JORNAL LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO IELUSC
DEZEMBRO DE 2020 | EDIÇÃO 154 | GRATUITO
Mortes de pessoas trans no Brasil aumentaram 47% em 2020
Cento e vinte e quatro mulheres trans foram mortas em 2019. Neste ano, até o mês de outubro, 151 pessoas que foram assassinadas expressavam o gênero feminino, sejam travestis ou mulheres trans, 48 mortes a mais se comparado ao mesmo período do ano anterior.
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| Editorial
Dezembro, 2020
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O ano infinito chegou ao fim Enfim, a última edição do ano. Chegamos ao final de mais um semestre do Primeira Pauta. Em uma condição totalmente diferente do que esperávamos, nossa primeira experiência com o jornal laboratório. Nossas primeiras edições foram feitas de forma totalmente remota, sem nenhum acesso aos laboratórios da faculdade. Somente a partir da terceira, a edição especial sobre as eleições, que pudemos estar presentes na faculdade para realizar a diagramação. Já se tornou clichê, mas 2020 não foi um ano fácil. A pandemia afetou tudo e todos, mas não foi só isso. Descaso com o meio ambiente, fogo na Amazônia e no Pantanal, tudo culpa do Leonardo DiCaprio. Home office para se adaptar ao “novo normal”, termo esse que que ninguém aguenta mais. Disparo no número de casos de depressão e ansiedade, cédula de 200 reais, ciclone-bomba no sul, três ministros da saúde e LGBTfobia no governo. Parece até mentira, mas não é. A “gripezinha” já matou mais de 175 mil pessoas. O racismo continua tirando vidas. No Brasil, 13,8 milhões de desempregados e a cotação do dólar não fica abaixo de R$5. Mas é tudo culpa do PT. Falando no Partido dos Trabalhadores, pela primeira vez desde a redemocratização, nenhum petista foi eleito prefeito em capitais no Brasil. Entrando no mérito das eleições municipais. Joinville será a única cidade brasileira a ter um prefeito filiado ao partido
Novo. Adriano Silva recebeu 145.269 votos, 55,43% dos válidos, e venceu Darci de Matos (PSD). Para os admiradores das ideias do liberalismo econômico, e que acham que o partido laranja realmente faz jus ao nome, aqui vai a frase dita pelo prefeito eleito em debate com os can-
didatos do 2º turno da NDTV: “Sou cristão conservador. Sou contra abortos. Sou contra as drogas. Sou contra a ideologia de gênero nas escolas”. Muito “novo” o discurso do próximo prefeito de Joinville. E após a edição 153, a especial das eleições e única impres-
Editor-chefe Fred Romano Franco
Expediente
Editor-executivo Isadora Castro Nolf
Diretor Geral | Silvio Iung Editores Diretor Ens. Superior | Paulo Aires Aline Cristiane dos Santos, Bernardo Coordenadora do Curso | Marília Crispi de Moraes Gonçalves, Bruna Souza, Cleiton Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo Roebster, Felipe Vecchio, Fred Romano Professor Responsável | Sandro Galarça Franco, Gustavo Mejía, Isabel Lima, Rua Princesa Isabel, 438 - Centro 89201-270 | Joinville-SC (47) 3026-8000 jornalprimeirapauta@gmail.com
Isadora Castro Nolf, Kevin Eduardo, Luana Coelho, Nadine Quandt e Pedro Novais.
sa, fica difícil falar das eleições sem parabenizar o esforço de todos repórteres, diagramadores e editores que trabalharam muito para dar à comunidade um jornal completo. Como futuros jornalistas, exercemos nosso papel diante da democracia. Aos repórteres, obrigado pela apuração, que não é nada fácil, ainda mais com a pandemia que dificultou tanto o contato com as fontes. Obrigado pelas reportagens de 10 mil caracteres; e pensar que há um ano atrás sofríamos para escrever 3 mil! Aos diagramadores, obrigado pelo cuidado e paciência para deixar nossas páginas tão bonitas. A todos os editores, obrigado pela parceria com os repórteres e pela coragem de cortar o texto dos coleguinhas. Aos chefes de fotografia, apelidados de tio(a) da foto, obrigado pelo cuidado ao tratar as fotos e pela criatividade ao criar artes. Aos diagramadores-chefes, editores-executivo e editores-chefe, obrigado por serem “mandões” e pelas decisões que garantiram que tudo desse certo no final. Obrigado a todos os futuros jornalistas que se empenharam para garantir mais quatro edições do nosso Primeira Pauta! 2020 está acabando, e não podemos deixar tudo que aconteceu para trás, mesmo que dê vontade. A luta contra a pandemia continua, assim como contra o preconceito, a corrupção e o discurso de ódio. Em 2021 vamos continuar!
Repórteres
Aline Cristiane dos Santos, Arthur Lincoln, Beatriz Kina, Cleiton Roebster, Gabriel Hellmann, Guilherme Martins, Isadora Castro Nolf, Kevin Banruque, Maria Fernanda Uller, Nadine Quandt, Pauline Ramlow, Rafaela Sant’Anna e Roger Cardoso dos Santos.
Diagramadores
Arthur Lincoln, Beatriz Kina, Gabriel Hellmann, Guilherme Martins, Larissa Vasconcelos, Luana Verçosa, Rafaela Sant’Anna e Roger Cardoso dos Santos.
Arte de capa Rafaela Sant’Anna Chefe de Fotografia Roger Cardoso dos Santos Nos acompanhe online primeirapauta.ielusc.br @primeira.pauta Distribuição Digital Edição 154 | Dezembro de 2020 Site: primeirapauta.ielusc.br/ Publicação no Issuu
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Jogos |
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Primeiro RPG brasileiro completa 29 anos Com quase três décadas de história, Tagmar continua sendo atualizado e está na terceira edição PAULINE RAMLOW Lançado em 1991 pela Editora GSA, Tagmar é um RPG de fantasia medieval do início dos anos 90 que trouxe uma grande novidade para a época. Em um único livro, reuniu tudo que um RPG precisava para uma boa partida: regras, magias, itens, ambientações, criaturas e uma aventura pronta. Já outros RPGs anteriores a este eram importados e vinham em vários livros, o que dificultava o acesso dos jogadores e também tornava a experiência muito mais cara. Os RPGs são jogos mais colaborativos e sociais que competitivos. De certa forma, no RPG não há ganhadores e perdedores, diferente dos jogos de carta, tabuleiro, entre outros. O jogo faz com que os participantes trabalhem a empatia e a coletividade, uma vez que o grupo depende de todos para que a campanha tenha sucesso. Uma campanha, que é uma série de aventuras interligadas, pode acabar no mesmo dia e até levar meses ou anos. Para Mateus Dottein, mestre de jogo de RPG há dez anos, continuar uma campanha é muito mais interessante que sempre começar uma nova. “Os jogadores se apegam aos personagens. Podemos acompanhar a evolução da trama e das suas habilidades dessa forma”, explica. No Brasil, durante a década de 80, Dungeons & Dragons ainda não tinha sido lançado oficialmente, e nenhum sistema de RPG brasileiro tinha sido criado, mas os entusiastas do jogo deram um jeito para ter acesso a ele. A “geração xerox” ficou conhecida por conseguir jogar através de cópias e impressões feitas em cima de vários livros de RPGs - trazidos do exterior por parentes ou amigos - mas sobretudo de Dungeons & Dragons. Quem sabia inglês, poderia traduzir ou mestrar o jogo. Assim, ele se popularizou pelo país. Foi em 1985 que Marcelo Rodrigues começou a jogar RPG, o AD&D (Advanced Dungeons & Dragons), e montou um grupo com seus amigos Ygor, Júlio e Leonardo para poderem jogar. Três anos depois, em 1988, ele sugeriu para o mestre do grupo de fazerem seu próprio jogo. “Por que a gente não faz nosso RPG? A ideia é bem simples, não tem ninguém, a gente tá
sozinho no mercado”, conta. Por conta de sua graduação em engenharia e trabalhar com engenharia eletrônica, ele analisou o sistema que D&D utilizava e chegou à conclusão de que não era tão complexo como se acreditava na época. “Eu olhei pra mecânica matemática atrás do D&D e era uma mecânica bobinha, tinha nada demais”, explica. Segundo ele, havia outros RPGs com temáticas muito mais complexas, como Rolemaster, Star Frontiers e Paranoia. A ideia do grupo era fundar uma empresa, então foi criada a Editora GSA. Assim, eles não só criaram Tagmar como publicaram o jogo. Conforme Marcelo, ocorreu um pequeno atraso no lançamento em 91. O jogo, que era para ter sido lançado em outubro, acabou ficando para o fim do ano. “Acabou saindo quase na véspera do natal. A gente perdeu o natal daquele ano, infelizmente”, conta. As dificuldades começaram a surgir em relação à GSA quando eles perceberam que administrar uma editora não era tão simples. “A gente sabia fazer RPG, mas a gente não entendia nada de vender”, explica Marcelo. O grupo levou um tempo para compreender que precisavam de um distribuidor, um canal de divulgação, publicidade, marketing, e segundo ele, essa foi uma das falhas da editora. Na metade dos anos 90 aconteceu uma crise no mercado, em decorrência da Editora Abril ter trazido D&D oficialmente para o Brasil. Os livros eram caros e para poder jogar uma partida era necessário ter no mínimo três deles. Conforme Marcelo Rodrigues, “RPG virou sinônimo de encalhe”. As empresas que compraram D&D não conseguiam vender e o mercado ficou saturado. Consequentemente, as vendas de Tagmar também foram decaindo. “A gente não tinha escala, não tinha volume, e o que aconteceu era que não dava pra viver de RPG, basicamente”, conclui. Assim, a empresa encerrou suas atividades em 97 e cada um do grupo seguiu sua vida. “Não é que a empresa faliu, a gente simplesmente desistiu, não tinha dívidas”, conta. O jogo saiu de linha e ficou em hiato durante alguns anos. Algum tempo depois, Marcelo resolveu criar seu próprio fórum, o Projeto Tagmar 2, para poder postar
ARTE: ROGER CARDOSO DOS SANTOS
A Editora GSA foi criada por Marcelo, Ygor, Júlio e Leonardo com o objetivo de publicar os livros do jogo
o material. A intenção era revisar e atualizar o RPG com participação coletiva. “Eu avisei em alguns grupos que dia tal ia começar, e no dia marcado já tinha 50 pessoas. As pessoas ficaram alucinadas, “vamos fazer””, destaca. Para ele, o trabalho coletivo consegue produzir uma quantidade de material muito grande, à custo zero. Depois de lançar a versão 2.0 do jogo em 2005, o projeto não parou por aí. Vários outros livros foram atualizados, regras e habilidades revisadas e adicionadas, criaturas novas criadas. Depois dessa evolução, o Tagmar 2.1 nasceu, logo depois o 2.2 e o 2.3. “A gente ia lançar o Tagmar 2.4, mas fizemos tantas mudanças que isso não era mais uma pequena atualização, era uma grande atualização. Então em 2018 surgiu o Tagmar 3”, conclui. O projeto continua até hoje, com uma média de dois a três lançamentos por ano. Todo o material se encontra disponível no site Tagmar para leitura e download gratuito, e pode ser impresso e encadernado em uma gráfica para ter o material em mãos e jogar com mais facilidade.
Por que a gente não faz nosso RPG? A ideia é bem simples, não tem ninguém, a gente tá sozinho no mercado
Marcelo Rodrigues, autor e coordenador do projeto Tagmar Dos livros à vida real O ilustrador e escritor Domênico Gay entrou em contato com o RPG no início da década de 90. Na época, seu grupo de amigos escre-
viam e desenhavam histórias em quadrinhos através do jornal da escola em que estudavam, onde eles publicavam as criações. Em um dos anúncios no jornal, um mestre de RPG estava atrás de potenciais jogadores. “Eu fiquei curioso e fui procurar o cara. Acabei entrando no meu primeiro grupo de RPG”, conta. O primeiro projeto de RPG que ele contribuiu foi Tagmar 2.0, em 2005. “Eles precisavam de ilustradores, então eu entrei em contato com eles e fiz uma série de ilustrações. Foi a primeira vez que meu trabalho foi publicado de fato”, diz. Ele conta que esse projeto trouxe uma certa visibilidade para sua carreira de RPG no país, mesmo ele já tendo participado de histórias em quadrinhos e trabalhos independentes. Em 2018, ele inaugurou a Taverna do Valhalla, um lugar onde as pessoas podiam se reunir para jogar e discutir sobre RPG, boardgame, cardgame, beber hidromel e participar de Sword Play, um jogo de espadas (ou outras armas) onde é encenada uma luta. “Eu tenho um espaço físico muito grande e a região não tinha nenhuma loja especializada de RPG, então uni o útil ao agradável”, explica. Hoje, a Taverna não existe mais, assim como qualquer empreendimento, exige um bocado de manutenção. “Eu estou mais interessado em me dedicar à carreira de ilustrador e menos em manter o local” completa. Ele conta que ainda tem a intenção de produzir algum projeto mais esporádico ligado ao Sword Play, que não existe na região, e segundo ele, “faz um pouco mais de falta”. Hoje, Domênico não trabalha só como ilustrador, mas como escritor e autor de RPG.
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Dezembro, 2020 FOTO:MAUREEN BISILLIAT/ INSTITUTO MOREIRA SALLES
O centenário da autora convida todos para a leitura e releitura de sua obra
Os cem anos de Clarice Lispector De romances a contos infantis, a contribuição da escritora para a literatura brasileira é reconhecida até hoje ROGER CARDOSO DOS SANTOS Em 10 de dezembro deste ano a autora Clarice Lispector completaria cem anos. De família judaica, Clarice foi naturalizada brasileira. Com o nome de Haia Lispector, a caçula de três irmãs, nasceu na Ucrânia em uma vila chamada Tchetchelnik, na época território do Império Russo. Mesmo assim, sua contribuição para a Cultura Brasileira permitiu um novo olhar sobre a literatura. Benjamin Moser, autor de Clarice, uma biografia, classifica-a como a melhor escritora judia desde Franz Kafka. Ela foi a porta de entrada para abordagens mais voltadas ao psicológico, fugindo da escrita voltada ao regionalismo comum nas décadas de 1930 e 1940.
Nenhuma característica daria conta de explicar porque amamos tanto a clarice. É um mistério. Caio Bona, doutor em Teoria Literária pela UFSC
Para Caio Bona Moreira, doutor em Teoria Literária pela UFSC, “sem a Clarice nossa literatura seria mais pobre”. O encantamento produzido pela leitura do texto dela está mais em sua força do que em sua forma. Ela convida o leitor para uma relação de cumplicidade durante seus textos. “Impossível explicá-la. É mais possível ler com ela, escrever com ela, conversar com ela”, afirma. Clarice é uma autora muito \, mas Caio não acha que existe um porquê específico. “Podemos até tentar apontar características que tornaram seus textos memoráveis. Mas nenhuma característica daria conta de explicar porque amamos tanto a Clarice. É um mistério”, conclui. Em 1943, publicou seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem. No ano seguinte, o livro recebeu o prêmio de Melhor Romance de Estreia pela Fundação Graça Aranha e foi elogiado pela crítica especializada. O escritor e crítico literário Sérgio Milliet elogiou o livro na época, afirmando que era a mais séria tentativa de romance com enfoque nos conflitos internos da protagonista. Outro crítico literário a escrever sobre o primeiro romance de Clarice foi Antonio Candido. Escreveu, no periódico Folha da Manhã, que “a intensidade com que [Clarice] sabe escrever e a rara capacidade da vida interior
poderão fazer desta jovem escritora um dos valores mais sólidos e, sobretudo, mais originais da nossa literatura”. E Candido estava certo. A publicação do livro seria o primeiro sucesso de uma série de romances que Clarice publicou nos anos subsequentes. Dentre os mais aclamados estão: A Paixão Segundo G.H. (1964), Água Viva (1973) e A Hora da Estrela (1977). Mas o prestígio à Lispector hoje não esconde o fato de que a autora passou por maus bocados antes mesmo de aprender a escrever. Seu nascimento se deu em meio a uma tentativa de emigração, eles queriam deixar o país para fugir da violência contra os judeus e da guerra civil. Ocasionada devido aos conflitos entre a monarquia russa e o partido bolchevique. Em março de 1922 a família Lispector desembarcou do navio a vapor Cuyabá em Maceió. No Brasil, os nomes russos da família foram adaptados à língua portuguesa. O pai Pinkouss virou Pedro, a mãe Mania virou Marieta. Leia, a primogênita, virou Elisa, Tania, a irmã do meio, não adaptou o nome e Haia virou Clarice. A família se mudou para Recife e, após a morte da mãe, para o Rio de Janeiro. Rafael Miguel Alonso Júnior doutor em literatura pela UFSC começou a ler Clarice por volta dos
quatorze anos, fruto de uma leitura escolar obrigatória. “Foi uma leitura que me gerou um estranhamento. No entanto, me gerou um estranhamento de muita curiosidade”, comenta. Após a leitura de A Paixão Segundo G.H, Rafael deu continuidade à leitura do texto clariceano. “Eu me senti provocado para continuar as leituras. É uma estrutura literária que constantemente convida o leitor a olhar para si, a se estranhar. É uma quebra de expectativa”, conclui. Clarice lia muito e de tudo. Em uma entrevista concedida à TV Cultura em 1977, afirmou: “eu misturei tudo. Eu lia romance pra mocinha misturado com Dostoievski. Eu escolhia os livros pelos títulos e não pelos autores. Fui ler aos 13 anos Hermann Hesse”. Desde muito jovem demonstrou um fascínio pela literatura. Começou a escrever pequenas histórias a partir do momento em que aprendeu a ler. Mesmo antes de publicar o primeiro livro, já publicava seus contos em revistas e jornais. “Eu sou tímida e ousada ao mesmo tempo, eu chegava lá na revista e dizia: eu tenho um conto, você não quer publicar?”, afirmou na mesma entrevista. Clarice deu essa entrevista em fevereiro de 1977. No fim do ano, no dia 9 de dezembro, morreu de um câncer de ovário. Um dia antes de completar 57 anos.
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Cultura |
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A elitista arte plástica de Joinville O setor cultural é esquecido por parte da sociedade e mesmo assim existem artistas inspirados na região KEVIN BANRUQUE Juarez Machado, Luiz Henrique Schwanke, Nuno Roland, Irmãos Feitosa. Joinville é a cidade natal de artistas visuais famosos nacional e internacionalmente. A pintura vem ganhando espaço na cena cultural da cidade, onde diversos talentos são descobertos por meio de exposições em galerias espalhadas pela cidade. A maior cidade do estado possui apenas 6 galerias de arte e 1 escritório de consultoria na compra de quadros. Em média, são feitas 50 exposições artísticas por ano em Joinville. Os preços de obras de artistas locais variam muito, quadros de artistas que estão iniciando sua carreira podem custar de R$200 a R$4000, mas quadros de artistas de renome, como de Juarez Machado, podem passar dos R$100.000. Uma revelação recente na cidade por trazer arte inovadora é o artista plástico Wagner Padilha, 23, que recentemente estreou uma exposição que está sendo muito elogiada pelos especialistas de arte da região. Natural de Joinville, Wagner foi interessado e estimulado na arte desde a infância, aos 10 anos, foi matriculado na Casa da Cultura onde fez cursos na área da arte e desenvolveu técnicas que usa até hoje. Atualmente, o artista uniu sua paixão pela estética a uma profissão, estuda arquitetura e urbanismo, além de continuar atuando como artista plástico. Padilha comenta sobre sua exposição, que tem como tema “Êxodo”: “Eu nasci e vivi num bairro de Joinville mais pacato e conservador, sempre fui uma pessoa que me destacava e chamava atenção de uma forma estranha aos olhos destes, para mim era um ambiente do qual me sentia deslocado e não pertencente. Sendo assim, esse ‘Êxodo’ que era urbano, hoje acontece naturalmente, e é isso que quis transmitir”. Já muito experiente, Moacir Moreira, 65, que também é natural de Joinville, é artista plástico há mais de 40 anos. Segundo ele,
já passou por muitas fases e procuras artísticas, mas atualmente desenvolve um trabalho que fala do tempo através do registro da passagem constante de pássaros. “São grandes revoadas que se compõem em planos e movimentos, num intenso diálogo com a cor. Fatores que determinam o que quero expressar em cada obra” disse. Filha da artista plástica Rita Zanella, Júlia, 22, também é uma artista plástica joinvilense. Desde a adolescência vendia retratos e desenhos, em 2017 a arte se tornou uma carreira. Hoje cursa arquitetura e urbanismo, onde aprendeu sobre história da arte e também técnicas de pintura. Júlia fala sobre a identidade do seu trabalho: “Gosto da tentativa de causar algum desconforto, não que necessariamente atinja esse objetivo, afinal quem termina a obra é o consumidor, certo?”. Marc Engler, 40, é um artista plástico e curador de arte conhecido em Joinville. Aos 32 anos, cursou fotografia em São Paulo, com o objetivo de unir o seu gosto pela arte a uma profissão que pudesse ser o seu ‘ganha pão’. Depois de graduar-se, abriu seu estúdio de fotografia na capital paulista, insatisfeito e frustrado com a profissão de fotógrafo, voltou a sua terra natal, Joinville, para atuar como curador e iniciar sua carreira como artista plástico. Engler também faz parte da Associação de Artistas Plásticos de Joinville (APPLAJ). A intenção da associação é estimular a produção artística de Joinville, com movimentos de criação de arte entre seus associados, a partir de reuniões e discussões. “Estamos tentando mudar e o fato de que as pessoas consideram a arte elitista em Joinville, porque ela é pra todos, ela transforma e é importante“, afirma Engler. O artista já conhecido em todo o território nacional e também fora do país, Juarez Machado, continua atuando mesmo aos 79 anos de idade. Nasceu em Joinville, realiza obras de pintura, escultura, caricaturas, mímica, design, cenografia,
Quadro assinado por Juarez Machado entre outros gêneros artísticos. Juarez já recebeu diversos prêmios, e faz exposições frequentes em várias cidades brasileiras, dos Estados Unidos e da Europa. Edson Machado, 63, irmão de Juarez, é produtor cultural e ex-secretário de cultura de Joinville e também do estado do Paraná. Ao falar do irmão, diz: “É um cidadão do mundo, acorda às 7h pintando e vai dormir às 23h, também pintando, é um exemplar na área da arte”.
É um cidadão do mundo, acorda às 7h pintando e vai dormir às 23h, também pintando, é um exemplar na área da arte.
Edson Machado, produtor cultural Elitista para uns acessível para outros Curadores, artistas e produtos ficam divididos nessa questão. Gabriela Loyola, 38, é fundadora do escritório joinvilense de arte, Picta, especializado em consultoria para aquisição de obras de arte. “Considero a arte joinvilense
acessível se considerarmos a questão econômica, a oferta é maior do que a procura, e elitista quanto à acessibilidade, pelos poucos espaços para exibição e venda”. Os artistas locais sofrem com a escassez de oferta de escolas voltadas para sua formação e aprimoramento, de galerias que poderiam se interessar pelos seus trabalhos, de instituições de referência que validem artisticamente sua produção e de interesse das mídias pela divulgação. Consequentemente, o público que se interessa por arte acaba ficando escasso. Luciano Itaqui, 38, também integrante da AAPLAJ, artista plástico, curador e blogueiro, pensa de forma diferente. “A arte joinvilense não é elitista, ela é popular, nossos artistas estão em todos os lugares, mostrando seus trabalhos em cafés, livrarias, shoppings e também em galerias, fazendo com que todas as classes sejam alcançadas” disse o especialista. Contudo, Luciano também comenta que na atual gestão da prefeitura da cidade, houve um grande desmonte cultural. Ao longo da gestão Udo Döhler, teve o sucateamento da Cidadela Cultural Antarctica, onde havia espaços culturais e um teatro, e também o desmanche da Secretaria de Cultura, que acabou se juntando com a Secretaria de Turismo.
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| Saúde
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Isolamento social não regrediu o desempenho físico das pessoas
ANA CAROLINE MATEUS
Neste período, as pessoas se reinventaram para não deixar as atividades físicas de lado ARTHUR LINCOLN Com a pandemia do novo coronavírus, as pessoas tiveram que se adaptar e realizar parte dos exercícios físicos em suas casas, de forma limitada, mas com segurança. Algumas resolvem continuar no ambiente tradicional da academia, enquanto outras correm nas calçadas de máscaras. O enfermeiro David Willian Sperber Sell, de 21 anos, afirma que correr com máscara pode sobrecarregar o funcionamento dos pulmões, pois ele trabalha com mais força e recebe menos oxigênio. Essa atitude pode causar hipóxia, hipoxemia, falta de oxigênio tecidual, falta de oxigênio no sangue, síncopes e entre outros problemas. “As pessoas devem entender os seus limites e seu bem-estar, não extrapolando eles”, comenta. A OMS (Organização Mundial da Saúde) não recomenda o uso de máscaras durante a prática de exercícios, pois as pessoas ficam mais ofegantes e a respiração desconfortável. A entidade alertou que o suor pode molhar a máscara, dificultando
a respiração e promovendo o crescimento de micro-organismos. Embora haja riscos em praticar exercícios neste período, o corpo não pode ficar parado. Um estudo da Universidade de São Paulo (USP) aponta que praticar 150 minutos de atividades físicas por semana reduz em 34% o risco de internação por COVID-19. David adverte que a falta de exercícios físicos também traz problemas como doenças cardiovasculares, hipertensão, angina, arteriosclerose, diabetes tipo II, obesidade e fadiga. Causas que podem levar a um possível AVC ou infarto.
Sedentarismo na pandemia
O isolamento social fez o nível de sedentarismo no Brasil aumentar com a falta de atividades físicas. De acordo com a OMS, cerca de 70% das pessoas do mundo são sedentárias e 54% das causas de infartos são por falta de atividade física. O enfermeiro Andriel Vinícios Cardoso indica aos sedentários começar a praticar atividades físicas o mais rápido possível, junto com uma alimentação correta,
Riscos e benefícios Nesse período, a prática das atividades físicas deve ser feitas para manter o corpo sempre em movimento. Porém, deve se pensar nos riscos de acidentes, lesões e contusões. Para o profissional de Educação Física, Matheus Rodrigues, de 25 anos, todo esporte tem seu risco. Os atletas vivem ultrapassando seus limites físicos, afinal, essa é a atração principal. “Esportes que provocam um risco na vida das pessoas são os mais perigosos. Exemplos são Highline, Bang Jumping e Fórmula 1.” Para ele, os menos arriscados são tênis, futebol e vôlei. Mas ressalta os riscos de lesões pela repetição, in-
tensidade e execução. Rodrigues diz que exercícios de treinamento resistido ajudam na manutenção dos ossos e músculos, emagrecimento e melhora do sono. Porém, a prática de exercícios em excesso pode provocar alguns problemas no corpo. O professor de taekwondo, Jean Cristiano dos Santos, de 50 anos, diz que esse excesso pode levar a pessoa a sentir fadiga, cansaço e dores musculares. “Em atletas de rendimento é ‘normal’ haver lesões musculares, bem como articulares e ósseos. O mesmo pode acontecer com pessoas sem experiência, que resolvem fazer alguma atividade sem as devidas orientações”, comenta.
Personal trainer e alunas em aula durante a pandemia pois, quanto antes começar, mais problemas podem ser evitados no futuro. As diferenças dos praticantes de exercícios e dos não praticantes costumam ficar evidentes. “A aparência física é notável. Pessoas que praticam atividade física tendem a ter menos alterações nos exames laboratoriais”, disse. Já para a personal trainer Ana Caroline Mateus, de 23 anos, a maior recomendação é que as pessoas pratiquem alguma atividade física, e façam algo que gostem, pois, assim tem a maior probabilidade em dar continuidade. Ela fala que existem mui-
tos casos onde a pessoa acaba praticando um esporte que não gosta, pensando que vai melhorar a vida e acaba piorando. Para Ana, as pessoas que treinam estão menos propícias a desenvolver qualquer tipo de doença, conseguindo ser mais fortes e mais velozes. As que não treinam adotam hábitos ruins para o corpo, podendo entrar em uma fase de sobrepeso e até obesidade. “O ideal é não parar drasticamente de treinar, para não perder o rendimento e o desempenho, assim vai reduzir as capacidades físicas que acaba ganhando durante a prática”, indica.
Alimentação O Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde, da Universidade de São Paulo (USP), realizou um dos maiores estudos em alimentação e saúde neste ano. Segundo as análises, o Brasil mostrou um aumento generalizado na frequência de consumo de frutas, hortaliças e feijão (de 40,2% para 44,6%) durante a pandemia da covid-19. Ao mesmo tempo, indicou que nas regiões norte e nordeste e, entre pessoas de escolaridade mais baixa, houve aumento no consumo de alimentos ultraprocessados, produtos industrializados que contêm adição de muitos ingredientes, como açúcares, sais, adoçantes, corantes, aromatizantes e conservantes.
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Comportamento | 7 FREEPIK
Busca pela perfeição atrai público de todas as idades O termo “harmonização facial” cresceu 540% nas pesquisas realizadas em 2020 CLEITON ROEBSTER As cirurgias estéticas “invasivas” e “não invasivas” estão cada vez mais comuns no Brasil e no mundo. Adolescentes e idosos, homens e mulheres, que muitas vezes já estão dentro de um padrão de beleza, estão se submetendo cada vez mais a procedimentos que visam uma padronização facial e corporal, que foi estipulada por nós mesmos. No Google Trends, ferramenta que monitora as tendências do buscador, as pesquisas pelo termo “harmonização facial” cresceram 540% somente no ano 2020. Segundo a professora universitária e doutora em antropologia Maria Elisa Máximo, 43 anos, isso foi construído historicamente, socialmente e culturalmente. “Quando estamos falando de padronização na sociedade ocidental, capitalista, industrial, numa perspectiva mais crítica, a gente está falando de um padrão que é estimulado do ponto de vista do consumo, visando o próprio consumo e lucro, de uma indústria da beleza”. De acordo com ela, quando falamos de padronização, falamos de um padrão que está ligado a uma indústria composta por diferentes frentes. “É uma padronização muito mais mercadológica e não só cultural”, esboça a antropóloga.
De acordo com dados da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), nos últimos dez anos houve um aumento de 141% nos procedimentos em jovens de 13 a 18 anos. Só em 2016, foram realizadas 1.472.435 cirurgias plásticas estéticas ou reparadoras, sendo 6,6% em adolescentes, um total de 97 mil cirurgias. A docente explica que este padrão estético foi construído pela própria sociedade, mas o fato é que isso não necessariamente se dá dessa forma homogeneizada e uniforme.
Em cada comunidade, em cada contexto social, esses padrões vão chegar de um jeito e vão ser recebidos de outra maneira
Maria Elisa, antropóloga No ano de 2017, a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps) revelou que os brasileiros passaram por cerca de 2,5 milhões de procedimentos, representando 10,4% das cirurgias estéticas mundiais. O Censo de 2018 da SBCP aponta crescimento de 25,2% nas cirurgias esté-
Uma população que foi educada ao culto do corpo e rosto perfeito ticas, onde cerca de 70% das plásticas são realizadas no público feminino. Os implantes de silicone nos seios lideram a lista de cirurgias corporais. A cirurgiã-dentista Tayciane Almeida, 22 anos, explica que ainda dentro da graduação é oferecido apoio e oportunidades para realizar procedimentos estéticos dentais e faciais, para que possam sair aptos para realizar procedimentos de teor estético. Com isso, a harmonização tem chamado muita atenção dos homens. Segundo os dados da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, a procura do “maxilar marcado” alcançou um crescimento de 255%, além do número de procedimentos ter subido de 72 mil para 256 mil. Esse aumento se dá pelo padrão
estético que a sociedade impõe. A cirurgiã-dentista, diz que dentro do universo odontológico passou a ser além de “apenas dentes”, e o público está buscando além de funcionalidade, um sorriso estético e uma boa harmonia facial. O número de cirurgias estéticas cresceu muito nos últimos anos, acompanhando a explosão das redes sociais. As empresas lucram com a não-aceitação estética social. Mas segundo Maria Elisa, as redes podem ser uma forma de ser lúdico. “Os de Instagram filtros permitem que assumimos várias feições, eles talvez até aliviam essa necessidade que algumas pessoas sentem de estar o tempo todo respondendo a esses padrões”, esclarece.
O mundo estético por trás das redes sociais A indústria mercadológica traz à tona que temos defeitos, que precisam ser resolvidos. A doutora em antropologia diz que em toda sociedade vamos encontrar práticas de modificação corporal, mas que devido a essa indústria procuramos sempre resolver os “defeitos”. “O corpo é um espaço mais social do que individual”, declara a antropóloga. A digital influencer e modelo Le-
tícia Galiassi, 17 anos, diz que sente essa pressão estética social desde muito cedo. “Sempre fui extremamente magra, sem curvas nenhuma, não gostava muito do meu corpo, e todos à minha volta, colocavam pressão para que eu mudasse”. A modelo relata ainda ter ouvido várias vezes o termo “irá voar desse jeito” ou “ficar doente de tão magra”, comentários que segundo a
jovem geraram frustração e faziam despertar o desejo de mudar a qualquer custo. Dentro das redes sociais, a influenciadora diz que acaba lidando com todo tipo de comentário, mas afirma que na mídia, a maioria das pessoas só mostram o lado bom. As mudanças de padrões, segundo Letícia, podem começar com os influencers mesmo: “Muitas pessoas
se inspiram, até mesmo se comparam... Talvez nem nós mesmos tenhamos noção da tamanha influência que causamos”. Ela explica que por mais que ainda existam muitos padrões, nas redes sociais é possível encontrar exemplos de influencers que buscam desconstruir essa norma de “vida perfeita”, mostrando a realidade das pessoas. E segundo a jovem, “a tendência é só aumentar”.
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| Comportamento
primeir
Tempo em redes sociais aumenta 40% na pandemia Especialistas explicam os malefícios do uso excessivo das redes à população BEATRIZ KINA O Brasil é o segundo país que passa mais tempo nas redes sociais. Os brasileiros perdem apenas para as Filipinas, que tem uma média diária de 241 minutos por dia, enquanto aqui é de 225. Esse foi o dado levantado pela GlobalWebIndex em 2019. Neste ano, com a pandemia da covid-19, uma pesquisa feita pela consultoria Kantar apontou que o uso do WhatsApp, Facebook e Instagram aumentou 40%. Com as crianças em casa, a necessidade de criar atrativos para entretê-las aumentou. “As telas acabam sendo um recurso que os pais têm utilizado muito para distrair as crianças”, avaliou a psicóloga e professora Elaine Cristina Luiz. Para ela, os pequenos têm sido expostos cada vez mais cedo a telas e redes sociais e alguns deles têm um apelo grande para jovens, o que as sujeita a uma constante comparação a outros jovens. Os pais não conseguem acompanhar o tempo todo o conteúdo que os filhos estão acessando. Isso compromete até mesmo a segurança dos pequenos, já que quem está do outro lado da tela nem sempre são quem dizem ser. Em 2018, por exemplo, o Facebook desativou cerca de 583 milhões de contas falsas. A rede social estima ainda que 3 a 4% das contas que não foram deletadas naquele período ainda eram falsas. Elaine aponta que a pré-adolescência é a fase que merece mais atenção. “É onde as crianças estão muito suscetíveis a formarem vínculos. Elas desejam pertencer e se sentir incluídas.” Vínculos familiares e escolares devem ser fortalecidos nesse período. Mãe de um pré-adolescente, Andreia Quandt preza pelo diálogo sobre o uso da internet. Ela acompanha o filho nas redes sociais e já interveio em uma postagem quando não achou o conteúdo adequado. Ela conta que o filho criou um
meme com a foto de um amigo e disse que ele não se importaria com a brincadeira. “Fiz ele entender que hoje é uma brincadeira inocente que depois pode virar um hábito feio e desnecessário, podendo até se tornar bullying”, contou. Diferente de Andreia, Andrea Patrícia, mãe do Victor, de 17 anos, contou que nunca sentiu necessidade de intervir nas publicações do filho. “Sempre tivemos uma conversa franca sobre bullying, palavrões, respeito pelas mulheres, idosos, pessoas com relações homoafetivas.”
Adultos e redes sociais
Apesar do protagonismo dos adolescentes sobre o assunto, o perfil do internauta brasileiro é diferente. Mulher entre 25 e 34 anos, classe C, morador de área urbana e com ensino médio completo. Isso é o que aponta a Pesquisa Sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos Domicílios Brasileiros de 2017. Para a pesquisa, foram entrevistadas 10.320 pessoas. Além disso, 90% de todos os usuários fazem acesso pelo celular.
A universitária Gabriela Bento, de 21 anos, tem notebook, mas admite que assiste às aulas pelo celular. A acadêmica de Ciências Contábeis contou que passa quatro horas diárias nas redes sociais, mas às vezes desinstala os aplicativos. “Por conta desse tempo que acabo perdendo e que poderia estar aplicando em outra atividade relevante”, justifica. Também em aulas remotas, Mariana Tavares, 18 anos, está no último ano do ensino médio. Com a mudança na rotina, ela confirma que o tempo nas redes sociais também aumentou, principalmente enquanto está em aula. Agora, quando recebe uma notificação no celular, sente que precisa checar. “Eu tento me controlar, mas às vezes fica difícil mesmo, pois minha rotina de estudos não é a mesma com as aulas
presenciais”, admite. Nos adultos, as redes sociais funcionam como uma espécie de recompensa, avalia o neuropediatra Marino Miloca Rodrigues. Essa recompensa vem através das curtidas, número de seguidores, feedback de fotos e compartilhamentos. “Sem que seja tão percebido, ficamos cada vez mais dependentes desta recompensa, que acaba sendo cada vez menos satisfatória, gerando uma busca maior por recompensa, porém com uma sensação menor de bem estar.” Luana Borba não está distante desse sentimento. Ela acredita que as redes sociais funcionam como um escape da realidade, que livra as pessoas de lidar com sentimentos, responsabilidades e podem funcionar como preenchimento do convívio
social. “Percebi muito neste tempo que as redes sociais passaram a se tornar algo necessário no dia a dia, como uma ferramenta de sobrevivência, por mais estranho que pareça.” Luana trabalha em uma empresa de gestão e controle financeiro e está em home office desde março, ainda sem previsão de retorno. Ela estima que o tempo que passa em redes sociais tenha aumentado cerca de 70% na pandemia. Apesar dos dados que comprovam o tempo médio alto, os brasileiros ainda estão em terceiro lugar no ranking do Mercosul (Argentina, Uruguai, Paraguai e Brasil) de domicílios com acesso à Internet. O país perde apenas para o Paraguai. A pesquisa foi feita pelo Comitê Gestor da Internet em 2018.
Dezembro | 9
ra.pauta
Crianças iniciam cada vez mais cedo o uso da internet GABRIEL HELLMANN
Exposição excessiva a telas causa fadiga visual Cerca de 2,2 bilhões de pessoas no mundo têm alguma deficiência visual. Dessas, pelo menos 1 bilhão têm alguma deficiência visual que poderia ter sido evitada ou que ainda não foi corrigida. Esses foram os dados levantados pela Organização Mundial da Saúde em outubro de 2019. Esse foi o primeiro relatório mundial sobre visão publicado pela organização. As consequências de longas exposições a telas de celular são várias. O oftalmologista Rafael Farias Miers explica que nossa visão funciona vendo objetos e imagens refletidas, seja pelo sol ou por lâmpadas. Já as telas, projetam uma luz direto aos olhos, , o que causa mais fadiga e síndrome de olho seco. Uma pessoa em condição normal pisca de seis a sete vezes por minuto. Já uma pessoa concentrada em uma tela de computador, pisca de de duas a três vezes. “No final do dia o olho vai sentir essa falta de lubrificação por piscar muito pouco. Isso também é uma das causas de síndrome do olho seco”, explica o profissional.
O médico ainda compartilha o exemplo de alguém próximo. O filho de um colega, também oftalmologista, chegou a seis graus de miopia. A criança passava seis horas por dia na frente de telas. “Só conseguiram realmente estabilizar o quadro, a hora que tiveram um pouco mais de consciência e fizeram o menino parar com o celular e com o tablet”. Dois anos depois, o grau do menino começou a diminuir e hoje ele está com quatro graus de miopia.
Pausas curtas a cada 20 minutos. Lembrar de piscar. Talvez usar algum colírio lubrificante.
Tatiana Rocha Rays de Aguiar, oftalmologista A oftalmologista Tatiana Rocha Rays de Aguiar afirma que
o melhor tratamento para quem passa muito tempo em frente a telas é fazer pausas. “Podem ser pausas curtas, de 20 segundos, olhando para longe a cada 20 minutos. Lembrar de piscar. Talvez usar algum colírio lubrificante.” O posicionamento das telas também é importante, a médica recomenda que elas sempre estejam em uma altura mais baixa que os olhos. Tatiana ainda fala sobre a existência de filtros azuis que podem ser colocados em lentes de óculos para ajudar nos sintomas de fadiga visual.
Dependência documentada
O assunto “dependência em redes sociais” ficou mais evidente nos primeiros dias de setembro. O serviço de streaming da Netflix disponibilizou no catálogo o documentário O Dilema das Redes. Ele traz relatos de ex-funcionários de empresas como: Google, Pinterest, Instagram e Facebook. Essas pessoas contaram como essas grandes empresas começaram
a lucrar cada vez mais em um mercado em que o produto é o usuário. Além dos relatos, o documentário traz uma história fictícia de uma família com dificuldades de comunicação devido ao uso excessivo do celular. Em uma cena, a mãe propõe que todos coloquem os celulares dentro de um jarro que ficará trancado até o final do jantar. Depois de receber uma notificação, a filha mais nova do casal quebra o recipiente para pegar o aparelho. A reação da personagem está ligada a forma como o vício em redes sociais pode afetar funções cerebrais. O neuropediatra Marino Rodrigues confirmou que de forma aguda, o vício nas redes pode gerar angústia e ansiedade. “Alguns estudos têm mostrado que quando aumenta a exposição a telas (TV; celular; tablet), nosso desenvolvimento cognitivo tem a tendência de reduzir. Esta redução ocorre porque memória, concentração e linguagem são afetadas”, afirmou o médico.
10 | Negócios
primeira.pauta
Dezembro, 2020
Mulheres motoristas enfrentam sociedade machista Apesar de aplicativos possuírem grande quantidade de condutores, dados revelam números pequenos referente ao sexo feminino ALINE CRISTIANE DOS SANTOS O Brasil se tornou o segundo maior mercado da Uber no mundo. Segundo os últimos dados divulgados pela empresa em 2019, o país faturou US$ 959 milhões em 2018, tendo mais de 600 mil motoristas parceiros e 22 milhões de usuários. Os dados também apontam que as mulheres ainda são a minoria nesse mercado de trabalho, representando apenas 6% dos 600 mil motoristas cadastrados no país. Évilin Matos Campos é mestranda em Ciências da Comunicação e pesquisadora assistente do projeto Fairwork Brasil ― uma pesquisa-ação interdisciplinar, com pesquisadores de comunicação, sociologia, administração, psicologia e direito, que entrevista trabalhadores de plataformas digitais para acompanhar as suas condições de trabalho. Évilin acredita que isso seja reflexo de uma intersecção de gênero e classe. “Em geral, as famílias têm um veículo e normalmente o dono legal deste carro é o homem. Então, para ter um instrumento de trabalho, a mulher precisa alugar ou comprar, o que se torna um empecilho para ela iniciar na profissão”, explica. Segundo ela, a Uber deveria prover benefícios como um todo, des-
de remuneração à segurança dos motoristas em geral. “Isso que torna o trabalho atrativo e as pessoas precisam ingressar neste trabalho sabendo que haverá o mínimo de segurança social.” Esse número pequeno de mulheres na Uber mostra também que apesar de terem conquistado muitos direitos durante as últimas décadas e terem assumido cargos altos em empresas e em outros ramos, ainda há pouco espaço para elas na profissão de motorista. Para Évilin, essa questão tem várias camadas. A primeira: precisa haver mais mulheres com carro próprio. A segunda: os benefícios precisam ser atrativos para que as mulheres queiram trabalhar com o aplicativo. E a terceira: incentivo social para que todas as mulheres dirijam e se sintam aceitas na plataforma.
Muitas mulheres relatam que os grupos de WhatsApps são machistas e têm homossociabilidade masculina, que é quando os homens favorecem outros homens
Évilin Campos, mestranda
DIVULGAÇÃO
Ketlin troca de carro para trabalhar como uber
Isso acontece também devido a uma desvalorização da mulher em funções trabalhistas consideradas “exclusivas” para homens. “A solução vem através de anos de manifestações sociais de caráter histórico”, afirma a médica psiquiatra Flávia Tanaka de Oliveira Gschwendtner. Flávia acredita que não há uma resposta simples para esta questão. Isso depende de diversos fatores, como a melhoria
das condições de trabalho, medidas educativas e preventivas para o combate de violência contra a mulher, políticas públicas para maior assistência à mulher no mercado de trabalho, incentivo às empresas para políticas internas de combate ao machismo e penas mais rígidas no sistema penal para agressores. “Desbravar o novo exige coragem, determinação e o reconhecimento que haverá percalços no caminho.”
Assédio e preconceito provocam insegurança no ambiente de trabalho “Gostaria de poder trabalhar até mais tarde, mas o perigo hoje no horário noturno é muito grande, então evito”, desabafa a motorista Ketlin Streit, de 24 anos. Ketlin é chef de cozinha e por conta do salário decidiu mudar de profissão. “No começo, senti insegurança e medo por não saber quem estava entrando no carro, agora me sinto mais segura.” Assédio, preconceito, falta de segurança, piadinhas de mau gosto. Esses são alguns dos desafios e receios que mulheres são obrigadas a enfrentar diariamente por conta da profissão. Para a psicóloga Geise Linhares da Silva, é normal do ser humano ter receio e insegurança diante de situações
novas e desafiadoras, mas quando há situações perigosas que acontecem frequentemente e sem uma medida de proteção, pode aumentar de proporção. “A pessoa pode vir a ficar em um estado de alerta constante e a ter problemas com transtornos de estresse, ansiedade, pânico, entre outros.” Segundo Évilin, a mulher continua sendo mulher onde quer que ela esteja, por isso, os preconceitos de gênero não são anulados quando elas estão ao volante. Ela acredita que o aplicativo tem como oferecer algumas seguranças às motoristas mulheres, como gravar áudio da corrida (já sendo possível na Uber), denunciar alguma conduta sexista ou assédio por
parte do passageiro. “Mesmo que esses recursos existam, o que já é importante, eles são uma tentativa de proteger, mas uma tentativa não é necessariamente uma segurança real”, afirma. A motorista Rosenilda dos Santos Travasso, 38, está há um ano e quatro meses nessa profissão, e conta que se sente mais segura, pois trabalha somente para mulheres, crianças, idosos e casais (quando conhece ou há indicações). “Optei por trabalhar com essa modalidade justamente para que eu tivesse segurança e não passasse por situações constrangedoras e de perigo”, afirma. Ela era vendedora autônoma, mas resolveu mudar de área por conta da
crise econômica. “Permaneci devido ao horário flexível e por estar dentro das preferências da minha área que é estar com pessoas e ter liberdade.” Geise conta que é recomendado às motoristas de aplicativos manter contato com outras mulheres motoristas profissionais, criando uma rede de proteção uma à outra e, sempre que houver um comportamento suspeito, denunciar o perfil da pessoa no aplicativo. Para ela, uma das maneiras de lidar com todas essas situações desagradáveis é a busca pelo empoderamento, lutando por justiça, fazendo-se presente na política e nos mais diversos poderes da sociedade.
Dezembro, 2020
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Turismo | 11
Mulheres que viajam sozinhas Pesquisa realizada pela booking.com, revela que 62% das mulheres latinas já viajaram em sua própria companhia MARIA FERNANDA ULLER O prazer de uma viagem não está nos momentos compartilhados com algum acompanhante. Nos últimos anos, as mulheres latino americanas, considerando Argentina, Brasil, Colômbia e México, têm provado cada vez mais esta teoria. Uma pesquisa realizada este ano pela booking.com - empresa voltada ao e-comerce de hospedagem - revelou que, principalmente mulheres, preferem viajar com sua própria companhia. De quatro mil pessoas que participaram da pesquisa, elas representam 62% deste número. A jornalista, editora chefe do Buzzfeed, Gaía Passarelli, concorda que é imprescindível tanto uma mulher quanto um homem possuírem um seguro viagem. Situações adversas acontecem todo o tempo, como uma doença inesperada, abuso físico ou psicológico, ou perder a mala durante a viagem. Como VJ da MTV, Gaía teve a oportunidade de conhecer lugares que, mesmo a trabalho, acrescentaram muito em seu crescimento pessoal. Porém, segundo ela, a imersão não era completa, por vezes precisou voltar ao destino já conhecido para aproveitar a viagem de forma mais intensa. Ao passar do tempo, ela começa a
viajar com sua própria companhia. E já desmistifica o mito de que apenas solteiras podem fazê-lo. Ela é mãe de um menino e isto nunca a impediu de realizar seus sonhos. Ela relata que a viagem para a Índia foi o lugar mais impactante da sua vida. Por ser um lugar muito diferente em relação à cultura, especialmente pelo machismo. “Na índia, é diferente. Por exemplo: você compra um ticket do trem, e tem uma fila pra homem e outra para mulher. E eles passam na sua frente e saem, assim do nada. E as mulheres reclamam, erguem a voz e eles simplesmente ignoram”, relata Gaía. Após ter montado seu book proposal (proposta de um livro), a jornalista apresentou-o a algumas editoras, e foi editora Globo que ela soltou a ideia e o pessoal comprou. E nasce seu primeiro livro. Ela comenta que a escolha do nome foi indicação da editora, baseada em um artigo publicado em 2015 por Gaía em seu blog. “Mas você vai sozinha é uma pergunta que qualquer mulher escuta em vários momentos de sua vida. Então, foi uma sugestão da editora que eu acabei acatando.” Outra viajante, Rebecca Altheia, começou por falta de companhia e descobriu um universo dentro de si quando começou a viajar de forma solo. Ela é natural do Guarujá, São
Geração z de viajantes A booking.com chama as jovens entre 16 à 24 anos que têm pretensão de viajar sozinhas de Geração Z de viajantes. O site realizou um levantamento, no ano de 2020, com as futuras viajantes e descobriu que, 1 em cada 3 mulheres (36%) deseja ou já viajou sozinha pelo menos uma vez na década. Uma pesquisa de dados internos do site, por mais de 155.000 destinos em 227 países e territórios em todo o mundo, revelou quais os destinos mais buscados pela ‘geração Z’ de mulheres. Um dos destinos mais procurados, segundo o site, é a Argentina - Buenos Aires. O que é colocado em pauta é a vasta natureza e locais próximos ao mar. Inclusive, um local muito requisitado por brasileiros. Cerca de 4 em cada 10 brasileiros escolhem a Argentina como um dos países mais atraentes pela América Latina.
ARTE: MARIA FERNANDA ULLER
Viajantes desbravam o mundo e usufruem da própria companhia Paulo, porém considera-se sem lar definitivo. Sua casa é onde sua alma mandar. Sua primeira viagem foi ao Rio de Janeiro, aos 17 anos, para prestar um vestibular. Na época, sua família não conseguia acompanhá-la, então a moça tomou coragem e decolou sozinha rumo à cidade maravilhosa. E segue até hoje, já tendo conhecido 31 países. Além de mulher preta que viaja sozinha, Rebecca é idealizadora do coletivo de mulheres pretas viajantes ‘Bitonga Travel’. Neste coletivo, se compartilham dicas, roteiros e conselhos sobre lugares que elas já conheceram. “Ele surgiu com a necessidade de mulheres negras não se encontrarem nos perfis de mulheres viajantes sozinhas. E realmente, se têm um recorte mais racial para mulheres brancas.” Para a Rebecca, ter uma conexão com determinado local é sentir que há um pertencimento, um pedaço da pessoa onde ela mal acabou de pisar o pé. Rebecca sentiu isto desde o primeiro contato com o continente africano, mais especificamente, em Moçambique, onde ela realizou um trabalho humanitário por um ano. Junto com uma Organização não-governamental ela ajudou na implementação de um pronto socorro, numa região do país. Segundo a viajante, durante todo o período, árduo e gratificante, ela escutou histórias, conheceu lugares e, principalmente, se faz parte deles. Para ela, esta é a grande magia de poder viajar sozinha, sem interrupção de ninguém, decidir qual o próximo destino e seguir em frente. Muitos estados que ela visitou não foram fáceis de chegar, diversas entradas e saídas
de ônibus em lugares totalmente desconhecidos, mas ela os percorreu. “Eu acho que renasci. Foi uma experiência difícil, mas foi um renascimento de tudo o que eu sou hoje e tudo o que construí para a minha vida”, relata Rebecca. Muitas viagens rendem conteúdos de grande valia para algumas mulheres viajantes que utilizam deste conteúdo para explorar as mídias sociais. Luísa Ferreira, recifense, de 31 anos, relata todo tipo de dicas e roteiros de viagens em seu blog ‘Janelas Abertas’. Uma menina tímida, aos 15 anos, viaja pela primeira vez aos Estados Unidos com o intuito de visitar sua tia. Contudo, Luísa era uma menina muito tímida e sofreu muito com crises de ansiedade durante toda a sua estadia. Quando voltou ao Brasil, resolveu consigo mesma que esta teria sido sua última viagem sozinha. De acordo com a recifense, a ansiedade lhe fez repensar diversas atitudes de sua vida, por este motivo, ela resolveu arrancar o mal pela raíz. Aos 19 anos, ela decidiu fazer outra viagem sozinha, desta vez para a Espanha, onde ficou cerca de seis meses em um intercâmbio. Mas um lugar de que ela nunca se esquece é da Hungria, quando realizou um trabalho voluntário em Budapeste. Foram duas viagens que foram um marco na vida pessoal da influencer. “Eu acho muito mais fácil viver com experiências diferentes, e dizer sim para o novo e me desafiar. Eu tento trazer isso para a minha rotina, um olhar de mais vislumbre, de encantamento pelas pequenas coisas”, relata Luísa.
12 | Transfobia
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Dezembro 2020 ARTE RAFAELA SANT’ANNA
Mortes de pessoas trans no Brasil aumentam em 47% Com uma média de 15,1 casos ao mês, em 2020 tivemos uma pessoa trans assassinada a cada 48h. RAFAELA SANT’ANNA Cento e vinte e quatro mulheres trans foram mortas em 2019. Neste ano, até o mês de outubro, 151 pessoas que foram assassinadas expressavam o gênero feminino, sejam travestis ou mulheres trans, 48 mortes a mais se comparado ao mesmo período do ano anterior. Os dados são da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (ANTRA) e não refletem precisamente a realidade da violência transfóbica no país, uma vez que a metodologia de trabalho utilizada pela organização possui limitações, capturando apenas aquilo que de alguma maneira se torna visível. Assim, é provável que os números reais sejam superiores principalmente observando que o Estado não registra e divulga dados sobre o assassinato de pessoas LGBTQI+. O próprio boletim da Antra explica que os dados fazem parte do mapeamento anual da violência contra pessoas trans, feito a partir de notícias publicadas nas mídias, redes sociais, grupos de WhatsApp e parceiros que reconhecem a importância desse trabalho. Mariana Franco, discente de Serviço Social na UFSC foi candidata a vereadora nas eleições municipais de Florianópolis, relata que a violência sempre a cerca: “Desde quando saio de casa eu recebo preconceito, na rua, no ônibus, no banco, no shopping. A violência vem de várias formas, seja ela moral, com xingamentos na rua; seja o não reconhecimen-
“Desde quando saio de casa eu recebo preconceito, na rua, no ônibus, no banco, no shopping.”
Mariana Franco, discente de Serviços Sociais
to da minha identidade”. Mariana também compartilha os dois casos de preconceito que mais marcaram. Um deles foi quando estava jantando com um amigo em um restaurante de Florianópolis e o garçom perguntou se ela era trabalhadora sexual e deveria se retirar do local que era um ambiente familiar. O segundo caso aconteceu em um aeroporto, quando foi impedida de entrar no avião, pois a companhia a acusou de falsidade ideológica por não aceitarem o nome social dela. “Todas as pessoas trans que eu conheci na minha adolescência estão mortas”, exclama Mariana ao recordar do início de sua transição. Ela também compartilhou que participou de um encontro sul brasileiro de pessoas trans, que ocorreu em 2017, e metade das mais de cem participantes que estiveram presentes não estão mais vivas atualmente. A psicanalista e escritora Bruna Morsch relata que mesmo vivendo de forma mais estável, com um lugar de privilégio por sua profissão e posição social, ainda vive com medo. Ela nunca sai de sua casa desacompanhada, desde uma balada até as atividades mais simples. No Brasil, a expectativa de vida das mulheres trans é de 35 anos, menos da metade da expectativa de vida média nacional de 75 anos. De acordo com o dossiê de 2019 da Antra, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans, seguido por México e Estados Unidos. E é no país que mais mata pessoas trans que há o maior público consumidor de pornografia trans de acordo com estatísticas do site RedTube. Para Bruna, a morte de pessoas trans está diretamente relacionada aos estigmas fetichistas presentes na cultura brasileira e os dados sobre o consumo de pornografia trans são uma evidência disto. “Esses homens que matam as pessoas trans, estão tentando matar seu próprio desejo reprimido”, observa a psicanalista. A vivência de Letícia Borecki, atendente de call center e estu-
Expectativa de vida de pessoas trans é de 35 anos dante de Publicidade e Propaganda, não é muito diferente da descrição de Mariana e Bruna. Borecki cita os exemplos de preconceito mais comuns, como uma ida ao banheiro feminino. Letícia diz que, no fim das contas, poucas falam diretamente para ela. Felizmente Letícia não sofreu nenhuma violência física, mas conhece muitas pessoas trans que já sofreram. Uma história de uma mulher trans que tinha toda a documentação com nome social, recusou que um policial homem a revistasse. O policial lhe deu um tapa no rosto e disse “homem nasce homem e mulher nasce mulher”. Para Borecki esse acontecimento lhe marcou muito: “Temos medo não apenas da criminalidade, mas temos que ter medo também das pessoas que atuam na esfera pública”.
Mercado de trabalho não é receptivo
Mariana mesmo antes da transição já tinha medo de como seria sua presença no mercado de trabalho. Ela conta que conhece outras pessoas trans que encontram dificuldades para conseguir empregos e acabam se tornando trabalhadoras sexuais. A experi-
ência de Letícia também é envolta no medo, ela não sabia se iria perder o emprego após começar a transição, felizmente ela continuou empregada. Morsch conta que já se frustrou em ter que assistir profissionais da ciência e da psicologia colocando a transexualidade à beira da loucura, isso é muito preocupante e gera muitas barreiras para uma pessoa que quer transicionar.
Candidaturas trans no Brasil
Por outro lado, em 2018, no primeiro pleito no país a aceitar o uso do nome social de acordo com a Resolução nº 23.609/2019 do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a Antra conseguiu mapear um total de 53 candidaturas de pessoas trans. Uma deputada estadual foi eleita por São Paulo: Érica Malunguinho da Silva, do PSOL, sendo a primeira pessoa trans a conseguir uma vaga no cargo. Já neste ano, a Antra mapeou em 25 estados, 294 candidaturas, dentre essas 30 foram eleitas. Foram 16 candidaturas pela esquerda, 11 pelo centro e três pela direita. Sete candidatas foram as mais votadas em suas cidades.
Dezembro, 2020
primeira.pauta
Educação |
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Professores sofrem com novo modelo de ensino Problemas vão de despreparo das instituições até ignorância de diretores, pais e alunos FOTO: FELIPE VECCHIO
GABRIEL HELLMANN A pandemia de Covid-19 trouxe diversos desafios para os professores. Mudanças bruscas para se adaptar ao ensino a distância, falta de infraestrutura, trabalhos além das cargas horárias, problemas com a saúde mental e até assédios afetaram a vida desses profissionais. Além disso, cerca de 36 mil profissionais da área da educação perderam os seus empregos no Brasil. Os docentes de escolas públicas e estaduais tiveram algumas dificuldades a mais, com alunos sem acesso às aulas remotas e instituições sem condições de oferecer suporte tecnológico.
Recebi informações de professores que tentaram suicídio ou agravaram ainda mais o quadro de depressão
Izequiel da Costa, coordenador do Sindicato dos Trabalhadores
Escolas particulares saíram na frente quando o assunto foi readaptação, pois contam com uma melhor infraestrutura tecnológica na maioria das vezes. “A equipe mostrou-se muito engajada desde o primeiro dia que recebemos a orientação para que as escolas não abrissem. Desde então, nos mobilizamos para oferecer a melhor tecnologia possível e contribuir para a qualidade do ensino”, compartilha Fábio Hobold, 52, coordenador de uma escola particular de Joinville. Nas escolas estaduais, os professores receberam treinamento online para aprender a usar a plataforma que está sendo utilizada nas aulas. Alguns membros da Secretaria da Educação e professores que já dominavam a ferramenta repassaram o conhecimento para os profissionais que não tinham domínio. Com a nova metodologia de trabalho, muitos professores se descobriram e disponibilizaram aulas criativas, como em canais no YouTube, usando fantasias para contar histórias ou trazendo convi-
dados de outras cidades para compartilhar experiências. O assessorw de direção da Escola de Educação Básica Doutor Paulo Medeiros, Loreno Thiago Pereira da Costa, 55, conta que muitos dos professores não alcançaram o êxito esperado por conta dos alunos, que não cumpriram as obrigações de participarem das aulas e entregarem atividades. “Temos uma equipe que busca o aluno que não realiza atividades ou está com pendências nas disciplinas”, explica Loreno. Essa é uma das maneiras que a escola encontrou para dar oportunidade e auxiliar os estudantes. Além disso, o assessor de direção ressalta que todos os professores da escola disponibilizaram seus contatos para que os alunos pudessem tirar as dúvidas durante os dias úteis da semana. Fernanda Rasveiler Blau, 36, é professora na rede municipal e particular. Ela destaca que a maior diferença de uma instituição para outra foi a participação dos estudantes. “Nas escolas particulares a maioria dos alunos estavam conectados nas aulas, as avaliações são agendadas e o calendário escolar está sendo cumprido. Já nas escolas municipais, a adesão aos encontros online não é tão grande e as atividades são enviadas para os alunos e recebidas dias depois para correção”, explica Fernanda. A educação infantil necessitou de um engajamento entre escola e ambiente familiar. “As organizações dos encaminhamentos de atividades são pensados com muita cautela”, assegura Mikaella Caroline Capraro Soares, 26, pedagoga. Com as aulas online, o auxílio e acompanhamento que eram de responsabilidade dos professores, nas aulas presenciais, tornaram-se uma responsabilidade dos pais. Saúde Mental A pandemia trouxe consequências negativas para alguns professores de Joinville. Assédios vindo de diretores, pais e alunos marcaram a rotina dos docentes. Um exemplo de assédio ocorreu em uma escola estadual da cidade, onde o diretor obrigou o professor a comparecer na instituição presencialmente durante a pandemia, ameaçando que
Com a pandemia, a companhia de um professor na sala de aula é somente o computador
se não fosse iria receber falta injustificada. Izequiel José Ferreira da Costa, 44, coordenador do Sindicato dos trabalhadores e educação do estado de Santa Catarina (Sinte), relata que com o passar dos meses, os casos de assédio foram diminuindo. Um canal fundamental para a resolução desses problemas é o sindicato. “Quando a denúncia chega é realizada uma verificação. Quando confirmado algum abuso, o sindicato faz uma mediação para um possível diálogo”, resume Izequiel. O começo do processo de adaptação com a tecnologia também afetou os professores. Muitos não sabiam como funcionavam algumas plataformas e então se desdobraram para aprender o mais rápido possível. Com isso, a fadiga mental apareceu inúmeras vezes, pois a carga horária de trabalho aumentou. Turmas fecharam, cursos não foram abertos e vários professores perderam seus empregos. “Recebi informações de professores que tentaram suicídio ou agravaram ainda mais o quadro de depressão”, revela Izequiel. As professoras Fernanda e Mikaella comentam que também sofreram instabilidades emocionais, porém tiveram amparo das escolas, famílias e alunos.
Ano perdido? O ano de 2020 está sendo cheio de incertezas. Muitas pessoas se perguntam se as aulas remotas deveriam estar acontecendo mesmo ou se o calendário escolar conseguirá ser cumprido como o planejado. “O correto seria um outro tipo de preocupação, não com o cumprimento do calendário escolar. Mas um cuidado sobre as pessoas e o planeta em si, com outros parâmetros de avaliação”, analisa a presidente do Sindicato das instituições de ensino particulares (Sinpronorte), Marta Regina Heinzelmann, 64. Professores e equipes pedagógicas não mediram esforços para atender todos os estudantes. Até aqueles que não tinham acesso à internet buscavam atividades impressas nas instituições, faziam e retornavam para correção dos professores. O assessor de direção, Loreno Pereira, acredita que o novo modelo de ensino deverá continuar futuramente como uma forma de reforço, revisão ou até mesmo uma aula diferenciada. “Precisamos estar adaptados para mudanças repentinas”, observa a professora Fernanda. Durante a pandemia, diversos alunos e professores tiveram dificuldades para se adaptar aos novos métodos escolares. Para ela, 2020 foi, acima de tudo, um ano de quebra de paradigmas.
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| Trabalho
primeira.pauta
Dezembro, 2020
Brasil forma mestres e doutores para o desemprego No país, é cada vez mais difícil obter sucesso na carreira acadêmica GUILHERME MARTINS Ariele Silvério Cardoso terminou o bacharelado em Jornalismo na Faculdade Ielusc, em Joinville (SC) e foi direto para o mestrado. Apaixonada por antropologia social, descobriu o gosto pela pesquisa quando fazia a monografia. Hoje, porém, está fora da academia e não pensa em voltar. “Sinceramente, me encontrei no mercado de trabalho”, confessa. Hoje, ela é assessora de imprensa na Associação de Municípios do Nordeste de Santa Catarina (Amunesc). Se o desemprego entre a população bate recordes históricos atualmente (fechando em 14,4%), a taxa de desemprego entre mestres e doutores é ainda maior: 25% dos que ostentam o título de doutor no currículo estão desempregados. Entre mestres, 35% não tem ocupação formal. No mundo, essas taxas giram em torno de apenas 2%. Ariele comenta que a popularização do estudo acadêmico, em conjunto com o sucateamento das universidades, é um agravante para a situação. Junto com isso, muitos dos que fazem um mestrado ou doutorado não buscam carreira acadêmica, e sim vantagem dentro de uma empresa. Entre 1996 e 2015, houve aumento
“Quando a gente se sente desvalorizado, desprestigiado, e não há incentivos para ficar, acabamos migrando.”
Matheus Simões Mello
de 401% no número de mestres e doutores, onda provocada pelo alto número de oportunidades de acesso à pós-graduação. Um levantamento da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) mostra que a quantidade de programas de mestrado e doutorado subiu de 714 em 1995 para 2.147 em 2015. Se, em 2006, a Plataforma Lattes registrou 6.294 novos currículos de doutores, em 2016 houve o cadastro de 18.466. Esse salto ocorreu porque, de 2000 até 2010, o Brasil experimentou um boom da ciência. Entre 1995 e 2002 foram criadas seis universidades federais, totalizando 45 em 2002. Entre 2003 e 2010 houve outro salto: surgiram 14 novas universidades federais. Ou seja, o início do século 21 no Brasil representou grandes investimentos na educação superior pública. O Brasil teve um aumento exponencial no investimento em ciência na década passada, mas nessa década correu para o extremo oposto. Em 2016, a PEC do Teto de Gastos congelou os investimentos na educação pública, e em 2019 o presidente Jair Bolsonaro cortou as verbas de universidades públicas e bolsas. O desemprego havia se estabilizado em 27% entre 2009 e 2014, mas aumentou para 30,7% em 2016, conforme o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos. “Com o crescimento das ofertas de pós-graduação, o Brasil formou muito mais mestres e doutores do que tinha há 20 anos. E essa redução de vagas por causa do ensino a distância e a diminuição drástica de vagas para mestres e doutores em universidades públicas geram um problema”, afirma Matheus Simões Mello, doutor em jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina.
25% dos doutores do Brasil estão desempregados. Crédito: Freepik. Com Matheus, o destino foi mais gentil. Ele graduou-se em 2012, desde então, nunca ficou desempregado. Ele deu aulas na Faculdade Ielusc, onde se formou, assim que começou o mestrado. “Eu deixei sempre uma boa impressão na instituição onde estudei e trabalhei”, conta Matheus. Uma dica que ele deixa é a necessidade de projetar desde o início o que se pretende fazer depois de obter a titulação. Ele ressalta que, com a ascensão do EAD, o cenário fica ainda mais difícil para os novos titulados e, pela facilidade de lidar com vários alunos ao mesmo tempo, o número de demissões em massa aumentou. Há ainda os que decidem fazer pós-doutorado, que se trata de uma atividade de pesquisa que pode ser feita depois do doutorado. Ao cursar, o profissional recebe uma bolsa para seu sustento. Essa acaba sendo a fonte de renda
de doutores como Josnei Di Carlo, doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Deixei de fazer concursos porque não tinha condições de arcar com os custos”, conta. Participar de concursos públicos é inviável para muitos profissionais. Um concurso público dura uma semana ou até mais. Caso o profissional esteja trabalhando, é preciso se ausentar durante todo esse período, mas nem sempre o empregador dá essa chance. Josnei foi aprovado em dois processos seletivos, mas não foi chamado. Em um pós-doutorado, ficou mais fácil para Josnei arcar com os custos de um concurso, além da possibilidade de se ausentar das atividades de pesquisa durante o processo. No entanto, com a pandemia, os concursos foram adiados e Josnei segue no pós-doutorado.
Fugadecérebros:éopaísquemsaiperdendo
Outro fenômeno que pode ser causado pela desvalorização do profissional da ciência no Brasil é a fuga de cérebros. Isso acontece quando pessoas qualificadas migram para países mais promissores buscando oportunidades, o que afeta o nível acadêmico do Brasil. “Quando a gente se sente desvalorizado, desprestigiado, e não há incentivos para
ficar, acabamos migrando. Desprestigiar a ciência é dar um tiro no próprio pé”, opina Matheus. No ranking de competitividade global de talentos criado pelo Instituto Europeu de Administração de Empresas, o Brasil amarga o 80º lugar entre as 132 nações analisadas. No item “fuga de cérebros”, o país piora a cada ano, ocupando a 70ª posição.
O perfil no Twitter “Diáspora Científica do Brasil” faz parte das pesquisas e projetos que aprofundam esse problema. A iniciativa busca mapear os cientistas brasileiros que migraram para o exterior. Até agora, foram mapeados 1300 cientistas fora do país. A maioria (541) nos Estados Unidos, seguido pelo Reino Unido (164) e o Canadá (108).
Por ora, nada indica que a situação do profissional da ciência no Brasil irá melhorar em um futuro próximo. “Levando em conta o grupo político que chegou ao poder, a carreira acadêmica já piorou. A tendência, portanto, é a vida acadêmica se tornar inviável ou um privilégio de classe”, opina Josnei
Dezembro, 2020
primeira.pauta
Trabalho | 15
Ações trabalhistas revelam excessos do home office
FOTO FREEPIK
Dependência de acordos entre funcionários e contratantes prejudica a efetivação dos direitos trabalhistas NADINE QUANDT
Toda hora é cliente mandando mensagem no Whatsapp, não consigo cumprir apenas minha carga horária e trabalho muito mais. Minha rotina virou de cabeça para baixo”, conta Rosemeri dos Santos, mãe de duas filhas e projetista de interiores. Assim como a projetista, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 8,3 milhões de pessoas entraram na modalidade de teletrabalho desde março. Apesar de o formato já estar previsto na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) desde 2011, foi a necessidade de isolamento social que tornou o modelo uma realidade. A urgência e o despreparo dos contratantes fez com que as transições de ambiente de trabalho fossem brutas, deixando muitos trabalhadores desamparados de seus direitos. Um levantamento realizado pelo jornal O Estado de São Paulo, a partir de dados divulgados pelas Varas de Trabalho do Brasil, mostra que os casos de reclamações, por parte dos trabalhadores, sobre as condições do home-office subiram 270% nos últimos meses. Dentre as recla-
mações estão a falta de estrutura adequada (computadores, internet) e as atividades além da jornada de trabalho. Um exemplo é a da projetista Rosemeri, que precisa de um bom computador para executar sua função e precisou utilizar o próprio equipamento. A advogada trabalhista Tuany Zimmermann Cubas explica que um funcionário que trabalha de casa tem os mesmos direitos de um trabalhador tradicional. “É obrigação do empregador fornecer os equipamentos para a realização do trabalho, porém não existe lei que obrigue o empregador ao ressarcimento de despesas”, ressalta a advogada. Além do problema com equipamentos e estrutura, a jornada de trabalho se tornou muito mais complexa por conta da paralisação das escolas e creches. “As crianças não entendem que estou trabalhando e acabo tendo que fazer duas jornadas de trabalho simultaneamente”, desabafa Rosemeri. O sociólogo e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Jacques Mick comenta sobre como a jornada de trabalho em casa precisa ser remanejada. “O trabalho
Perfil dos trabalhadores
Apesar da popularidade do home office, a modalidade é para poucos. Segundo pesquisa do IBGE, apenas 11,1% dos trabalhadores puderam se manter em casa durante a pandemia. “A experiência do trabalho em casa é restrita para uma pequena parte da população. Grande parte tem que continuar a ir para a rua, seja por ter trabalhos essenciais ou em indústrias”, relembra o sociólogo. Cerca de 81% dos funcionários que entraram na modalidade apresentam ensino superior e/ou
pós-graduação. A região sudeste apresenta as maiores porcentagens de colaboradores trabalhando de casa. Uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em parceria com o Institute of Employment Studies (IES), revelou que entre os 633 participantes, a maioria vive com filhos menores de 18 anos. Isso representa cerca de 47%. Além disso, 46% dos trabalhadores compartilham o espaço de trabalho com outro adulto e 23% cuidam de outro adulto ou idoso.
Muitos trabalhadores em home office dividem seu espaço te acompanha onde você está, te segue pelo whatsapp. Suas demandas se espalham ao longo do dia e se deixar você trabalha o dia inteiro. E ao mesmo tempo, o trabalho é interrompido, é intermitente, principalmente para quem tem filhos”, pontua o sociólogo. O empresário e CEO da Agên-
cia Mega Comunicação Estratégica, Beto Harger, decidiu colocar seus funcionários em home office de forma muito rápida, pensando na saúde do time. “A equipe foi migrando parcialmente, em menos de duas semanas toda a equipe estava trabalhando de casa”, conta o empresário.
Trabalhadores em Home Office separados por escolaridade
Dezembro, 2020
primeira.pauta
Trabalho | 15
Ações trabalhistas revelam excessos do home office
FOTO FREEPIK
Dependência de acordos entre funcionários e contratantes prejudica a efetivação dos direitos trabalhistas NADINE QUANDT
Toda hora é cliente mandando mensagem no Whatsapp, não consigo cumprir apenas minha carga horária e trabalho muito mais. Minha rotina virou de cabeça para baixo”, conta Rosemeri dos Santos, mãe de duas filhas e projetista de interiores. Assim como a projetista, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 8,3 milhões de pessoas entraram na modalidade de teletrabalho desde março. Apesar de o formato já estar previsto na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) desde 2011, foi a necessidade de isolamento social que tornou o modelo uma realidade. A urgência e o despreparo dos contratantes fez com que as transições de ambiente de trabalho fossem brutas, deixando muitos trabalhadores desamparados de seus direitos. Um levantamento realizado pelo jornal O Estado de São Paulo, a partir de dados divulgados pelas Varas de Trabalho do Brasil, mostra que os casos de reclamações, por parte dos trabalhadores, sobre as condições do home-office subiram 270% nos últimos meses. Dentre as recla-
mações estão a falta de estrutura adequada (computadores, internet) e as atividades além da jornada de trabalho. Um exemplo é a da projetista Rosemeri, que precisa de um bom computador para executar sua função e precisou utilizar o próprio equipamento. A advogada trabalhista Tuany Zimmermann Cubas explica que um funcionário que trabalha de casa tem os mesmos direitos de um trabalhador tradicional. “É obrigação do empregador fornecer os equipamentos para a realização do trabalho, porém não existe lei que obrigue o empregador ao ressarcimento de despesas”, ressalta a advogada. Além do problema com equipamentos e estrutura, a jornada de trabalho se tornou muito mais complexa por conta da paralisação das escolas e creches. “As crianças não entendem que estou trabalhando e acabo tendo que fazer duas jornadas de trabalho simultaneamente”, desabafa Rosemeri. O sociólogo e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Jacques Mick comenta sobre como a jornada de trabalho em casa precisa ser remanejada. “O trabalho
Perfil dos trabalhadores
Apesar da popularidade do home office, a modalidade é para poucos. Segundo pesquisa do IBGE, apenas 11,1% dos trabalhadores puderam se manter em casa durante a pandemia. “A experiência do trabalho em casa é restrita para uma pequena parte da população. Grande parte tem que continuar a ir para a rua, seja por ter trabalhos essenciais ou em indústrias”, relembra o sociólogo. Cerca de 81% dos funcionários que entraram na modalidade apresentam ensino superior e/ou
pós-graduação. A região sudeste apresenta as maiores porcentagens de colaboradores trabalhando de casa. Uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em parceria com o Institute of Employment Studies (IES), revelou que entre os 633 participantes, a maioria vive com filhos menores de 18 anos. Isso representa cerca de 47%. Além disso, 46% dos trabalhadores compartilham o espaço de trabalho com outro adulto e 23% cuidam de outro adulto ou idoso.
Muitos trabalhadores em home office dividem seu espaço te acompanha onde você está, te segue pelo whatsapp. Suas demandas se espalham ao longo do dia e se deixar você trabalha o dia inteiro. E ao mesmo tempo, o trabalho é interrompido, é intermitente, principalmente para quem tem filhos”, pontua o sociólogo. O empresário e CEO da Agên-
cia Mega Comunicação Estratégica, Beto Harger, decidiu colocar seus funcionários em home office de forma muito rápida, pensando na saúde do time. “A equipe foi migrando parcialmente, em menos de duas semanas toda a equipe estava trabalhando de casa”, conta o empresário.
Trabalhadores em Home Office separados por escolaridade
16 | Economia
primeira.pauta
Dezembro, 2020
Aplicativos de entrega dominam a economia durante a pandemia
FOTO: ISADORA CASTRO NOLF
O aumento da demanda por entregas de comida levou o setor a um novo patamar e causou ainda mais polêmicas trabalhistas ISADORA CASTRO NOLF Até outubro deste ano, a pandemia do novo coronavírus já deixou 13,5 milhões de brasileiros desempregados. Ao considerar que o auxílio emergencial chegou a ser a única fonte de renda de quase quatro milhões de famílias, os aplicativos de serviços - a maioria sem vínculo trabalhista - passaram a atrair uma parcela significativa da população desempregada. Desde março, o número de entregadores de aplicativo aumentou 20%, segundo o Sindicato dos Mensageiros Motociclistas, Ciclistas e Mototaxistas Intermunicipal do Estado de São Paulo. Uma pesquisa da Mobills aponta que entre março e maio o número de pedidos de delivery em aplicativos como IFood, Rappi e Uber Eats aumentou 94,67%. Em fevereiro houve uma queda no número de pedidos, 16,98%, devido à incerteza financeira que muitos sentiram. No entanto, com mais pessoas entregando e pedindo, essas plataformas passaram a custear menos seus serviços. Para suprir a demanda, mais motoboys e ciclistas se cadastraram nos apps. Isso elevou o valor a ser pago pelas plataformas de serviços. Pesquisa divulgada pelo Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp (Cesit) aponta que antes da pandemia, 47,4% dos entregadores declararam rendimento semanal de até R$ 520,00. Desta parcela, 17,8% declararam remuneração de até R$ 260,00 por semana. Durante a pandemia, o número de entregadores que ganham até R$ 260,00 cresceu 34,4%. Diferente do que relata a pesquisa, o rendimento de Nanderson Fernandes, ex-gerente de uma cervejaria em Joinville, aumentou. “Antes não tocava muito o app.
Mas com as pessoas em casa melhorou bastante. O aplicativo passou a tocar cinco vezes mais.” Para manter o rendimento anterior à pandemia, a maioria dos entregadores passou a realizar jornadas de trabalho mais longas. A pesquisa aponta que a porcentagem daqueles que trabalharam nove horas por dia foi de 57% para 62%. No começo da pandemia, as empresas publicaram medidas de segurança que deveriam ser seguidas pelos entregadores, além de disponibilizar máscaras e álcool 70%. Nanderson conta como um dos principais apps de entrega colaborou para evitar o contágio. “Tinha descontos em médicos se nós fossemos nível platina, ouro ou diamante. Tocava mais corrida, melhorava o score”. Já o Ifood fez com que os entregadores passassem por uma rota obrigatória toda semana para retirar álcool gel e pacotes de máscaras. Em abril, o iFood conseguiu derrubar a liminar que determinava várias medidas de segurança financeira e de saúde para os entregadores. Entre elas constava que os aplicativos deveriam pagar o valor de um salário mínimo (R$ 1.045,00) àqueles que estivessem afastados do trabalho, seja por contaminação ou por conviver com uma pessoa infectada. Segundo a empresa, o custo de pagar os entregadores seria de aproximadamente R$150 milhões. Dóris Ribeiro Prina, desembargadora que derrubou a liminar, justificou a decisão com o fato de que o vínculo entre a plataforma e os entregadores não é caracterizado pela CLT. Na mesma época, o iFood criou dois fundos de apoio aos entregadores, ambos no valor de R$ 1 milhão. O primeiro é destinado aos colaboradores afastados por serem parte de grupos de risco e o segundo àqueles que foram diagnosticados com coronavírus.
No começo do ano, o número de pedidos aumentou 94% De abril a junho deste ano, houve um aumento no número de protestos organizados pelos entregadores das plataformas, reivindicando sobretudo mais transparência das empresas quanto ao ajuste das taxas e investimento em equipamentos de segurança. Apesar das polêmicas trabalhistas, que já existiam antes da pandemia, as empresas iFood, Uber Eats e Rappi ajudaram a manter a economia brasileira de pé. A Rappi, que trabalha com entrega de vários itens, informou que as operações no Brasil cresceram três vezes a partir de março.
Antes não tocava muito o app. Mas com as pessoas em casa melhorou bastante. O aplicativo passou a tocar cinco vezes mais.
Nanderson Fernandes, ex gerente
Esses aplicativos foram responsáveis por impedir que estabelecimentos alimentícios falissem. Em agosto, segundo o Sebrae, 7% dos
bares e restaurantes foram obrigados a fechar durante a pandemia. Apenas 4,5% dos entrevistados alegaram aumento no rendimento. Todas possuíam ou adquiriram o serviço de delivery. O número de estabelecimentos alimentícios cadastrados nos apps aumentou 30% desde o começo da pandemia. O iFood informou que, em quatro meses, 40 mil novos cadastros de bares e restaurantes foram registrados na plataforma. Com o crescimento desses aplicativos, muitos viram uma oportunidade. Kaio Santos trabalha no setor bancário e este ano abriu a Texano Smoked Burger, uma hamburgueria que funciona somente por delivery. “Estamos falando de uma forma otimizada de atender a clientela, na questão de investimentos, custos e despesas reduzidas”, explica. Ele acredita que o atendimento por delivery ajuda a consolidar a marca e a conquistar uma clientela fiel. Segundo Kaio, 40% da receita é obtida pelo iFood, o resto vem das redes sociais, onde a hamburgueria faz anúncios. No entanto, com a flexibilização das medidas de segurança, muitos bares e restaurantes de Joinville voltaram a funcionar e a recuperar renda.