escorrendo para o telhado de águas furtadas formado pela ponta de meu nariz. O princípio da reconciliação dos opostos devidamente estendido em cima do meu telhado circular de quatro águas. O húmido da respectiva combinação química entre os dois elementos constituintes da fórmula em sua verdadeira natureza sensorial. Passa-me aí a balança de Arquimedes para pesar os dois átomos do hidro, se faz favor. Pesar a água; água pesada vertendo pela goteira da ponta do nariz... Melhor parar com estas bizarrias de palíndromas. Do que é que afinal me esqueci? Pois foi, o chapéu-de-chuva quedou inútil no esquecimento da

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cadeira. Ignora. Só o frete de atravessar de novo a estrada, voltar a procurar a chave no fundo da algibeira, tentar acertar à primeira no buraco da fechadura, abrir porta, nova porta abrir, passadas sujas no chão limpo, cão a pensar que já voltei do que tinha a fazer – e a ficar agitado e frustrado de novo por ter que permanecer mais uma vez sozinho. Nem pensar... Cabeça não pensa o corpo é que paga, como já afirmava há muito do alto de sua rítmica sabedoria o avariado do António. Também até parece mal vir logo de chapéu-de-chuva prá rua aos primeiros chuviscos, esticando o pescoço para o céu e maldizendo todos os santos em seu pendor, como se fosse alguma tia a quem os refastelados e dignos personagens santificados estragaram o penteado e o dia. “Ai, vou a casa buscar a minha sombrinha pra não estragar a permanente que tanto me custou arranjar, (e os olhos da cara também) lá no salão da Rita Vicente, e que me fica tão bem. Nem molhar minha saia-casaco novíssima em folha, que eu queria tanto estrear quando estivesse bom tempo. Porra! Que um comboio me colha, E que de preferência esteja em bom andamento. Nem fazer escorrer o rímel pelas dobras dos pés-de-galinha em riste, até chegar ao bâton dos beiços e esborratar-me o duplo queixo, fazendo-me parecer quase um palhaço triste. Agora é que já não saio prá rua, daqui não me meixo.” Ainda por cima hoje o carro parado por desnecessidade imperiosa. Jaz, portanto, como um móvel imóvel em estacionamento colectivo, desprotegido e arremessado a um canto, obrigando-me a deslocar a penates. A ver se o encontrarei no mesmo lugar ao final do dia. A infeliz criatura plástico-metálica ainda ostenta as maleitas da última tentativa de saque. 50


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Vítima de tentativa de roubo descarada, perpetrada por mãos desconhecidas que o violaram no íntimo de seu sistema de ignição, causa e efeito de todo esse despautério. Mutatis mutandis não se ficou por uma só ocasião. Que azar o meu! Injustamente suporto uma longa e contínua malignidade da fortuna. Pena não ter podido executar vingança por meios próprios tresloucadamente fora de mim como eu me senti - e antes do efeito do ácido láctico me tornar incapaz de tal feito. “Salta já pra fora da sagrada propriedade alheia! Ah queres despique é, seu rapina? Toma lá então e prova o sabor doce de uma tareia, transmitida por este cilício empunhado por mão divina. Perdão senhor, está confundindo o continente com o conteúdo, não fomos nós a tal praticar, não somos lorpas desse jeito nunca seriamos capazes de cometer tal insolitude e muito menos merecemos tal correctivo a peito.” Parece que estás entoando uma triste celeuma de forçado em vão. A ver se de novo te pego e aí lançar-te-ei uma elipse, com a qual ficarás adormecido até à ressurreição tal como está escrito no Livro do Apocalipse1.” Justiça aplicada na hora e in situ. Não há lugar a dúvidas dos interesses manifestados, a situação de flagrante delito assim corrobora os factos. Apenas para a polícia parece haver sempre algo que se desadequa face aos eventos. Ainda escuto as últimas palavras em tom de desagrado disfarçado e de frete evidente ditas pela subchefe de falsa cabeleira loira e de boca cheia de pastilha elástica: “Se porventura os voltar a encontrar na via pública, volte cá para melhor compor a descrição fisionómica.” Retrato-robô feito por encomenda e com respeito por todos os procedimentos de actuação cívica, obedecendo ao quadro-tipo do que se 1

Apocalipse, 14:13.

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espera de uma vítima de um crime semipúblico, arredado para o cível pelo revisto e revistado código de acção penal. Contra-ordenação quê? Sem máquina para satisfazer minha dromomania diária só me resta mesmo dar uso aos dois membros locomotores. Também quase no final do mês e com a 95 ao preço que está melhor assim, pelo menos sempre poupo aquilo que terei que despender posteriormente de modo a recompor os estragos cometidos pelos bandoleiros bandalhos, esses sim, são de natureza intrinsecamente particular, não pública. Mas como há sempre males que vêm por bem, ao final sempre vou ajudar o ambiente já que ao bolso não o poderei fazer. Além do mais combaterei forçosamente todos os implicados no negócio da especulação do petróleo e derivados. Felizmente a autoridade da concorrência vela por nós, imaginar o que as transnacionais petrolíferas não fariam se não tivéssemos as asas de tal anjo protector! Bem feito árabes do petróleo de mãos dadas com os delfins das refinadoras! Tomem lá por igual crudentos cowboys texanos, tomem igualmente seus ávidos ruivos sardentos do Brent e também esses esbranquiçados comedores de baleia seus vizinhos. Nada de cartelização nem manipulação dos preços! E já que estou a distribuir lambadas a torto e a direito, tomem lá também vocês das plataformas BR e tu igualmente, tiranozinho do Maracaíbo. Pra não se ficarem a rir uns dos outros, tomem lá também negros retintos do delta do Níger e igual tratamento prós sobas kimbundus mais abaixo. Aqui neste solo bendito pela Virgem da Iria não vos safais! Estranho… Como é que uma santa católica vai logo aparecer perto de uma cidade com toponímia islâmica. Ele há com cada mistério... “Ai meu senhor, estou tão cansada de avoar, aquela azinheirazinha ali em baixo vem mesmo a calhar. Mas, olhai minha senhora, perto tem uma povoação com um placart, 52


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cujo nome tresanda a sarraceno, não será melhor procurar outro local pra poisar? Tou cansada demais e vai ser mesmo ali que vou aterrar, nem que estivesse por cima de Makkah a sobrevoar. Mas olhai, cuidado com aquela miudagem que anda ali a brincar, a ver se não decidem começar à fisgada aos pássaros na árvore e uma pedra vos alcançar. Ah, ah, meu senhor, se tal pudesse porventura passar, eu pregar-lhes-ia um susto que dificilmente iriam contar.” Ah! Mistérios, sim... mas os espanhóis têm-na mais barata! Isso é porque os sacanas metem aditivos e misturam tudo. Gasolina martelada é o que é! Tal como o azeite de triste memória. O bolinhas deveria gatinhar apenas a carburante, isso é que era fixe, sempre seria gratuito e terminaria com a dependência dos fósseis. Até qualquer dia passar igualmente a ser taxado, eles estão atentos a todas as energias alternativas; que pensas? Taxar o ar seria uma brincadeira de crianças e a maior das ironias, logo o meio que eles mais têm destruído. Mas tudo é possível vindo daqueles avatares. Deveria haver prémios internacionais a serem entregues às empresas, não pelas ditas boas práticas sociais - das quais só se houve falar mas nada que se possa mensurar - seria sim pelas que praticam os melhores métodos extorsionários menos habituais. No fundo seria uma espécie de premeio à excelência na arte de vigarizar. Ou então que se alimentasse à base de óleo de fritar usado, álcool anti-séptico a noventa graus, ou qualquer outra mistela cujo preparado pudesse ser feito em simples bancada de cozinha. E eu que pensava que as aulas de química tinham sido tempo desperdiçado…

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“Soda cáustica e gordura dos restos dos rojões falsificados que se compram nos supermercados. Decantar o líquido resultante para um recipiente plástico passando por um crivo de algodão para reter as impurezas, introduzir directamente no depósito e, feliz voyage”! Um abanão mal dado na caçarola e lá eu me espichava todo de líquido corrosivo. Estou a ver o empobrecido cidadão mais distraído a preparar no fogão encastrado a mortífera energia locomotora, tentando decifrar os textos escritos em sacrílega hermenêutica, tal como alquimista bisonho e desajeitado padecendo de ressaca da beberragem experimental testada no dia anterior. “Razam, kazom, que esta trampa se transforme em gasoil do bom! Abra que é cabra, abra que é doido, que esta mistela dê origem, a gasolina noventa e oito!” Cabrum! Lá se ia a panela de pressão favorita da esposa lançando sobre os móveis de cozinha ainda por pagar, os restos esfumaçantes daquilo que deveria servir pra encher o depósito do utilitário. Melhor afastar esta imagem de Chernobyl caseiro e atravessar a estrada na zebra. Atenção aos mais descuidados e desatentos cidadãos autolocomovidos, esta água temporã faz com que o melhor dos Pirelli se pareça com a cabeça de um abutre calvo. São apenas vinte metros até ao ponto de ônibus. Parece-me bem esta expressão. Melhor que paragem de autocarro... Paragem é feio e autocarro é foleiro. Auto carro. Carro automático... O que me espanta mesmo é que no meio de crise tão profunda se assista a um desfile tão intenso de viaturas particulares. Será que é apenas uma crise sectorial, ou melhor, uma crise selectiva? 54


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CAPÍTULO VII Escribas e Faraós

Pergunto-me se serão os maus transportes a dar origem a maus utentes ou se pelo contrário serão os maus utentes que merecem maus transportes… Autocarro… Lembrei-me agora de outra pérola do nosso idioma: Autoclismo… Caraças, que raio será um clismo automático? Idioma feito sei lá por quem e com que finalidade para dar nisto. É o que resulta de tantos cruzamentos linguísticos, ao final obtemos um híbrido, pior, um camafeu filológico sem pés nem cabeça! Um monte de expressões idiomáticas amulatadas, continuo convictamente afirmando. Segundo aquilo que se costuma escutar vindo de dentro de algumas bocas famosas não há que admirar que se escreva tão mal. Há verdadeiramente expressões únicas neste nosso latim abrutalhado e convertido a declinações indeclináveis, verdadeiras obras da neurolinguística, revelando uma sintaxe aprimorada e uma semântica sem paralelo. Os políticos - profissionais ou amadores - parecem ser os mais fervorosos adeptos deste idioma constantemente adaptado aos tempos modernos. Que coisa, mais valia terem aulas de canto coral, talvez as barbaridades, quando cantadas, não fossem tão ferozmente insultuosas a nossos ouvidos. E estamos a falar de classes pretensamente cultas onde deveria residir o imo da consciência colectiva em termos fonéticos. Admira

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escutar os próprios jornalistas a confundir tráfico com tráfego? Ou observar – por alargamento da opinião do censor - a mítica ferradura ostensivamente pendurada na grelha do motor do Mercedes do empresário de sucesso? Ou ainda os inenarráveis pendericalhos pendurados no espelho retrovisor, misto de credo popular e de aulas de moral e religião mal interpretadas? “Acabei de ir benzer o meu carro novo ao santuário, espero que minha prece seja ouvida. E que faça muitos quilómetros com ele até chegar o dia de aderir ao programa de abate de veículos em fim de vida. Coloquei na pira para derreter, duas pernas, uma cabeça e a imagem do braço que ia perdendo no IP4. Que a virgem se deleite com minha oferenda e me dê saúde, eis o que desejo para poder usufruir do meu novo A-4” Melhor tomares atenção onde pões os pés. Sapatos já ensopados em tão pouco tempo por mérito das crateras usuais no empedrado, empedrado escaqueirado, diga-se. Não sei que fazem os bons dos dirigentes locais ao I.M.I., ao I.U. e restantes impostos autárquicos. Sacos azuis? Porquê azuis? Deveriam ser verdes que é a cor da esperança, esperança de nunca serem descobertos. “Senhora presidenta, temos o azulado saquinho quase cheio, já dá muito bem prá gente dividir ao meio, e fazer ainda umas viagens em carro alheio, que depois se debitam como custas de maneio, e assim se dará inicio ao novo ciclo de peculateio. Você pensa em tudo senhor vice, que agilidade de soneto. Senhora, todos fazem o mesmo, eu apenas ao óbvio junto mais um terceto. Se já lhe disse que nem uma pequena falta cometo, 56


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não nos apanharão nunca, eu lhe prometo. No final posso sempre alegar que tudo faz parte da Lei de Pareto.” Mas não é que são esquivos e escorregadios esses óbolos. Recusamse terminantemente a serem usados na reparação de passeios e pavimentos pedestres. Já para não falar destas basálticas pedrinhas de calçada que não têm meio de se encaixar umas nas outras. Parecem rudemente unidas por ébrios aprendizes de mestres calceteiros, criando espacinhos vazios entre si, que propiciam o progressivo afastamento entre elas. Tal como na teoria da deriva dos continentes, (na qual se inserem sem margem para dúvidas), acabarão com o tempo por criar um grande espaço aberto, definitivamente coberto por água lamacenta onde o transeunte se afundará. Porque será que as obras nunca ficam completamente terminadas, como se essa fosse a finalidade do beltrano, deixar obra aberta para o fulano que se segue? As porcarias das pedras levantadas ficam sempre amontoadas a um canto como se fossem castelos de areia esquecidos na praia. Fazem tudo por etapas, ou melhor, por incompetências? Ou por providências cautelares no qual somos prolíficos, diria o espectador do outro lado da rua, num triplo de riso de comiseração, de ar resignado e de mente arguta. E as estradas estão igualmente uma lástima. Cheias de crateras terceiro-mundistas. Será que é endémico; sofrerão nossas estradas de algum mal de difícil cura? Algum tipo de varicela vial que estoira episodicamente deixando os buracos como marca da sua passagem? Olha só esta estrada municipal a fazer concorrência directa com a Avenida Brasil, olha aquela via-rápida tão esburacadamente parecida com a estrada que vai de Mogadíscio ao aeroporto “internacional.” Carta-resposta ao cidadão indignado pela direcção do carro constantemente desalinhada e pelo dinheiro gasto nas oficinas daqueles tipos da Precision.

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“Nós tapamos os buracos e alcatroamos devidamente. Tal facto deve-se à orografia especial do terreno, sendo que sua formação data do pliocénico inferior cujos substratos têm tendência para o desabamento disforme. Trata-se portanto de um problema de falta de consolidação dos solos por culpa do resfriamento tardio da Terra ao qual, evidentemente, esta autarquia está alheia.” Só faltaria mesmo ser segunda-feira para ficar radiantemente completo. Também que isso importa? Espécie de xenofobia pelos dias da semana. Não deixa de haver sempre uma feria secunda que substitua uma outra. Não há forma de as exterminarmos, excepto se nos exterminarmos a nós próprios. Aí deixa de haver dias de semana de uma vez por todas, seja no calendário solar, lunar, juliano ou gregoriano. Voltará tudo de novo ao início. Ao que parece, a um estado de caos estupidamente desorganizado. Humm… Bem, resguardo da paragem cheio de gente. Pois, era de adivinhar, aquele casinhoto mínimo até parece ter sido ali plantado como oferenda para uns e como suplício para outros. Esqueces que dantes não havia nada, nem pequeno nem grande? Bah! "dantes” serve para explicar e justificar muita coisa, mas lá que é exíguo é! Exíguo, exantema, exangue, caras de fuinha olhando. Fico aqui mesmo debaixo da varanda do tipo de cabelo de cor de cenoura e das suas dezenas de gaiolas de passarinhos de raça canora. Entoo eu mesmo o seguinte refrão, para passar o tempo e ver até que ponto tenho razão: “Razoavelmente afastado daquela espécie de colector de água suja na estrada aberto, onde algum condutor mais sacana, com seu carro cuja roda possa enterrar esguichando toda a porcaria e a mim me encharcar.” Ora, 21 graus, chuva copiosa que dará lugar a chuviscos fracos que abrandarão de intensidade; trovoada seca por acção de altas pressões 58


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estacionárias - em conflito com baixas, - reaccionárias. Neblina matinal com tendência a desaparecer para o final da manhã, vento fraco a moderado soprando do quadrante oeste. Quero ver só as caras dos tipos da meteorologia quando anunciarem o primeiro titânico icebergue, arrancado à plataforma continental da Gronelândia, a entrar pelo estreito estuário adentro parecendo um gigantesco sorvete caído, por distracção, no meio do alcatrão. Já não bastava a falha sísmica de Algés a oeste e a de Benavente a leste, que nos expõem sobremaneira ao risco de abalo de 7.5 na escala de Richter, ainda vamos ter que enfrentar inundações da capital causadas pelo degelo. Adeus Martinho da Arcada, adiós Havaneza do Rossio, adieu Versalles do Saldanha. Felizmente as conferências sobre as alterações climáticas vão-se sucedendo, sempre cheias de líderes mundiais que aproveitam estas deslocações em massa para fazerem compras de luxo transportados de limusina. Nada melhor do que uma conferência mundial sobre o clima para dar nas vistas da maneira mais apropriada, rodeados de jornalistas credenciados e de emissões televisivas em directo. E quanto a acções em concreto nada. Ao final dá para explicar que raios é que vão fazer estes tipos a estas cimeiras? Melhor que o clima se reponha a si mesmo, se está à espera destas sumidades bem pode estoirar de vez! Que pena que à Copenhaga de antiquíssimos edifícios de tons pastel encantadora e de moderníssimas montras atraentemente convidativa para fazer compras suceda a poluída e cheia de lojas de pechisbeque cidade do México. Realmente não há pachorra para passear de “limo” por ruas cheias de porcaria a comprar burritos, fajitas e piñatas. Pelo menos na danesa capital sempre se podem comprar uns visons, uns bons casacos de pele de foca e, já agora que parece ser moda, comer uns bifes de golfinho. (Os tipos nunca deixaram de ser verdadeiros Vikings).

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Por agora fico-me com o diagnóstico do mais que duvidoso e falível instituto de proficiência à meteorologia para o dia de hoje. Daqui prá frente será sempre a piorar, não esqueças que em breve virá a rude invernia. Felizmente não sofremos desse humor orgânico que dá pelo nome de bílis. Com nosso carácter tão peculiar, comer-nos-íamos vivos uns aos outros assim que o tecto baixo do céu dos meses de inverno nos cobrisse o sol.

Olha para aquilo... quase rebentam com as paredes de vidro temperado do entivado à força de se acotovelarem no exíguo espaço. Resmungam algo entre dentes que eu daqui não consigo entender mas que, decerto, poderei depreender. Seria de se esperar, (ou pelo menos seria o mais lógico) que ao fim de tantas décadas passadas desde a pretendida abertura democrática da sociedade, com as liberdades cívicas retomadas, a participação dos cidadãos e com o aumento da escolaridade, das acções sociais ministradas nas salas de aulas, com o alargamento dos meios científicos e do conhecimento tecnológico, do aumento dos horizontes ou do que é proporcionado pelo alargamento das viagens de turismo ou de intercâmbio estudantil e do crescimento do índice de literacia (?), se notar qualquer tipo de melhoria nas relações sociais entre indivíduos da mesma espécie, coabitantes do mesmo espaço geográfico e cada vez mais interdependentes (ufff!). Mas não, assiste-se sim a um desmoronar das relações de boa vizinhança e a um massificar de situações que originam cada vez mais atritos. Assiste-se antes a um embrutecimento da espécie, por assim dizer. Os bem-hajas são espécie extinta, e até mesmo os bonsdias ou os obrigados são cada vez mais raros. E não é exclusivo dos mais novos ou das classes baixas não, tem atravessado todas as classes sociais e etárias como se de um tumor em estado de irreversibilidade se tratasse, espalhando-se transversalmente e corroendo o tecido social. 60


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Também que esperar de um povo que transitou directamente de uma percentagem de 90% da população constituída por campestres servos da gleba para uma sociedade “tecnologicamente” avançada sem passar por uma etapa intermédia? Melhor abandonar esta triste observação psico-sociológica, o esplendor da sociedade democrática no seu auge e em sua essência tal como em sua estiolante decadência. Dando a voz a Aquino: “se não me perguntarem, eu sei, mas se me perguntam, não sei explicar”!

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CAPÍTULO VIII 8½

Lata velha feita transporte chegou bamboleante. Deveria ter, tal como alguns camiões, uma placa escrita na traseira dizendo: “transporte de animais vivos.” Atinge a vertiginosa velocidade de cruzeiro de 30 km/h em circuito urbano, um verdadeiro prodígio convenhamos. Só não é equiparado a uma odisseia porque os intervenientes têm cara de tudo menos de heróis gregos. Bem vistas as coisas, até parece que estão equipados não de cavalos ofertivos, mas antes, (soerguendo-se atleticamente indo buscar forças para tal não se sabe onde), usam os degraus de acesso como rampas de lançamento de projécteis humanos, de modo a conquistarem espaço no salão ou corredor. A energia cinética libertada por um corpo humano em movimento descontrolado e sem direcção definida, logrando atingir o seu nicho estacionário onde poderá libertar a energia desencadeada durante tal processo e desse modo entrar em repouso, varia directamente com o quadrado da massa e com o cubo da velocidade. Isto é, massa bruta vezes cascos da manada. A unidade de força é de crescimento exponencial e mede-se em kilo-júlios e/ou em kilo-jaquinas. Empunham os longos e pontiagudos chapéus-de-chuva – felizmente com as letais pontas viradas para o ar - como se fossem lanças, fazendo lembrar aquele quadro célebre do Velásquez. O seu maior desafio é o de tentar não levar com aquela porta automática de entrada no torso, que embora seja sintomático do grau de valentia e de padecimento dos mais 62


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audazes, não evita que as comparações se fiquem por aí. Faz lembrar uma daquelas carrinhas Hiace dos bufarinheiros de antanho, que vinham abanando cheias até ao suplício, pela estrada abaixo até junto do aglomerado populacional, para vender plásticos e azeite à medida. Choque anafiláctico na certa me espera. Ambiente exterior fresco e herbícolamente agradável devido ao cheiro a húmus que se desprende da relva molhada, ambiente interior abafado e odorificamente agressivo. Casacos apanhados à pressa no roupeiro da roupa de inverno, bafientos e creolínicos. Quase juro ter visto restos de asas microscópicas presas a um, certamente pertencentes a um indivíduo da espécie dos lepidópteros que comeu, inchou, desovou e pereceu, emalhado no casaco do cidadão. Assim que caiem umas gotinhas há logo quem vá tirar os sobretudos dos cabides, parece que têm pressa que o verão desapareça. Também pode ser que estejam mortinhos para usar roupa diferente daquela que usaram durante toda uma estação. Parcos recursos obrigam a parco vestuário, as roupas de inverno sempre serão uma machadada na monotonia do figurino estival. Nem ficaria espantado se visse alguém de cachecol posto. E de luvas, com a desculpa de não tocar nos corrimões e varões cheios de micróbios e bacilos como estão fartos de anunciar na televisão. Triste visão me arrebata ao entrar na sardinhenta lata. Este o preço a pagar por se ser um suburbano. Filhos de p... desses felizes que sois por morardes no centro da grande metrópole, disputando o valoroso solo com as lojas de marca, tentando conservar o duplex com escada em madeira de nogueira contra a voracidade da cadeia internacional de hotéis, esgrimindo altas rendas mensais com escritórios de advogados, estúdios de arquitectos e lofts de meninos-bem. Bem hajam, inch allah e shalom, tudo babélicamente junto! Perde-se em qualidade ganha-se em calor humano. Quem de entre a cáfila de positivistas afirmou tal barbaridade? Deveria estar aqui entalado entre a porta e a caixa das esmolas do motorista. Espetado pelo ósseo braço da senhora de idade, a quem ninguém cede o

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lugar, bem vincado entre os interstícios do meu entrecosto. Parece um aríete corneando contra porta levadiça de castelo, aproveitando-se dos abanões causados pelo transporte para me tentar perfurar o baço. E sinto ainda demasiadamente perto o bafo emanado pela boca do cavalheiro atrás, ainda exalando alho pútrido da refeição de véspera. Bacalhau cozido com batata, couve-flor e feijão-verde. Devidamente alagado em azeite e vinagre e, à laia de corolário, os dentes migados da referida planta liliácea. Decerto que entrou no catre sem escovar os dentes. Bom, o alho expirado durante a noite, mesmo que sob a forma gasosa, decerto cumprirá alguma finalidade. Sempre ouvi dizer que espanta demónios, espíritos e fantasmas. Dormirá respirando o avinagrado por si produzido, mas pelo menos em paz e segurança. - Melhor ir sacanear o descanso de outro mortal qualquer Pazuzu, este quarto não me inspira confiança. - Vamos sim Lamashtu, apanhá-lo-emos noutra altura. - Não vai ser fácil, este gajo é dos duros; mete alho em toda a comida. - Descansa, em breve chegará o final do mês e a Cremilde vai ter que fazer ao jantar ovos com batata cozida - aí será nosso! Raios! Só passando por estas experiências sensoriais para poder dar verdadeiro valor ao calor libertado por tais personagens de antologia que fariam babar de ciumeira pela Palma as dos filmes felinianos. Nas curvas é pior, fico com o tórax esmagado do peso produzido pela inércia dos corpos. Sinto-os macilentos roçando demasiadamente perto de meus bolsos de trás. Eu que sinta qualquer mão abusadora dedilhando, tacteando em redor de meus glúteos, na vã procura por uma superfície dura que revele a presença de uma carteira recheada… Na capital é que são elas. Atacam em alcateia como lobos sempre com um macho Alfa controlando por perto. O bom do inspector Locard tinha razão quando postulou o seu famoso princípio. Não é que através do contacto - mesmo espúrio ou tangencial que seja – existirá 64


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sempre uma permuta! O formalismo da teoria esconde um pequeno mas ignominioso detalhe: neste tipo de permuta nem todos ficam a ganhar, evidentemente. Tal como acontece com o fisco, só damos conta que nos levaram o pouco que tínhamos quando verificamos que já houve retenção abusiva na fonte.

Espero que o tipo que conduz a lata não deixe entrar mais ninguém até à estação. Completo, esgotado, full of people, redundantemente a vazar por fora, carregado até ao limite da tara. Esperai por outro machibombo, vocês aí! Tá quase, mais cinco minutos e termina este primeiro transe. Já o dizia Ulisses: mais um minuto e tamos safos. Hummmm, acho que foi mesmo Aquiles em monólogo com seu calcanhar… “Calcâneo e voador pé, leva-me daqui pra fora antes que o Páris sinta teu chulé, corre, corre, depressa a todo o vapor, nosso trabalho está feito, já lixei o Heitor.” Doce e ao mesmo tempo triste pensamento me ocorre. Vejamos; nem os parisienses se podem comparar a mim. Usam os refinados moradores da Cidade Luz um aforismo para resumir minimalistamente seus dias de semana passados na correria de casa/trabalho e retorno. Pois engulam lá esta luminescentes citadinos! Comigo é muito mais sofisticado e bem mais latino do sul: Bus-bateau-metro-boulot-metro-bateau-bus-dodo. Pobres utilizadores do RER, nem sabem do que se safam. Tinha que ser! Parou para deixar entrar mais uns quantos retardatários. Agora basta esperar para vê-los se entregarem a uma luta encarniçada para disputar o pouco espaço vazio, entre o muro de costados

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pela frente e as bloqueadas portas de saída por trás. Trepam e tentam desesperadamente cravar as unhas roídas até ao sabugo nos plásticos do tablier. Sem pejo, agarram nas pontas dos casacos dos outros como se fossem cordas de assalto à amurada de um navio inimigo. Deixa ver a faceira dos corsários... Um senhor todo bem fazendo figura de pobre tentando puxar para si o casaco de meia-estação já todo amarrotado; um consumidor de intravenosas com olhar fixo no bolso onde reside o maço de notas com as quais irá matar seu vício por mais um dia; um trabalhador do comércio atrasado para ir abrir a loja da qual é o único a possuir a chave. Resumindo: três lapas tentando a custo fixar seus pés ventrais batalhando contra a força da maré humana. - Hoje a maré está demais, hein? Quase não me consigo agarrar à rocha do costume. - Mete mas é o sifão pra dentro e agarra-te com os dois pés casca dura do caraças. Estamos nas marés vivas, se vais de arrasto diz adeus à comunidade. - Tens razão, não basta já ter que sobreviver a estes tipos todos de navalha na mão. - Estão em crise, comem de tudo. Cala o sifão e faz o que te digo. Siamo arrivato, diz um dos personagens felinianos agarrando na palma d´ouro, ou melhor, amarrando o cabramo de touro ao seu vizinho da frente para o ultrapassar. Boa, saio quase incólume de dentro da lataria. Entre tanta perna, anca e ombreira, tanto roçar, abanar e tropeçar, consigo colocar pé no chão com apenas uma marca ligeira de sapato enlameado nas calças, o que em termos de revolução operada durante a viagem e a trasfega, não é nada de desprezar. E o sol já abriu e começa a aquecer o dia tristemente nascido. Eu bem disse que ia melhorar, foi apenas uma aguinha pra passar o céu a esfregona, decerto a faxina maior ficará para o fim-desemana, lá em cima eles adoram ver-nos a resmungar. 66


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Quiosque, jornal. Única maneira de enganar o tempo encurtando-o. Deveria ser ao contrário, alargando o curto que é, mas neste caso é exemplificativo dos males que se têm que cometer de modo a fazer com que a monótona viagem de lancha se agilize. Jornal e cigarros, complementam-se. Ambos utilizam o mesmo corpus, ou seja, papel. Ambos podem ser tóxicos. Ao final do dia todos aqueles cigarrinhos bem arrumadinhos ao lado uns dos outros, estarão caoticamente desfeitos em fumo, carvão e mais umas quarenta substâncias potencialmente cancerígenas, pairando, algures entre minha árvore branquial e meus alvéolos pulmonares. Aparentemente adormecidos, aguardam o mudo sinal de chamada para se tornarem reactivos. Provoca cancro pulmonar mortal, como se o cancro pulmonar não fosse sempre mortal, dizem as letras garrafais que ocupam quase toda a superfície do pacotinho. Mais valia eliminar todo e qualquer sinal de marca ou logótipo. Imprimissem antes a imagem de um féretro retirada de um enterro verdadeiro. Já agora com o cadáver lá dentro alegremente comemorando a efeméride. Sempre se poderia criar uma nova indústria e os familiares do fotografado poderiam sempre arranjar uma maneira de fazer uns trocos e desse modo compor os gastos perdulários sofridos com o funeral do familiar, esperançosos que os tipos da tabaqueira pagassem melhor pela foto da tia direita do que pela do bisavô, mirradinho que estava. Um panfleto sujo soprado pelo vento roja-se a meus pés enrolando-se à volta da minha perna como me segurando firmemente ao chão impedindo-me de continuar marcha. Nesse enovelamento de papel, consigo perceber uma parte da foto e das letras de imprensa que o adornam em que uma família de sorriso orelha-orelha e de ar nórdico fomenta o consumo desregulado e propiciador ao sobre-endívidamento promovido por uma das milhentas empresas para-bancárias, dessas que enchem milhares de páginas, endereços electrónicos e folhetos publicitários, com jovens casais

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com filhos ao colo, felizes e prósperos, bonitos e bem alimentados. Porque será que sorriem? Entendi, são apenas actores neste mundo de ficção ou de faz-de-conta. O que importa é aquilo que se vê ou se imagina, não aquilo que realmente é. Já do meu jornal pode-se dizer que é potencialmente venenoso para o pensamento, espécie de sulfato de cloreto de sódio em forma de letra impressa. Pode ser tóxico ou reactivo com outras substâncias, leia-se, escandaleiras, corruptelas e venalidades. Pode servir de tónico, de depressivo ou ainda de anestésico. Toda a cautela é pouca. Imprimem o que bem lhes passa pela cabeça estes escribas ao serviço de duvidosos faraós.

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CAPÍTULO IX No Resguardo Espúrio

O terminal tem tanto de estação como um telheiro tem de abrigo. Tem uma arquitectura de ruína, todo aberto e intencionalmente esventrado, ou como proferido no dia da inauguração por uma Sua Excelência qualquer, é apenas de carácter provisório. Pena que com o passar dos anos se tornará irremediavelmente definitivo. A correria intempestiva daquelas pernas todas juntas assemelha-se a carga de infantaria contra inimigo invisível. Soldata de baixa patente ziguezagueando evitando-se uns aos outros e às armadilhas que pejam o caminho, desesperados por alcançar o refúgio da trincheira, se em estado de guerra, ou por receber o pré, se em estado inactivo. Correm driblando as barreiras físicas artificialmente dispostas que atravancadamente lhes tolhem os passos, causando um estardalhaço dos diabos. Parece que ali as colocaram de modo a se poder domar uma força que de outro modo tudo derrubaria. Ou, como alguns dizem, para os fazer atrasar irremediavelmente, naquilo que se pode considerar pura maldade por parte de quem apenas deseja prejudicar seu semelhante. A correnteza estanca obrigatoriamente perante os canais individuais de acesso. Mãos menos hábeis ou ainda falhas de movimentos destros obstruem a passagem dos mais nervosos, causando embaraço aos primeiros e impaciência aos segundos. Levado num amplexo por entre aquele magote de gente deixo-me ir mecanicamente como peça de motor segue no tapete em linha de montagem. Pelo meio do trépido de sola de sapato em chão de

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betão, escuto a voz de um cauteleiro que anuncia, sem convicção, a sorte grande que andará à roda na próxima quinta-feira, dia da Anunciação. Nova paragem forçada no átrio que serve de depósito de distribuição. Abrem-se de seguida, preguiçosamente, os empenados portões de comando à distância hesitantes na sua função de porta rebentada a toque de safanão, perros e meio avariados, como é de costume em tudo que é instalação de serviço público. A plebe ajuda nesse intento esforçando-os até ao estalar das dobradiças encravadas no vidro. Correm de novo, agora que nem manada de gado de abate em direcção ao matadouro, sem necessidade de picanço, mas enlouquecidos por chamada inaudível, como se a busca por um lugar sentado fosse o seu único propósito para o qual acordaram esta manhã. Assaltam os portalós como se de pontes levadiças se tratassem, carregando todo o género de bagagem e de utensílios como se fossem passar longas temporadas naquele castelo recém-conquistado. Os assentos disponíveis em breves segundos ficarão cobertos por aquela amálgama de corpos, de sacos, malas e maletas. Também eu necessito de lugar sentado. Urgente. A sola de meus sapatos molhou-se o suficiente para que meus passos façam um barulho cómico de chiadeira, atraindo as atenções de alguns dos recém-embarcados. (Órbitas bovídeas ensonadas lançam-me sub-reptícios olhares, de esguelha). Aqueles olhares de múltiplas papadas orlados fazem-me enraivecer de imperfeição. Rápido! Fugir destes omnívoros! Agora dentro do barco parecem uma manada de alimárias picadas por um bando de vorazes moscardos, ainda ficam mais agitados do que lá fora, chocando entontecidos uns nos outros. Rápido de novo, trepa esses degraus! Busca a fuga lá em cima no convés superior. Nos bancos duplos, entre os quádruplos e os triplos onde poderás encontrar abrigo para teu estado lastimoso. Se não posso escolher a companhia pelo menos poderei limitá-la a um único passageiro. Sempre poderei abrir um dos braços para desfolhar o jornal. Nos outros bancos, preso entre dois energúmenos, 70


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parecerei um deficiente mental entalado entre duas talas pronto para uma operação de trepanação, ou lobotomia, que venha o Egas e escolha. E o pior é que quase tenho que virar a página do jornal com a ponta da língua, tal a incomodidade proporcionada pelo exíguo espaço remanescente. Algo que ainda não aprendi a fazer. Para lá de provocar um sorriso hílare é igualmente constrangedor. Outra vez tentei pintar com os dedos dos pés e o resultado foi pictoricamente catastrófico. “Creio que fugiste um pouco ao teu anterior estilo tecnicista e que te deixaste fluir por uma arte muito mais pontilhista bem como igualmente demencial. Estarás a tentar criar uma nova tendência ou tudo não passa de uma fraca experiência fruto de absentismo mental? Decerto confirmarás sem preceitos de retórica, que as telas se revestem de uma total falta de lógica e, numa assumpção meramente profissional, de um anacronismo tridimensional. Leigo! Esta técnica podológica anuncia a nova pintura. Que importa que não consigam decifrar o que está na moldura, não era essa minha intenção, de qualquer forma,arrogo-me simplesmente, a iniciação.” Boa, ali em baixo ainda está vazio. Esperar pra ver qual o brinde que me sai hoje. Faz lembrar as antigas rifas que se tiravam de dentro de um frasco enorme, gesto acompanhado de emoção incontida. “Quero que me saia aquela bola vermelha grande que está pendurada lá em cima, no mostruário. Prefiro antes aquele canivete vermelho a imitar o suíço. Não, quero antes que me saia aquela caixa grande de bombons coloridos da Aliança.”

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Ao final, nove em dez casos, lá se saía pesarosamente com um rebuçado vagabundo na mão. Ou pior, um rebuçado vagabundo com sabor a mofo, pois prazos de validade eram coisas bem mais intuitivas ao saber comum do que aos obedientes códigos de barras. (Cheiro por momentos no ar o odor adocicado a mercearia antiga com caixotões escuros cheios de feijão manteiga, balcão maciço estragado pelo corte de milhares de lâminas, cadernos de rol de duas linhas com as capas gordurentas desfolhados centenas de vezes por dedos sujos de cera, estantes com frascos rotulados, frasquinhos coloridos e latas de leite Nido, tudo exalando aromas sobrepostos de marmelada cortada a faca de folha de madeira e a sabão azul e branco). Hmmm, seria óptimo ter como companheira de viagem uma Liz Hurley qualquer que me acompanhasse neste meu náutico movimento pendular, seria o centro das atenções e não conseguiria viajar descansado, mas seria uma viagem ao mesmo tempo memorável. Sonha, pode ser que com um pouco de sorte ninguém veja que o assento do lado está desocupado. Se virem, tanto pior. Que seja um cidadão cumpridor do ritual da higiene matinal e já te darás por contente. Há quem traga o cheiro da cama agarrado à epiderme. Alguns, creio que bem fundo mesmo, na derme, por força do resfolegar do corpo na roupa por mudar. Ou ainda por excesso de ácaros já entranhados no velho colchão, se banqueteando de restos de pele morta, pêlos do púbis e nacos de unhas dos pés, engordando em pantagruélico festim, noite após noite. Resquícios do país rural que fomos, felizmente já ninguém dorme com os porcos no andar de baixo. Alguém falou de novo em porcos? Cuidado com o H1N1. Que nenhum refinadíssimo cidadão infectado se atreva a espirrar virulentamente para cima de mim enviando por via aérea tal bacilento fluxo piroclástico. Embora desconfie estar imune a estas pragas escarlates, não desejo que lancem sobre mim ranhentas gotículas como se estivessem de regador na mão, aspergindo os crisântemos. Nunca se sabe em que narina estará 72


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escondido o famigerado e mortífero micróbio porcino. Raios partam estes microrganismos! Se avisassem através de um sinal colorido, de um apito sonoro ou de uma bandeirola vermelha de sua iminente chegada, talvez nos pudéssemos precaver com antecedência. Que os benfazejos manipanços em todos os altares nos protejam, pois com este serviço (sic) nacional de saúde estamos conversados. Pelo que consta nem a porcaria (sic e ipsis verbis) da vacina, evita que se contraia tal malefício, e, de qualquer modo, parece que foram escolhidos apenas uns quantos como destinatários da miraculosa que tanto tempo e recursos levou a conceber. Ao final, a população dita como imprescindível ao bom funcionamento da nação resume-se a um número insignificante de indivíduos, o que quer dizer que todos os outros serão ou excedentários ou dispensáveis. “Senhora sub-secretária eis a folha excel, com o nome dos sortudos primeiros à vacina tomar, Já aqui tenho também os nomes no papel, dos restantes que com o Tamiflu se possam contentar. Vamos iniciar a campanha de vacinação e os primeiros, gratuitamente nada vão pagar, Já os segundos e terceiros, mais tarde, algo terão que desembolsar.” Aí vem um potencial e indesejável parceiro de viagem... Sorte, passou ao lado rasando meu campo de força gravitacional. Parecia que por momentos este satélite errante com ar esquizóide tinha sido inconvenientemente atraído por minha órbita e que se preparava para se despenhar, com o impacte estonteante de um esferóide. Já me preparava para apontar os raios cósmicos com que o derrubaria, isto é, com a ponta dos meus cotovelos. Táctica? Abrir jornal e, ostensivamente, ocupar o espaço aéreo do assento vizinho com as páginas bem abertas enquanto há tempo. Deste modo poderão, os potenciais usufrutuários do assento

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disponível, pensar que já existe alguém tomando o lugar, porém encoberto pelas vetustas folhas do matutino. “Aquele tipo deve pensar que lá por ter o jornal um assento a ocupar, eu não vou lá me sentar. Atiro-me pra cima do banco a uso, Até vai estremecer com minha personalidade de recluso. Ele que se atreva a me dirigir o olhar ou a ensaiar qualquer comentário de ocasião, Dou-lhe logo uma lamparina a modos de mostrar minha convicção.” Oiço o barulho abafado das turbinas da lancha a regurgitar água, só falta ouvir o irritante apito que sinaliza a hora exacta de zarpar. Os marinheiros do cais preparam-se para soltar os cabos de amarração, vejo-os nervosos esfumaçando seus cigarros à pressa, com receio de que em vez de uma beata tenham que se livrar de meio-cigarro por fumar, por contingência de terem que embarcar. Olha, olha, o Bando dos Quatro ali em baixo. Confraria de basbaques heréticos faladores em voz alta do costume. Parecem um bando de escalavardos em estoiro provocado por caçadores clandestinos. E, como animais soltos e semi-domesticados que aparentam ser, afocinham não nas terras procurando desenterrar tubérculos, mas sim nas cadeiras que acabam por ficar com o molde dos seus traseiros. Sempre apanham o mesmo barco, inevitável como o destino. Impostos? Não, há sempre alguns que se safam às malhas poderosas dessa eficiente instituição. Quanto ao destino já a porca torce o rabo. Não há espécie que por menor calibre que tenha, consiga safar-se a essas verdadeiras redes de arrasto, tal como petinga debatendo-se em malha de diâmetro estreito. Verdadeiramente, o destino parece ter sido a primeira realidade a ser normalizada.

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Barulho de água sendo vomitada pelas turbinas aumentou, parece-se com o rufar de um milhão de tambores, lá ao longe, fazendo com seu impulso inicial estalar todo o pedacinho de fibra-de-vidro desta redoma aquática. Imagino, ou melhor, não imagino, a quantidade de porcaria que as mesmas retirarão diariamente do rio através daquele potente fôlego. Sempre será uma maneira prática e eficiente de retirar um monte de desperdícios que de outra forma continuariam vagando à superfície. Bem, depende se os marinheiros, num gesto cúmplice do tipo ao mar o que ao mar lhe pertence, não devolverem a enxovia de volta à sua origem. Pelo menos a tripulação que se chama marinheiros a ela mesma já deixou de varrer o lixo dos conveses directamente para a água do rio, algo que me deixava assombrado, quer pela acção em si própria quer pelo facilitismo com que era conduzida. Uma vez, como resposta a uma incontida exclamação minha, quase fui linchado por meia tripulação irada com tal sobranceria. Acredito que se me pegassem me tinham feito passar pela quilha ou que no mínimo me açoitariam com o “cat-o´-seven-tails.” Parece que finalmente vamos sair do ancoradouro ou lá o que chamam àquele passadiço dançante, que parece obrigar o passageiro mais afoito a uma dança dodecafónica metronomicamente ritmada por embriaguez notória. Que aproveitem o balancear e que, de braços por cima uns dos outros, dancem uma daquelas catarses gregas, já que o resto do dia será de morrer de tédio.

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CAPÍTULO X Anjos Caídos

Assento do lado ainda vago. Minhas preces ouvidas uma vez para variar. Ainda o dia mal começou e já estou em dívida para com a entidade suprema. A continuar assim terei que humildemente me ajoelhar ao final do dia em genuflexório improvisado em casa, agradecendo todas as benesses concedidas pelas alturas. Envio um olhar de comitre tentando verificar se todos os postos de remadores estão devidamente preenchidos. Cabeças decoradas com caras aparentadas a bonecos de matraquilhos, em linha uns com os outros, ocupam o espartilhado e compartimentado espaço dos assentos como se fosse destinado a uma minúscula raça liliputiana. Os mais obesos fazem vergar as molas das cadeiras - como carril de ferro sob o peso do material circulante. Os do lado, sôfregos por espaço, encostam-se aos ombros alheios e dobram-se sobre os apoios dos braços, (rádio para um lado, cúbito para outro), tentando demarcar terreno. Lá começam os Quatro a zurzir a converseta do costume, tentando competir desastradamente entre eles. Fazem-me lembrar o conteúdo de uma montra de peças em exibição, em cenário de casa de capelista dos anos cinquenta, que ninguém compra mas todos param para ver. O mais anafado e rubicundo é o de riso mais histriónico. Parece ter acabado de ingerir sardónia em dose letal, tal as contracções faciais que acompanham o movimento convulsivo do conjunto boca-língua-dentes e que se prolonga até ao esgar. Tem duas auréolas de vermelhidão na cara que lhe dão um ar 76


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de vendedor de mercado térreo, ufano na tentativa de impingir a banha-dacobra a um qualquer menos avisado freguês.

“Olhai o derradeiro milagre da ciência aqui debaixo de meu chapéu-de-sol, veja cara cliente, eis a bela baba de caracol. Tudo cura tudo trata, seja à serva ou à imperatriz, desde pneu, estria e até uma simples cicatriz. Cirurgia já era, técnica invasiva também, comprai, o que está nesta caixinha apenas custa um vintém.” Não tarda recomeça com a inevitável e bizantina historieta de uma tipa qualquer que anda a enganar o marido com não sei quem. Terminará soluçando de riso como se apanhasse uma descarga eléctrica, fazendo vibrar todos os quatro assentos como se fossem um. São repetitivos e o saco de piadas está desactualizado, não tardará, logo que acabem as efusivas gargalhadas, entrarão no mundo sempre excitante das futebolices onde a opinião individual dificilmente pode ser contestada. Aí está o filme anteriormente visualizado e repetido vezes sem conta até começar a vê-lo como se fosse um déja vu que nos atormenta e enlouquece. O repelente magrinho é o pantomineiro do grupo. Gesticula parecendo uma marioneta sem os fios completos, manietado por punho que, não sendo escorreito, logo acabará por inesperadamente o deixar cair. Ora bem, que dizia eu? Sem que algo o fizesse prever, caiu vertiginosamente num verdadeiro estupor. Antes de se ter deixado cair na cadeira ainda teve tempo de executar uma espécie de bailado esquizofrénico que fez lembrar um mimo subitamente atacado por dança de San Vitto.

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O pencudo já começou a grimpar nos outros. O narigão que lhe adorna a carantonha faz lembrar um marco quilométrico de beira de estrada secundária, metido de banda de tanto levar com os pára-choques dos carros. Formam deveras um grupinho eclético. Palavra tão sofisticada para designar uma horda de desavergonhados escarradores de esquina, lavadores à unha dos septos nasais congestionados, prática tão censurável quanto considerada própria de desleixados latinos (algo que faz estremecer de violenta repugnância qualquer súbdito da elisabeth regina). Realmente se há algo pelo qual somos conhecidos lá fora é por nossos métodos medievais de aliviar o organismo em público, desde o típico arrancar de macacos do nariz (olhando para a pontinha do dedo antes de se desfazer de tão incómoda criatura), ao coçar das partes como quem aperta o saco de rede das bolas de bilhar para se certificar que entraram no buraco. Até o Camarinha, essa atracção estival que tanta divisa deu ao país, tinha inscrito em seu código genético - mesmo ignorando tal facto - que tal prática era contra-sensual. Bom e velho marialva, pena já se ter reformado pois como ele já não se fazem mais. Triste ocaso para uma das raças mais vigorosas da antiga Ibéria.

Aqueles Quatro devem ser dos que atiram garrafas ao árbitro durante os desafios, se no estádio, ou então todo o tipo de impropérios, se em casa. Por isso as mulheres os enviam, satisfeitíssimas e coniventes, para os soezes cafés e soturnas tabernas. Antes sofrer o bafo a álcool no seu regresso, do que passar hora e meia a escutar todo o tipo de asneiras próprias de carroceiros que ainda por cima influenciam a educação dos petizes. Como se já não bastasse o que eles aprendem na escola, esse receptáculo de proto-delinquentes. Que fiquem lá confraternizando no meio dos rom que é onde devem estar. E mesmo em casa, o facto de estarem 78


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fechados entre quatro paredes não impede o consumo desmedido de fermentadas, acompanhadas inexoravelmente do concerto de bufas e arrotos que, junto com o cheiro dos cigarros, empestam todas as divisões do respeitável T-2 com um fedor nauseabundo. Felizmente estão a uma distância considerável para causarem danos irreversíveis em meu aparelho auditivo. Lá iam me lixar o sistema delicado constituído pelos ossinhos da bigorna, martelo e estribo. Será daí que nasceu a expressão dar marteladas no ouvido. A verificar mais tarde no dicionário. Duvido, aquela coisinha insignificante de bolso? Ah! A net, esquecia... Aí tem explicação para tudo. Vou googlar-me assim que chegue no trabalho. Trabalho de pesquisa não deixa de ser trabalho. Se descoberto, sempre poderei alegar uma atitude de proactividade. - Senhor Z, que está práí a ver nessas páginas de hard core? Como passou pelo bloqueador de conteúdos? - Mas chefe, isto é spam, não tenho culpa. - É isso que se chama agora? E aquela outra posição que nome tem? Bom, vejamos o que tem o periódico a oferecer ao ávido leitor que não seja o do costume. Crise económica, bancos nacionalizados, corrupção de autarcas, eleições na mira, fraude fiscal deste e daquele. Ah, este também já foi indiciado. O outro ilibado de todas as acusações. Aquela senhora recandidata-se. Como pode? Estamos no terreno do usual. Pensar em despender um euro em papel reciclado cheio de barbaridades indigestas até à exaustão. Bons tempos em que as latrinas públicas ofereciam aos desprevenidos utentes, quadrados destes papéis espetados num prego. Sempre serviam um duplo fim: prestavam um serviço inestimável às finanças das juntas de freguesia numa época em que papel higiénico era artigo caro, e ao cidadão que, durante a fase de evacuação podia se cultivar um pouco. Ao final, ainda se podia vingar de algum político ou personagem pelo qual nutrisse menos afecto, o 79


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qual ficava indelevelmente marcado pela opinião discordante do leitor, indo de seguida borda abaixo. Agora tem que se colocar no contentor de reciclagem respectivo onde, depois de novamente transformado em pasta, voltará a servir de base à impressão das mesmas banalidades. Chama-se a isto um sem-fim de parvoeiras. O parafuso de Arquimedes adaptado às rotativas. O ciclo de reaproveitamento da mesma trampa. Palavras impressas não as leva o vento, ficam gravadas nos arquivos das redacções digitalmente conservadas em bases de dados sob a forma de megabytes para todo o sempre. Os governos copiam essas ideias originais num ápice. Na ânsia de tudo controlar e arquivar não tardará que as instituições governamentais se imiscuam a fundo em nossos mais profundos segredos e pecadilhos. Olha o IP a ser violado tal como cadeado barato a soçobrar perante robusto pé-de-cabra! Não basta sermos tratados antecipadamente como potenciais marginais perante a lei, que nos restringe os actos e que nos coarcta, ainda temos que aos poucos assistir a este big brother adaptado às T.I. a brotar de dentro dos gabinetes de controlo dos cidadãos, como se fosse uma planta carnívora alimentada em estufa. - Ó Virgílio, já deste de comer hoje à nepenthes sibuyanensis? - Já dei sim, atirei-lhe com dezasseis pintarroxos vivos pró bucho, mas olha que a filha da mãe estava com tanta fome que por pouco não me arrancou o braço. - Já te tinha avisado, aquilo é uma verdadeira enfardadeira de partes humanas, nem sei como a máfia ainda não se lembrou de tal para fazer suprimir os inconvenientes. Carne humana transformada em matéria vegetal é trigo limpo farinha amparo.” Que mais temos? Malefícios do tabaco… Olha o maleficum tabaco de novo nas parangonas. Isso, vai começar a acção de terrorismo mental cuja finalidade será a de criar um clima de depressão junto do leitor. Como se não bastasse todo o caudal de agruras que já se tem que suportar. 80


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Ei-lo: “Proibição de fumar tende a se agravar.” Já não chega encher os cofres do estado sob a forma de dinheiro dos impostos arrecadados por estes vícios legalizados, de ter que comprar medicamentos para terminar com o vício os quais não são comparticipados por “quem” arrecada as receitas fiscais, de ter que fumar debaixo de sacadas de prédios, pórticos, varandas e quejandas, como ainda temos que levar com este tipo de advertências em tom ameaçador. Realmente… O consumidor-pagador terá até ao fim dos tempos de carregar com todas as culpas sobre seus ombros. Neste caso nos seus pulmões, endinheirando enquanto vivem e consomem, as multinacionais e os Estados respectivos. Ainda por cima já há médicos que se recusam a tratar pacientes com cancro de pulmão. Esquecem que muitos desses pacientes contribuíram com seus impostos para que suas propinas de faculdade médica fossem subvencionadas, libertando os doutos senhores de uma parte da carga financeira para que se dedicassem, sem contingências maiores, ao aprendizado de uma louvável carreira que deveria ter como primado as pessoas. Neste study case em apreço, o tabagismo surge portanto como doença auto-infligida e será aparentado a suicídio, não podendo o paciente ser tratado a expensas dos contribuintes e, por extensão, não será enterrado em solo sacralizado. O facto de tal doença ser disseminada por instituições estatais não adiantará nada uma vez que essa desculpa, sem base médico-legal, carece de ónus de prova. Hipócrates fica quieto na tumba. Que estranha coincidência na origem da raiz da palavra hipócrita. Terá decerto sido em homenagem póstuma a ele… Espera. Este artigo em caixa destacada parece ser o contra-ponto ao artigo-mãe. Vejamos. Uma vida por um cigarro. “F. continua vivo e de boa saúde, embora tenha já atingido a provecta idade de 73 anos. E bem que poderia já se ter finado, faz agora precisamente 30 anos se, por simples acaso ou por

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providência divina, vá-se lá saber, não se tivesse ausentado por breves momentos do seu local de trabalho para fumar um cigarro. Operário tubista encontrava-se, em determinada hora de determinado dia, a efectuar reparações dentro de um dos tanques de um petroleiro quando, subitamente, a ordem de comando emitida por seu córtex cerebral, pela glândula pituitária ou por outra qualquer parte do seu organismo, o impeliu a ingerir, sob a forma de fumo, a dose de nicotina que os fumadores são obrigados a consumir repetidamente ao longo do dia, e que, como todo o fumador sabe, permite continuar as actividades rotineiras de modo mais prazenteiro, ajudando a diminuir o stress e deste modo, ajudando à produtividade. Uma vez que o interior do tanque cheio de vapores libertados pelos restos de nafta não era o melhor local nem o mais apropriado para iniciar tal pausa, F. necessitou de abandonar o local de trabalho por breves instantes e a vir à superfície do petroleiro de modo a poder saborear o seu cigarro. E era o que ele fazia naquele momento em que se dá uma violenta explosão que fez abanar o navio que repousava numa das docas secas do estaleiro naval. A explosão deveu-se, veio a saber-se mais tarde após inquérito realizado, a uma triste e infeliz reacção química entre os vapores dos restos da nafta que ainda se encontravam em grande quantidade naquele tanque e os gases emitidos pelos maçaricos de oxi-acetileno empregados no corte das anteparas interiores do tanque. Dos seus três camaradas que se encontravam no interior do tanque, dois morreram durante o transporte via helicóptero para o hospital, o outro, com queimaduras de terceiro grau em todo o corpo, sobreviveu.” Bem me parecia que havia razões de sobra para continuar a fumar! Já me sinto até melhor. O artigo principal que vá às favas. Se o tal F. não fumasse teria a vida encurtada em trinta anos. É uma fatia considerável de tempo de vida para se ignorar. Se calhar até eu já me safei de alguma destas partidas do destino por me ter ausentado para fumar um cigarrinho, ou ter ido comprar o maço diário a um qualquer café de esquina. 82


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Nunca o saberei e ainda bem. Mais vale viver neste tipo de ignorância do que saber que a determinada hora de determinado dia se tem um blind date marcado com a morte mesmo sabendo que a poderemos ludibriar por uma vez. Certo será a dita ficar de sobreaviso e levar a coisa a peito - esquálido peito - e desse modo ficar ainda mais de olho em nós. A partir desse momento iria querer encurtar minha mísera existência, talvez se fazendo passar por uma linda mulher me abordando em plena rua… - Olá borracho, hoje sinto-me levada do caneco por meus instintos mais básicos. Vamos dar uma curva? - Eee, s-sim, mas onde? - Leva-me para teu ninho de amor. Depois de envolvido com ela em profundo transe corpóreo, de repente transformar-se-ia em minha hedionda e horrorosa vizinha do segundo andar. Morreria de susto! Ou ainda fazendo-se passar por velha cigana querendo me ajudar. - Ai meu rico filho, mostra-mi a palma da mão pra eu ti ler a sina. - Tenho a mão suja, não dá pra ver nada. - Entãi, deixa-me lançar as cartas do tarô pra ti. - Não acredito nisso. - Ta bêim, toma lá os númiros do totoloti desta simana, eu douti. No fim-de-semana eu iria comparar os números que a cigana me dera - e os quais eu não jogara - e veria, estupidificado de horror, que era a chave certa. Morreria de raiva! Ou ainda, insistindo em seu intento, se fazendo passar por minha chefe me chamando a seu gabinete. - Veja-me lá porque é que eu não consigo inserir este CD no computador.

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- Mas onde é que está tentando inseri-lo? - Ora, dentro da gaveta das disquetes, onde seria? - Um CD dentro da gaveta das disquetes? Ah, ah, ah. Morreria de riso. T´arrenego! Melhor mesmo ficar na boa e eficaz dependência da soma dos acasos. No entanto ainda falta explicar qual a verdadeira razão de se viver. Depois de já cá estarmos o hábito fica arreigado. Mas se não estivéssemos aqui estaríamos onde? Será onde algum local existente? Que raio de sopa original, que bosta de caldo de cultura, feito de algas microscópicas e de organismos unicelulares se terá formado para dar origem a este desfilar de misérias e sofrimento de que a humanidade padece. Apetece dizer que não há caldo verde que se compare com este, em textura, sabor e efeitos adversos. E parece que tudo teve início nessa flatulência sideral que foi o Big Bang e que ainda hoje ecoa pelo universo até ao momento em que se dissipe a aca e volte para dentro do rabo que o emitiu. Mesmo para aqueles que não têm que se debater com a doença, a fome, a miséria ou o desemprego, chegará uma hora em que terão que enfrentar o findar da existência. Não será esse momento só por si suficiente para obliterar todo o prazer que se tenha tido nesta vida terrena? Estou farto de me perguntar qual a finalidade desta aberração cósmica. Sorte a dos bichos, ao que parece não têm conhecimento da sua breve existência que um dia terminará, esta espécie de contrato de ALD, este leasing com data marcada para terminar embora o desconheçamos no momento de apor nossa firma nele. Que raio de criador superior faz um boneco de barro e o põe a cozer durante seis dias para obter um resultado tão melindroso? E ainda teve que fazer várias tentativas. Até um oleiro coze seus tachos de barro para durarem mais tempo. Pergunto-me, esse criador, sumo-arquitecto que conseguiu originar uma obra tão complexa quanto o universo, e tudo nele contido, o visível e o 84


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que está fora de nossa percepção - embora evidentemente existente -, comete um erro crasso ao dar o suspiro da vida a uma criatura tão imperfeita e falível. E foi feito à sua imagem, imagino se fosse fruto de algum tipo de indeterminismo. Se era o cúmulo da vileza aquilo que pretendia, será de lhe dar os parabéns, pois nem o anjo caído em desgraça melhor conseguiria. Só de imaginar o resto dos mundos por ele criados… cada coisa viverá neles que nem passará pela cabeça dos diabos. Temos que apontar o dedo ao cavalheiro e dizer-lhe que cometeu uma gaffe das grandes. Aliás, não será isso que aquela cena pintada na Sistina pelo Miguel nos quererá transmitir; um apontando o dedo acusatório ao outro?

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CAPÍTULO XI Os Sorvedores de Oxigénio

Sem se preocuparem com estes pensamentos optimizados, lá estão os Quatro estarolas a aumentar as oitavas ao som emitido por suas decadentes pianolas, como se à saída das bocarras tivessem acoplado qualquer mecanismo de amplificação. Este é o prazer de conviver em sociedade! Podemos sempre assistir ao que os outros fazem, meditar profundamente sobre a origem, o modo e o ser e depois copiar tais atitudes ou rejeitá-las. Eu com eles formaria uma espécie de grupo de estudo sobre a sociedade portuguesa contemporânea, embora tendencioso, uma vez que já não seriam escolhidos aleatoriamente. Pois é, o estudo ficava comprometido na origem. Bem, talvez não mais do que os estudos encomendados às empresas de estudos de mercado ou os dados sobre o desemprego, publicados pelo sacrossanto instituto nacional de estatística. Mas é certo que logo se levantariam vozes discordantes exigindo a escolha aleatória e a entrevista por telefone, método estatístico mais fiável não há. Todos agrupadinhos por sexo, classe etária, local de residência, com margens de desvios, médias e medianas, questionários do qui-quadrado e outras técnicas quantitativas de modo a sondar pericialmente a mente humana, esse lodaçal de areias movediças espessas que é quase impenetrável. - Doutor, das seiscentas e vinte e oito chamadas que fizemos mais de cinquenta por cento recusaram-se a responder, que fazemos com estes dados tão enviesados? 86


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- Enviesado fica você depois de perder o emprego. Arranje prái qualquer trafulhice com o método de Hondt senão o estudo não dá nem para pagar o gasto de telefone.” Deixo de parte o comportamento social e viro-me antes para o comportamento animal. Neste meio ainda reina uma certa opacidade criativa da qual me posso aproveitar. Ao final de uns dias espetados numa jaula de reconhecido laboratório farmacêutico de pesquisas sobre o tratamento das doenças causadas pela onicomicose, salivariam mais que o cão do Pavlov ao escutar a sineta, mesmo sem escutarem sineta alguma. E, como racionais que (supostamente) são, sempre poderiam ao final apresentar uma explicação que melhor servisse os fins científicos em estudo do que aquela que se pode retirar a partir de reacções eivadas de sentidos dúplices e tríplices, que contraditoriamente se nos oferecem quando as cobaias são animais irracionais. Acabariam por claudicar na experiência ao passarem o tempo todo a roer as unhas, sendo dispensados compulsivamente da experiência pelo irritado clínico-coordenador, após a realização de uma endoscopia de despiste à síndrome do intestino irritável e logo que lhes tilintassem dentro da algibeira uns cobres. - Ah, tou muito satisfeito de ter participado nesta experiência tão boa. Fomos bem alimentados e bebemos ainda melhor, tudo o que ao final queríamos. - Mas parece que algo correu mal com dois de vocês, não? - Bem um roía as unhas e o outro metia o dedo no rabo pra cheirar, mas eu e o outro fizemos tudo que nos disseram. - Mas não lhe extirparam um pé? - Ora, estava boto desde nascença, foi um favor que me fizeram e ainda fiquei com outro, e este são. - Agradou-lhe então ter participado? - Muito, parece quase um desses shows ao vivo só faltava a assistência aplaudindo. Espero ser convidado a participar no próximo programa, acho que vai ser sobre testes a medicamentos novos contra a falta de vontade. 87


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- Contra a disfunção sexual, portanto. E isso agrada-lhe? - Bom, sempre é uma maneira de rentabilizar uma parte do corpo, enquanto o tenho.” Cuidado com os tipos de bata branca, eles não brincam em serviço. Parecem inofensivos ratos de laboratório, mas estão treinados e equipados tal como se fossem agentes das secretas. Ainda temos má memória do que aquele desgraçado de delegado de informação médica sofreu ao ser escarificado, a sangue-frio, como se fosse membro de qualquer tribo maori. Livra! Que não me invada a lembrança daquele misto de teoria da escola Bauhaus e de cirurgia reconstrutiva, de fazer candeeiros com pele humana. Nada melhor que a engenharia alemã em prodigalidade. Melhor baixar a cabeça e embrenhar-me na leitura de novo. Faço de conta que os ignoro. Como? O vozeirão amplifica-se ao chocar nas cabeças do salão e incide sobre mim como dardos atirados a um alvo. Parecem quatro aberrantes personagens à procura de autor. Um que esteja em fim de carreira e de cirrose, mais nenhum lhes daria a mão, ou o coto que fosse. A lírica língua de Camões transformada num matraquear de vitupérios no seu melhor. Meus senhores, estamos em presença do verdadeiro vernáculo! Falasse o poeta como eles e gostaria de ter uma cópia dos Lusíadas como livro de referência. Imagino o tipo de musas de inspiração que o olhariam, enternecidamente, do alto de seus pedestais. Decerto não obedeceriam à imagem que temos de tais jovens mulheres, cândidas e resplandecentes de ingénua beleza, mostrando pudicamente seus seios direitos desnudos e lançando sobre o versejador, a luz inspiradora. Que nada, seriam mais parecidas com ostensivas mulheres da vida, de pudentes carnes oferecidas como vestais, a seus esfaimados sacerdotes do culto. Nem o título da obra seria mais o mesmo. O Luís chamar-lhe-ia, na melhor das hipóteses, “As Lusitas”, e contaria não a gesta de um povo de marinheiros que deu mundos ao mundo, mas sim a história grosseira de um monte de vadias evadidas do presídio do Limoeiro, loucas por sexo e em 88


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conquista de jovens pajens, por essas ruas pré-pombalinas afora. Eis a obra ímpar de um poeta transmutada num escrito em quadras de difícil métrica que destronariam, pelo seu conteúdo inusitado, o marquês de Sade ou fariam do nosso Bocage um irmão leigo. “Amor é fogo que arde sem se ver”. Ficaria algo parecido com: “… amor, vem cá que eu já estou a ferver.” “As armas e os barões assinalados que, da ocidental praia lusitana…” “… nas acidentadas praias as lusitas bundas de varões tão necessitadas.” Não creio que a obra fosse alguma vez adoptada como currícula nas escolas C+S do país, até porque concorreria para a depravação de várias gerações de alunos promissores, mas pelo menos poderia servir aos cantores pimbas como fonte de inspiração em suas eloquentes canções: “Olha a lusita que tanta carne tem pra dar, vem o caranguejo-eremita e mete-a de bunda pró-ar. Ai Adamastor que tanto nos destes de dor, olha pró tamanho do couso e vê se há rabo que seja tão guloso.” Ou este ainda; “Lusita tão formosa que ides à fonte, toma lá cuidado com esses tipos no monte, o que eles querem é moça aguadilha, deixa a saia de lado e toma mas é cuidado com a bilha.”

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Também poderia suceder, a jeito de partida pregada pela História deste condado que o porvir trouxesse com ele um certo furor para com este tipo de literatura, decerto avançadíssima para a época e que ao contrário do anteriormente pensado, uma nova escola de escritores surgisse com toda sua pujança libertina. Talvez hoje houvesse algum prémio Nobel que permeasse entre eles e que nos escaparates se pudessem hoje visualizar alguns dos títulos de obras premiadas tais como: “Na Pia Casa Dos Prazeres - Romance semi-autobiográfico premiado com o prémio revelação do ano; Já disponível! a 5.ª edição do thriller policial - Sexo, Meninos e Ministros -”.

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CAPÍTULO XII A Tese

Os cro-magnon continuam a alardear sua verborreia pelas escancaradas bocas, alheios a meus pensamentos reprobatórios. Apresento desde já minhas sentidas desculpas antropológicas à espécie. Talvez sinantropos lhes assente melhor, pelo menos relego-os para os confins do deserto de Góbi. Assim, na pior das hipóteses, apenas ficarei exposto ao olhar reprovador do negociante chinês que tem uma loja multiartigos perto de minha casa. Como é parco de palavras e seu domínio de português escasso, será menos um problema futuro a que terei que atribuir importância. Que me queime em efígie por tal desassombro. Aliás, retribuo-lhe deste modo o olhar guloso que sempre lança a meu cachorro cada vez que passo por ele. Por falar nisso, as parecenças com a China não se ficam por aqui. Houvesse uma mulher entre os quatro convivas e seria para este bando o que a senhora mao tse tung foi para o outro Bando dos Quatro, o original. Talvez um deles seja transexual ou pelo menos andrógino. Desse modo minha teoria ficaria aprovada. A senhora Mao também parecia mais homem que mulher, que traste de coisa mais feia, deve ter sido concebida através de partenogénese. Bom, não admitiria cá nenhuma comissão científica independente, cruzamento de dados com outros institutos, renomeado teórico estrangeiro, convidado a peso de ouro - pago pelos contribuintes, claro - para dissertar sobre a veracidade dos factos. Nada!

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Seria automaticamente outorgada a verdade da descoberta. Bravo, nem a Elena Ceausescu se lembraria de uma destas! Traços achinesados em algum deles? Não me parecem chineses. Aquelas carantonhas não enganam, tal como o algodão. São decididamente feios, mas caucasianos, tronco ibérico, sub-tronco lusitano. Nem tão pouco olhos rasgados em bico eles têm, são mais do tipo charolês espantado. O gordo tem uma cara que faz lembrar um kiwi transgénico, o fininho parece um furão atacado de maximatose, o outro parece um goraz, o pencudo, tem uma nariganga demasiado grande para se parecer com qualquer habitante da província de shenziang. Opto por fazer uma revogação em minha sino-teoria. Nem mesmo com a ajuda de uma lima, limatão, grosa ou plaina eu conseguiria fazer - limando os ossos parietais até que os olhinhos se afunilassem - que aquelas caras de pau se parecessem, mesmo de longe, com chineses. - Não, isto não vai lá nem com lima, nem com limatão, nem com grosa. Nem mesmo com a plaina. Bom, passa-me a rebarbadora. - Mas chefe, não há risco de provocar danos irreversíveis nos proto-sínicos? - Bem, a técnica subjacente é mais a de escultor do que a de cirurgião, por isso, fé em Deus e que ele guie minha mão. Acabaria por criar quatro ogres horripilantes e ao final teria que eliminar a má sucedida experiência. No fundo, proceder como os aviários quando descobrem algumas galinhas mutantes, galinhas que, se entrassem no circuito comercial, tirariam a vontade de comer a qualquer um de nós. Vou seriamente pensar em guardar no cartão de memória esta potencial dissertação de tese de mestrado em antropologia cultural. Faço desde já a advertência, que não se atreva nenhum borbulhento estudante de mestrado integrado pós-Bolonha, a tentar sequer se aproveitar, de tal exercício de raciocínio ontológico. A mesma sentença de morte se aplica 92


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igualmente a qualquer aprendiz informático, actual ou futuro, que não tolerarei qualquer tipo de download, cópia ou aproveitamento, em parte ou no seu todo, deste meu jogo, incluindo a banda sonora. Vou a correr ao INPI tratar dos direitos autorais.

Deixa mas é dar uma espreitadela às horas. Quê!? Só passou um minuto de viagem? Como? Estou a navegar numa lancha rápida em direcção à margem oposta ou ando aqui em pleno mar da Palha fazendo alguma espécie de circuito turístico com um monte de turistas sexagenários em desfrute de suas chorudas pensões-reforma com travo a champanhe? - Mestre, que se passa que andamos práqui às voltas e em risco de adornar a embarcação. - Com mil caracóis-do-mar! Não vês que esta cambada lá da capitania mandaram colocar as bóias de sinalização como se fosse possível fazer isso com o cú sentado na cadeira. Agarram na porra do mapa hidrográfico e espetam-lhe punaises como se estivessem a jogar xadrez.” Por Júpiter e pelo seu tridente! Mas quais turbinas quais quê, afinal isto não passa de uma reles barcaça, algo que se move com a velocidade de jangada, impulsionada por remos entregues aos caprichos de uma tripulação constituída por escravos cativos, logo pouco eficientes. Sem direitos sociais abrangentes estes recusam-se a mover os remos mais depressa, numa atitude que copia integralmente a dos funcionários de qualquer repartição pública. Por todos os funcionários presos dentro de seus guichets! Bem me parecia que afinal o caminho mais próximo entre dois pontos não é linha recta nenhuma, como diz a lei universal. Parece que será mais de aplicar a esta minha padecente viagem a teoria da curvatura do espaço-tempo. O

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Albert que me ajude nesta minha conjectura ensaística. Afinal, tal como acontece no espaço sideral, também esta nave parece seguir um caminho circularmente oposto ao devido e, naquilo que parece ser uma súbita decisão por parte do contramestre, ginga repentinamente a bombordo e volta a seguir a carta náutica. Depois, como se o mestre de navegação fluvial de novo se enganasse, vira bruscamente a estibordo e lá começa a estranha dança marítima, como se o rio estivesse pejado de minas submarinas que fosse preciso evitar. Melhor verificar se não será a cebola que me serve de relógio que terá parado. Não... está a funcionar perfeitamente. E o electrodomésticotelefone-despertador diz-me igualmente que só passou um minuto, dois no máximo. Será que este rio se transformou de um momento para o outro no Estige e que estamos a ser comandados por Caronte? Assim sendo estamos viajando como condenados na barca maldita e as almas estarão eternamente perdidas. Sabe-se que não há volta. Já me sinto um novo personagem de Dante. Espero a qualquer momento descortinar, lá ao fundo, ao contrário da escavacada silhueta reconfortante do Cais das Colunas, o areal brumoso do Hades. “Não é baixel pequeno e estreito O mar que a proa vai cortando agora, Nem para nauta a se poupar afeito.” Terá sido alguma espécie de buraco negro que nos engoliu? Algum “gap” no espaço-tempo, como se houvesse sido operada uma entrada noutra estranha dimensão? Na verdade, os poucos marinheiros que vi antes da partida da nave dos condenados tinham um ar um pouco soturno e suspeito. Bem, deve ser paranóia minha. Se não foi pedida a moeda, nem debaixo da língua, nem de mão estendida. Só o passe de chip electrónico do costume, para franquear os torniquetes de acesso ao cais. E eu estou vivo ainda. Acho eu... b-bem, 94


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meus pulmões inspiram e expiram. Será isso sinal suficiente de se estar vivo ou necessito de melhor comprovativo? Não tenho espelho para colocar na frente da boca e assim verificar se meu hálito o embacia. Pressão arterial parece que tenho. No pulso, no artelho... Ora esta, apetece-me entrar pela área vedada e perguntar ao primeiro uniformizado que veja o que se passa. Veementemente, mas segundo as regras da boa moral e dos relacionamentos sociais. Provavelmente receberia uma evasiva como resposta, na melhor das situações. Na pior, um enxovalho próprio de embarcadiço. - Senhor marinheiro, porque é que estamos tão atrasados? - É por causa do tempo. - Do tempo, mas até o sol já apareceu. - Do mar, quis eu dizer. - Mas tá mar chão… - Chiça! estamos de greve, prontos! - Mas estamos em pleno rio, como assim? - As greves têm hora marcada para começar senhor passageiro, estejamos onde estivermos.” Não será esta tripulação herdeira dos antigos fragateiros do rio? Gente dura e rude habituada a tantas escabrosidades e a passar tanto tempo no mar. Curtidos pelo sol e pelo sal tal como bacalhaus colocados na salmurica seca, passavam tanto tempo entregues aos mesteres próprios de sua actividade que até deu tempo o suficiente para criar, entre duas visitas rápidas a terra pra aliviar a tensão acumulada nos canais deferentes, pratos deliciosamente gastronómicos. E se são adeptos da boa cozinha mediterrânica estes tipos. Uns verdadeiros gourmets nacionalistas que se estão nas tintas para com o fast-food ou para a nouvelle cuisine. Já os vi a cozinhar a bordo e pude sentir o odorífico e inconfundível odor a sardinhas e pimentos assados, parecia que o barco estava a arder, tal a nuvem de

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fumo espesso que dele se desprendia, à popa. Imagino-os, folgazões, a cantarem a sua ode: “Enquanto um conduz a barca com o timão, o outro assa o pimentão, enquanto este verifica a pressão do óleo com a varinha, aqueloutro salga a sardinha.” Deveria ser deveras estranho para quem observasse tal espectáculo a partir das margens. Ia crer estar a observar um antigo barco a vapor ressuscitado do fundo do rio como se fosse navio fantasma. Um Bolama resgatado do fundo do lodo, um Tollan arrancado ao emaranhado de limos e sargaços. A bordo não há lugar para tipos de comida abichanados. Hamburguerzinhos, pizzazinhas, croquetinhos com arroz de cenoura, regados com laranjada gaseificada. Tudo que não compita com o bacalhau com todos, cozido à portuguesa ou com pezinhos de coentrada, é considerada comida ímpia. Farta comezaina logo pela manhã, para matabichar à maneira de estivador.

Ah! Mas… Será que este bailado aquático, este lago dos cisnes transformado em rio dos loucos, esta barca do inferno entregue a mãos tresloucadas de um capitão Nemo enlouquecido pelo excesso de horas extras agarrado ao leme, não terá uma explicação mais radical? Será que se trata de qualquer acção de desvio do insuspeito navio de mercadoria humana por parte de terroristas? Serão talibãs, xiitas, sunitas, palestinos ou outra arabice qualquer? Talvez sejam hashishin rifenhos, cabirianos membros da FIS, ou talvez sejam mouros magrebinos, fartos de espetar uma lança, em sentido figurado, em África, e que agora querem fazê-lo 96


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sim, nas partes privadas da cristandade ocidental? Quererão eles tomar o Castelo outrora sua pertença e conquistado graças ao esmagador zelo do esmagado Moniz - bem como os bairros começados por al ? Que o Patriarca nos proteja a todos, esse fidelíssimo representante do santo benedictus na lusa cidade capital e fiel depositário da boa e cristianíssima fé durante tantos anos esgrimida pelo ceptro de madeira de cerejeira. De facto o único tripulante que tive a ocasião de ver, de esguelha, passando de fininho como donzela tentando evitar olhares de desejo, saindo da sala de comando, tinha um pouco ar de adorador de Mafoma. Embora sem turbante ou outro sinal exterior indubitavelmente identificativo, era demasiado trigueiro para ser considerado nado em alguma de nossas meridionais províncias. E até tinha o farto bigode a condizer. Claro, aquela bigodaça farfalhuda à anos setenta que nenhum islamita consegue rapar, contrariamente àqueles nossos políticos que liam o livrinho vermelho nessa quente época revolucionária. “- Esse seu bigode estaliniano tem alguma conotação política prática? - É o bigode de nossos ancestrais camponeses e operários cuja libertação nós, intelectuais, tomámos em nossas mãos. - E essa boina guevariana também traduz o mesmo sentimento, presumo? - Não, a boina é só para me proteger do sol.” Será mesmo? Bem, caso fosse realidade que pretenderiam eles de uma barcaça a abarrotar de gente anónima, sem vínculo directo à administração americana, sem traços de sangue real, aristocrático ou azul, a correr nas suas veias e que apenas pretende chegar a horas ao seu destino? Resgate? Quê? É tudo uma cambada de pelintras. Ao final do peditório não lucrariam nem para pagar os custos da operação. Não saberão eles que somos os menos bem pagos de toda a Hispânia?

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Espero que não entrem numa de pedir resgate algum, com o erário público na situação catastrófica em que se encontra, com o défice público perto de explodir de riso, a olhar para os distantes três por cento, duvido que houvesse qualquer pagamento contra reembolso. Diriam logo como desculpa que não negociavam com terroristas. Tout court. Só pra calar a boca aos desesperados familiares dos reféns, que se veriam obrigados a rifar, vender ao desbarato, penhorar, partir os porquinhos dos filhos, mendigar junto da santa casa e implorar na rua para conseguirem juntar o montante exigido. À venial solicitação da pobre senhora, invadida pelo desespero e pela tristeza de ter seu filhinho raptado dentro da barcaça da desgraça, responderia o cidadão mais recalcitrante: “- Meu bom senhor, meu filhinho é um dos que estão raptados a bordo da barcaça da desgraça. Por favor, colabore com qualquer coisinha. - Minha senhora, não participo em acções de suporte a comportamentos mendicantes. Safe-se como puder.” Será para nos fazer afundar algures entre a bóia 23 (!) e os antigos estaleiros navais, (palco de tantas refregas anteriores com intervenientes quase do mesmo tipo), carregados de explosivos no bojo? Nesse caso a construção das Tagus Towers poderia saltar definitivamente da prancha ociosa do arquitecto e tornar-se uma realidade. Seria o nosso ground zero optimizado maravilhosamente à especulação imobiliária. - “Há males que vêm por bem”. Diriam alguns, após depositarem a coroa de flores colectiva respeitante a todos nós, na flutuante mansidão das águas. E, terminada a cerimónia, rapidamente dirigir-se-iam, empurrandose tempestuosamente, ao cartório notarial mais próximo de modo a sinalizarem os seus investimentos. Ou será antes que pretendem chocar de frente contra qualquer vaso de guerra? Porta-aviões não pois não temos. Ah, Helás! Vão querer afundar 98


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um de nossos submarinos, o Barracuda não deve ser que está podre de velho e afundar-se-á a ele próprio na devida altura como se praticando haraquiri naval. Um dos novos, pois. Acho que o primeiro já chegou e se bem que não seja movido a energia atómica, não deixou de custar um buraco aos bolsos dos contribuintes, tal como a crise financeira, que parece ter o fundo da fossa das Marianas como limite. Outra hipótese será terem como alvo a nossa possante base naval, aqui mesmo em frente. Caramba, com a quase totalidade de nossa frota lá fundeada seria uma verdadeira hecatombe. O nosso Pearl Harbor, o nosso Porto Arthur, que tal não possa jamais acontecer. Melhor seria mesmo que, por via das dúvidas, mandassem entaipar o Cristo-Rei e que se pintassem apressadamente lá no pórtico dos estaleiros uns dizeres do tipo: aL ISNch AllahVE. Poderia ser que nos safássemos com essa artimanha… Pelo sim pelo não, melhor eu ver se o jornal não traz publicado algum cartoon do profeta, caso que me poderia colocar em maus lençóis. Neste caso, em más djellabas. Seria obrigado a desfazer-me dele atirando-o sorrateiramente para debaixo dos pés do infeliz passageiro à minha frente. Nem pensar em me dirigir à ponte. Arrisco-me a enfrentar não um simples marinheiro que me dirija um olhar raiado de sangue, como quem diz: “Que vem este paisano da treta aqui fazer?”, esquivando-se a uma resposta tranquilizadora à minha angustiante pergunta, como além do mais ainda me arrisco a ser de imediato fuzilado para servir de exemplo aos restantes. Embora uma situação se confunda por vezes com a outra. E mesmo que a solução final não fosse meu destino, nada me diz que não fosse amordaçado e atado ao mastro da bujarrona com nós cegos feitos com a relinga. Isso era nos barcos à vela, pá!! Pronto, no aparelho de radar, revolteando no ar até à exaustão.

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Pior se eu conseguisse sobreviver a tal torturante tratamento e, ao final me condoesse de tal modo que, ao ser libertado pelos nossos eficazes GOE, com a mente afectada pela Síndrome de Estocolmo, decidisse optar por semelhante modo de vida. Já me vejo a receber treino em Tora Bora e a trocar cigarros turcos com os herdeiros do Bin, bebericando chávenas de chá preto, enquanto se limpam as kalash e se trocam impressões sobre os novos alvos a abater. Melhor aguardar novos desenvolvimentos. Tranquilo. Vou tentar espreitar pela janela/vigia pra ver se vejo o periscópico pescoço de algum submarino a emergir algures por aí. Terá que ter cuidado com os bancos de terra e de cascas de ostras. Submarino encalhado deve ser do mais risível que se poderá assistir. Felizmente o nosso potencial Kursk não se defrontaria com a profundidade do oceano árctico. E decerto que logo haveria corajosos e audaciosos voluntários em seus botes, chatas e doris, para resgatar da metálica sepultura toda a infeliz tripulação. Contaria mais tarde aos órgãos de comunicação social um dos intervenientes em tão meritosa iniciativa de resgate: “Só eu no meu Orelhas d´Osso resgatei o imediato, dois tenentes e dez marinheiros de segunda e ainda o cágado Maurício que era a mascote de bordo. Coitadas das mulheres ficaram para último dentro do supositório de aço. Contam que aquela história de mulheres e crianças primeiro, não se aplica aos militares. Também as mamas não ajudam nada a passar pelo tubo dos torpedos de estreito que é.” Que nada disso aconteça e que os bravos marinheiros e oficiais do NRP qualquer coisa vivam o bastante para combater a pirataria e a bandalheira a que a nossa ZEE está entregue, zelando pelo cumprimento da ordem e da lei como tão bem faz a Polícia Marítima, numa luta constante contra apanhadores clandestinos de minhoca, esses perigosos e obstinados

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meliantes não portadores de licença para a actividade extractiva de vermes anelídeos. - O Senhor mostre-me a licença. - Ó senhor guarda licença de quê? - De quê? Não sabe que anda na apanha de espécies protegidas por lei? - Por lei, senhor guarda... são apenas minhocas senhor meu agente. - Minhoca é animal para todos os efeitos. Passe pra cá a enxó e o bilhete de identidade, remíveis pós pagamento voluntário de coima. Olha… Mas aquele gajo é meu amigo de infância. - Eh pá, sabes que no outro dia vi-te no trabalho e confundi-te com um árabe? - Oxalá (!) assim fosse, meu amigo, um daqueles ricos efendis que fica com as mulheres todas pra ele. Que chatice. Mais uma teoria destruída, o que dá origem a mais um vazio naquele que prometia ser um dia diferente, mais animado e aventuroso. Aquilo que parecia ir quebrar a rotina diária, este ram ram quotidiano, não passou de mais um logro. E ainda estava a ponto de confundir um amigo com um terrorista. Cuidado, quando o medo, a insegurança e a instabilidade nos atingem, deixamos de raciocinar devidamente e tornamo-nos preconceituosos.

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CAPÍTULO XIII O Frankenstein Social Nada de desvios de barcas, nada de árabes, berberes ou mouriscos. Nada de submarinos, emersos ou imersos. Apenas e só o rio contido pelas suas margens barrentas aqui e ali, e pelos molhes, muralhas e paredões além e acolá. Pespontam em várias zonas, à medida que a barca se afasta de terra, uns ilhéus feitos de lamas retiradas ao fundo do rio pela força da aspiração das turbinas do tráfego local e pelas dragas, numa perpétua necessidade de compor a calo. Não fora o mau auspício do início chuvoso da manhã, e montões de gente já teriam vindo à procura de sol e mar, passo a expressão. Lá ao fundo, no sujo areal, os primeiros audazes e desrespeitadores das normas emitidas pelas delegações regionais de saúde, já teriam montado seus chapéus-de-sol e preparar-se-iam para mais um dia de doce praia fluvial, deitados nas toalhas de praia tesas pelo sal, afugentado as curiosas pulgas d´água com os pés e esturricando seus corpos untados de coppertone, escarnecendo dos raios UVA, desprezando os UV. Será que por força de tantas épocas balneares passadas, seus corpos já adquiriram imunidade contra os milhões de bactérias que se encontram num mililitro desta ribeirinha água? Um pirulito desta mixórdia deve conseguir abater um cavalo de corrida num ápice, junto com seu jóquei. Como explicar este milagre da adaptação humana, será que algum delegado de saúde conseguirá fazê-lo sem ofender?

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“Jaquina, engoli um golo desta água quando mergulhei ali perto do sapal e estou a sentir-me mal. Mas eu não te disse para deixares de brincar como se estivesses no Meco, lembra-te que isto mais parece o cais do Ginjal. E agora, lá se vai a praia dos miúdos para ir contigo ao hospital. Mas filha será que as crianças não apanharam aqui nestas águas barrentas aquela coisa que os faz coçar como cadelas sarnentas? Qual coisa, uma coisa mereces tu eu sei onde. Já fizeste a mesma fita na outra vez que fomos à praia em Vila do Conde. Desde que venho aqui só me cortei uma vez no pé, por causa de uma lata de sardinhas que pisei. Nem sarna, nem pica-pica alguma vez apanhei.” De facto, se as tainhas conseguiram se adaptar a esta qualidade de água porque não o ser humano, muito mais adaptável por excelência. Se um reles peixe de água salobra sobrevive, não sobreviverá um muito mais rijo e dezenas de vezes mais pesado e imuno-vacinado cidadão? “Se a bela tainha à babuje consegue comer, também dessa água se conseguirá beber. Se o peixe neste sujo rio consegue desovar, também em pelota todos poderão nadar.” Margem direita; caramba! Apetece logo voltar de novo a embrenhar cabeça e pensamentos no jornal. Chaminés feias parecidas com velhos cigarros apagados, tesos como lingas, apontam em direcção ao céu. O que é

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que aquele industrialíssimo Alfredo tinha que vir para aqui armado em pingarelho. Não lhe chegava a fábrica de sabões que tinha lá em Alcântara? Fizesse a porcaria na sua própria proximidade e que comesse depois dela. C´um caraças! Ainda por cima a lixeira a céu aberto continua ali amontoada. Fizeram a porcaria que tinham a fazer e tal como tinham aparecido, esfumaram-se no incognoscível manto do anonimato tal como se esfumaram os milhões de toneladas de porcaria que enviaram para a atmosfera e para dentro do rio. Parece uma cópia selvagem à escala nacional, daquilo que outros primus inter pares fizeram em Bophal ou em Séveso. Agora o manto de ruínas fica como monumento a seu tão benemérito espírito industrial. Espera, devem estar a preparar-se para no novo PDM a declararem como zona protegida. Acho que já li algures num pasquim local que querem construir estúdios de cinema algures práqueles lados. Não deixa de ser uma boa ideia. Imagine-se a quantidade de filmes de guerra que se podem rodar naqueles barracões esventrados e nas ruas que serpenteiam no meio daqueles montes de pirite. Aaa, sim, e filmes ingleses passados na altura da revolução industrial, tipo David Copperfield, tendo como pano de fundo o familiar perfil do esventrado casario operário. Pena já não haver aquele nevoeiro artificial, agridoce e espesso, pairando acima das cabeças do malfadado proletariado. A Londres vitoriana estaria recriada faltando apenas um Big-Ben feito de cartão prensado a compor o cenário. Seria óptimo para rodar uns filmes noir do tempo do Jack Estripador ou do Sherlock. Bom, poderá dar emprego a muita gentinha. Figurantes pelo menos, actores principais duvido. Não tou a ver contratarem um cortador de carnes verdes para fazer o papel de Jack, nem nenhum puto piolhoso dos arrabaldes a fazer a vez de David, ou um guarda-nocturno reformado a fazer de Sherlock. “Atenção! Action!... Corta! God damned… já lhe disse trinta times para not segurar a knife como se fosse desmanchar one 104


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peça de beef, man. Do it como se fosse cravar no neck da sua mother in law, for god sake! And you, little man, come with real piolhos pró set fazer movie…Jesus help me! And that retired guarda só tem one bom eye, please alguém find another with two!!” Só espero que, dentro do tão badalado novel espírito de responsabilidade social das empresas, não paguem mais pelo aluguer de alguma pileca do que pelos autóctones figurantes.

Jornal de novo. Que mais temos? Ora, cento e cinquenta anos de solidão para o piramidal Madoff; todos os bancos estão a ser investigados; paraísos fiscais sob suspeita; outlets, ilhas e offshores. Espera… Estou na secção dedicada à economia ou às viagens e lazer? Mas que paraísos falam eles? Saint Kitts. Onde raio ficará tal afloramento rochoso? E em que oceano? Offshores? Viverão as pessoas no meio do mar em palafíticas casas de bambu tal como o nome indica? O Canal da Mancha tem pra lá umas ilhas dessas. E há um país lá prós lados dos Alpes que também é branco imaculado. Deve ser por isso que dizem que tem o monte mais branco de todos e que branco mais branco não há. Curioso que só agora tenham descoberto a existência destas paradisíacas ilhotas atafulhadas em dinheiro sujo. E estes estados minúsculos encravados em montanhas, agora sei o porquê de tal camuflagem natural. Continuemos: Cartas ao director. “Os bancos estão mais preocupados em tratar das contas correntes entre eles e em se livrar dos activos tóxicos. Pois é. Quem diria que eram considerados seguros e com elevado índice de retorno ainda há alguns meses atrás. Os bancos simplesmente abriram mão de sua iniciativa como parceiros de negócios e remeteram-se à sua única e redundante missão de 105


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emprestadores de dinheiro contra juros, agiotagem institucionalizada, no fundo. A miragem sempre, do dinheiro fácil e obtido com o mínimo esforço possível. A especulação bolsista, a do imobiliário, a das acções de empresas artificialmente sobrevalorizadas, a dos produtos financeiros altamente rentáveis e que não passam de artificialismos com pés de barro. Sem actividade transformativa, sem incorporar maisvalias aos produtos e matérias não há criação de riqueza verdadeira. Assim que a América tosse, o resto do mundo constipa-se. Deve identificar-se tosse com bolhas de mercados que estouram e constipação com depressão. E do impacte que a tomada errada de procedimentos e de decisões, no mundo capitalista, tem em termos de custos de vidas humanas em todo o globo? Já nem se pode olhar a questão como um aforismo marxista do proletário explorado e vilipendiado, na medida em que cada vez mais pessoas da classe média e quadros superiores são igualmente engolidos nesta aritmética depressiva. Trata-se sim da exploração deliberada e descarada da população mundial no seu todo, bem como dos recursos do planeta até ao limite. Eis o quadro clínico do mundo capitalista pós-resfriado. Haverá sempre culpados, por muito que se tente escamotear a questão. Há que identificar tais culpados e tentar incutir nas pessoas a consciência de que o mundo é organizado a partir de uma cúpula de elite que pouco ou nada tem de personalidade ética.” Teoria do caos aplicada à variação anacrónica dos mercados financeiros, suma realidade do que são sistemas complexos e não lineares de todo. Ainda o outro anunciava o fim da História e a vitória da sociedade capitalista sobre a economia planificada. Agora são os capitalistas ortodoxos que têm que socializar a economia. Dizer que a sociedade chinesa perfilha a ideologia comunista dá vontade de rir, afirmar que as sociedades capitalistas ocidentais estão a re-nacionalizar bancos até faz corar. Ah! Bem feito para eles aprenderem que a história não tem fim. Recopia-se a ela mesma com a intervenção de personagens novas, mas o

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teatro em que se movem permanece, com as devidas modificações políticas e sociais, que, no entanto, não ditam o fim da luta de classes. Esta luta toma o nome, nas sociedades contemporâneas ditas evoluídas, de mobilidade social, um eufemismo. O capitalismo é uma criação humana e como tal foi feito à sua imagem: este Frankenstein social tem como atributos o que melhor reflecte a besta e a sua enorme avidez, não fora ser atributo do homem a ganância e o egoísmo. O estômago dilatado da criatura que mercê da obesidade fabrica ácidos corrosivos e emite gases tóxicos bem como uma considerável evacuação de podres, é o resultado de devorar de modo sôfrego tudo o que são recursos, empresas e até países inteiros. Afirma-se que é o melhor modo de organização da sociedade, aquele que até à data melhores resultados conseguiu em termos de desenvolvimento e de criação de riqueza e que melhor distribuiu estes resultados por toda a humanidade. Sim, será verdade nalguns países, mas veja-se o cenário do que acontece na grande maioria dos restantes e aí ter-se-á que inflectir esta teoria. Se hoje o mundo produz e enriquece a uma velocidade nunca antes atingida também é verdade que o fosso que separa uma parte da população da outra, imensamente maior, nunca foi tão largo e tão fundo. Hoje o planeta vive a várias velocidades, desde a que é imposta pela sociedade tecnológica evoluída até à velocidade perto do zero em que vários povos e populações sobrevivem um pouco por todo o globo. A idade da pedra irá em breve conviver de novo com a idade do átomo, o arado de madeira com o iphone. O capital especulativo, que é a carranca que a criatura apresenta, em que o dinheiro se transforma em dinheiro ao contrário do dinheiro que surge a fazer coisas como a antiga ordem económica ensinara, promete convulsionar ciclicamente o planeta. Seja através da criação de instrumentos financeiros corrompidos ou de crises sectoriais em países que arrastarão inevitavelmente outros uma vez que a interdependência

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financeira e económica atingiu proporções gigantescas entre governos e nações, possível apenas através de certos mecanismos de engenharia financeira proporcionados pelos hiper-mercados do capital situados no lócus do controlo económico mundial: a especulação bolsista. A questão crucial baseia-se no menor potencial crescimento dos mercados domésticos dos países ricos em capital. Este é o problema clássico da realização de capital que obriga a um deslocamento de recursos da esfera produtiva para a esfera financeira e a um aumento dos mercados domésticos e internacionais de capitais como estratégia de saída para a crise interna de acumulação. As bolsas podem destruir um país atirando a baixo o valor das suas acções. Fortunas e falências generalizadas acontecem de um dia para o outro neste mercado global feito à nossa imagem que tem a forma da trôpega criatura que se põe irresponsavelmente a jogar dominó. Pena que os mais fracos sempre serão os que pagarão as crises e que após estas passarem, para lá do monte de despojos que deixam pelas ruas, ninguém aparentemente aprenderá nada. Nem ilações nem sabedoria. O homem é por natureza egoísta sendo os casos de abnegação uma verdadeira raridade que nem de longe conseguem dar uma pitada de sabor a solidariedade à realidade social.

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CAPÍTULO XIV Colegas Maçons

Mas não é que demora esta viagem... Barca feita em estaleiro de mão-de-obra barata no extremo oriente para servir outra mão-de-obra barata – no extremo ocidente - que se dedica por sua vez ao help-desk e a introduzir informações em bases de dados. Foi a substituição da serventia à máquina industrial pela prisão dos cubículos do atendimento on-line. A vingança do operário da fábrica sobre o neófito licenciado em direito obrigado a ganhar míseros euros como prémio de consolo por, ao final do curso, ser considerado iletrado ou possuidor de putativo grau académico não compatível com as actuais funções de mercado, desempenhando tarefas de baixo grau de habilitação. Por excesso de oferta de licenciados num país em que a média de escolaridade continua a ser das mais baixas da Europa ou porque as regras do mercado de trabalho ficaram de tal modo invertidas que os empregadores fazem o que bem lhes apetece em virtude da alta taxa de desemprego? A barca foi feita sem qualidade e sem esmero, fazendo com que o interior gélido no inverno e calorosamente asfixiante no verão faça com que os utentes se sintam como pinguins em pleno deserto da Líbia, ou escaravelhos do deserto em tupperware aberto dentro do frigorífico, dependendo da estação em análise. Os jornais e revistas servem de leques. Ainda bem que trouxe um guardanapo de papel. Serve para limpar as gotas de suor que me cobrem a testa, embora já sujo de limpar os dedos por culpa da tinta do jornal.

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Olha, olha, outro preciosismo nacional: “Taxa de desemprego atinge os 10,9 por cento, a maior desde há memória.” Safa, ainda bem que não contam com todos os “empregos” de carácter sazonal, os que estão recebendo formação, dita profissional e os que não estão inscritos nos centros de emprego por saberem que suas situações particulares não têm solução governativa, preferindo viver de actividades de economia paralela ou de biscates. Junte-se todos os outros que vivem nas ruas e a taxa aproximar-se-ia decerto da espanhola. Que chatice esta de haver tantas instituições internacionais ou comunitárias fazendo concorrência às nossas estatísticas, até nos vemos gregos para conseguir convencer a Comissão da veracidade dos nossos números… Mas por que carga d´água é que cada instituiçãozinha tem que ter o seu departamento de estatística? Para esgrimir a guerra dos números, para se desmentirem cordialmente? Para bramirem os cutelos numéricos antagónicos uns contra os outros, agora que se vive nesta época civilizadamente pós-modernista que obriga os fios das lâminas à importância de uma vírgula ou ao pormenor das casas decimais? O que conta são cada vez mais os números e os indicadores, as pessoas ficam para último. Incrível, perante o aparente atraso da barcaça, não ver ninguém com ar desesperado, assobiando nervosamente ou expelindo ar, bufando como bufo. Bufo parente de coruja, bem entendido, não como designativo de colega. Por falar em estrigiformes e em colegas. Porque será que o Luizinho foi promovido e eu não. Futebol? Não, acho que não são do mesmo clube. Partido? Ná. Também nunca o ouvi a dizer mal de partido nenhum, de governo ou de oposição. Apenas dos treinadores. Estranho. Qual será o mérito evidenciado ou quais os critérios usados como parâmetros de avaliação, que lhe enchem a constelação salarial de estrelas sucessivas? Aqui há decerto dedo de outra coisa maior. Será que é mação? Carbonário? 110


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Conspiração do silêncio... Silêncio remoído aqui e ali, como é de bom-tom nestas situações. Sim, deve haver algum código de sinais que identifica estes rosa-crucianos. Por isso nunca fui promovido. Tenho que me colar ao Luizinho e ver se consigo que me leve a uma reunião de iniciação. Pode ser que entre, necessito urgentemente da ajuda do taumaturgo. Não sei, não... Decerto revelaria os segredos tão arduamente mantidos ao longo dos séculos. Ia ser um dar à língua de varina revelando os segredos da construção das antigas catedrais até ao mistério que se prende com o desabrochar da esotérica flor. Seria expulso e o Luizinho sofreria as sevícias protocoladas para esse efeito. “Se eu tivesse conhecimentos de arquitectura poderia explicar como se constrói uma catedral desde a pedra primeira até ao segredo de moldar o chumbo dos vitrais. Mas como não tenho essa capacidade, vou dedicar-me a contar aos senhores repórteres como é que cabalisticamente se faz lá dentro para ter acesso a um bom emprego.” Que se danem! Continuarei sem ser promovido, mas pelo menos sem ter que usar avental, nem em casa uso esse símbolo de identificação da mulher-dona-de-casa fazendo a papinha pró maridinho que vem atrasado do trabalho; antes salpicar-me todo de óleo ao fritar os bifinhos de peru panados! Qual avental cheio de compassos e esquadros e caras de sol a rir. Ele há coisas que um homem que se preze não deve fazer mesmo, com prejuízo de ser considerado diminuído em seus atributos de varonia. É como a tatuagem a dizer amor de mãe, as mãozinhas nas ancas quando fala, o cigarro fumado através de boquilha, o cafezinho com adoçante. Nem pensar em tais coisas! Lavar loiça sim, através do esforço pra conseguir arrancar a porcaria do tacho ou da grelhadora de chapa. Tudo feitinho à base de músculo e de esfregão de arame. Bom, ninguém tuge nem muge, tudo gestos identificativos que me mostrariam que eu não sou o único a achar que estamos incrivelmente

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atrasados. Será hoje apenas que está sucedendo algo de anormal em meu inicio de dia? Estarei eu pensando demasiadamente depressa em relação à capacidade de acompanhamento de meu cérebro, de tal modo que a teoria da relatividade esteja sendo colocada em evidência? “Ora e=mc2… hum. Velocidade do meu pensamento igual a mim vezes tempo ao quadrado.” Boa explicação. Sempre adorei a teoria dos quanta também. E o princípio da incerteza que nos diz que não é passível de saber onde realmente se está em determinado momento. Tomara ter sido físico nuclear ou teórico matemático, antes ter saído um “nerd” feioso de oculinhos na ponta do nariz com um bom emprego do que um “lumpen” com um trabalhinho rudimentar e mal recompensado. Vamos lá então começar a estudar as funções exponenciais, nada de brincadeiras de recreio nem bebedeiras nocturnas nem marmelada caseira. É um prazer poder brincar com símbolos e equações como se fossem linguagem coloquial, desdobrar as fórmulas e ao final poder usufruir da emoção de o ter feito do modo óbvio e correcto. Computar, calcular, estimar, avaliar, somar, subtrair, multiplicar e dividir. Saber cálculo infinitesimal desconhecendo as regras básicas da álgebra, executar funções sem saber as regras dos conjuntos. Séries, Primitivas, derivadas, integrais, arrepio-me pela espinha abaixo de prazer incontido.

Por muito que leia o René, o Emmanuel ou o Friedrich não consigo entender patavina no que respeita ao que andamos a fazer aqui. Nem aquele vesgo francês me conseguiu abrir o olho até ao branco, naquilo que se poderia considerar um paradoxo ou um prolegómeno para minha saciedade. Dúvida existencial que perdura desde que descobri, tal como se fosse uma 112


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sandes mista de ignorância e de assombro, que havia bichinhos minúsculos que se alimentavam de mim. Ora esta, estou sendo comido já em vida? Comido vivo em vida. Um truísmo sem dúvida. Se os bichos fossem considerados meus poder-se-ia dizer que estava em pleno processo de autofagia. Sim minha bicha-solitária, podes começar a sorver o líquido proteico; Sim, helycobacter pylori, podes dar uma trinca aí no epitélio. Isso, encham as barriguinhas até ao cogulo, aproveitem enquanto o hospedeiro está vivo. Esta explicação não a encontro na filosofia, feita para fazer perder tempo a pensar em leviandades sem se chegar a qualquer conclusão simples e perceptível, nem na biologia que apenas se dedica à explicação dos processos dinâmicos dos seres vivos através dos óculos de lentes grossas do cientista. Fico que nem jumento olhando para sua imagem nas vidraças, como quadro em exposição alheio aos visitantes ignorantes em arte, como idiota chapado perante o não recebido pelos lábios da médica ao perguntarlhe se o tumor que tem é operável. Pois se todos os seres vivos que habitam este pedaço de rocha espacial se alimentam uns dos outros, só uma verdade subsiste: a certeza de se ser caçado, morto e devorado é o único fio condutor semelhante a todas as espécies, como se o sofrimento fosse a razão de existir e única verdade assumida. - Ouvi dizer que em África, havia uma tribo de caçadores de cabeças que extraíam os miolos através de uma palhinha de caniço enfiada nas órbitas do desgraçado missionário que se atrevia a entrar no seu território. - Bem, até tem a sua piada; ao invés de nossa mioleira com ovos mexidos, tão portuguesa e continental, os fulanos comiam mioleira com padres vestidos, tão africana e tribal. Procriar para perpetuar a espécie? Com que finalidade? Acabará por se extinguir por muito que se replique, demore o tempo que demorar, que como sabemos, é finito. Desde o binómio antibiótico-vírus, leão-gazela, ao

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do caçador de cabeças caçador – caçador de cabeças caçado, todos matamos para comer, todos somos comidos depois de morrer. Será esse igualmente meu destino. Morto por doença desenvolvida por mim mesmo, algures inscrito desde já em meu mapa genético, em alguma célula que repentinamente erra na interpretação dos sinais e se torna mortífera. O mal correndo em minhas veias, vasos ou capilares, metastando-se livremente, como conviva abusador que se comete o engano de deixar entrar dentro de casa. Ainda bem que existe o livre arbítrio e os acidentes de percurso. Será melhor deixar um belo cadáver, ainda que retirado à força de dentro dos destroços da viatura através de equipamento de desencarceramento, do que ser comido vivo pelo próprio organismo. Safa, estou mesmo a entrar em curto-circuito. Melhor fechar os olhos e tentar passar pelas brasas. Pode ser que me dê um pouco de descanso. Descansar como? O simples acto de fechar os olhos já faz com que as incongruências surjam com maior realismo em minha mente. Uma coisa é estar a divagar com o olhar meio mortiço a vaguear pelas caras dos restantes ocupantes da barca, outra é enfrentar o manto escuro que fica à minha frente quando cerro as pálpebras. Perante o cortinado de seda com brocados que se me apresenta frente aos olhos, tal como pano de fim de cena tétrica, os meus últimos pensamentos surgem animados por figuras reais, transformando-se em teatro mórbido. Vejo-me dentro de caixão enterrado uns bons palmos debaixo de terra, a ser morosamente reciclado em bolinhas pelos dentinhos pequeninos, mandibulazinhas e cavidades labiais de um sem fim de criaturinhas de pesadelo. “Rrr, rrr”, entoam as desgraçadinhas se picnicando de mim. Nem aquele velho adágio bíblico me anima um pouco: a poeira à poeira, as cinzas às cinzas, voltarás à terra de onde vieste feito em adubo. Aí as gramíneas e vegetais se alimentarão de mim. A vaquinha no vale comerá o pastinho, engordará e se transformará em bife da vazia de primeira. Se for esse o resultado final, serei indirectamente comido e 114


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defecado, indo parar a qualquer emissário submarino. Serei de novo comido por um peixinho guloso que será pescado por um pescador destemido lá nas rochas, que me comerá com broa de milho. Ciclo após ciclo serei comido, defecado, comido, defecado. Sem nunca conseguir me livrar do ciclo eterno da reencarnação. Se pelo menos o fogo purificador me salvasse. Reduzido a cinza, mesmo que me atirassem depois ao mar, acabaria por ser comido por qualquer animal, depois por outro maiorzinho, maiorzão, até acabar feito sushi ou sushimi no prato de qualquer extravagante adepto da cozinha nipónica. Que lhe desse uma valente dor de barriga. Que eu fosse comido por um peixe balão que o matasse envenenado, que eu estivesse inchado de metais pesados, chumbo, cádmio e mercúrio, incorporados em meu metabolismo ao sorver o infectado plâncton das poluídas águas. Que ele se incorporasse igualmente ao ciclo, tal como eu. Aprés moi, le déluge!

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CAPÍTULO XV Cruzadex Shakespeareano

Meu epitáfio. Estava quase a entrar no sono. Até que gostaria de fazer as palavras cruzadas antes que a coisa, por força de pensar nela, tome proporções indevidas, mas olha só este cruzadismo incipiente:“Deus Sol no antigo Egipto; Espécie de capa sem mangas; Contracção da preposição de com o artigo definido a; Símbolo químico do cobre.” Bah! Preferia mil vezes o cartoon do Calvin & Hobbes. Reduziria o jornal a essa fitinha de poucos quadrinhos e nada mais.

Para relaxar vou começar um passatempo de coleccionar personagens, deixa ver qual seria o motivo da colecção. Já sei, boa, vou imaginar profissões, este passatempo já deu certo em outra altura de grande tédio. Vamos ver que matéria-prima tem pelos arredores. O primeiro está identificado, aquele careca ali em baixo. Tem mesmo aspecto de cabeleireiro de homens. Nome do salão: Chez Armando. Ou Filipo´s. Nada melhor que um toque afrancesado à coisa para disfarçar convenientemente o cheiro reles dos produtos capilares comprados em recipientes de litro e

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meio em Ceuta. Paciência pobre personagem de minha colecção, as mangas de camisa só com uma virola deitaram-te a perder. O personagem negro, meu Otelo de ocasião. Bem, tá fardado, fácil demais. Vigilante de pessoas e bens. Deve trabalhar para mais uma dessas empresas constituídas por um misto de ex-governantes e de ex-coronéis que entendem, como só eles sabem entender, de como ganhar concursos de adjudicação. Governantes que estiveram a perder dinheiro enquanto nos dirigiram, coronéis que na altura da abrilada eram capitães. Humm... terreno deveras pantanoso. O puto trintão ali ao lado. Todo o aspecto de trabalhar para uma multinacional, decerto através de uma ETT. A gravata que o obrigam a usar, enrolando-se que nem pitão ao pescoço, de modo que a maçã-de-adão fica toldada nos seus movimentos, assim o comprova. Pois é mesmo. Até tem a capinha de dossier do b-a-bá institucional com o logótipo gravado. Deixa ver, se tão ao longe consigo descortinar, a qual das numerosíssimas, pertencerá. Essas ett´s são das poucas empresas que lucram exponencialmente com o agravar das crises. Tornam-se as donas e dominadoras do mercado de trabalho limitando os salários e as condições de emprego. Sendo que às empresas clientes lhes interessa evitar ao máximo os gastos sociais com eventuais trabalhadores, estas, num esquema que se baseia na sub-empregabilidade, instabilidade laboral e salários baixos, garantem para si uma grande parte dos lucros obtidos pela força de trabalho daqueles a quem empregam. Chamam-lhe flexisegurança, mas esquecem-se de frisar a primeira parte da palavra composta! Não admira que o fosso entre os muito ricos e os muito pobres, aumente constantemente. Imagino o puto, por necessidades evidentes, ainda compartilhando mesa e habitação com os papás. E deste modo uma geração esgota sua força reivindicativa. Sempre as forças activas do mercado lançando dados. Pois é, história do costume. Mãozinha invisível uma ova. A mão invisível que gere as forças de

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mercado, logo, nossas vidas, possui no entanto, quirodáctilos bem conhecidos. Bancos e alta finança, petrolíferas, farmacêuticas e químicas, multinacionais e complexo militar-industrial. Mão de anelar ornado de diamantes, diamantes de sangue como é sabido. A finalidade pertinente será, tal como Nietzsche indicou, a vontade do poder. Atingido esse poder, tudo o resto está ao alcance: dinheiro, fama, glória, influência, sexo, discricionariedade. Subjacente a tudo isso estará a vontade de dominar terceiros, outra componente biofísica na agressividade da natureza humana. E todos os instrumentos ao alcance são considerados úteis. Ao contrário de organizações declaradamente mafiosas, estes agentes são considerados mundialmente como necessários, prestigiosos e aos quais o comum dos mortais gostaria de estar vinculado de alguma maneira. No entanto, pela sua natureza de poder decidir os destinos de milhões de forma arbitrária, dos métodos utilizados para a obtenção e solidificação desse poder, terão mais características de organizações criminosas do que filantrópicas. Bom será não esquecer que são estes agentes que criam, directa ou indirectamente, as condições para a origem por geração espontânea dos ditadores do mundo, e que igualmente lhes abreviam a existência quando já não servem os seus fins. O pior é que a sociedade está de tal modo estruturada com base nestas organizações que todos nós estamos interligados e interdependentes de seu funcionamento. Esse o verdadeiro poder intrínseco que estas possuem. Em oposto ao governo do povo, pelo povo e para o povo, assistimos sim ao “gouvernement of the few”, ninguém ainda deverá continuar a pensar que se vive realmente em democracia.

Esta manhã a fazer a barba. Pois foi, pêlos brancos no queixo. Até que não eram muito grandes senão pareceria um bode velho repleto de sintomas de tardeza. Nem penses nisso deusa do envelhecimento, estejas 118


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onde estiveres sentada no panteão dos deuses, deixa-te estar a aquecer o lugar porque daqui não levas nada. “Meu jovem efebo que o envelhecer conhecerás, cuida-te enquanto podes, um dia destes a pila não verás. Cuidado com a vida que levas ou dos cinquenta não verás o dia, quem te avisa sou eu, a deusa da geriatria.” Recuso-me a envelhecer, prontos! Não quero ficar que nem chouriço encarquilhado em fogo de lareira, morcela enrugada e bafienta que nem prá sopa dá. Recuso-me a envelhecer! Fico como estou que estou muito bem e recomenda-se. Tenho que ter algum domínio sobre meu corpo, sou eu o principal interessado e eu que o nutro aproveitando todas suas simbióticas potencialidades. Que chatice, acordar dia após dia contando as rugas que vão aparecendo, as dobras que no dia anterior não estavam lá, a papada surgindo em crescendo, dirigida por lúgubre maestro. Ir tomar uma cerveja e entorná-la toda em parkinsonianos movimentos desastrados, ou esquecerme de a pagar subitamente fulminado por degenerescência de… como é que é o nome da doença que me esqueci? Sentir o corpo a mirrar e ancilosar enquanto uma protuberância óssea surge como vulcão dos capelinhos emergindo nas minhas costas, até ficar me parecendo com um stegaussaurus minorca. Babado, usando fralda para incontinência, e perdendo o apetite que faz de um homem homem. Ter que gastar fortunas em injecções de botox ou cintas adelgaçantes para reduzir os inestéticos pneus. Ou plásticas, liftings e lipo-aspirações, tudo caríssimo e não comparticipado. Ou ainda verificar tropegamente que meu corpo não me obedece mais e que necessito de bengalas, canadianas ou aranhiços. Era o que mais faltava! A partir deste momento mesmo, vou enviar ordens a todos os sistemas e subsistemas do corpo: fluidos, órgãos, vísceras, esqueleto e cérebro. Todos solidariamente reunidos, pois vamos tratar de manter este corpinho bem estimado e eternamente insubmisso aos 119


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caprichos da dita deusa da decrepitude. Para começar vamos tratar da saúde aos álcoois e aos radicais livres. Primo: Deixar de consumir estes enroladinhos que matam aos poucos em dosezinhas letais, que nem cancro servido em mini-pratos de restaurante. Os cultivadores da nicotínica planta que se virem. Plantem antes tomates ou agriões. Se as quotas da PAC não o permitirem, que cultivem papoila. Parece que os afegãos vão começar a perder a exclusividade do mercado em breve. Sejam inventivos, produtivos e competitivos. Esse o mandamento número um que nos enviam todos os dias nossos líderes que se afadigam em Bruxelas para que sejamos mais felizes. Nossos Kim ils, nossos Hoxas, nossos conducatores e nossos timoneiros, alguns que trocaram a sapiência sorvida através de maoístas lutas estudantis pelo pragmatismo da lógica do mercado. E parece que com razão. Ó visionários, sabeis que tinhais razão? Então não é que um dos últimos faróis da luz dos povos libertos, da teoria marxista-leninista da superestrutura, da ditadura do proletariado, adoptou descaradamente os princípios da sociedade de consumo desmesurado. Quem disse que enriquecer era vergonhoso, hein? Vá lá, formiguinhas, dêem tudo que podem, rebentem a trabalhar, há que ser rico para ser feliz - já dizia um dos Confúcios na sua filosófica e eterna sabedoria. Vamos todos consumir até rebentar com o planeta de vez. Até esgotar tudo que haja e que seja passível de ser deglutido. O ar que respiramos está ruim? Nada disso, ponham máscaras, não há progresso sem sacrifícios. Temos todos que ser muito ricos para sermos muito felizes. Dinheiro não compra felicidade? Mas ajuda muito. Perguntar aí ao fulano da esquina se não queria andar de Ferrari em vez de transporte público. Ao beltrano da esquina imediatamente a seguir se não preferia ser dono da fábrica onde trabalha ao invés de um simples ajudante de oficial. Ao utente do serviço nacional de saúde se não preferiria ter dinheiro suficiente para se ir tratar ao estrangeiro ao contrário de ter que aguentar anos até ser tirado 120


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da lista de espera, ao desempregado de longa duração se não queria herdar pingue herança ao invés de passar fome, esperando pelo RSI que nunca mais vem. Vamos todos, cantando e rindo, os amanheceres já são nossos. Secundo: Etilicamente falando há que promulgar desde já a lei seca. Nem mais uma fresquinha acompanhada de tremoço ao sair do emprego. Nem mais um whiskizinho depois do cafezinho ao jantar a modos de diluir a gordura ingerida, aumentando a taxa de colesterol e de triglicerídeos. Nem mesmo o finérrimo Martini com a casquinha de limão antes da refeição, pra dilatar o estômago de modo a acomodar mais comida dentro dele. Népias. Fígado é feito para proceder à depuração dos tóxicos e para regular o metabolismo. Não furgoneta de carga de álcool de contrabando em plena época dos speakeasies. E muito menos isca de porco em vinagrete que embora seja prato nacional, não dá muito jeito comer quando se trata do nosso próprio. Além disso, quem ganha com esta intoxicação toda são as grandes destilarias e breweries. Que se danem. Se falirem, “falem.” Dediquem-se à produção de tintura de iodo. Clientela não vai faltar pois muita gente iria começar a bater com a cabeça nas paredes caso minha atitude fosse genericamente copiada. Tertio: Cafezinho de manhã, cafezinho à tarde, à noite, entre refeições, antes e após, terminou. Nada de cafeína nem tão pouco um cheirinho de chicória. Café puxa cigarro, cigarro puxa bebida. Bebida puxa cigarro, cigarro puxa mais bebida, mais bebida puxa ainda café na forma de sarar ressaca. Trata-se de uma verdadeira e atroz calamidade em forma de ingestão de produtos de lesa saúde. Ponto final. Juro! Ciclo terminado, após ter eliminado esta tríade de minha vida, em breve verei minha pele rejuvenescer, rica em colagéneo, firme. Depois será apenas uma questão de tempo até que todo meu semblante relembre os dias felizes da primavera da vida.

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CAPÍTULO XVI Maio é um bom Mês para se Morrer

Maio é um bom mês para se morrer. Acho e sempre acharei que deveria ser agradável bater a bota num mês tão florido e cheiroso. Sempre se poderia fazer planos para o futuro em termos de falecimento, do próprio ou dos mais chegados. Espero que a hora do meu decesso em que eu me encontre com o destino final, o fim da linha, ocorra em mês tão deliciosamente oportuno. Aquelas expressões tão conhecidas e deprimentes que por vezes lançamos a quem apresenta um estado físico lastimável cairiam em desuso. “Aquele desgraçado já não passa deste inverno.” Transformar-se-ia em: “Espera que só faltam mais uns poucos meses para que nas eternas pradarias vás caçar. O Dezembro natalício passará rapidamente dando lugar ao mês dos Reis que também ajuda o calendário a desfolhar. Depois vem logo a seguir o carnaval e a Páscoa que também impulsionarão os meses a passar. (Sabe-se que os momentos mais alegres da vida são os que mais depressa vão terminar). Logo virá o mês florido do desabrochar aquele em que irás te finar.”

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Florido, aquecido pelo sol quase de estio, amparado pelo perfume de mil flores a abrir, quase como se a terra exigisse o retorno a ela, de modo que ao pó se regresse, mas com qualidade de morte. Este mês não é apenas o do início do bom tempo que tanto se deseja durante aquelas noites tristes e húmidas de inverno; é também o que assinala a renovação da natureza para iniciar mais um ciclo. De igual modo a terra não está nem demasiado ensopada em água nem demasiado seca por força do sol, tudo bons motivos para se querer morrer em tão fecundo mês. Melhor que ser enterrado, devolvido à procedência sem direito a ser reclamado, seria o poder ser mantido para todo o sempre. Vulgo, vida eterna ao que me refiro e não ao ser mumificado e exibido como uma dessas santas de aldeia que morreram mas que não se desfazem em pó nem por nada deste (ou do outro) mundo. Nem ser exibido mediante pagamento em dinheiro com direito a canhoto para ser guardado como recordação da visita, em qualquer praça vermelha ou praceta embelezada que sejam. Estou a pensar mesmo é nesse tipo de manutenção do corpo morto, mas, paradoxalmente mantido vivo através de criogenia até que um belo dia haja maneira de o recuperar de novo para uma outra vida. Fintar a morte e a respectiva agência funerária. Nem exéquias fúnebres nem corpo à terra ou à pira. Tomara ter dinheiro nessa altura para poder recorrer a essa técnica tão requisitada pelos que por aqui andaram, que podem pagar e que desejam retornar, o que garante que davam tudo por tudo para voltarem a sofrer o que sofreram. Poderá haver quem ache isso o cúmulo do sadismo, mas bem vistas as coisas quem não desejaria poder fazer aquilo que não fez “anteriormente” ou ainda corrigir o que fez mal? Uma segunda chance ninguém menospreza, que o perguntem ao suicida em pleno ar, ao envenenado quando o corpo acusa o efeito do veneno ingerido, ao marido que acaba de desferir a mortal facada no coração da mulher que se esqueceu de lhe passar a ferro as calças de bombazina.

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Seria expedido em contentor refrigerado para um qualquer dos estados americanos, mantido perto do zero absoluto, imerso em hidrogénio líquido, até meu corpo se parecer com alabastro. Ficaria muito quietinho e zelosamente inerte em azoto, acarinhado por dedos pacientes que digitariam os comandos computorizados necessários e por olhos que vigiariam todo o processo, dia após dia, ano após ano. Teria que deixar ordens expressas de modo a que meu banco não se esquecesse de fazer o pagamento mensal, via transferência bancária internacional, com Iban e Swift completos e sem engano, de tal pensão de sobrevivência, caso contrário seria desastroso se por qualquer motivo se atrasassem ou esquecessem de o fazer até à data limite para o efeito. Meu corpo alabastrado seria desse modo atirado às gaivinas, airos e rabos-de-palha bem como às restantes aves de paladar necrófilo, como se fosse um pedaço de desperdício de mármore de Estremoz. Também muito dinheiro seria atirado fora, e nem mesmo eu poderia vir a terreiro tentar passar a responsabilidade a outros, como evidentemente se poderia constatar. Mas, e fora de brincadeiras, seria decerto emocionante poder regressar do meio dos mortos – logo que se encontrasse cura para o meu mal mortal, claro – e voltar a encontrar ainda algumas caras conhecidas, entretanto envelhecidas é certo. De preferência de modo a que poucos se lembrassem já de mim, o que me conferiria um certo estatuto de intruso conhecedor que poderia servir para múltiplas finalidades. Sempre com tacto e dissimulação, não fosse ser reconhecido por algum com as capacidades de memória mais intactas. Divertidíssimo, percorreria os caminhos e as ruas já conhecidas e anteriormente calcorreadas, imiscuirme-ia nos jogos de sueca nos parques públicos, olharia alguns com sorriso irónico, bem de frente, quando estivessem a empurrar os bisnetos nos baloiços do parque, roçaria meu casaco novo propositadamente nos seus ombros quando dentro dos transportes públicos. Para lá desta paródia que 124


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eu não perderia por nada deste mundo - nem morto - haveria ainda a possibilidade de corrigir ou de emendar alguns erros cometidos na “primeira vez.” Creio muito sinceramente que não faria a maior parte das coisas que fiz; esta segunda oportunidade teria que ser dedicada a aproveitar em toda sua plenitude, o que de melhor se pode tirar desta vida. Sabendo que poderia não haver uma terceira, esta segunda seria a derradeira.

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CAPÍTULO XVII Por um Arrátel e Meio de Bolacha Rançosa

Deveria comprar um MP3 ou MP4 qualquer que me tapasse os ouvidos como lacre de abelha. Ficaria escutando a nona do Ludwig Van com os olhos abertos até ao máximo e encarando os surpresos ocupantes da coxia mesmo ao meu lado. Em pouco tempo toda a plateia me olharia com ar de comiseração pensando que estaria certamente “passado.” E la nave va. O caminho líquido por onde singramos espelha agora a luz do sol que ostensivamente reverbera nas águas pouco cristalinas. Eu bem dizia que ia levantar, viste? E levantou bem. Que vivam os dardejantes raios solares e sua luz espalhada à nossa volta! Que bom seria poder olhar através da janela e ver uma família de golfinhos, esses belos animais quase mitológicos, mergulhando nas opacas e espessas águas, amparando uma criazinha brincalhona no meio deles. Tomara. Já será uma sorte conseguir retirar destas águas poluídas qualquer tipo de peixe que se possa comer, como tentam os ocupantes daqueles barquitos lá ao longe. Este estuário que decerto já foi um dos mais belos sucumbiu à intervenção humana como de resto quase todo o meio ambiente um pouco por todo o lado. É uma coisa dos diabos essa do Homem ser o ser mais criativo e ao mesmo tempo o ser mais destrutivo do planeta. Uns séculos atrás imagino a placidez contemplativa encontrada por aqueles que por aqui passaram no mesmo local em que agora me encontro. Talvez como tripulação em qualquer nau que voltasse cheia de bolachas de onde havia os fornos de cozedura dos biscoitos que acompanhavam os marinheiros nas suas 126


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viagens. Ocupados com outras preocupações de índole vivencial, provavelmente nem teriam olhos para a beleza do lugar. Geralmente só damos pela sua falta quando já é demasiado tarde e, bucólicos, idealizamos a possibilidade de o tempo voltar atrás. E poder evitar os erros cometidos no passado. Mas é inexorável que tal desgraça aconteça. O progresso feito modo de vida é irremediável e os golfinhos acabaram por desaparecer junto com a paisagem intacta. E isto numa escala micro, imagino quando aqueles chineses todos começarem a andar de carro próprio. As bicicletas tornar-seão cada vez mais raras, tal como os mamíferos aquáticos já o são. E o mesmo para os indianos que competem desenfreadamente com aqueles em número. Havia uma anedota que dizia que se toda a população da China saltasse a pés juntos ao mesmo tempo faria com que o planeta Terra saltasse fora de órbita. Era quase como a história do passo cadenciado de uma coluna militar, em sincronia, passando sobre uma ponte, colapsando-a. Bom, agora já não se trata de uma anedota, se todos os chineses pegarem em seus automóveis ao mesmo tempo durante vários anos, decerto a atmosfera do planeta se tornará algo diferente do que conhecemos, a breve trecho. A China já é hoje o maior consumidor de matérias-primas e continuará a ser no futuro. Os aumentos astronómicos nos preços dos barris de petróleo devem-se ao facto de o consumo chinês estar em alta pela necessidade de alimentar toda uma indústria florescente. Também aqui se depara com o preço do desenvolvimento. Não haverá limite ao consumo? Como impor a outros países aquilo que nós não cumprimos? E tal seria, de algum modo, exequível? Qual será o estado deste planeta daqui a uns meros vinte anos? O ar tornar-se-á irrespirável, o aquecimento global provocará a catástrofe iminente provocada pelo degelo precipitado dos glaciares ou será antes a guerra pelo controle dos combustíveis fósseis e/ou pela posse da água potável que desencadeará uma guerra mundial colocando em risco a sobrevivência da humanidade? Merece a pena falar

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em legado às gerações futuras, ou as presentes assistirão ao fim do mundo? Qual a capacidade regenerativa do planeta? Qual a duração das matériasprimas colocadas à nossa disposição? Vivemos numa sociedade de consumo, ou antes, numa sociedade de desperdício? Que fazer para alimentar uma população sempre crescente? Crescente tal como o ódio ao próximo, entre etnias, povos e raças. Nem mesmo agregadas e comunitariamente associadas as nações conseguem se entender harmoniosamente. Esta união europeia é um exemplo mordaz de tal falta de espírito. Artigo na secção de cartas ao director do jornal: “O consumismo, logo o capitalismo, saiu vitorioso sobre o comunismo. E apenas porque simplesmente este não foi capaz de assegurar às populações, bens de consumo à sua disposição, tal como aquele fizera. Com a abundância veio a avareza, e a alguns desses países – outrora socialistas - já não lhes agrada a ideia de terem que financiar outros menos desenvolvidos, a partilha da fortuna, por assim dizer. Muito em breve vai-se assistir a fraccionamentos graves dentro da União e até mesmo à possibilidade da mesma soçobrar. A realidade actual da UE é um agrupamento de países que mal se entendem, a mais formidável máquina burocrática jamais montada no velho continente, onde um magote de funcionários se afadiga, pago a peso de ouro, para olear todo um enorme complexo de engrenagens que vão desde o exército de tradutores que asseguram a capacidade para todos se entenderem na Babel das vinte e três línguas oficiais, passando pela organização logística inerente à acomodação, alimentação, viagens contínuas de idae-volta aos seus países de origem - em trabalho, dizem - de todos os representantes e pessoal auxiliar. A estes sim, agrada128


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lhes a ideia de uma ONU em miniatura. A todos nós, a União macrocéfala e assíncrona que se conhece, não. Perdi o fio à meada, já não sei se fui eu quem imaginou e ditou este discurso ou se estava escarrapachado mesmo no artigo. Mas concordo, hic et nunc, plenamente com ele. Também sei que, independentemente da origem, esta opinião nunca será publicada no oficialíssimo e inenarrável JOCE. Também pouco me importa para o caso, pergunto-me até quais seriam os destinatários leitores do diário oficial das repúblicas e das monarquias constitucionais comunitárias europeias. Pergunto-me ainda como é que ainda se consegue viver sob a égide de um rei, rainha, príncipe ou princesa. Já suportar uma casa civil nos regimes semi-presidencialistas, sai obscenamente oneroso ao respectivo estado, i.é., todos nós, agora uma casa fidagal, nobre ou aristocrática, com toda aquela parafernália de etiquetas, recepções e eventos sociais feitos para encher conteúdos de fotorevistas e de uma prosaica elite que se vende a si própria… Gostava de ver um desses membros de real família a comer na mesma malga que um refugiado tutsi ou a dormir no mesmo catre que um sem-abrigo de qualquer cidade europeia. A pobreza está a engolir as grandes urbes e os excluídos do sistema cada vez mais e em maior número, enxameiam tudo que é sacada de prédio ou arcada de edifício governamental. Seria necessário um mendigo qualquer, de súbito, começar a desfilar por cima de água numa fonte de uma praça de uma cidade qualquer, curar em plena rua um seu semelhante através do simples toque de sua mão ou enchendo a lata da comida de um esfomeado num beco sujo qualquer, revelando-se como milagreiro, que então sim, se rojariam a seus pés e os beijariam, sem nojo ou sentimento nauseante. Mas como tal é difícil de acontecer apenas continuarão a olhar o nosso mendigo como uma chaga aberta no corpo, como um bobão de peste que ninguém pretende lancetar e todos pretendem evitar.

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Muita contradição no ar. Tal como militante de extrema-esquerda a bordo do seu iate particular, como activista acérrimo do meio ambiente montado em possante automóvel de alta cilindrada, como letra de música rap esvaziando-se de conteúdo reivindicativo à medida que o autor se torna milionário, tal como portal de oferta de emprego a desempregados endividados cheio de publicidade a cartões de crédito, também o meu espírito se encontra crivado de contradições e de dúvidas.

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CAPÍTULO XVIII Ora pro nobis, peccatorum

Ao princípio era o Verbo. Quer dizer, o facto de o Homem ter aprendido a se comunicar inteligentemente com os outros seus iguais, conferiu-lhe a capacidade de, por meio do diálogo, poder sanar problemas e divergências que de outro modo seriam resolvidas à pedrada ou à marretada. Depois o Homem evoluiu e começou de novo a não precisar do poder da palavra para nada e entrou numa sanguinolenta carnificina que perdura até aos dias de hoje. Uma mão cheia de cientistas peritos em partículas radioactivas cindidas a partir do atómico núcleo do urânio, criam a fat man e atiram-na para cima de uma multidão de gente inocente. Recebem o Nobel. Depois, roídos pela fatalidade daquilo que fizeram, uns suicidam-se, outros atravessam o mundo dando palestras contra os males por eles inventados e libertados. Outros, tornam-se meritórios cidadãos, arrecadam laudas fortunas e coleccionam títulos e condecorações. Um dirigente político elimina alguns milhões de cidadãos opositores, mas é recebido com honras de estado quando visita outros países. Mais tarde será considerado como um precursor dos direitos dos oprimidos e nos livros de ciência política serlhe-á dada a honra de fundador de doutrina. Um outro recebe o Nobel da Paz, esse galardão dado a título de figura pública mais mediatizada, por essa instituição caduca, obsoleta e incongruente chamada Comité Nobel, e de seguida envia trinta mil novas tropas para o Afeganistão. Ainda um outro é laureado com o Nobel da Literatura e lá vai ele, envergando fraque

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e lacinho, feliz e contente, receber o dito das mãos daqueles que representam o stablishment que ele diz combater e contra o qual utiliza sua arma, a palavra escrita que sai da verve da pena a escorrer. Século do Povo dizem alguns acerca do século XX. O século anterior foi mesmo o dos grandes ditadores, das grandes ditaduras e do maior sangramento colectivo da humanidade em tão curto espaço de tempo. E o presente parece-se com uma extensão do anterior, não é que começou bem logo no ano um? Vejo que quanto mais nos desenvolvemos em termos tecnológicos mais retrocedemos em barbárie destrutiva. Até parece que existe uma força oculta que nos impele a evoluir para nos autoextinguirmos. Um homem mata outro e apanha quinze anos de prisão. Se matar dez homens será internado numa instituição psiquiátrica. Se matar mil o número só por si torna-o inimputável e acabará por receber provavelmente um qualquer galardão internacional ou pelo menos a aprovação sectorial. Agora a melhor de todas: um homem, mortal como todos os restantes, com tanto de humilde quanto de bom, foi pretensamente pregado na cruz para expiação de nossos pecados, e acaba dando origem a uma das religiões mais aduladoras das riquezas terrenas quanto perversa e pecadora.

No meio de tanto pensamento emocionado nem dei conta que os idiotas do Bando se calaram finalmente. Deve ser por ordem de comando do maestro. Ainda não identifiquei qual deles tem a batuta, mas penso ser o pencudo. Um está mais alerta que os outros que parecem dormitar. Faz lembrar aquelas siricaias que, de pescocinho levantado, assentes nas patinhas traseiras, ficam de vigia aos arredores e aos juvenis enquanto a restante família caça. Pergunto-me por quem ou pelo quê estará esse velando enquanto seus olhinhos de pisco perscrutam o espaço ocupado do 132


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convés superior. Aha! Já entendi. Está nada de vigia, está sim aproveitando o facto dos outros estarem de olhos fechados para olhar as pernas da mulher sentada no banco do lado. Esperto que é, esperou pacientemente que os outros amiguinhos se deixassem levar pela sonolência para poder monopolizar a espreita. O tipo que vai sentado ao lado dela, apercebendose do atrevimento, deveria espetar-lhe uma uxórica lamparina na tromba. Agora tenta sub-repticiamente vislumbrar algo mais do que as pernas. Os olhinhos rolam dentro das órbitas como se fossem linearmente independentes, faz lembrar olho de camaleão escleroticamente vasculhando ao seu redor. E a senhora, aporcalhadamente ocupada em tomar o pequenoalmoço sentada a bordo no seu banquinho privativo nem dá por nada... Dá sim conta das migalhas que lhe caiem sobre a diminuta saia as quais ela empurra dissimuladamente para o chão com a mão em concha. Olha… um fiozinho de líquida iogurtada escorre-lhe pelo bem desenhado queixo. Terá sido isso a despertar a atenção do ectomorfo? O rugido imperceptível da ruminação mandibular despertou-lhe a saliva na língua protáctil, depois o fiozinho descendo, voluptuoso, despertou-lhe a libido, depois, numa rapidez esfaimada, os camaleónicos olhos acompanharam o ângulo de descida da cabeça e terminaram nas sensuais extremidades, eriçando-lhe decerto a cauda preênsil. “Tomara que ela se babe toda e tenha que se levantar de um instante, pra eu poder mirar a totalidade de seu corpo exuberante. E que seja depressa, antes que o tipo do lado repare que eu estou siderado de obsessão e que começo a ficar transtornado de tanta tensão. E que estes gajos aqui do lado se apercebam e me estraguem o arranjinho. Isso, lambe a gotinha com a pontinha da língua, anda, devagarinho.”

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Por falar em ruminação. Esta barca parece toda ela um enorme refeitório baloiçante; ele há quem coma a tosta caseira confeccionada de noite, o pãozinho de leite comprado na cafetaria, mas decidido a ser comido em viagem, o bolinho da pastelaria ainda embrulhado no papel original (para ganhar alguns preciosos e deliciosos minutos à hora de sair de casa). Há quem beba o iogurte líquido, o sólido, e até o pacotinho minúsculo de leite de hipermercado. Caramba, ninguém coloca um letreiro bem visível anunciando a proibição de comer, beber e mastigar dentro dos transportes públicos?! Na verdade sinto-me agredido em meus sentidos ao ter que ver, ouvir e cheirar, comida a ser mastigada e digerida a todo meu redor acompanhada do típico estalido que a língua faz nos dentes em plena acção de limpeza. Parece que antes de se deitarem preparam o pãozinho com manteiga e fiambre, para no barco irem debicando. Já o iogurtezinho fica no frio, até à hora de saírem de casa e mais tarde poderem acompanhar com vista de rio. Uma súbita orquestra de assoadelas dissimuladas, de ataques de tosse incontidos e de espirros abafados, dá origem a um desembrulhar de descartáveis. Miram-se uns aos outros tentando enviar uma mensagem mental de desaprovação; “eu assoo-me por necessidade, aquele por obscenidade.” Que coisa terá acontecido, entrámos no meio de uma nuvem de pó carregada de febre dos fenos ou será que o mortal e invisível malvado causador da sinistra influenza já conseguiu saltar a bordo? Há uns tempos atrás as aves estavam engripadas com uma virose qualquer, será que conseguiu se mutar e fazer passar a moléstia às gaivotas que não nos largam? Será que a esbranquiçada caca que estas atiram para cima do barco estará contaminada com o vil agressor, tal como a dos pombos está com um agente corrosivo? Dizem que há sempre uma explicação plausível para qualquer acontecimento. Mas há uma que eu não consigo de modo algum entender. 134


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Vejamos: a pedra lascada deu lugar à idade da pedra polida. Ou seja, de início lascou-se a pedra para fazer dela um instrumento afiado que pudesse cortar e rasgar e depois, sabe-se lá porquê, decidiram os neolíticos antepassados arredondar a pedrinha para deixar de ter utilidade prática. - Rú, que fazes tu? Deste cabo do gume do sílex todo meu parvalhão, como vou agora esquartejar o mamute lanoso? Que utilidade tem um sílex rombo, meu idiota..? Bem, se eu te der com ele no catrapázio vai ter alguma utilidade. - Boa Sú! Acabaste de inventar uma nova arma!” Toda a gente sabe que uma faca de serrilha tem maior utilidade na cozinha do que um martelo, ou que o gume afiado do sílex tem préstimo para esfolar um mamute, seja lanoso ou cerce, ao contrário de uma pedra redonda que apenas serve para pilar amendoim. Mas enfim, quem sabe do assunto que exponha teoria que seja mais credível ou mais facilmente digestível. Melhor cabecear de novo para o jornal, com o queixo a bater no peito, e tentar evitar o olhar mortiço de escotome que alguns co-ocupantes, entediados, me enviam de tempos a tempos. Olha pra isto, o papel fraco em cloro mas rico em letra de imprensa já tá todo enrodilhado à força de servir de leque. Hoje teria sido um bom dia para complementar a leitura trazendo o Ulisses do Joyce e tentar ler aquela coisa sem explicação, retirando-a de sua capa de desconsolo forçado, emprateleirada a um canto faz já tanto tempo. Também o chumaço do Memórias de Adriano seria leitura recomendada para tão longas quanto fastidiosas viagens. Todo lido em sucessivos capítulos/viagem, de modo metódico e a raiar o excesso. Ou então o Crime do Padre Amaro, ou melhor, o Eurico o Presbítero, para acabar de vez com a vontade de abrir um livro nas próximas centúrias. É verdade. Já agora, outra questão que me assola de vez em quando, embora menos lapidar seja igualmente questionável, é aquela história dos discos voadores e de seus tripulantes vindos dos confins do espaço. Para 135


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nos visitarem em viagem turística como se faz quando vamos a um zoológico ver as criaturinhas feias nas jaulas? Para nos trazerem a boa nova anunciada faz tempo na Bíblia e que não há meio de chegar? Para nos colonizarem e extraírem nossas poucas e sobrantes riquezas? Para se alimentarem de nós? Quem sabe daremos um suculento e requintado prato espacial depois de migados e sorvidos por alagartada língua bífida. Se calhar e contrariamente ao que se diz a respeito de tantas pessoas desaparecidas e que se pensa terem sido eliminadas por regimes despóticos ou por esquadrões da morte, estarão antes penduradas pelos pescoços apodrecendo como se faz com os faisões, até que atinjam a maturescência e o tom nacarizado tão apreciado pelos intergalácticos. Hmmm, estou mais em crer que o mais certo é que já sabem o que vai em nossas destorcidas mentes e mantêm-se prudentemente incontactáveis... Já os antigos que povoaram estas zonas ribeirinhas por onde navego agora, não se debateram com esse dilema, quando fruto do salto tecnológico, se fizeram ao mar nunca antes navegado. Mesmo que tivera sido navegado anteriormente, o bom é que quando arribaram às populosas costas de mulheres em abundância, se despiram de preconceitos religiosos, tão forçadamente inculcados em suas moleirinhas desde tenra infância. Fizeram um manguito àquilo que o capelão na nau dissera em seus sermões e, despindo-se de novo, atacaram as jovens e as menos jovens como matilha de cães com o cio. Até havia um capitão de nau mestra que se chamava Cão, efectivamente. Ao contrário dos outros setentrionais concorrentes, que até levavam as mulheres com eles nas viagens, nossos antepassados não sentiram dificuldade alguma em aleitar a raça, em termos figurativos e reais. Foi cá um fartar de vilanagem que nos deveria proporcionar um lugar destacado na História só por esse simples acto de fabricar novas espécies humanas. E não havia cá essa treta da posição de missionário, isso era lá práqueles idiotas dos luteranos, protestantes e seguidores de Calvino. Cá entre a nossa boa, venturosa e desembaraçada 136


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gens toda a posição era como peixe na rede, como bom seria igualmente o local da transa. Agora sei o que quer dizer aquela expressão espetar o padrão num torrão... Não foi apenas o manto de animismo que retiraram de cima daquele mulherâmio, a sua obra civilizadora não deixou de ser cumprida uma vez que igualmente as converteram em boas cristãs, óptimas cozinheiras e melhores concubinas. Entregaram-se assim a uma actividade de mescla de sangues celta, romano, visigótico, árabe, judeu e negro que faria um boer cair pró lado de indignação. Se fosse possível resumir um povo ou raça a um simples adjectivo, (coisa sempre perigosa de fazer), os portugueses seriam decerto os fornicadores, tal como os assírios seriam os agricultores, os sumérios os escritores, os egípcios os construtores, os romanos os legisladores, os chineses os inventores, os indianos os enfabuladores, os árabes os aduladores, os ingleses os colonizadores, os franceses os discriminadores e os espanhóis os exterminadores. Isso mesmo bravos arrancados às tabernas à força de chibatada, vós ó presidiários salvos in extremis à forca e postos a navegar, belo feito seus errantes, vagabundos e pedintes. Heróis do mar, nobre povo! Tal como diz uma estrofe do hino mais dementemente suicida jamais compilado.

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CAPÍTULO XIX Logística Inversa

Deixa lá a actividade de categorização em paz e vira mas é os olhos pró jornal. Já que o pagaste que o leias todo até ao fim. Depois no trabalho não dá como tu bem sabes. E na volta já vens meio a dormir e com o calor dentro do barco nem pensar em ver os pingos de suor a cair em cima das páginas como estalactites que sofreram descongelamento súbito. Parece que se está dentro de uma estufa tentando escrever num papel as caixas de cravos que vão sair para o mercado da ribeira pela manhã seguinte. Então temos: cravos vermelhos xis caixas. Pinga. Pingo em cima da folha de controlo. Amarelos: zê caixas. Outro pingo. Brancos: ipsilon caixas. Duplo pingo. Fónix! Assim não se consegue trabalhar! Pois não, e viajar tampouco, por isso é melhor fazeres um esforço suplementar e leres a porra do jornal até não haver notícia por mais chata que seja que te escape ao poder de absorção. Lembrai-te que esse é jornal de banca, de referência, não de passar e agarrar como esses diários ditos gratuitos que todos tiram, poucos lêem e quase todos atiram pró chão. Isso, incorpora em tua sapiência mais umas linhas, mais uns parágrafos acerca de seja o que for. Só utilizas dez por cento de tua capacidade cerebral por isso o que não te falta aí é espaço vazio para acondicionar informação. Ou, se achas que a capacidade está quase toda ocupada, faz uma limpeza de ficheiros. Sempre servirá nem que seja para empurrar os antigos para fora bem como esquecer velhas e funestas lembranças que só te causam azedume e tristes recordações. Fazer uma limpeza das grandes de modo a que toneladas de papel velho vão prá reciclagem da memória, fique lá isso 138


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onde ficar. Chama-se a tal proceder a desintoxicação mental. Novas e frescas novidades, notícias, informações e curiosidades ocuparão o espaço entretanto em aberto e proporcionar-te-ão novas e maravilhosas formas de saber. Não sei não. Novas e maravilhosas? Por muito que limpe os ficheiros o que de novo se acumula são porcarias costumeiras, tal como se faz na limpeza do sótão em que queremos jogar tudo fora e depois nos arrependemos. E logo volta tudo ao sítio do costume com uma ligeira limpeza às teias de aranha na melhor das hipóteses. Assim é o que se passa quando queremos varrer do sótão-cabeça antigas recordações ou memórias. Algo não nos deixa proceder a tal desiderato, por isso as pessoas mais velhas se lembram melhor de acontecimentos antigos do que dos recentes. Bem lá nas profundezas as caixinhas de recordações e os ficheiros de informação, os baús de conhecimento cheios e os malotes de experiências e sensações a abarrotar, jazem inertes e sem se deixarem arrumar devidamente tal como se fosse propositadamente. Caótica e aleatoriamente vão de vez em quando pregando partidas ao pretenso dono, como se fosse motivo de se divertirem e de nos saudarem dizendo que são virtualmente independentes quando querem. Estupefactos, só nos resta dar um safanão nas massas encefálicas e tentar passar despercebidamente de modo a que ninguém mais presencie tal acontecimento ou acto desastroso, que nos vexa ou nos provoca embaraço. Outras vezes algo surge bem lá do fundo, espécie de premonição de sexto sentido, de algo que nos deixa espantados e damo-nos por contentes em ter acumulado tanta coisa aparentemente sem serventia e sem sentido. Mas essas vezes rapidamente nos esquecemos delas como se fossem um dado adquirido ficando convencidos de que tal sempre acontecerá, basta querer. E é aí que deitamos tudo a perder, com essa soberba e esse grau de auto convencimento.

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O sonho. O raio do sonho que me fez acordar. Sonho, pesadelo ou epifania. Só agora depois de acalcar a maço centenas de informações que me entafulham a massa-de-farturas cerebral é que, em vislumbre, me ocorrem nitidamente pedaços da epidíctica letargia. Onde é que eu fui afinal recolher aquele tipo de aberrantes alucinações transformadas em actividade cerebral - logo existentes - é o que eu me questiono. Personagens sem correspondência na vida real são obra do mais profundo que nos vai dentro daquele limbo formado de células, nervos e vasos sanguíneos electricamente carregados. O entrechocar de situações já vividas, deturpadas subtilmente, outras quiçá ainda por viver, tudo isto à mistura com personagens grotescos e com palavreado ainda mais inverosímil como voz de fundo. Ainda por cima, embora descontextualizado, apresenta o mérito de ao final reagir provocadoramente com a libido, coisa sem sentido e que provoca perplexidade notória. Nunca me lembro de ver cor nos sonhos. São sempre a preto-ebranco como se se tratassem de filmes antigos mas sonoros. Faz-me lembrar o King Kong de 33, cheio de riscos na película e de saltos entre as frames. Gostaria poder colocar uma câmara que registasse toda minha actividade durante o sono. Talvez visualizando essas imagens pudesse compreender um pouco melhor essa actividade e discernir qual a ténue fronteira que separa o real do fantástico. Melhor mesmo seria gravar o sonho por ele próprio, mas aí já estou entrando no reino da ficção. Faz-me igualmente rever aquele filmezito de série B dos anos sessenta em que uma equipa de cientistas percorria o corpo humano dentro de uma espécie de nave, diminuídos ambos, pessoas e nave, a nano métrico tamanho. Como por vezes a realidade iguala ou suplanta o irreal, já há qualquer coisa que se prepara nesse sentido e que em breve muito irá dar que falar em termos médicos e não só. Parece até que a indústria futura andará submetida a essa 140


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pequenez. Do imensamente pequeno ao incomensuravelmente grande. Átomo e Universo; Homem e Deus. O sonho deixou gravado na memória partes mais indeléveis que outras. Lembro-me de um tipo vestido de uma espécie de roupa de motard que me ditava uma carta ou missiva ou lá que era. Nada de personagem gótica ou de outro mundo, um tipo simples e demasiadamente humano para se considerar entidade excelsa. Lenço vermelho no pescoço, vestes negras, demasiado estereotipado, mas que fazer, era um sonho. Parecia-se com um elemento fossilizado que fazem parte de uma banda rock nacional, não me lembro do nome. Barba por fazer, cara esquelética, olhos de sorna. Deveria estar a receber o galardão da cidade pelos sessenta anos de actividade ininterrupta, pelo ar de satisfação que tinha, só pode. O teor da carta que ele me ditava é que não recordo bem, apenas vagamente que deveria ser uma espécie de ensinamento de como se proceder ao fabrico ou manuseio de qualquer coisa. Os sonhos têm este condão de nos deixar a meio da obra por terminar ou de nos omitirem informação preciosa. Sei que em determinada altura as coisas se agitaram e eu saltei no sonho para outro lado que não aquele em que me encontrava com o dito personagem, e tornou-se tudo mais angustiante. Já havia gente a correr atrás de mim, tentando me segurar. Decerto aquilo que queriam deveria ser precioso. As mãos eram enormes e a força que exerciam igualmente poderosa. Só a muito custo conseguia me soltar. Havia ainda uma sala ou casa que eu devia atingir de modo a me resguardar daquele perigo. Ao final houve o abismo, o sentimento de ser obrigado a mergulhar nele para escapar ao perigo iminente, mas ao mesmo tempo afundar-me no negro desconhecido. Adoraria saber o conteúdo da carta já que o sonho não me permite recordar, como se fosse de propósito e dissesse:“aqui tens uma ponta solta que precisas completar”,

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Poderia fazer agora o esforço acrescido tentando vislumbrar de que se trataria. Não seria decerto durante este percurso de barca que o conseguiria atingir. Olha a quantidade de coisas que se podem imaginar a partir do pretenso conteúdo de uma missiva. Poderia ser de amor, de exaltação ao ódio, dirigida a forças desconhecidas e poderosas, de algo que não poderia cair em mãos erradas, de uma receita caseira de lulas recheadas, de um código para activar o lançamento de ogivas nucleares… sei lá que mais. Sei que durante o dia algo se passará que me ajudará a identificar mesmo ligeiramente que seja o que aquela carta simboliza em termos presentes. Na quantidade de caracteres que eu decerto escreverei durante o dia, de alguma forma, uma simples palavra ou frase me darão um “click” que me levará de novo ao sonho. Talvez até perceber que ao final nada mais é que algo imensamente comum ou trivial. Já do abismo, do profundo buraco negro, será mais difícil tentar obter mais informação durante meu dia, ou no próximo. Ainda se os sonhos tivessem princípio, meio e fim. Ou então, melhor, que tivessem continuidade temporal, sempre poderia seguir esse seriado. Deste modo, apenas poderei sentir-me feliz por poder recordar o sonho, mesmo descontextualizado e de modo parcial. Todos os dias sonhamos para libertar aquela energia acumulada que vamos absorvendo ao longo do dia e que se vê obrigada a escapar de forma imaginativa. Apenas nem todos os dias nos recordamos dos sonhos tidos na noite anterior. Uns serão mais fortes e terão deixado uma impressão mais nítida, outros serão meros assuntos fugazes sem capacidade criadora. Sonhar é viver portanto, vive-se igualmente sonhando. Sonhando que o dia de amanhã será melhor que o de hoje, que algo de bom acontecerá para que a vida seja mais feliz ou doce. Sonhos.

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CAPÍTULO XX Sous La Plage, La Chaussée

Sinto que hoje é um dia de intensa e febril actividade cerebral. Mas no fundo, quando estamos sozinhos, o que ainda perfaz uma parte considerável do tempo, acaba sendo connosco mesmo que entabulamos as maiores conversações. Nem que seja por exclusão de partes, nada mais restaria. Sempre há os religiosos ou místicos que falam com entidades sobre-humanas, mas para um paisano, laico e realista, só mesmo com a inner voice, anglicismo à parte. A paisagem ribeirinha tornou-se mais fluida com a aproximação à margem norte, fazendo com que o contraste entre as duas margens suba de gradação. E de diferenciação. Tivesse este rio e logo este estuário secado durante um qualquer outro período geológico e gostaria de ver o que se encontra, imóvel ou não, por baixo de nós. Provavelmente lodo macio e escuro recheado de pedaços de conchas como um bolo de amêndoas gigantesco. E por baixo do lodo macio, terra barrenta acastanhada de grés tal como se pode ver nas margens secas. E por baixo do grés, pedra, e por baixo da pedra, rocha. Se fosse possível secá-lo agora neste momento, como se fosse uma banheira à qual se puxasse o ralo, muitos destroços e quiçá, tesouros se encontrariam repentinamente a seco. Tesouros sim, esqueces a quantidade de povos que por aqui passaram e traficaram? Fenícios, gregos, romanos, árabes, até a Invencível Armada saiu daqui com a pretensão de invadir as anglias praias e de pôr a esvoaçar a bandeira filipina nas escarpas brancas de Dover...

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Debaixo da praia, o chão. Esbarro de novo em nova contradição. Há pelo menos duas ópticas distintas de se entender o mesmo assunto ou problema. As ideologias são apenas um meio, não um fim. Hoje somos isto, amanhã porque não o oposto. Tudo é falível e passível de ser modificado, deste ponto até aos antípodas. Muito poucos permanecem fiéis aos seus ideários até ao final da vida. Pior ainda é que muitos tiveram filhos que foram criados numa outra atmosfera, por assim dizer, e que, num movimento contrário, se tornaram ainda mais conservadores ou materialistas do que seus pais foram em sua juventude. Pela boca morre o peixe. Somos desconstrutivistas por natureza, morremos e renascemos a todo o segundo. Basta isto para se perceber que não existe passividade, mas sim um eterno movimento, ascensional ou retrógrado. Viver é necessidade de poder... Todos somos homo consumator, todos gostamos de ter o mesmo que o vizinho do lado, um pouco mais se possível. Existe uma aparente contradição em tudo isto, já que para que haja desenvolvimento, ou para que pelo menos ele se mantenha adequado ao nível de vida que as pessoas vão obtendo, tem que se produzir. Produzir para se consumir, eternamente. Debaixo do chão, a praia. Ena, as gaivotas estão demasiado atrevidas, já quase que poisam nos mastros. Sim, o barco tem mastros, nada de cesto da gávea ou de mastro da retranca mas tem lá uns paus espetados para qualquer efeito e utilidade. Passam por lá uns cabos pelo menos. Imagino poder maravilhar-me com um verdadeiro fogo de S. Telmo saindo em azuladas labaredas em direcção ao céu. “- Contramestre, acabei de ver uma gaivota a arder! - Que andaste tu a beber? Ou pior, a fumar..? Isso existe lá, gaivotas ardentes! - Juro Mestre, chiava e berrava até que se atirou ao rio toda chamuscada. 144


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- Qual gaivota qual quê! O que tuviste foi uma fénix. Ai, estes rapazolas que me mandam para bordo…” E aquilo é a lua ou será a estrela do amanhecer? Se calhar algum satélite de comunicações devolvendo o brilho do sol ampliado pelo reflexo na superfície. Espero que não seja o PO-SAT (Passarola Observadora – Sempre Atenciosa a Tudo), se é que ainda continua lá em cima, esse verdadeiro prodígio de nossa tecnologia. Já me dói o rabo que se farta de estar sentado. O atrito entre o tecido das calças e o do assento já parece aquele que os blocos das pirâmides causavam ao serem arrastados pelo lajedo, só que os pobres que os empurravam sempre tinham massa para untar e eu não tenho nada. Sintome como rabo de bebé assado por erosão da fina película de pele. Cada vez que me roço até sinto a estática a eriçar-me os cabelos das costas. Ou serão pêlos? Se multiplicar a quantidade de rabos que por aqui passam vezes aquilo que eu sinto agora deve dar para uma lâmpada de sessenta velas alumiar uma divisão durante um ano! Ondulação faz-se sentir mais forte. Estou bem à entrada do gargalo onde o efeito das marés de mar mais se fazem sentir empurrando a salobra água do rio para bem fundo do corpo da garrafa com a força de várias megatoneladas. Outras lanchas se juntam à procissão de rio, estas mais apropriadas a um caudal mais diminuto de passageiros. A uma menor cubicagem/metro/hora, usando a terminologia de contador de água. Do céu agora quase sem nuvens o sol alumia este quadro de paisagem humana, de barcos e de casario feito. Os metálicos pilares da Ponte já se vêem lá mais abaixo à esquerda, suportando o peso infinito de carros e de comboios. Que não caia. Se cair é certo que cai o governo. Neste nosso país os governos estão fatidicamente dependentes do bom ou mau comportamento das pontes.

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Quinze minutos. Já se vê gente a sair dos assentos transpirados como quem acaba sua sessão de solário e abandona os óculos protectores, ignorando que os malefícios ficaram bem fundo na sua derme. Os mais apressados gostam de se preparar antecipadamente para serem os primeiros a sair e ganharem alguns minutos de antecipação para com a restante mole humana. Deste modo conseguirão não só lugar sentado no próximo transporte que apanharem como também sentirão uma felicidade interior por serem capazes de tal expediente. Amanhã repetirão de novo este grotesco bailado, e no dia seguinte e no outro, dia após dia, ano após ano. E é destes minutinhos arrancados ali e aqui que as vidas se vão fazendo e compondo como fios de casulo de borboleta. Estamos todos mortos, tecnicamente falando. Será uma questão de dias, meses ou anos, mas isso ocorrerá. Pois tudo o que vive… morre. E, contrariamente ao que acontece com a borboleta, que ninguém espere por metamorfose alguma. Já até consigo imaginar todos em obituária defunção, ou burocraticamente resumidos a umas linhas pungentes em certidão de óbito escritas. Porquê então tanta preocupação, tanto desgaste e sacrifício para ao final darmos connosco numa cama de hospital a respirar artificialmente, entubados e a abarrotar de drogas? Ou intervenientes directos numa dessas síncopes fulminantes que de um minuto para o outro nos transformam em cadáver. Pior se à primeira não vamos desta para melhor e antes ficamos vegetalmente agarrados a uma cama com a boca desenhando um eterno sorriso trocista, meio morto meio couve-de-bruxelas. Se ao atravessar a rua não somos atropelados por camião desgovernado e ficamos entrevados e estropiados, agarrados a cadeira de rodas ou a sessões de fisioterapia até ao fim do resto de vida que temos. Soubéssemos a hora de nossa morte com antecedência e toda nossa actuação seria bem mais ponderada. Ninguém estaria disposto a gastar os últimos dias de vida com ignóbeis discussões ou com futilidades cansativas. Mas como tal não é discernível, entregamo-nos 146


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a um desgastante sem-fim de mortificações e de prazeres adiados ou olvidados. A teoria das relações humanas, desde bem cedo inculcada em nossas mentes, seja através de progenitores ou de mecanismos sociais que nos rodeiam e no qual somos obrigados a nos inserir, fazem com na maior parte das vezes não sejamos tal como nos apresentamos. Tal como na alegoria da caverna, o homem despojado dos seus bens e de seu vestuário, mingua, quase desaparece perante a sua nudez embaraçante. O que os outros percepcionam de nós é resultado de um processo em que se mistura a ideia que fazemos de nós próprios, aquela que realmente somos sem conseguir mascarar e aquela que gostamos que os outros tenham de nós. O articulado e a complexidade destas relações que no fundo, todos contribuímos a fazer e a perecer, originam uma série de situações de conflito umas, de aceitação outras e de domínio outras ainda. Confortado por uma aura de reconhecimento o Homem torna-se mais contente embora não obrigatoriamente mais feliz. Quando todos enfrentamos o mais ácido, intransigente e mordaz crítico de todos - nós próprios - no silêncio de um quarto ou no isolamento de um cubículo, temos aí conhecimento da verdadeira realidade. A nós próprios é sempre mais difícil mentir ou ocultar seja o que for. Nesse isolamento, temos a explicação para o real, as mentiras caiem como baralhos e o nosso eu verdadeiro diz-nos à cara aberta quem somos. Bom não esquecer. Quando o fio da vida se parte, quando as luzes se apagam de uma vez por todas, estamos sós e será sós que passaremos para o outro lado.

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Melhor que ser enterrado, devolvido à procedência sem direito a ser reclamado, seria o poder ser mantido para todo o sempre. Vulgo, vida eterna ao que me refiro e não ao ser mumificado e exibido como uma dessas santas de aldeia que morreram mas que não se desfazem em pó nem por nada deste (ou do outro) mundo. Nem ser exibido mediante pagamento em dinheiro com direito a canhoto para ser guardado como recordação da visita, em qualquer praça vermelha ou praceta embelezada que sejam. Estou a pensar mesmo é nesse tipo de manutenção do corpo morto, mas, paradoxalmente mantido vivo através de criogenia até que um belo dia haja maneira de o recuperar de novo para uma outra vida. Fintar a morte e a respectiva agência funerária. Nem exéquias fúnebres nem corpo à terra ou à pira.

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