Jornal Unicom - v.2 - junho/2014

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EDITORIAL Histórias boas de contar e ler Há 17 anos o Unicom conta histórias. Ano após ano aparecem novos personagens, novas ideias e novas vidas. Cada uma com suas particularidades, seus acertos e erros, assim como cada edição do jornal. A equipe teve muito trabalho. Mais uma vez. E, uma vez mais, alcançou o objetivo principal do jornalismo: contar boas histórias. É por meio de personagens como dona Irsi, de Henrique, Adelir, da família Puntel e tantos outros que o segundo Unicom de 2014 se apresenta aos leitores. Foram muitos os desafios, mas nenhum grande o suficiente que a equipe não pudesse ter superado. Foram visitas a cemitério, centros de Umbanda e Quimbanda, seminários, campos de futebol, de batalha, histórias de superação e até aprendizado. Essa edição carrega um pouco de Cachoeira do Sul, Rio Pardo, Venâncio Aires, Novo Cabrais e, claro, Santa Cruz do Sul. Mas traz, acima de tudo, futuros jornalistas apaixonados por contar essas e tantas outras histórias que ainda irão surgir no caminho. É com esse amor, que entregamos a vocês mais uma edição do Unicom. Dessa vez, sem tema. Trabalhando mais o individual, que o coletivo. Mas, com a mesma dedicação e o mesmo desejo de fazer o melhor. É com essa edição, também, que a equipe encerra o ciclo de produção do primeiro semestre de 2014. Com a sensação de dever cumprido, desejamos que vocês gostem da leitura, tanto quanto gostamos de contar essas histórias.

Expediente Demétrio de Azeredo Soster Professor e editor-chefe

Luiza Adorna Subeditora e repórter

Martina Scherer Editora online e repórter

Eduarda Pavanatto Editora e repórter

Andressa Bandeira Editora de fotografia e repórter

Viviane Fetzer Diagramadora

Bianca Cardoso Produtora e repórter

Maria Regina Eichenberg Produtora e repórter

Vania Soares Produtora e repórter

Ana Cláudia Muller Repórter

Carolina Schmidt Repórter Fábio Felício Repórter Letícia Wacholz Repórter

Mônica Leal Repórter e revisora

Débora Paz Repórter Isadora Trilha Repórter e revisora Luísa Ziemann Repórter

Rui Borgmann Repórter e revisor

UNISC - Universidade de Santa Cruz do Sul Blog: blogdounicom.blogspot.com.br Este Jornal foi produzido na disciplina de Produção em Av. Independência, 2293 - Bairro Universitário Fanpage: facebook.com/unicom2014 Mídia Impressa, ministrada pelo professor Demétrio de Santa Cruz do Sul - CEP 96815-900 Azeredo Soster. Colaboração dos alunos e ex-alunos do Ilustração: Frederico de Barros Silva Curso de Comunicação Social, que escreveram textos opinativos. Capa: Martina Scherer Curso de Comunicação Social - Jornalismo Contracapa: Andressa Bandeira Bloco 15 Sala 1506 Impressão: Grafocem Volume 23 - n° 2 - Junho/2014 Telefone: (51) 3717-7383 DISTRIBUIÇÃO GRATUITA Coordenador do Curso: Hélio Etges Tiragem: 500 exemplares


Pesquisa revela opinião dos leitores sobre o Unicom

EDUARDA PAVANATTO TEXTO

BIANCA CARDOSO

PESQUISA

O que você acha do Unicom? Mais de cem pessoas responderam essa e outras questões na nova pesquisa realizada pelos acadêmicos da disciplina de Produção em Mídia Impressa 2014/1, ministrada pelo professor Demétrio de Azeredo Soster. Com o objetivo de aperfeiçoar o jornal e atrair, cada vez mais, leitores, o questionário trouxe 14 perguntas em que o público pôde opinar, comentar, sugerir ideias e temas, além de indicar mudanças nos diferentes aspectos do Unicom. Em parceria com os acadêmicos de Relações Públicas, a pesquisa de opinião foi aplicada pela primeira vez em 2010, com duração de um mês.

Na época foram ouvidas cem pessoas e os dados revelaram que 74% dos participantes se situavam entre os 18 a 25 anos e, com 54% as reportagens ficavam no topo da lista de preferências relacionado aos conteúdos no Unicom. Desta vez, a enquete durou 12 dias e obteve 114 respostas. Neste contexto 82% das pessoas possuem entre 18 a 25 anos, 66,58% delas preferem as reportagens, enquanto 23,20% escolheram as fotografias como ponto forte do jornal. Sobre mudanças no Unicom, o mais votado foi o formato com 33,29% e, logo atrás, ficou a diagramação com 26,23%.

Número de respostas diárias

Idade

Estado civil

Sexo

O que você acha da divulgação do Jornal Unicom?

Você costuma ler jornais?

Você conhece o Jornal Unicom?

De que forma você lê o Jornal Unicom?

Você costuma ler o Jornal Unicom?

O que você mais gosta no Jornal Unicom?

Se você pudesse mudar alguma coisa no Jornal Unicom, o que seria?

Escolaridade

Ops...Erramos! Na edição anterior do jornal, a temática, intitulada Unicom Separações, alguns erros nos passaram despercebidos. Na reportagem sobre o menino Henrique – “Mundos iguais, percepções diferentes” – certos detalhes sobre a história do pequeno foram mal colocados. As crises de sono de Henrique aconteceram logo quando ele nasceu, o que deixou a mãe, Mariana, muito preocupada. O episódio citado na reportagem, em especial, ocorreu quando ele tinha 4 meses. A creche em que Henrique estudou não foi a que a

madrasta de Mariana, Neca, trabalhou, mas sim a escolinha municipal Bem Me Quer, situada na Cohab, em Santa Cruz do Sul. Foi a direção da escola que chamou Mariana para comentar sobre as diferenças no comportamento de Henrique, e não a psicóloga, como consta na reportagem. Quanto às demonstrações de carinho do pequeno, é importante ressaltar que hoje ele não apenas atende aos pedidos dos familiares como, por conta própria, dá abraços e beijos nas pessoas que gosta, de maneira espontânea.


ARQUIVO PESSOAL

Um amor diferente

tamos do Tony. Rolou o sentimento que queríamos e, no mesmo dia, já levamos ele para casa”, diz Elizandra. Tony recebe o mesmo tratamento que qualquer outro membro amado da família. O casal já pensa até em realizar uma festa de aniversário para ele. “Mas, por enquanto, o Tony está com poucos amigos. Porém, estamos felizes porque ele, às vezes, vai na casa ao lado, onde tem outros cachorros e eles estão se dando bem”, conta orgulhosa. Quem pensa que o Saulo Inácio não tem esses mimos, está muito enganado. Além de planejar uma festa de aniversário, Roseana criou para o “filho” uma página no Facebook, para que ele pudesse ser marcado nas fotos dela. A rotina de Saulo é bem regulada. “Enquanto eu trabalho ele vai para creche, lá pode conviver com outros animais e isso é muito bom”, diz Roseane. Nos finais de semana, quando possível, ele visita a família e pode passear. Nas festas de fim de ano, o cachorro sempre participa dos amigos-secretos e já tem uma coleção de brinquedos ganhados nesses dias. Tanto Tony Stark quanto Saulo Inácio recebem um tratamento superespecial de seus “pais”. Mas, até que ponto esse relacionamento é saudável?

Comportamento em questão A psicóloga Géli Bringmann afirma que tudo que é exagerado não é saudável, inclusive este comportamento. “Os animais devem ser tratados como tal e não é adequado substituir pessoas por eles”, afirma Géli. Para ela, esse comportamento se deve a carência do ser humano provocada pela correria do dia a dia. “Hoje, as mulheres pensam em

ter filhos mais tarde. Neste contexto, é que se opta por um animal de estimação e assim muitas pessoas substituem os filhos”. Para o professor de sociologia, Caco Baptista esse comportamento exagerado se deve a alguns fatores importantes que devem ser observados. “Um deles é que as pessoas têm uma necessidade maior de suprir faltas e vazios, usam assim, os animais como saída para esse ‘buraco’ e acabam se tornando dependentes deles”. Outro aspecto destacado pelo professor é relacionado com a “indústria pet”. “Partindo da necessidade de cuidar dos animais criou-se essa indústria, que hoje tem como objetivo o comércio, estimulando esse comportamento. Hoje se vende para bichos que são vistos como gente”. Para ele, a indústria de animais domésticos cria uma demanda a ser suprida. Enquanto isso, Tony Stark e Saulo Inácio continuam sendo amados e cuidados por suas donas. Tanto Elizandra quanto Roseane Bianca se sentem completas ao serem mães de bichos. Não de sangue, mas, de coração. ARQUIVO PESSOAL

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ntrar em casa depois de um dia cansativo de trabalho e encontrar um ser de quatro patas vindo ao seu encontro com uma alegria contagiante. Animado e feliz por sua chegada. Para algumas isso é essencial. Desde muiO sentimento, pessoas, to cedo, existe a relação de animais às vezes, precisa de limites domésticos com os seres humanos. para que seja saudável Isso pode ser percebido e compreendido de muitas maneiras, tanto por aqueles que aderem à ideia de MÔNICA LEAL ter um bicho de estimação com cuiREPORTAGEM dados especiais, como por aqueles que não concordam com tal prática. Atualmente, essa realidade tem apresentado grandes mudanças no comportamento de quem opta por ter um animal doméstico e dispensa a ele um tratamento especial. Jornalista, Roseane Bianca sempre teve vontade de ter um cachorro. Quando decidiu morar sozinha, logo aproveitou a oportunidade e comprou seu primeiro animal de estimação. Como ponto de partida, pesquisou qual raça seria adequada para seu estilo de vida. Então, escolheu um cachorro da raça Pug, que ganhou o nome de Saulo Inácio. Saulo recebe um tratamento muito especial da dona. A estudante Elizandra Ferreira também sempre gostou muito de animais de estimação. Desde criança, ela cuidava e tinha a companhia de cachorros. Os anos se passaram e Elizandra nunca perdeu o carinho e afeição por eles. Há um ano, a estudante concluiu que ela e o namorado, Fabricio Oliveira, precisavam de mais um membro na família. Encontraram, então, um cachorro da raça ShihTzu, chamado Tony Stark Oliveira. A escolha pelo animal foi especial para Elizandra e Fabrício. “Quando fomos escolher o cachorro, logo gos-


CAROLINA SCHMIDT

Histórias sepultadas em Venâncio Aires

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Cemitério dos Machado não carrega apenas mortes, mas também a história dos alemães CAROLINA SCHMIDT REPORTAGEM

uem passa pela estrada de Linha Santa Emília, que fica no interior de Venâncio Aires, pode avistar um cemitério um tanto antigo. O local aparece de forma tímida em meio à vegetação, que já toma conta. Na entrada, logo após a escada principal, há um sino. As marcas do tempo denunciam que a idade não é pouca. Mais adiante, os anjos, as flores e as cruzes esculpidas nas sepulturas são retrato da cultura de uma época muito distante. Há alguns túmulos coloridos e, outros, com escritas de nomes dos antepassados daqueles finados que, ali, descansam em paz. É o Cemitério dos Machado, que sepulta boa parte da história da imigração alemã do município. Com mais de 150 anos de existência, o lugar é bem conhecido pelas pessoas que residem no interior da cidade. Edvino Hickmann, morador da Vila Palanque, é uma delas e faz parte dessa história também. Isso porque o primeiro imigrante que está enterrado no cemitério integra sua árvore genealógica. Com papeis na mão que acenam toda a ascendência da família, ele lembra das datas lá dos anos de 1800. Um sujeito chamado Johann Hickmann nasceu em 1816 e veio da Alemanha para o Brasil em 1891, onde habitou a região de Vila Santa Emília. Foi um dos primeiros a fazer parte do campo santo em questão. “A história de um povo está no cemitério. Por isso o lugar precisa ser cuidado, limpo e preservado. É desleixo

deixar os antepassados abandonados no meio do mato”, destaca Edvino que, com bom humor e um sorriso no rosto, fala com o olhar direcionado ao portão da casa. “Pena que os mortos não falam, né? Imagina se pudessem contar os detalhes do nosso passado!”. Mas, por que Cemitério dos Machado? Edvino traz a resposta. Segundo ele, na época, o terreno foi doado por uma pessoa com esse sobrenome, pois morava também nas proximidades. “Tinha muitos Machado por aqui que também foram sepultados lá”. Como o local tem forte raiz de cultura alemã, foi cogitada a ideia de incluí-lo na Rota do Chimarrão, que abrange pontos turísticos e históricos do município. A iniciativa foi do ex-presidente Pedro Moacir Landim pelo fato dos cemitérios guardarem as raízes e origens de um povo. “Há pessoas enterradas lá desde o século 18 e o sino veio da Alemanha. Seria um grande ponto turístico. Tem datas nos túmulos que são anteriores a emancipação do município”. Diferente dos falecidos que lá estão, a esperança de colocá-lo na Rota ainda não morreu. Se a sugestão de Landim for concretizada, o objetivo é fazer, primeiramente, a limpeza do lugar. O cemitério novo, construído ao lado do antigo, conta com os cuidados e manutenção de um zelador que recebe doações dos visitantes, principalmente, no dia 2 de novembro, data em que é celebrado o Dia de Finados. A estrutura mais velha não possui os mesmos cuidados.

Está sozinha como os mortos em suas sepulturas.

Uma herança Em uma tarde ensolarada de domingo, o Cemitério dos Machado não está mais só. Ele recebe a visita do agricultor Astor Inácio Ewald, 55 anos, que mora nas proximidades. Ao chegar de bicicleta, ele sobe as escadas, vagarosamente, e segue em direção à sepultura dos pais. Cabisbaixo e com os braços cruzados, lamenta o descuido do lugar em frente ao túmulo de Emma e José Pedro. A mãe nasceu em 1888 e morreu em 1968. O pai veio ao mundo no ano de 1875 e partiu em 1930. Ao olhar para onde jazem os dois, fala da falta e da saudade da mãe. “Aqui na parte velha, ninguém vem limpar. Tudo que foi construído aqui nessa terra, nessa cidade é por causa dos antepassados”, conta. O Cemitério dos Machado, assim como qualquer outro, é um centro de pesquisa histórica. E, por isso, o cuidado e a preservação do local se fazem fundamentais. A organização pode trazer uma ideia de como foi a estrutura social dos antigos moradores de uma localidade, além de demonstrar a relação com a religiosidade e a morte. “Deixa uma boa parte da história como herança. A preservação da memória no cemitério ajudaria muito para entender como eram os rituais de seus antepassados, até para fazer uma relação com o presente”, destaca o professor de História, Diego Engel.


Onde é possível ser qualquer coisa

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ora da estrada, depois de apagar a fogueira que havia feito, o personagem pega suas coisas e sai do acampamento que havia montado. Olha ao seu redor, em busca de alguém conhecido ou Quem joga RPG garante: qualquer tipo de ameaça. A princípara entrar nesse universo pio tudo é tranquilo. Com habilidade em procurar alimentos, observa é só soltar a imaginação a floresta. Nenhuma árvore frutífera por perto. Quem sabe um animal? ANDRESSA BANDEIRA Um coelho, ou algo assim? O imporREPORTAGEM tante é se alimentar. Jogam-se os dados do destino do personagem. Lá adiante, em uma trilha, ele avista um animal pequeno. Parece um coelho ou um esquilo. Com passos leves, ele segue o rastro do pequeno animal. Ainda distante, observa seu alvo. É um arqueiro experiente, não precisa se aproximar muito para alcançar seu objetivo. Um momento de indecisão. Uma pequena confusão. De fato, realmente é um coelho. Ele deve estar há uns 30 ou 40 metros de distância. O coelho percebe que há mais alguém por perto. O personagem se abaixa: é sua chance para atirar. Assim começa mais uma aventura vivida por Arthur Pohl e seus amigos. O estudante de Ciência da Computação, de 23 anos, é um jogador de RPG de mesa e a função dele é “mestrar” a aventura vivida no jogo. O Role Playing Game (RPG) é um jogo em que seus participantes devem interpretar personagens fictícios. Neste grupo de jogadores, um dos integrantes deve assumir o papel de mestre, considerada a função mais complicada do RPG. Nesse universo, o mestre tem todo o poder. É como se ele fosse um deus. “A única função dele é descrever o mundo. O mestre cria uma história que vai ocorrer e um mundo onde ela passa. Os jogadores vivem nesse mundo e cabe a eles decidirem o caminho a seguir. E, o mestre a dizer as consequências de cada ato dos jogadores e suas recompensas”, explica Arthur. Antes de começar a jogar, os participantes precisam organizar a ficha dos seus personagens. O mestre orienta os jogadores, sempre se baseando

no sistema de regras que foi estabelecido previamente. Arthur e seus amigos baseiam-se no livro World of Darkness (WoD) para montar fichas e direcionar a aventura. A partir do que está escrito nas páginas de WoD, personagens podem ser construídos e o jogo pode evoluir, permitindo interpretações e improvisações. Jogador de RPG desde os 13 anos, Arthur explica que, desta vez, a aventura é uma versão da obra Word of Darkness. O estudante de Ciência da Computação e seus amigos adaptaram o WoD, que tem uma temática sobrenatural, com lobisomens, vampiros e afins, para uma narrativa sobre um mundo apocalíptico-zumbi. “Os jogadores se veem no meio de um apocalipse e devem descobrir o que causou tudo isso e se têm ou não como reverter a situação. Isso enquanto tentam sobreviver, achar alimentos, não serem transformados em zumbis e enfrentar o seu pior inimigo: humanos sem lei”, resume. No jogo do grupo de Arthur há quatro sobreviventes principais. Sogeki é o personagem de Bruno Almeida. Sogeki foi criado pelo pai de Sorata e é um exímio arqueiro e excelente em sobrevivência. Chegou ainda bebê no templo onde viviam Sorata e o pai. Sorata é o personagem de Arthur que, além de mestrar, é jogador. Ele é um mestre marcial altamente treinado e que, agora no começo do jogo, precisa usar suas técnicas contra os zumbis enquanto tenta proteger Sogeki, um amigo que considera como um irmão. Mais dois amigos de Arthur participam da história. Felipe Fritzen interpreta Areo Black, um pistoleiro com um passado misterioso e que tenta manter as esperanças em um mundo cada vez mais decadente. A única menina do grupo, Rafaela Jost Gabe Guimarães é Sofia, uma sobrevivente da Grécia que perdeu os pais em um incidente envolvendo zumbis. A personagem é formada em Química, um sonho de Rafaela, e recebeu treinamento de sobrevivência do seu pai que era militar.

Na ficha de cada personagem há vários traços da personalida e comportamento. Por meio deles é que se podem guiar as atitudes de cada jogador. Informações como inteligência, resistência, perícia e força são preenchidos na ficha. Estas habilidades podem evoluir durante as partidas. Foi durante uma Feira do Livro, com 13 anos, que Arthur descobriu o RPG. O rapaz conta que um amigo e ele passeavam pelo evento quando encontraram o livro Dungeons and Dragons (D&D), um RPG de mesa onde os jogadores vivem em um mundo medieval mágico. Arthur, então, começou a lê-lo e a pesquisar sobre o universo do RPG. Para o estudante, que já fez amigos por conta do jogo, é através do RPG que se pode “exercitar sua imaginação, ser aquilo que não se pode ser no mundo real”, ajudando também na desinibição enquanto está entre amigos. A ideia é sempre jogar em uma mesa, assim todos podem interagir e conversar, sem que haja impedimentos visuais.


ANDRESSA BANDEIRA

Para entender o jogo “Cada sistema de RPG tem seus livros próprios. Normalmente para poder iniciar um jogo simples, o livro básico do jogador é suficiente. Partindo para os outros quando for para aprimorar ainda mais o jogo” explica Arthur. O mestre começa narrando a aventura. Um deserto. Uma floresta. Um campo. Qualquer lugar pode ser o cenário da partida. A partir daí, os jogadores vão sendo chamados. Desafios vão sendo lançados pelo mestre, conforme o enredo e, durante o jogo, avançam. Para que os objetivos propostos sejam alcançados e as dificuldades superadas, durante a partida são utilizados dados, como os de jogos tradicionais de tabuleiro e alguns um pouco diferentes, de até 20 lados. No RPG, os dados servem para decidir os acontecimentos, “como atacar um outro jogador ou um NPC (non-player character, um jogador que é controlado pelo mestre) ou talvez pular um buraco muito

longo, ou disputar um jogo de inteligência”, exemplifica Arthur. Alguns mestres usam os dados para decidir tudo dentro do jogo, outros deixam a aventura fluir e utilizam os dados para as tarefas mais complicadas ou de risco. Dependendo o número que o dado apresenta e as características do personagem, será decidida a próxima ação do jogo. Quanto maior o número, melhor para o jogador. Para que a história se desenvolva bem, o número de participantes deve variar de quatro até dez. Não é preciso nenhum acessório especial, a não ser que quem estiver interpretando algum personagem desejar usá-lo. A única coisa essencial para a partida são os dados. Para o RPG são utilizados sete deles. Um com o formato parecido com o de uma pirâmide, com quatro lados. Um decágono, de dez lados, parecido com um peão. O de 20 lados, chamado icosaedro e um de oito lados, o octaedro. Para completar o kit, é necessário ainda o dado de 12 lados, o dodecaedro e o cubo, mais comum

de todos, com seis lados. Com todos dispostos ao redor da mesa, os jogadores têm à sua frente a ficha de cada personagem. Nela estão os detalhes da história de cada um – conhecidos apenas por seu criador e o mestre, que sabe detalhes da personalidade de cada um. Por ser privilegiado com mais informações sobre os outros jogadores, o mestre consegue articular melhor a partida e criar mais desafios para os competidores. Apesar de ser um jogo “de mesa”, o único RPG que utiliza tabuleiro é o D&D. Os demais só usam as fichas de personagem e os livros em que se baseiam as histórias. É possível continuar se aventurando pelo mesmo mundo o tempo que quiser. Quem dita isso é a imaginação e disposição dos jogadores. A aventura de Arthur, Bruno, Felipe e Rafaela está apenas no início. O que virá está nas mãos deles e, é claro, dos dados. Além disso, os vencedores deste jogo não poderiam ser melhores: inteligência, amizade, criatividade e a imaginação.


Sonho de menino, fé de padre

jovem e, a partir daí, ele passou a se ver fazendo o mesmo que eles.

Aceitação A decisão de João foi aceita pelos pais, Cássia e João, de forma gradativa. Ele entrou no seminário aos 19 anos, mas aos 15 a ideia de ser padre já passava pela sua cabeça. “Meus pais foram aos poucos aceitando a ideia e, hoje, caminham junto”. Mas, o apoio não veio de todos. “Quando um jovem de 21 anos diz que está entregando a vida a Deus e à Igreja, não faltam aqueles que dizem: coitado, que vida sofrida; larga disso; imagina tu daqui a 40 anos; tu vai querer ter filhos”, enumera. Mas ele não se assusta ao imaginar que será, por uma vida inteira, padre. “Ao contrário, me deixa completo e me sinto útil às pessoas”. As críticas não o abalaram. João se mostrou convicto da sua escolha. Mas, é verdade também que, em plena adolescência, fazer uma escolha para a vida toda e abdicar de um momento de descobertas e fantasias, não é fácil, ainda mais em pleno século XXI. Conforme o Padre Eduardo Luís Haas, reitor do Seminário Maior São João Batista, em Viamão, da Diocese de Montenegro, a indecisão ou crise vocacional é algo importante, pois sabe que quanto mais opções, mais difícil se torna escolher o caminho. “Quando os seminaristas fazem a decisão definitiva, eles já passaram da adolescência, estão com, no mínimo, 25 anos de idade”, observa. Segundo ele, a Igreja busca ajudá-los sob o aspecto espiritual e vocacional com conversas, acompanhamento psicológico e pastoral. “Quando alguém escolhe o caminho do seminário é porque decidiu por este rumo e não por falta de opção. Os jovens que estão comigo no seminário são normais, com as mesmas qualidades e carências de qualquer um”, frisa. O reitor explica que nos anos iniciais do proces-

so formativo é mais comum haver desistências e afirma que é possível mudar a rota da vida. “Dos que iniciam no Ensino Médio (ainda muito jovens), mais da metade escolhe outro caminho. Daqueles que entram já com 18 anos ou mais, o percentual de desistência não é tão alto”. Cursando o primeiro ano de Teologia, a caminhada de João para o sacerdócio ainda é longa. Segundo ele, a Igreja pede um ano de discernimento (seminário), curso de Filosofia, de Teologia e um ano de pastoral, que consiste em morar em uma paróquia tendo a vida de um padre. Ainda há o acompanhamento dos formadores que avaliam as condições do candidato. Com tantos passos a seguir, ele, aos 21 anos, ainda não tem previsão de ordenação, mas encara a missão como um grande sonho: ser, um dia, o Padre João. ARQUIVO PESSOAL

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uando João nasceu, os pais não imaginaram que um dia teriam um filho que sonharia ser padre. O nome escolhido por eles para o batismo representa, hoje, o destino da vida do jovem. João, 21 anos, ‘candidato’ João é o nome do santo e, também, da casa em que mora há um ano e a padre, desmitifica os ró- meio: o seminário São João Batista, tulos de um seminário em Montenegro. Também é nome do autor da sua passagem bíblica LETÍCIA WACHOLZ favorita, um dos 12 apóstolos de Jesus. João significa agraciado por REPORTAGEM Deus, e é o que diz o seu nome; que o jovem, de cabelos loiros encaracolados e olhos claros, escolheu viver. João Vítor Freitas dos Santos, natural de Taquari, é um homem vocacionado a viver para Deus. A decisão não tem data marcada na sua vida, mas é fruto de um longo tempo de reflexão. Teve uma infância definida por ele como normal. Brincou e estudou no Instituto Estadual de Educação Pereira Coruja, em Taquari. Como a família era mais distante da religião, João não foi um menino que costumava rezar à noite para agradecer ao Papai do Céu. Até teve um contato mais próximo com a Igreja durante a catequese, quando se preparou para a Primeira Comunhão. Mas, sem a mínima noção ou interesse pelo que estava acontecendo. Foi um adolescente de rebeldias próprias da idade, mas carregou também um desejo: queria mudar o mundo. Como estudante era bem disciplinado, adorava História, mas sentava um pouco no fundo da sala e, por isso, às vezes se passava na conversa. Nunca teve namorada. Aos 14 anos, começou a participar da Igreja, efetivamente, por meio de um grupo de jovens cristãos. Foi em um retiro, durante três dias, que começou a amar Jesus. “A partir deste encontro pessoal com Ele que dei sentido a tudo”. Foi neste período que João comprou sua primeira Bíblia Sagrada. Com o tempo, alguns padres tornaram-se referências na vida do


Tecnologia e roupas normais move baladas católicas. Os seminaristas não vivem longe do que a tecnologia oferece, inclusive redes sociais como Facebook e WhatsApp. João explica que a Igreja pede que sejam futuros padres do século XXI, o que implica em estar inserido no contexto tecnológico, nos meios de comunicação social, na política e nos acontecimentos da sociedade. “Não vejo muita diferença na minha vida e a de qualquer jovem da minha idade que estuda e trabalha. Tenho os meus deveres, minha vida religiosa, o celibato que guardo como estilo de vida (não por imposição) e tenho também meus momentos de lazer, amigos e passeios”. Para o Padre Eduardo, as ideias estereotipadas de um seminário contribuem para que menos jovens se interessem pela vida sacerdotal. “Não é apenas rezar e estudar. O seminário é um lugar de muita vida, muita alegria, muito convívio. Se todas as pessoas experimentassem uma semana no seminário, se surpreenderiam positivamente”, assegura. Além dos pré-julgamentos, o acesso à informação, as oportunidades de trabalho e ensino abrem novos horizontes aos jovens, o que pode contribuir para o esvaziamento dos seminários. Mas, a informação não é confirmada pelo Padre Eduardo que, ao contrário, observa o aumento do número desses locais no Rio Grande do Sul. “Anos atrás, havia os grandes seminários regionais. Por exemplo, para estudar filosofia e teologia, havia um só em todo o Estado. Hoje, deve haver perto de 20 seminários e isso faz com que, em cada casa, haja menos seminaristas. Mas, se somarmos todos, o número impressiona positivamente”. Um exemplo é da própria diocese onde atua, em Montenegro, que vai ordenar cinco padres neste ano – a maior turma desde que foi criada, em 2008.

ARQUIVO PESSOAL

Quem disse que a vida de candidato a padre é só rezar noite e dia e andar vestido de túnica branca? João tem uma rotina semelhante a qualquer jovens de sua idade. Durante o dia veste-se com roupas comuns e, às vezes, usa túnica branca e longa na celebração da Missa devido a uma função litúrgica. Também é preciso esquecer a ideia de um seminário grande, frio, escuro e com corredores enormes. Conforme ele, o seminário é uma casa grande, com todo aconchego de um lar, com jardins e uma capela de pedra. Os 18 seminaristas que, atualmente, frequentam o São João Batista, em Montenegro, moram com o padre Eduardo e uma senhora, que desempenha serviços de cozinha. Cada seminarista possui o próprio quarto com um banheiro anexo. “O quarto é o lugar da individualidade. Viver em comunidade não significa negar o aspecto pessoal, por isso cada um possui seu espaço”, desmistifica. João explica que os quartos são como de qualquer outro jovem desta idade. No dele, por exemplo, há uma cama, um armário, uma mesa de estudos, uma prateleira com livros, imagens sacras de Jesus e Maria, um notebook, celular e agora, no inverno, um aquecedor. “Podemos ter qualquer coisa, desde que seja bom”, observa. A vida de João também compreende rodas de chimarrão com amigos, visitas e até saídas de lazer. Todas as tardes e noites das quartas-feiras são livres. “Neste dia podemos fazer uma visita a alguém, dar uma passada em casa, passear, ir ao cinema, sair para jantar”. Os seminaristas também podem frequentar festas e baladas. “Desde que eu seja o mesmo seminarista que sou na Igreja dento da festa, ou seja, tenha a devida postura nestes lugares”. A própria Igreja, segundo ele, também pro-


DÉBORA PAZ

Um potencial desvalorizado

É Rio Pardo, Cachoeira do Sul e Santa Cruz do Sul têm algo em comum DÉBORA PAZ REPORTAGEM

visível a necessidade de investimento nas atividades turísticas dos municípios da região. Mesmo sabendo de toda a importância da preservação do patrimônio histórico arquitetônico, a falta de incentivo tem aumentado cada vez mais. Os prédios históricos ou as construções que, de alguma forma, representam as características locais ou culturais das cidades de Rio Pardo, Cachoeira do Sul e Santa Cruz do Sul, atualmente, não têm a preservação e os cuidados que merecem. Aos 204 anos, a cidade de Rio Pardo possui um passado repleto de história e cultura. O município também conta com belos pontos turísticos e uma arquitetura colonial que chama a atenção pela sua riqueza em detalhes. Detalhes estes que, muitas vezes, são percebidos por poucos, seja por causa da correria do dia-a-dia, pela falta de preservação, de valorização ou até mes-

mo de incentivo. Rio Pardo é uma das quatro mais antigas cidades do Estado e teve papel fundamental na formação do Rio Grande do Sul. O município, onde batalhas aconteceram e figuras importantes fizeram história, teve poucos prédios restaurados e muitos foram destruídos. Mesmo sabendo de toda a importância do patrimônio arquitetônico e do potencial turístico que poderia ser explorado, pouco tem sido feito para que mudanças aconteçam. Basta caminhar pelas estreitas ruas da cidade e observar. De um lado está o Museu Barão Santo Ângelo com suas vidraças ainda quebradas. Na outra rua, a Antiga Estação, que hoje é o prédio da Secretaria de Turismo, está em estado precário. A escada, que dá acesso ao segundo andar, está quase caindo. Logo ali na esquina do final da Andrade Neves, se vê o Solar das Águias exibindo sua bela arqui-

tetura que necessita de reparos. De acordo com o agente de turismo Flávio Wanderlich, a falta de incentivo ao turismo do município é visível. Ele conta que a cidade tem recebido visitantes apenas por meio de sua Agência de Viagens. Os turistas que buscam se aventurar chegando sem avisar encontram a casa desarrumada, além de não serem recepcionados, da maneira como deveriam. Flávio acredita que este descaso acontece pelo fato de 80% dos prédios históricos serem patrimônio particular, sendo que apenas 20% correspondem ao patrimônio público. Além disso, grande parte destes 80% estão com os documentos irregulares: falta inventário e os impostos altos levam à inadimplência dos proprietários, deixando de lado cuidados essenciais. Em segundo lugar, ele destaca que falta valorização por parte dos rio-


pardenses: “As pessoas precisam ver a cidade como um patrimônio da humanidade, precisam valorizar sua cidade natal”. O agente de turismo salienta que, em média, Rio Pardo recebe cinco mil turistas por ano, com exceção de alguns poucos estudantes de faculdade que visitam a cidade para desenvolver estudos. Flávio afirma que para haver mudanças, em primeiro lugar, precisam ser contratados profissionais adequados, organizar fóruns histórico e selecionar jovens interessados para trabalhar nos museus da cidade que, atualmente, se encontram com as portas fechadas. De acordo com ele, falta também incentivo por parte dos governantes. Os prédios devem ser arrumados, a cidade precisa ser limpa e manutenções devem ser feitas. Além disso, ressalta que somos privilegiados por possuir uma riqueza que outros municípios não possuem: o Rio Jacuí que, além de ser pouco preservado, não é tratado como ponto turístico. Durante a entrevista o secretário de turismo de Rio Pardo, Charles Barragan, que assumiu o cargo há cerca de quatro meses prefereiu falar sobre as mudanças que estão por vir. Afirma que Rio Pardo tem um grande potencial turístico e é rico culturalmente, o que favorece a exploração de diversas áreas, como o turismo rural. Com a implantação de um roteiro pelo interior do município, ele pensa em criar novos atrativos, mas também pretende investir no turismo de eventos, como o Carnaval, que é referência na região, a Festa do Peixe e a Semana Santa. Atualmente, Barragan vê um potencial turístico rico a ser explorado. Mas, para que isso aconteça, precisa pensar em infraestrutura para recepção, o que requer recursos financeiros que, segundo ele, já foram solicitados por meio de projetos junto ao governo federal e parcerias públicas e privadas. Já no município de Cachoeira do Sul, a realidade não é muito diferente. De acordo com Telmo Padilha, presidente, membro e funda-

dor da Defesa Civil do Patrimônio Histórico (Defender), a Fenarroz é o único evento que atrai turistas para a cidade. Mesmo assim, este ano, o município não se preparou para receber visitantes. Para Padilha,quanto ao turismo histórico, falta incentivo por parte dos governantes, falta planejamento. Mas, esta situação é, segundo ele, consequência de vários governos, e só fez piorar. Ele diz que, assim como em Rio Pardo, falta valorização por parte da comunidade. Os prédios, muitas vezes, deixam de ser preservados e são até vendidos e derrubados para a construção de edifícios novos. Para Padilha, a economia fala mais alto, deixando a valorização de lado e desrespeitando o patrimônio que é de competência do município. Durante a 18ª Fenarroz, os turistas que visitaram o evento tiveram pouco o que conhecer. Um dos pontos mais procurados, a Fonte das Águas Dançantes, na Praça José Bonifácio, não está funcionando. O cartão postal que tem mais destaque na cidade, o Châteu d’ Eau, antigo reservatório de água do início da urbanização da cidade, também não dará nenhum espetáculo este ano. A água que sai dos sete jarros das oito ninfas não pode ser ligada por problemas elétricos e isso só será arrumado quando fizerem o restauro completo do monumento que está semidestruído. Não existe nenhum guia disponível que possa indicar os principais pontos turísticos da cidade. A exemplo de Rio Pardo, existem vários conflitos com proprietários de bens que tem relevância e assim não há apoio do governo para manter os prédios históricos. Desta forma, cada vez mais, estes estão sumindo. O presidente da Defender conta que, num fim de semana, na saída de um restaurante na rua Moron, estavam a proprietária e um casal conversando. Quando lhe viram, a proprietária disse que ele poderia ajudar o casal. Ficou sabendo então que eram de Canguçu, estavam voltando de Santa Cruz do Sul, já tinham passado em Rio Pardo e

entraram em Cachoeira antes de seguir viagem. Mas, antes, queriam visitar alguns pontos turísticos da cidade, por isso buscavam orientações. Ele indicou uma rota rápida e fácil e fez um breve relato do pouco que sabia da história local. O casal se foi, até hoje ele não sabe se viram tudo. Mas descobriu como está despreparado para receber e orientar turistas. A partir desta experiência, pensou quantos monumentos poderiam ser atração e como Cachoeira é rica em história, arquitetura, áreas verdes e, ao mesmo tempo, como falta valorização. Valquiria Pontes, agente de viagens, é categórica ao dizer que o turismo em Cachoeira do Sul praticamente não existe. Com exceção da Fenarroz, que é bienal, ela afirma que “ninguém vem a Cachoeira apenas para conhecer a cidade”. Ela conta que não existe nenhuma campanha de divulgação. De acordo com a agente de viagens, algumas medidas devem ser adotadas para que o turismo do município tenha mais destaque e seja mais explorado. Entre elas, a criação de uma secretaria de turismo, mas com pessoal capacitado, não um cabide de cargos políticos. Além de divulgar o município em feiras e eventos de turismo, investir em reformas e manutenção dos monumentos, que estão bastante estragados.

Na cidade da Oktober Enquanto isso, em Santa Cruz do Sul, de acordo com o turismólogo pós-graduado em hotelaria e Diretor de eventos do munícipio, Sidnei Oliveira Lopes, o turismo histórico é pouco explorado, pois Santa Cruz do Sul é mais voltada para o turismo de eventos. Portanto, atualmente, o município tem investido em infraestrutura de eventos para atrair o público. Como, por exemplo, a Oktoberfest, StockCar, congressos e encontros, pois, segundo ele, este tipo de turismo movimenta a economia de toda a cidade. Os hotéis ficam cheios e os restaurantes lotados, movimentando todo o comércio.


incentivado e ambos dependem de políticas públicas eficientes voltadas a preservação patrimonial. Alguns dos belos prédios antigos, os quais podemos observar caminhando pelas ruas da cidade, continuam de pé, enquanto outros não, como, por exemplo, a linda casa que foi derrubado para a construção do Mcdonald’s. Além deste, outras importantes edificações estão sendo, simplesmente, destruídas para construir prédios novos e indústrias, muitos dos quais com pouca qualidade artística e arquitetônicas. Segundo Schneider, Santa Cruz apresenta ainda um riquíssimo patrimônio da arquitetura eclética mas, infelizmente, a qualidade visual em seu conjunto apresenta sérios problemas já que está sendo afetada e alterada continuamente por reformas e pela colocação de

elementos de publicidade de todo tipo. Apenas alguns monumentos e algumas edificações mais importantes têm sido conservados, o que, segundo ele, é uma pena para a futura paisagem e manutenção da qualidade do espaço urbano. Pois, assim como as ruas largas e a arborização representam as características do município, os prédios históricos também fazem parte deste conjunto. De acordo com ele, esse descaso acontece porque não existe uma lei de preservação eficaz. Schneider relata que o progresso da cidade é importante e que pode ser perfeitamente conciliada com a preservação patrimonial. O espaço urbano atualmente está sendo reconstruído, pois a valorização imobiliária é muito grande. O atual plano diretor do município deveria explicitar a importân-

cia de preservar a identidade de Santa Cruz do Sul. Esta se constitui através de elementos como parques, arquitetura, monumentos, áreas verdes e prédios históricos, que estão diminuindo cada vez mais, refletindo no turismo histórico, antigamente pouco explorado. O professor acredita que para acontecer mudanças, em primeiro lugar, é preciso que a sociedade valorize o patrimônio ambiental como um todo. Essa preservação, de acordo com ele, depende também de políticas públicas. Mas, políticas públicas eficientes, assim como uma promotoria pública atuante e mais vigilante. Segundo ele, as potencialidades de um turismo histórico voltado ao patrimônio arquitetônico existem e são muitas, mas não parecem ser prioridade para o município. GILMAR CRUZ

Muitas vezes é após visitar outras cidades que se cria ideias voltadas à infraestrutura de eventos turísticos que visam atrair um grande público para a cidade. Quanto aos pontos turísticos, estes têm pouco destaque, são pouco visitados, até mesmo porque não existe muito investimento neste sentido. Já o professor de Arquitetura e Urbanismo Luiz Carlos Schneider diz que “Santa Cruz do Sul não possui turismo histórico relacionado às edificações patrimoniais e esta é uma área onde deveria haver incentivo, já que sua importância está relacionada não somente com as possibilidades de retorno econômico para a cidade, mas especialmente com a manutenção e valorização da cultura e da identidade urbana”. Assim como o turismo histórico o turismo ambiental deveria ser mais


Mãos para fazer o bem

R Às vezes, a partir das dificuldades da vida, é que desabrocha a necessidade de ajudar MARTINA SCHERER

MARTINA SCHERER

REPORTAGEM

oupas estendidas para secar, apesar do tempo frio e úmido de maio, enfeitavam a casa de madeira, com paredes azuis e janelas marrons. Falando alemão, dona Irsi recebe, com um sorriso no rosto, a todos que chegam à sua residência. Na porta de entrada, um enfeite que diz: “Neste lar, reina a paz e o amor”. Pantufas de lã, fogo no fogão à lenha centenário e rádio ligado. Este é o clima habitual na casa de Irsi Leonita Franz. Como companhia, o marido Darsício, de 62 anos, a cadela Lessie e mais um casal de gatos com seus dois filhotes. A simplicidade com que dona Irsi vive é reflexo de sua personalidade. Uma mulher correta, justa e que trata todos de maneira igual. Mas, sobretudo, feliz. Feliz em fazer os outros felizes, como ela mesma diz. Hoje com 61 anos, realiza há 13, um trabalho como agente voluntária de saúde, a partir do Programa de Prevenção ao Câncer de Mama e Colo de Útero, desenvolvido pelo Hospital Ana Nery. Tudo começou com uma suspeita de câncer de mama. Há cerca de 15

anos, exames identificaram nódulos em cada um dos seios. Por sorte, nada maligno. Mas, a cirurgia demorou. Após seis meses pôde retirá-los, a partir de um convênio com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Infelizmente, o alívio não durou muito. Dois anos depois, descobriu mais nódulos, novamente nas duas mamas. Desta vez, dona Irsi procurou o Posto de Saúde da Família do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), de Santa Cruz do Sul. Lá, indicaram o mesmo médico com quem havia feito a cirurgia da primeira vez. Ficou receosa e preferiu não marcar nada. Junto com isso veio a depressão. Uma amiga percebeu sua palidez, o abatimento e a tristeza. Recomendou, então, que voltasse a buscar o serviço do Senai e que pedisse para falar com a chefe. Mesmo sem saber o nome da pessoa que deveria procurar, dona Irsi foi. E quem ela precisava apareceu, convidou-a para uma conversa e disse: “Vem comigo. Hoje a senhora teve sorte”. E teve mesmo. Neste momento, ela foi apresentada ao Programa de Prevenção ao Câncer de Mama e Colo de Útero, um projeto que estava apenas engatinhando, mas tinha tudo para dar certo. Mesmo sem saber o que era, dona Irsi aceitou fazer uma biópsia. Ao chegar ao hospital para realizar o procedimento, veio a surpresa: já estava tudo preparado para a cirurgia. Ela foi operada às 15 horas de uma segunda-feira, e, antes que a tarde terminasse, já estava de volta. Esperou oito dias para ter o tão aguardado resultado em mãos: não era câncer. Depois disso, decidiu fazer o exame preventivo de câncer de útero, que não realizava havia alguns anos. No posto de saúde do Senai lhe explicaram que deveria procurar um agente de saúde na sua localidade de origem. Foi então que ela percebeu que, em Linha Felipe Néri, não havia

ninguém desempenhando essa função. Para suprir essa necessidade, resolveu assumir o papel. A agora agente de saúde voluntária, precisou reunir um grupo de mulheres interessadas no exame. Como argumento, fazia uso de: “não dói”, “é de graça”, “é nosso direito”. E o principal: é um exame importante. No primeiro mutirão, conseguiu reunir 29 mulheres, a maioria delas, agricultoras. Realizaram os exames pré-câncer. O Programa de Prevenção ao Câncer de Mama e Colo de Útero foi uma ação inédita no município e no Estado. A partir da parceria entre o Hospital Ana Nery, Secretaria Municipal de Saúde e 13ª Coordenadoria Regional de Saúde, têm como público-alvo mulheres com vida sexual ativa da zona rural e periferia urbana de Santa Cruz. Mais de 20 mil mulheres já foram atendidas pelo programa, conforme dados do próprio Ana Nery. O diferencial deste trabalho é que o hospital vai até as pacientes, através de unidades móveis ou em postos de saúde da região. Durante os encontros, além de serem realizados exames preventivos, também acontecem palestras educativas. Dona Irsi aprendeu ouvindo, o que deveria falar, questionar, maneiras de confortar e aconselhar. Mesmo tendo estudado somente até a quinta série e com um breve curso de primeiros socorros, virou referência na região. Quando alguém precisa de ouvidos e um ombro amigo, ela é procurada. Sua casa serve como divã de psicólogo. Ao telefone celular marca exames, agenda consultas. Sempre para os outros. Ou melhor, para as outras. As mãos que, na rotina do dia-a-dia, seguram enxadas, separam fumo e preparam refeições, têm orgulho em ajudar. Auxiliar quem precisa é o que faz dona Irsi feliz. Para ela, isso é algo que vem de dentro, vem do interior da pessoa. É natural. É um dom, que só precisa ser descoberto.


Na minha escola todo mundo é igual

T Professora utiliza livros como forma de interação social de crianças com deficiência EDUARDA PAVANATTO

REPORTAGEM

oda terça e quinta-feira ela chega, entra na sala de aula e se transforma. Ganha antenas verdes com estrelas nas pontas e, às vezes, no pescoço carrega plumas de todas as cores: rosas, amarelas, vermelhas e azuis. Lisiane não é só professora, é personagem. É a narradora de milhares de histórias, nas quais, os animais ganham voz, roupas e características humanas. À medida que os alunos chegam, já vão tomando seus lugares no tapete mágico. Ele os transportará para novos mundos onde encontrarão o Dognaldo, a Tina, a Abelhinha e os

outros tantos protagonistas dos contos. É, então, que a Sala de Recursos Multifuncionais fica pequena, tamanha a imaginação das crianças. Lisiane D’avila é professora há 17 anos e, em 2009, se especializou em Educação Inclusiva pela Universidade Internacional de Curitiba (Facinter). Desde então, realiza o projeto Hora do Conto Inclusivo, na Escola Estadual de Ensino Médio Vital Brasil, na cidade de Cachoeira do Sul. A escola possui crianças com deficiência; a professora, muita vontade de mudar o mundo. E ela começa por aqueles que carregam nos pequenos

ombros a responsabilidade de seguir os passos e colocar em prática a mudança, tanto falada e teorizada agora. A contadora de histórias começa o trabalho com as crianças. “É muito fácil para elas entenderem a inclusão. Mas, para os adultos, não”. Cada semana é uma história. Vezes retiradas da coleção Ciranda da Inclusão, vezes dos livros O que cabe no meu mundo. As duas coleções falam sobre as diferenças e os valores, por meio dos animais. O Dognaldo veio primeiro. Deficiente físico, o cachorrinho ajudou os alunos do 1º ao 5º ano, a compreender as dificuldades


EDUARDA PAVANATTO

apenas dizer, não é o suficiente. É preciso mostrar. Quem espiasse pela porta entreaberta, nesta semana, veria 20 crianças com uma venda nos olhos. Uma semana depois, a visão era outra: as crianças formavam seus nomes na linguagem de sinais. A história, agora, era sobre o pássaro que não cantava, para falar da deficiência auditiva. A abelhinha, que veio depois, tinha Síndrome de Down. Nessa turma não havia nenhuma abelhinha, mas na escola sim. Então, durante a Hora do Conto Inclusivo, também é ensinado a respeitar, como tratar e como ajudá-las quando precisarem. Quando Lisiane propôs o projeto, a necessidade maior era com os professores e colegas. A partir do momento em que as crianças estão ouvindo a história, o colega e o professor também estão. E elas cobram. Certo dia, um aluno notou que o colega era uma abelhinha. Que ele tinha limitações. Contrariando qualquer expectativa, a conclusão dele foi uma das melhores possíveis. Ele disse: “O colega tem o olho puxadinho, ele é igual a abelhinha. Mas, eu sei que se ele não consegue fazer alguma coisa, tem outra que ele faz muito bem, até melhor que eu”. O atendimento, como chama Lisiane, termina depois de 45 minutos. Após as brincadeiras, os exercícios, os desenhos e as inúmeras dúvidas levantadas pelos pequenos. de quem vivencia essa condição. Nas turmas, normalmente, há algum aluno que possa se identificar com o personagem. Ao mesmo tempo em que Lisiane conta a história, as diferenças são trabalhadas. As crianças ouvem, interagem, voltam para a sala de aula e fazem um desenho ou reescrevem a história. Depois, as obras dignas de qualquer museu de arte, ganham o mural da escola onde são apreciadas, não só pelo próprio artista, como pelos visitantes da exposição. Na semana seguinte veio a formiguinha. Ela era cega e, para trabalhar essa questão, Lisiane propôs uma vivência da realidade. Às vezes,

Trabalho de formiguinha Não é de uma hora para outra que as coisas mudam. Levam dias, meses e até anos. O processo de inclusão social de crianças com algum tipo de deficiência é um trabalho lento, cansativo, mas gratificante. Certo dia, Lisiane saía de uma reunião e uma das professoras chamou por ela. A colega queria entregar os desenhos, feitos pelos alunos sobre a história da Abelhinha, contada dias antes. Mas, não apenas isso: queria contar a Lisiane o que havia presenciado em sala de aula. Enquanto todos trabalhavam

em seus desenhos, uma das crianças fez uma abelha bem diferente. A professora viu, mas ficou quieta. O colega viu, mas não optou pelo silêncio: “Essa abelhinha está errada. Tu não sabes desenhar”. Antes que a professora pudesse tomar qualquer atitude, outro colega se aproximou: “Mas, não foi isso que a tia Lisi disse. A gente precisa respeitar as diferenças. A minha abelhinha é assim, a tua é de outro jeito, ninguém é igual”. Com um sorriso largo, Lisiane relembra a emoção ao perceber que o objetivo principal está sendo alcançado. O projeto, que começou para ser pequeno, cresceu. O Ensino Médio foi incluído, não por uma decisão única dos professores e diretor, mas por um pedido dos próprios alunos. Mas, como contar a mesma história, do Dognaldo, da Tina e da Abelhinha para estudantes maiores, da 6ª, 7ª e 8ª séries ou do 2º ano do Ensino Médio? Foi um grande passo para a Escola Vital Brasil e para Lisiane, também. Ela se viu frente a um novo desafio e precisou recriar uma nova versão da Hora do Conto Inclusivo. Para essas turmas, o nome muda. Agora é “Na minha escola todo mundo é igual”. Mas, o objetivo permanece o mesmo. Opção sexual, cor, tipos de deficiência. Todos os assuntos que envolvem preconceito são trabalhados. Para quem já conhece todas as histórias da coleção Ciranda da Inclusão, Lisiane tem uma carta na manga. Essa carta se chama “O que cabe no meu mundo”. E, como os títulos dos livros sugerem, cabe muito coisa: lealdade, fraternidade, dedicação e por aí vai. Toda a coleção é dedicada a ensinar sobre os valores. E quem mais ganha com isso, não são apenas as crianças. É a sociedade. A criança está ali, ela aceita. Muitas vezes, não se dão conta que o colega é diferente. De acordo com Lisiane, para os adultos, o ganho é muito grande porque possuem a dificuldade em aceitar o que não é igual. A Hora do Conto serve, também, para fazê-los en-

tender o outro, como ele aprende e o quanto necessita do seu próprio espaço. Um dos maiores desafios, segundo Lisiane é fazer as pessoas entenderem que uma criança diferente pode ser alfabetizada. Ao falar isso, a professora, estava contando o caso de um dos alunos. Ele é autista e quando chegou à escola, com 7 anos, só gritava. Com o tempo e com a paciência de professores e colegas, ele foi ficando. Cada dia um pouco. Hoje, Bruno está alfabetizado e faz questão em participar da Hora do Conto. Muitas vezes, ele está com a perna para cima, bagunçando. A primeira coisa que qualquer um pensaria é que ele não está prestando atenção. Então, a professora pergunta como era o nome do personagem, por exemplo, e ele responde. Na linguagem dele, mas consegue dizer. Inclusão é um trabalho de tartaruguinha, de formiguinha e a dificuldade está presente durante todo o processo, começando pela escola regular, que não está totalmente preparada. É gratificante para Lisiane escutar de outro professor que um dos alunos foi muito bem em uma prova. É, também, nesses momentos, quando ela percebe que a inclusão veio para ficar. E essa tarefa continua. Ela já foi convidada a contar histórias em outras escolas, e o fez. Todas as crianças adoraram. No final dos 45 minutos, os personagens vão embora. A contadora de história se despede da tiara com antenas verdes, que carrega na cabeça. Mas, por pouco tempo. Na semana seguinte o Dognaldo volta, a Tina, Abelhinha e os outros também. Cada um com suas próprias limitações que, contrariando a matemática, somadas, ficaram menores. Assim como o preconceito, que diminui a cada dia. Enquanto a professora observa cada sorriso dos alunos, percebe a conquista da turma. Afinal, a cada ganho, se tem um grupo de vencedores. Crianças, jovens e adultos que têm a sorte de melhorar e crescer como pessoas.


VANIA SOARES

A face afro da religião

D

esvendar o que se passa dentro de um Centro de Umbanda sempre me despertou curiosidade. E, como repórter, me desafiei a realizar esta tarefa. Numa noite fria de sábado, cheguei até a Tenda de Umbanda Nossa Tradições culturais Senhora da Conceição, em Ramiz brasileiras que chegaram Galvão, o maior bairro da cidade ao Brasil com os de Rio Pardo. Lá estão concentravários templos religiosos. São primeiros escravos dos igrejas evangélicas, católicas, centros espíritas e de Umbanda. Sou bem VANIA SOARES recebida pelos dirigentes da casa: REPORTAGEM José Moacir Schwarzbach, conhecido por professor Zezé, lecionava educação física e hoje está aposentado; a esposa, Ilza Terezinha, também professora aposentada, e sua filha Kelly. Eles me pedem para permanecer serena e ficar a vontade. O cheiro de incenso é forte. Nas paredes brancas com janelas vermelhas há alguns quadros com pinturas que remetem à Umbanda. Em um

banner está escrito: “Não cobrar, não matar e usar o branco. Evangelizar e utilizar as forças da natureza. Eis a Umbanda”, assinada por Moab Caldas, uma celebridade para quem segue essa religião. No forro, bem ao centro da sala, existe um pequeno altar coberto com uma cortina de renda. Em uma porta me deparo com uma espécie de carranca, feita em madeira, pintada de preto e coberta com alguns ramos secos. Cartazes na sala avisam para desligar o celular e usar roupas claras. Correntes separam o setor da plateia do altar, onde se realizam os rituais. Sento na última fila de cadeiras, em frente ao corredor, e vejo um pilão de madeira com uma bandeja cheia de chifres de animais e alguns sinos. Conforme os dirigentes, o pilão serve para dar proteção ao local. Chama atenção o altar principal, bem à minha frente, coberto com cortinas na cor bege. Os médiuns se

dirigem até ali, dizem algumas palavras e, em seguida, colocam as guias, espécie de colares coloridos. Antes de iniciar os trabalhos, as cortinas são descerradas e o ambiente se ilumina com lâmpadas na cor verde. O altar, em forma de pirâmide, é repleto de imagens sacras. O primeiro, que está acima de todos, é um grande crucifixo com Jesus Cristo. Abaixo, há duas imagens de Preto Velho e, assim, em ordem crescente, até chegar na quarta e última prateleira, em que várias imagens de santos ligados a Umbanda estão expostos. No castiçal, três velas nas cores rosa, azul e amarela foram acesas. Pontualmente às 20 horas se inicia a sessão. O professor Zezé dá as boas vindas e faz questão de dizer que quem está ali em busca de milagres, vai se decepcionar, pois é um local de reflexão e de levar palavras de conforto para quem precisa. Sua esposa faz uma


internas, pintadas de branco, mostram alguns quadros com imagens do catolicismo: Sagrado Coração de Maria, São Jorge e São Francisco. No fundo, ao lado esquerdo, há um altar no qual prevalecem mais de 50 estátuas de santos. Dentro deste mesmo ambiente há, por todos os lados, cajados, chapéus, copos feitos de porongo, tambores, chocalhos e guias. Saindo deste local, à esquerda, encontro uma sala chaveada. Julio mostra que, ali, estão alguns objetos ligados a Quimbanda. Trata-se de um pequeno espaço todo em cerâmica branca. Posso ver uma pequena lápide escrita “Exu João Caveira”; dois garfos de três dentes, um em cada canto; duas facas cravadas em alguns papéis; três caveiras em miniatura; flores em tons de roxo, vermelho, preto e amarelo. Os frequentadores desse ambiente precisam pedir permissão para se aproximar dali, pois Exu é considerado uma entidade agressiva. Quando estava fazendo as fotos, a câmera caiu três vezes das minhas mãos, assim como a caneta caiu duas vezes. O Cacique diz que, talvez, eles não estivessem gostando muito dos flashes. Paro imediatamente. Ele ainda explica que os trabalhos feitos em cemitérios com animais e outras oferendas não são feitiços, como muitos atribuem. Na verdade, são agrados a Exu para que ele possa ir até Casa Pai José de Aruanda as sessões sem resmungar. Eles matam galos e, Julio Rios é Cacique de Umbanda há 14 se precisar fazer algum tipo de trabalho para o anos, mas também é adepto da Quimbanda. mal, as entidades fazem sem problema algum. Filho de mãe religiosa, ele sempre praticou a Mas, como diz Julio, eles também fazem coisas crença até receber a entidade Ogum da Lua, para o bem. Um fato curioso é que Julio Rios em 1999. Depois veio o João Caveira, o Exu e detesta cigarro, mas quando recebe as entidao Pai Chico. A sessão de Quimbanda é muito des, fuma bastante. Nas cores das vestes deve diferente da Umbanda. Localizada também prevalecer o tom escuro, assim como as luzes; no bairro Ramiz Galvão, a casa Pai José de deve ser na penumbra, pois algumas entidades Aruanda fica em um chalé lilás cujas paredes não gostam de luz. VANIA SOARES

oração com voz serena e pede para que todos fiquem em paz. Logo, enxergo 15 integrantes com camisetas personalizadas com os temas do local. As mulheres de saia rodada e os homens de calça, todos na cor branca. Alguns estão descalços; outros, de alpargatas na mesma cor das roupas. É formado um círculo. Três tambores e um chocalho iniciam as canções que são entoadas e acompanhadas com palmas pelos integrantes. Neste momento, eles começam a dançar e se entregam ao ritmo compassado dos tambores. Dona Ilza recebe o espírito de Mãe Maria da Costa, uma Preta Velha. Auxiliares a sentam em uma poltrona feita em madeira e colocam um lenço em sua cabeça e uma saia. Todos com a mesma estampa. Ela começa a falar e sua voz já não é a mesma do início, quando fez as orações. Era a Mãe Maria. Em seguida, mais sete componentes do círculo recebem outras entidades. De olhos fechados, as expressões se transformam. O que antes era sereno e sorridente, agora está carrancudo. Os cabelos estão caídos nos rostos, enquanto os braços fazem gestos como se fossem lutar. Eles já não estão mais sozinhos. Depois dos rituais, é feita uma oração de encerramento e todos saem alegres, cumprimentando uns aos outros.

Em contato por e-mail, José Ivo Follmann, doutor em sociologia e professor na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), explica que as religiões de matriz africana são bastante diversificadas. “Aqui no Rio Grande do Sul é muito comum a chamada linha cruzada, em que no mesmo espaço se revezam, sob a liderança do mesmo líder religioso, práticas de Batuque e de Umbanda. É uma rica mistura de elementos das religiões provenientes da África e cultivadas no Brasil, de aspectos do catolicismo popular, espiritismo e, também, de religiões indígenas”, diz. A Umbanda chegou ao Brasil junto com os escravos. De acordo com Follmann, naquela época os negros foram obrigados a esquecer sua cultura, sendo submetidos a vários mecanismos. “Entre estes, destaca-se um, que, na leitura de hoje, seria considerado o mais perverso: forçá-los a abandonar as suas tradições religiosas, sendo-lhes imposto o batismo católico. A sobrevivência dessas religiões deu-se, sobretudo, por meio da habilidade e astúcia dos próprios negros escravizados que souberam disfarçar os seus cultos usando símbolos e imagens do catolicismo”, explica o professor. Sobre a discriminação religiosa, Follmann diz que está associada ao preconceito racial. “Felizmente, hoje, isto está sendo enfrentado mais rigorosamente com ajuda de uma série de iniciativas educacionais e políticas. Mas, além da discriminação racial, também deve ser considerado o próprio fator dos conflitos na disputa da verdade religiosa e convencimento dos seguidores”, comenta. São grandes as reações de estranhamento frente ao dado estatístico que apresenta somente 0,3% da população brasileira (em 2010) como seguidora de religiões de matriz africana. “Grande parte da população foi historicamente educada a se identificar pela religião do branco, mesmo seguindo práticas religiosas de origem africana”, afirma. Em uma pesquisa coordenada por ele, de um total de 1.327 locais de culto e templos cadastrados, 442 são de religiões de matriz africana ou umbandista. Este dado revela, que boa parte daqueles que se dizem, por exemplo, oficialmente católicos ou mesmo de alguma outra religião histórica, são, de fato, também frequentadores de cultos das religiões de matriz africana ou de Umbanda.

ARQUIVO PESSOAL

Raízes africanas, alma brasileira


Acúmulo de lembranças

E Dona Maria guarda objetos e não consegue se desfazer de nada FÁBIO FELÍCIO REPORTAGEM

ra uma casa muito engraçada. Tinha teto e não faltava nada. Mas ninguém podia entrar nela não, porque em boa parte não se via o chão. Assim se resume a triste situação de Dona Maria, moradora de um bairro da zona sul de Santa Cruz do Sul. Chegar até ela não foi nada fácil. Os acumuladores são, segundo a doutora em psicologia, Roselaine Ferreira da Silva, pessoas que guardam objetos de maneira excessiva, ocupando todo ou quase todo o espaço do local onde vivem. A acumulação é uma doença psicológica (transtorno obsessivo compulsivo) que torna a pessoa dependente das coisas de tal maneira que não consegue se livrar de nada. Essa é uma doença pouco conhecida no país e ainda é tratada com olhares maldosos da sociedade. Por isso, quem conhece ou é familiar de pessoas com essa síndrome, costumam se silenciar. Em busca de casos para ilustrar o tema, disparo pedidos em redes sociais e em conversas com amigos e colegas. Tempo depois, chego até uma vizinha de Dona Maria. Joana agora faz parte da equipe, pois é ela quem faz toda mediação e negociação para a produção desta matéria. Para chegar até a casa de Maria, combinei com Joana estar em frente a um mercado do bairro às 10 horas da manhã. Temos uma apresentação rápida e seguimos para a casa de Dona Maria que, por sinal, não é tão perto do mercado. Chegando no local, lá estava ela, com 77 primaveras em seu currículo vitae. Ela me recebeu com a filha Francisca, 37 anos, e o genro Sadi, 41 anos, no pátio da casa. Ali, a conversa e a aproximação começam. Com voz calma e sotaque característico dos primeiros imigrantes dos vales, Maria resume tudo de uma só vez: “Não sei porque ficam me pe-

dindo para me desfazer de tudo o que tenho. Não incomodo ninguém. A casa é minha. Eu é que sei o que eu faço lá dentro”. A rispidez dela assusta, mas Francisca logo rebate: “Não te preocupa, ela é assim. Mas isso é só por fora, porque o coração é uma manteiga”. Essa resposta foi um alivio e veio na hora certa. Pois, assim, o clima ficou tranquilo e pude dar continuidade às perguntas. Francisca conta que a doença da mãe começou depois que ela perdeu o marido. Bento sofreu um acidente de moto e, como não estava com a jugular do capacete fixada corretamente, o perdeu e não resistiu aos ferimentos. “A mãe começou a juntar essas coisas para tentar preencher o vazio que sentia”, diz Francisca que ainda complementa que Dona Maria acabou perdendo um amigo, um amante, um filho e um grande companheiro. Primeiramente, as coisas com que ela se apegou foram os pertences do falecido. Depois, a desculpa era sempre a mesma: “Isso me fez lembrar o Bento”, conta a senhora. O engraçado de tudo isso é que Maria tem consciência de que a casa é um verdadeiro lixão. Ela tem vergonha da residência e já não sai mais para não voltar cheia de novas lembranças. A filha teve que comprar uma casa próxima a da mãe. “Era difícil deixá-la sozinha assim, neste estado”. Os outros dois filhos já não a procuram. A morte de Bento foi um divisor de águas na família. Antes, Dona Maria era caprichosa, diz Francisca. O pátio da casa dela era invejado pelos vizinhos. A casa então... era um brinco só. Tudo no devido lugar. Mas, isso é passado. Dona Maria mora hoje num antro de detritos, um fiel museu de destroços de memórias. Entrar na casa não foi uma tare-

fa fácil. Lá dentro, via-se um cenário inimaginável. Era como se alguém tivesse virado a lixeira inúmeras vezes dentro da casa. O cheiro era forte. Para caminhar pela casa, era preciso fazer contorcionismo e prestar muita atenção onde estava pisando. Foi duro pensar que alguém vivia ali. A casa era um verdadeiro armazém de recordações. Isso mesmo, pois, para Maria, aquilo tudo eram lembranças do falecido. Em um momento, por exemplo, Maria pega um saco velho de pão de forma e se comove dizendo que aquela era a marca que Bento mais gostava. Foi uma cena controversa, pois não sabia se levava em conta a dor da perda que ela sentia ou o desconforto psicológico que a doença traz. Em meio a toda aquela bagunça de coisas, havia, em cima da pia da cozinha – acho que deveria ser a pia, ou pelo menos parecia ser uma pia e uma cozinha – um bonequinho. Era um personagem de um desenho de grande sucesso dos anos 90: Os cavaleiros do Zodíacos – famoso mangá japonês. Eu olhava o desenho. Aliás, eu e meus irmãos brigávamos com minha mãe para olhar, já que passava no mesmo horário da novela das seis. Fiquei curioso para saber o que tinha de lembranças naquele boneco. Então, pergunto para Dona Maria e ela descreve o brinquedo como se fosse um boneco do próprio marido, só que com armadura. “Quando ele era jovem, também tinha uma cabeleira dessas. O sorriso, os olhos, a postura. Parece que tô vendo o véio.” O boneco surgiu de uma maneira inusitada para ela. Quando ia ao mercado, ao passar em frente à creche do bairro, uma criança jogou o bonequinho para rua. Dona Maria até tentou devolver o brinquedo, mas o impulso foi mais forte. O boneco


REPRODUÇÃO/BEATRIZ JORGE

foi para dentro da sacola e ganhou um cantinho especial na casa. Maria pega o brinquedo e não larga mais. Parece que contar essa história a fez se soltar. Aí, entendo o que Francisca tinha dito logo na chegada. Dona Maria se transforma. Animada e toda sorridente, ela decide apresentar todos os cômodos da casa. Aponta para um objeto e conta de que forma conseguiu; aponta para outro e descreve um momento da vida com o falecido. E assim ela ficou, como uma dança coreografada, por mais de 30 minutos. Lembrei do dia em que fui conhecer a coleção de antiguidades na casa de Marcelo Camargo. A casa dele também é cheia de lembranças do passado. Mas, a diferença é que lá, tudo estava em seu devido lugar. Tudo limpo e bem apresentado. Ele também fez um tour pela casa me apresentando as peças e como as adquiriu. São dois mundos distintos: no de Marcelo colecionar antiguidades é um hobby; no mundo de Maria, não há escolha. Colecionar tudo é um martírio, uma maldição, como ela mesmo diz. A casa já teve melhorias. Maria foi objeto de estudo para um aluno de psicologia anos atrás. Assim,

ela já obteve alguns resultados. A sala, por exemplo, já dá para ver o chão. O banheiro, já é utilizável. Francisca e Sadi, aos poucos, conseguem manter Dona Maria mais tempo fora da casa, já que ela não quer saber de médicos ou de alguma ajuda do tipo. A experiência com o discente foi frustrante. Maria pensava sair curada depois das pesquisas. Até teve melhoras. Mas, quando o caminho para uma vida sem sujidades parecia estar visível, ele foi encoberto. Não por imundices, e sim, pelo desleixo. Ela que já sofre com o esquecimento dos outros dois filhos, não quer mais servir de estudos e nem passar pelo crivo de alguém. Hoje ela busca entender sua condição. Busca uma solução prática, sem medicamentos. Ela quer ser livre para aproveitar a terceira idade e ser uma vovó normal. O hobby agora é entranhar linhas, tecer um futuro fazendo cachecóis e suéteres para seus netos. Dessa forma, ela pretende reaproximar-se dos filhos e matar a saudade num abraço gostoso. “Esse é o melhor remédio. Ontem o Deda (um dos filhos) me ligou. Quando eles virem aqui, vai ter festa”, conta Maria aos risos.

A casa está à venda. A bagunça ainda está lá mas já tem previsão para deixar o lar. Maria foi quem deu a ideia. Isso prova que ela mudou. E ela se prepara para este grande dia, este grande desafio. “Ainda é cedo para dizer que ela vai conseguir superar isso e se desfazer de tudo”, diz Francisca que ainda ressalta: “A grande motivação são os netos. Eu e o Sadi estamos em processo de adoção. Ela mesmo disse que não tem como criar um neto nessa imundice”. Ao final de minha visita, vejo uma senhora muito diferente do primeiro contato. E concluo: Não... a primeira impressão não é a que fica. É preciso dar a oportunidade de conhecer alguém além da embalagem. Maria é doente como qualquer um de nós. Pois seu distúrbio é mais comum que se possa imaginar. Alguns decidem acumular histórias, outros, antiguidades. Há também quem acumule dinheiro e bens. A gula também é cumulativa e a vaidade entra na mesma linha. Já outros acumulam likes, amores, dores, sangue, fé. Viu... Maria é como você. E agora, a única lembrança que ela quer acumular e resgatar é o convívio familiar.

Transtorno Obssessivo Compulsivo (TOC) Os sintomas da doença são, inicialmente, pensamentos obsessivos acerca da guarda e manutenção de objetos; após, comportamentos compulsivos de coleta e manutenção das coisas. Geralmente, acompanhado de isolamento social e afetivo, além de preocupação persistente acerca do futuro. A forma de tratamento para transtorno obsessivo compulsivo é medicamentosa, indicado por psiquiatra e psicoterapêutico (psicólogo que atua em tratamento individual ou familiar). A cura para qualquer transtorno psicopatológico é questionável. Comenta-se de estabilização ou remissão de sintomas a partir de psicoterapia e/ou medicação.

À pedido da família, os nomes dos personagens desta reportagem foram alterados.


A bicicleta que virou flauta

T Henrique Elias Sulzbacher é um dos maiores artesãos de flautas Shakuhachi da América Latina BIANCA CARDOSO

REPORTAGEM

er uma bicicleta já foi o sonho de consumo da maioria das crianças e adolescentes. Hoje, nem tanto. Com a invasão tecnológica, tantos videogames, eletrônicos e smartphones, ela foi deixada um pouco de lado, enquanto que, na década de 90, ganhar uma era considerado um presentão. Mas não para Henrique Elias Sulzbacher. O que ele queria mesmo era uma guitarra. Criado em uma família de músicos, Henrique adquiriu paixão pela música desde cedo. Cresceu e amadureceu participando das festas de família em que todos se reuniam para tocar e cantar. Isso sem mencionar a mãe, que tocava violão e acordeom. “Eu lembro até hoje que, às vezes, ela ficava meio triste, ia para o quarto tocar e eu ia atrás, me deitava na cama e ficava ouvindo-a cantar”. Quando tinha 5 anos, Henrique decidiu que queria tocar violino. Mas, naquela época, ter o instrumento não era tão fácil, nem barato. “Aqui em Santa Cruz do Sul havia a Musical Vila Lobos, uma loja de instrumentos, e a minha mãe sempre ia lá comigo para ver os violinos. Ela me dizia que o meu estava chegando e ficou me iludindo por um tempo”. Aos 11 anos, aconteceu o episódio da bicicleta: o pai contou que lhe daria de Natal,

mas Henrique contestou: “Não pai, então me dá uma guitarra”. Henrique ganhou o que queria, mas o presente nem de longe parecia com o sonhado, para ele “mais parecia um pinheiro com cordas”. Mas, foi a partir deste momento que o garoto começou a ter um envolvimento mais íntimo com a música. Fez aulas de violão e guitarra por três anos com o musicista gaúcho Killy Freitas. Porém, a flauta sempre chamou a sua atenção. “As minhas irmãs tocavam flauta doce e eu lembro que tinha uma flauta de bambu no nosso baú de brinquedos. Ela tinha um som meio oriental ou indígena, mas eu gostava”, conta. Quando decidiu que queria ser músico, a família não demonstrou nenhum descontentamento. Os pais sempre aceitaram e respeitaram sua escolha. “Eu comecei a fazer aula com 11 anos e com 14 eu já era professor”, explica. Aos 15 anos, Henrique começou a estudar jazz em Porto Alegre. Foi nesse período que desenvolveu maior aprofundamento em termos de música ocidental e, também, quando teve um maior contato com a flauta de bambu: um amigo lhe deu uma flauta transversal que ele mesmo havia feito. Isso chamou muito a atenção de Henrique, que quis saber mais sobre a fabricação

desse tipo de flauta: “Ele me disse que bastava fazer um furo, onde se iria soprar, e os próximos furos deviam ser feitos com a distância de um dedo entre um e outro. E estava pronta”, diz Henrique, entre risadas. A flauta não possuía escalas ou afinação, era algo totalmente bruto, sem qualquer aperfeiçoamento. Com 18 anos, decidiu que queria pesquisar sobre a fabricação de flautas de bambu profissionalmente. O início dessa pesquisa aconteceu na internet. Entretanto, naquela época, era difícil encontrar algo neste meio e tudo o que ele descobriu foi alguns periódicos muito superficiais. Quando finalmente encontrou um material interessante. Era feito por um australiano, Marek Gold. Um ótimo livro, mas difícil de adquirir. Não por ser caro, mas sim por ser importado. Sem poder comprar, Henrique enviou um e-mail a Marek dando os parabéns e elogiando a obra. A troca de e-mails aconteceu próximo ao Natal, e comovido com a data e com os comentários de Henrique, o autor decidiu lhe enviar o livro. Até hoje, o artesão considera Marek como seu primeiro mestre nessa área. Afinal, foi graças a esse presente que ele começou a aperfeiçoar seus conhecimentos. No livro, Marek ensina a fazer vários tipos de flautas


balho e lhe deu dicas de como melhorar ainda mais. Receber elogios de um especialista tão importante neste meio abriu um leque de possibilidades para o artesão, o que só valorizou ainda mais os instrumentos que ele fabrica. Uma flauta que era vendida por 50 reais, hoje ele vende de 700 a 2 mil reais. Além disso, o musicista dá aulas particulares de violão e violino. A guitarra ele deixou um pouco de lado já que, hoje, “procura um som mais puro, sem chiado de alto-falantes”. Henrique achou interessante contar um episódio que aconteceu em sua vida por consequência não apenas da flauta, mas da música em geral. Ele cuidou da mãe por, aproximadamente, dois anos, pois ela teve câncer. Os dois sempre tocavam e cantavam juntos. Uma noite ele não pôde estar junto à mãe, já que o hospital não permitia acompanhantes homens, mesmo sendo filhos dos pacientes. Então, ele chegou em casa e decidiu que iria meditar, tocar a melodia da música dos dois e enviar pensamentos positivos à mãe. No dia seguinte veio a surpresa: “Eu fui ao hospital e a minha mãe perguntou se eu tinha ido lá na noite anterior porque ela tinha ouvido som de flauta, da nossa música... Tem gente que não

acredita nesse tipo de coisa mas eu acredito”, conta emocionado. O músico é um exemplo interessante de como o ser humano consegue se superar quando tem determinação e não desiste de seus objetivos. Ele deixou uma mensagem para quem quer aprender um instrumento: “Eu acredito que seja qual for o instrumento que tu escolheres, tens de criar intimidade com ele, deixá-lo sempre à mão para tocar, isso é importantíssimo”, afirma. Mesmo sem fazer cursos ou aulas específicas, apenas com a leitura e dedicação à música, ele se especializou na fabricação de um instrumento tão exótico, a flauta Shakuhachi. Hoje, o musicista colhe os frutos do esforço que plantou no passado: Ele consegue viver e se manter financeiramente com a música.

Elias Sulzbacher Artesão de f lauta Shakuhachi, f lauta transversal, f lauta nativa americana e f lauta doce. Aulas particulares de violão e violino. Telefone: (51) 9585-3969 Email: musgodapedra@gmail.com Site:http://musgodapedra-instrumentos. blogspot.com http://musgodapedra.wix.com/musgodapedra

BIANCA CARDOSO

e a que chamou mais a atenção de Henrique foi a Shakuhachi, que é a flauta japonesa, em que o fabricante não corta a raiz do bambu. Com esse material, ele conseguiu maiores detalhes em relação às medidas que a flauta deveria ter e abandonou a ideia de que o correto era o espaçamento de um dedo entre os furos. O flautista conta que sempre quis fazer disso um meio de vida. Então, inicialmente vendia as flautas para os amigos e pela internet, naquela época por 50 reais. Mesmo assim, as pessoas já achavam muito caro porque, segundo ele, o sujeito pensa: “Ah é só um pedaço de bambu que você fura”. Mas, ninguém tem consciência de que ele, realmente, estava se especializando no assunto. No final de 2006, Henrique conseguiu importar sete livros, agora mais complexos, que falavam sobre a fabricação do instrumento e também sobre a parte musical, técnica e leitura de partituras japonesas, que são bem diferentes das convencionais. O reconhecimento de seu trabalho aconteceu quando Henrique participou do primeiro workshop nesta área de flautas Shakuhachi, em São Paulo. Nesse evento, o renomado instrumentista Marco Lienhard elogiou seu tra-


O renascimento do parto

S

egunda-feira, dia 31 de março de 2014. Adelir Carmen Lemos de Goés, grávida há 42 semanas, estava prestes a dar à luz a sua terceira filha. Convicta de que teria um parto natural, a mãe esbarrou Nascimento humanizado numa questão delicada: os médicos da instituição onde havia sido interprocura resgatar princípios nada após as contrações alegaram sobre o amor e a natureza que seria necessário fazer uma cesárea. Indignados, Adelir e o marido, Lovari, tentaram impedir ISADORA TRILHA Emerson que a cirurgia fosse feita. Porém, a REPORTAGEM justiça da cidade de Torres determinou a realização do procedimento. O argumento foi de que a criança estaria de pé e que, desta forma, um parto normal iria agredir a saúde tanto da mãe quanto do bebê. Mesmo assim, Adelir e Emerson insistiram e alegaram que gostariam de ter sua filha de forma natural, sem intervenções médicas. Quando as contrações da mãe já contabilizavam intervalos de apenas cinco minutos entre uma dor e outra, a polícia entra na residência do casal acompanhada de um oficial de justiça, uma viatura e uma ambulância. O sonho da mulher se esvaía através de imposições judiciais. A cirurgia obrigada, então, foi feita. Três dias depois, Adelir se livrou das aparelhagens hospitalares e retornou para casa. Sua dignidade, porém, permaneceu entranhada nas paredes daquele prédio. A 340 quilômetros de Torres, uma santa-cruzense desfruta do mesmo desejo de Adelir. Juliana Robaina Leite Ziebell é mãe de três crianças: Eduardo, Henrique e Luisa nasceram de parto normal. Entretanto, o sonho de Juliana era poder ter os filhos de uma forma em que suas decisões sobre o nascimento fossem priorizadas, antes mesmo de qualquer determinação médica. O parto humanizado, conceito cada vez mais difundido – às vezes de maneira distorcida –, tem se tornado um desa-

fio para as mulheres que desejam realizá-lo como forma de resgatar a dignidade materna. Com Juliana, não foi diferente. Leituras, pesquisas, análises e a busca do conhecimento acerca do tema fizeram com que a nutricionista se apaixonasse pela ideia de humanizar a vinda ao mundo de seus pequenos. A tradução do amor e do carinho expostos durante a concepção estaria ali, no momento de dar à luz. Porém, o impedimento veio pela inexistência de uma equipe preparada para realizar o procedimento em Santa Cruz do Sul, cidade onde reside. Apesar das dificuldades de realizar o sonho que projetou para si e sua família, Juliana não desistiu de se informar mais sobre a humanização do parto. Durante o nascimento dos três filhos – um em 2005, outro em 2009 e o último em 2013 – ela mesma coordenou sua respiração de acordo com as contrações e as dores que sentia. “Eu disse: não vou ficar deitada, vou caminhar”, lembra. Agachava, voltava, agachava, voltava. Neste vai e vem de comunicação corporal entre mãe e bebê, Juliana pôde resgatar uma brecha do que seria o momento que havia idealizado com tanto apreço. O ideal, todavia, seria poder contar com um ambiente aconchegante e acolhedor, no qual estaria uma equipe preparada para receber seus filhos com o mínimo de intervenções médicas. Assim se caracteriza o parto humanizado. A mãe protagoniza o momento e suas decisões se tornam soberanas em qualquer circunstância. Sem imposições, sem mandados judiciais e muito menos violência. Tudo deve estar de acordo com a sintonia maternal criada durante os noves meses de gestação. Ao contrário do que muitos pensam, a humanização do nascimento não se dá através de situações arriscadas que prejudiquem a saúde

tanto da mãe quanto do bebê. Pelo contrário: ele é feito apenas quando as condições físicas de ambos permitem o parto natural com acompanhamento e tranquilidade. Através dele, os direitos reprodutivos sexuais das mulheres são preservados. “As coisas que acontecem no momento do parto têm consequências durante toda a vida da criança. Elas podem ser físicas, psicológicas, sociais e até espirituais”, defende o obstetra Ricardo Jones, que assiste partos humanizados há mais de 25 anos. Durante a realização do nascimento, em primeiro lugar, vem a restituição do protagonismo da mulher. “A


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mãe é a ‘dona’ do parto e as coisas devem ser feitas em torno do bem estar dela e do bebê”, explica Jones. Depois, o entendimento de que o nascimento é um evento interdisciplinar e integrativo contribui para o desenvolvimento do conceito. “Ele tem a ver com várias instâncias do pensamento que não só a medicina, como a antropologia, a sociologia e a psicologia”, explica o obstetra. Por fim, o detalhe crucial: todos os procedimentos ocorridos durante o parto devem ser baseados em evidências científicas. “Não podemos nos basear em opiniões e achismos sobre o tema”, conclui. Em contrapartida, rastros de soluções começam a se dissipar em território brasileiro. Em maio deste ano, foi protocolado o Projeto de Lei nº 7.633/2014, que garante à gestante o direito ao parto humanizado, de acordo com sua vontade. De autoria do deputado Jean Wyllys, do PSOL, a iniciativa agora aguar-

da pelo despacho do presidente da Câmara dos Deputados. Além de assegurar a vontade da mulher, o dispositivo também define o que é a violência obstétrica, que inclui, entre outros detalhes, a prática da cesárea sem necessidade. Ainda assim, a luta pela priorização das decisões da mãe permanece extensa e dura. Mulheres como Juliana e Adelir sonham com o dia em que poderão encontrar equipes preparadas para a constituição do nascimento humanizado, assim como não terão os embates do preconceito médico recorrente em grande parte das instituições. Ricardo Jones reforça que o início da vida de uma criança deve ser permeado de preceitos naturais baseados em dados científicos, e não nos famosos “achismos” colocados de maneira errônea. A oxitocina, conhecida popularmente como hormônio do amor, é induzido, muitas vezes, de maneira artificial durante o parto na-

tural. A justificativa recai sobre a necessidade de acelerar o processo de dilatação vaginal. “Até injetarem a oxitocina sintética, eu estava bem. Ela torna tudo mais difícil, mais dolorido”, relata, triste, a mãe Juliana. Ela não desiste do sonho de um dia vivenciar a experiência de um parto humanizado. Fã de crianças e do amor compartilhado entre pais e filhos, Juliana não descarta a possibilidade de ter mais um bebê por perto. O que ela mais espera, porém, é que desta vez haja acompanhamento responsável e preparado para que seu maior desejo como mãe seja finalmente concretizado. A angústia de ter que se sujeitar a procedimentos como a anestesia e a episiotomia – corte feito na área muscular entre a vagina e o ânus com o intuito de “facilitar” a saída da criança – faz com que Juliana anseie pela realização pessoal de ter os filhos com mais respeito e dignidade.


LUIZA ADORNA

Como será o amanhã?

E Agricultores temem o futuro devido ao desinteresse do jovem pelo campo LUIZA ADORNA REPORTAGEM

ra fim de tarde e a família Puntel se aconchegava em suas casas depois de mais um dia de trabalho. Nenhum deles precisou atravessar a cidade e lembrar-se do dia intenso de trabalho, do movimento dos carros e dos passos das pessoas pelas calçadas. Não possuem chefes e nem conhecem competição entre colegas. Além disso, não dependem de horários. Parece tão mais simples. Porém, a vida de agricultores da família Puntel e de todas as outras desse país não é fácil. Agricultores não trabalham das 8h às 18h, e sim do horário em que já é claro o suficiente até quando a escuridão da noite impede suas atividades. Rotinas também não existem. Todos os dias há muitas tarefas, mas nem todas elas são iguais. Se faz o necessário, diante das condições do tempo, época, clima e colaborações das amigas máquinas. O trabalho não é o mesmo, muda a cada ano. Afinal, são muitas as novidades na área. E, as pessoas também mudam. Se vão. Deixam conhecimento, cultura e heranças em forma de terras, materiais e lembranças. Em meio às mudanças de gerações, estão as mudanças mundiais. A influência da internet, a facilidade de entrar em um curso superior, as inúmeras possibilidades de abando-

nar o campo e procurar algo diferente. A agricultura pode se tornar um asilo de idosos? Na família Puntel, o guardião de todo legado é Domingos, 73 anos, cabelos brancos e sorriso fácil. Desde que nasceu, se vê em meio às lavouras. Não pôde estudar, afinal, educação há 60 anos era algo possível apenas dentro de casa. Hoje, as coisas mudaram. Mas, enquanto se quer boas condições financeiras aos filhos, deixando os mesmos viverem na cidade, também existe a angústia de ver alguém amado partir. Filho de Domingos, Hamilton Puntel, 52 anos, trabalha desde criança, aos 7 anos de idade. Influenciado pelo pai, ele confessa não se enxergar em outra profissão. Através da atividade agrícola, Hamilton criou seus filhos. Dentre eles, está Sandro Júnior, adolescente de 16 anos. Será que Júnior, como é chamado, continuará com a prática no campo, cultivada há décadas por sua família? Essa não é apenas uma simples pergunta. E, sim, uma dúvida do pai e do avô do adolescente. A partir dos 13 anos, Júnior começou a ajudar a família nas plantações de arroz e soja. Além dessas culturas, a família Puntel planta fumo. O garoto prefere não colaborar nessas lavouras por não ser

recomendado e não gostar. Os tempos mudaram. Antigamente, não se tinha escolha. Enquanto respondia às perguntas, a luz do computador do garoto piscava, lhe chamando para a internet. Júnior, que concilia lavoura e escola, admite que o meio online é a principal distração dos jovens para se afastarem do campo. Entre ir trabalhar e ficar na internet, ele prefere permanecer conectado. Com a cuia de chimarrão, Hamilton gesticulava com suas mãos cansadas e calejadas pelo trabalho e firmes ao segurar o símbolo gaúcho. “A gurizada está saindo. Falamos com os outros agricultores nas firmas e, pelo que dá para perceber, não tem uma região em que o jovem está ficando”, diz Hamilton, preocupado com o futuro da agricultura. Ainda salienta a desvalorização do preço das culturas, como fato para o jovem não permanecer no campo. Outro ponto é o trabalho braçal. “Na lavoura tem que forcejar, na internet não”, afirma. Já Domingos, enquanto brincava com sua pequena cadela Fifi, escutava seu filho com atenção. Sobre a ida do jovem para cidade, o senhor interrompeu a conversa para afirmar que seu neto continuará no campo. “Ele tem todo o apoio e


LUIZA ADORNA

gosta. Sei que vai continuar”, fala Domingos, esperançoso. Diferente dele, Hamilton quer que o filho permaneça com eles no campo, mas não sabe se isso, realmente, pode acontecer. “Do jeito que está, quando vê, ele encontra um trabalho melhor. O pai sempre quer que o filho fique. Mas, não sei”, diz. Nunca foi fácil dizer adeus. Seja para uma pessoa, uma fase ou um estilo de viver. Ao mesmo tempo em que as famílias produtoras entendem a desvalorização dos preços como motivo para verem seus filhos arrumarem as malas e irem embora, é complicado permanecer forte na hora da despedida. Logo ele, o agricultor, sempre tão firme, cheio de garra e coragem. Mas, não adianta. Todo pai sente a perda de um filho, independente das circunstâncias. Domingos não fica mais, muito tempo, dentro das lavouras. Porém, ainda é um apaixonado pelo serviço no campo. O senhor, com brilho nos olhos, tem uma fala positiva. Ele acredita, como poucos, na melhoria da situação. Espera auxílios do governo, subsídios e outras formas de apoio. Tudo porque sua trajetória merece ter continuidade. Ele aguarda a migração do urbano para o rural. Afinal, ele lembra de quando, mesmo com as dificuldades, as lavouras eram cuidadas por todos os membros da família. De uma época quando, ainda, existia sucessão. A vida na cidade é mais fácil. O salário é estável e vem todo o mês. Se chover, você ainda irá conseguir trabalhar. Uma tempestade ou uma seca não vai interferir no valor

do seu pagamento. Parece tentador partir, mas é necessário ter quem fique. As pessoas precisam insistir nessa atividade. É através dela que é possível ter diferentes alimentos no prato nas refeições diárias. Existem dois pontos distintos a serem considerados: enquanto Júnior conhece a situação atual, também entende a importância de continuar com o negócio da família. Para o adolescente, que sonha em ser piloto agrícola, apenas os mais velhos vão estar na agricultura, com o passar dos anos. Mas, como ninguém dura para sempre, as pessoas vão ter que voltar aos poucos. Moradores de Cerrito, em Novo Cabrais, Domingos, Hamilton e Junior representam três gerações da família Puntel. Cada fase com suas características próprias e questões financeiras diferenciadas. Embora Domingos não tenha tantas condições de aproveitar a tecnologia presente nos maquinários nos dias atuais, o lado financeiro era mais regular e menos injusto no passado. As coisas mudam rápido demais. Nesse ramo, nada é certo, tudo pode variar. E pelo que se percebe, a agricultura pode sofrer com as futuras gerações. Não que os adolescentes não queiram ficar no campo, mas sim que nada parece motivar isso.

Sul, disse: “A agricultura vai se tornar um asilo de idosos”. Questionado sobre a afirmação, ele explica ter sido em uma conversa, onde foi identificado que não estavam preparando a sucessão, e ainda pior: estavam em conflito de geração. Segundo ele, é necessário haver uma preparação de sucessão, de participação das esposas, filhos e filhas. Seria preciso haver uma troca de experiências entre gerações (knowhow), relacionamento de empreendedorismo, profissionalizar a atividade e maximizar os resultados. Sua afirmação sobre o futuro da agricultura foi apenas uma previsão. “Era uma palestra ‘cutucacional’ e não motivacional”, se diverte. Para o diretor, as maiores contribuições para o êxodo rural são a falta de preparação, educação, capacitação e entendimento do jovem. “Para se ter uma ideia, hoje, o jovem prefere não ser bilíngue ou poliglota, para não ter um sotaque alemão ou italiano e ser chamado de colono”, diz. Além disso, há questões jurídicas, como um pai responder processo por seu filho, de quase 17 anos, dirigir um trator, dentro de sua propriedade, em um terreno plano e favorável. Bacharel em Ciências Contábeis e pós-graduado em Planejamento de Economia Rural, Adriano Madrid salienta o maior desafio do homem do campo: quebrar o paradigma de Asilo de idosos que colono é um coitado, assumir Adriano Madrid é diretor da Se- uma postura de ser dono do seu descretaria Municipal de Indústria e Co- tino, de ser um empresário rural do mércio de Cachoeira do Sul (SMIC) agronegócio”. Para ele, pensar dessa e, certa vez, em uma palestra para forma é importante para a econoagricultores na cidade de Paraíso do mia, cadeia alimentar e produtiva.


E Forma de preservar o lazer dos imigrantes alemães MARIA REGINA EINCHENBERG REPORTAGEM

m 1849 chegaram às terras onde hoje é a cidade de Santa Cruz do Sul os primeiros imigrantes alemães. Na época, eles não previam que o município seria um polo de colonização alemã e que seus costumes e sua cultura seriam carregados ao longo de gerações. O Centro Cultural 25 de Julho é um dos principais espaços para a preservação das tradições germânicas na cidade. Nele, famílias podem se associar para participar dos grupos de dança, aprender a língua alemã, apreciar a gastronomia típica e se divertir com os jogos germânicos. Uma das atividades que o Centro Cultural mantém em sua agenda é a última sexta-feira do mês, dedicada aos diferentes jogos germânicos e à integração entre participantes. Os jogos, que divertiram os primeiros descendentes alemães há cerca de 100 anos, ainda cumprem um papel social na vida de algumas famílias. As principais modalidades praticadas pelos associados são o Corona, o Bolão de bola presa, o Bolão de mesa e o Stocksport. As últimas sextas-feiras de cada mês sempre reúnem um número considerável de associados que brincam, conversam, degustam a boa gastronomia e integram gerações. Para o presidente do Centro Cultural 25 de Julho, Luiz Carlos Kaufmann, a oportunidade de estar próximo às tradições valoriza o presente: “Tudo o que existe hoje se aprendeu com as coisas que foram feitas no passado. Se existe o moderno, é porque, um dia, o que é passado foi moderno. Então, as pessoas voltam no tempo e tem um velho ditado que diz: recordar é viver”.

O vínculo criado por diferentes gerações é o que alimenta o Centro Cultural. Deisi Gressler Batista é um exemplo de quem faz questão de comparecer nos encontros. A família da professora sempre fez parte dos grupos de dança Polka. Hoje, ela, seu marido e sua filha de apenas 3 anos, Amanda, fazem questão de participar. “Estar aqui, vivenciar os jogos, trazer ela no Polkinha para dançar, vir na Oktoberfest. Eu acho muito bonito e por isso eu quis trazer ela também”, explica a mãe. No dia 30 de maio, última sexta daquele mês, Amanda já relembrava os pais de manhã cedo do compromisso que teriam à noite. A menina aproveitou para jogar com a mãe o Bolão de bola presa infantil, uma adaptação em dimensões menores do que o jogo para adultos. Um dos destaques do Centro Cultural é o Stocksport, praticado por cerca de 30 pessoas. O professor de Educação Física, Eduardo Henrique Schuster, joga o Stocksport desde os 15 anos. Em 2014, aos 24 anos, ele e outros três associados obtiveram o maior resultado do 25 de Julho: o Vice-Campeonato Mundial de Eisstocksport em Innsbruck, na Áustria. Apesar das diferenças entre a modalidade em Santa Cruz do Sul e na Europa (onde o esporte é praticado sobre uma pista de gelo), a equipe superou suas expectativas e a dos próprios europeus, que ficaram impressionados com o desempenho dos brasileiros. Para Eduardo, o Stocksport já abriu muitas portas e trouxe muitas experiências: “Eu já tentei ir morar na Europa em função dele, já viajei tantas vezes. Se não fosse o Stock, eu não teria ido. Pessoas

MARIA REGINA EICHENBERG

Jogos germânicos conquistam gerações

e lugares que eu conheci; eu só tenho hoje a agradecer a isso. Sou um apaixonado pelo esporte”. Para os interessados em aprender a praticar os jogos germânicos, é mais fácil do que parece. Apesar dos nomes, que à primeira vista podem impressionar, as modalidades são acessíveis para pessoas de todas as idades. Mesmo assim, em alguns casos, ainda há adaptações para as crianças. Confira um pouco mais sobre os principais jogos praticados no Centro Cultural 25 de Julho.


Bolão de bola presa

O Bolão de bola presa, ou em alemão Pendelkegel, tem como objetivo derrubar o maior número de pinos posicionados em um tablado. Cada jogador pode arremessar três vezes uma bola de madeira suspensa em direção aos nove pinos com 38 centímetros de altura. A corrente de, aproximadamente, cinco metros é presa no teto por um gancho e na bola, que possui oito quilos, por outro. Quatro tábuas são utilizadas para delimitar a área de jogo em torno do tablado. O jogador fica de fora da área e arremessa a bola em trajetória pendular para que derrube o maior número de pinos. Vence o jogo quem derrubar o maior número de pinos, considerando o somatório das jogadas. Em caso de empate, o vencedor é quem pontuou mais nas últimas jogadas.

Bolão de mesa

Semelhante ao Bolão de bola presa, o Bolão de mesa, ou Tischkegel, também tem como objetivo derrubar com uma bola o maior número de pinos possíveis. Nesse caso, os pinos estão dispostos em uma mesa específica para o jogo. A bola é lançada na superfície da mesa através de um taco que a empurra para um túnel por onde ela rola até chegar a região central. No final do túnel, a bola desemboca em direção aos nove pinos de madeira.

Corona

O Corona tem uma mesa específica de madeira que possui demarcações com pinos fixos em sua superfície. Semelhante ao jogo eletrônico Pinball, o objetivo é lançar uma bola de madeira e atingir a maior pontuação possível dentro dos espaços delimitados. O jogador rola a bola em uma das laterais, que possui uma área de lançamento. Ao chegar na extremidade superior da mesa, que, com uma inclinação, permite que a bola retorne em direção à sua base, ela pode encaixar em uma das pontuações ou cair fora das áreas definidas e não marcar nenhum ponto. Cada jogador pode fazer três lançamentos e a modalidade pode ser praticada em equipes ou individualmente. A pontuação varia entre 15 e 125 pontos, de acordo com a dificuldade da área em que a bola parar. O Stocksport é uma modalidade que pode ser praticada tanto de maneira coletiva como individualmente. O jogo em equipe conta com seis rodadas, três para cada uma das duas equipes formadas por quatro jogadores, sendo um reserva. Cada praticante possui uma peça chamada stock (composta por uma base, um corpo e uma haste), que é lançada em uma pista de concreto de 30 metros de comprimento por três metros de largura. O objetivo é lançar o stock o mais próximo do alvo, um disco de borracha chamado de “daube”. Quanto mais perto do alvo, maior a pontuação. Quando o esporte é praticado individualmente, cada atleta joga em uma pista e arremessa 48 vezes o stock. Os arremessos são divididos em duas provas em que o objetivo é marcar o maior número de pontos em jogadas determinadas previamente. Os arremessos devem acertar locais específicos. O jogo individual é muito técnico, enquanto o coletivo é mais dinâmico.

MARIA REGINA EICHENBERG

Stocksport


Cachaça com pólvora

Há 20 anos, uma página ficou marcada na história do futebol gaúcho de forma negativa RUI BORGMANN REPORTAGEM

futebol no gramado do estádio Edmundo Feix, com o Guarani procurando o gol. No primeiro jogo, na Zona Sul do Estado, mais precisamente no estádio Bento Freitas, o Índio de Venâncio havia perdido por 1 a 0. Precisava pelo menos devolver o escore. Os xavantes (alcunha do Brasil) se defendiam a todo custo e o 0 a 0 levou a equipe visitante a decidir o título contra o Brasil de Farroupilha. O apito final do árbitro Carlos Eugênio Simon, atualmente comentarista do canal Fox Sports, foi o estopim para a torcida do Brasil iniciar a desforra. Centenas deles saltaram de uma altura de pelo menos quatro metros em direção ao campo. Para o presidente do clube em 1993, Luiz Paulo Artus, a briga iniciou quando o roupeiro do Guarani tentava, sem sucesso, guardar as bolas do jogo. Eufóricos, os visitantes partiram para cima do funcionário da casa para ficar com as bolas do clube. “O torcedor do Guarani, já desiludido com a eliminação e irritado com a provocação do adversário, viu aquela cena e também invadiu o gramado”, conta o ex-presidente. Em maior número, o torcedor do Índio avançou sobre os Xavantes numa batalha nunca vista em Venâncio Aires. Não havia contingente policial para segurar a confusão, que se alastrou até a Rua General Osório, nas imediações do Posto Atlan tic, uma quadra do estádio. Atos de vandalismo por parte das duas torcidas, carros e ônibus ape-

drejados, casas invadidas, lojas saqueadas, vários feridos e torcedores de Pelotas ameaçando atear fogo no posto foram os maiores incidentes. Um efetivo de policiais militares de municípios vizinhos foi convocado e uma barreira dividiu as duas torcidas; a do Guarani, instalada no estacionamento do antigo Super Marquetto, e a do Brasil sitiado entre as bombas de combustível. As horas se arrastavam e quase à meia-noite de domingo os torcedores do Guarani se dissiparam, para alívio geral dos visitantes, que puderam se deslocar a Pelotas escoltados até as principais saídas da cidade. Alguns deles se perderam e retornaram somente no dia seguinte. “Ficamos no trevo da RSC-287 por mais de cinco horas. Sem água e sem comida. Só pelas 23h a delegação do Brasil nos deixou sacos de gelo e água quando eles deixaram a cidade”, conta Luciano Dias, 42 anos, na época integrante da torcida Máfia Xavante, do Brasil de Pelotas. Após esta verdadeira batalha campal, o violento e problemático torcedor da zona Sul passou a respeitar todas as outras torcidas do Estado. Duas décadas depois, os apaixonados de Guarani e Brasil voltaram a se encontrar de forma esporádica e tudo voltou à normalidade. Atualmente, os xavantes estão mais revigorados com o acesso à Série A e os índios esperançosos em retornar à elite do futebol gaúcho. Salve os rubro-negros, salve o futebol do interior. REPRODUÇÃO GAZETA DO SUL

P

rovocações, grade de proteção da arquibancada arrebentada, pedaços de paus e concreto arremessados, carros apedrejados, pessoas feridas. Este foi o saldo do dia 28 de novembro de 1993, quando 4 mil pessoas se enfrentaram num campo de futebol e pelas ruas de Venâncio Aires. O principal estádio de futebol da Capital do Chimarrão recebeu a segunda partida da fase semifinal da Copa Governador, competição que a Federação Gaúcha de Futebol organizava no segundo semestre apenas com os clubes do interior. A cidade de Venâncio Aires parou para assistir a Guarani x Brasil de Pelotas. Cada torcedor de Venâncio ou de Pelotas tem uma história para contar do dia que não foi totalmente fatídico porque não houve mortes, mas ficou marcado por uma batalha que iniciou no campo de jogo e se estendeu às principais ruas do Centro da cidade, num tenso mar vermelho e preto. Foi uma tragédia anunciada. Já pela manhã de domingo, pelotenses chegavam em diversos ônibus e carros particulares. Obras inacabadas foram invadidas e por ali se iniciava a bebedeira e um churrasquinho improvisado. Contava-se que os torcedores do Brasil, mais inflamados, misturavam cachaça com pólvora, deixando-os mais explosivos do que nunca. Do primeiro ao último minuto de partida, pulavam sem parar na arquibancada geral. Era um verdadeiro espetáculo. Durante os 90 minutos houve bom


Testemunhos Atendi mais de 30 pessoas no plantão do hospital. Nunca fiz tantas suturas num único dia. A maioria era torcedor de Pelotas. Airton Artus, 56 anos, médico do clube em 1993 e atual prefeito de Venâncio Aires.

O trauma marcou para sempre a vida do mecânico João Luís Moraes. Aos 27 anos, assistia à partida do setor social do estádio Edmundo Feix. Ao término do duelo, se dirigiu à Rua Jacob Becker. “Quando deixei o estádio e tentei atravessar a rua, um ônibus com torcedores do Brasil veio em minha direção e passou sobre meu corpo”, relata. Moraes sofreu uma grave lesão na região do abdômen, fraturando a bacia. Ficou impossibilitado de trabalhar por quatro anos. Desgostoso com o futebol, nunca mais retornou ao campo para ver o Guarani ou qualquer outro time jogar. “Assisto apenas pela televisão”. Corremos até o trevo de Venâncio Aires e lá ficamos por mais de 5 horas, sem água e sem comida. Lembro como se fosse hoje. Saímos num domingo e voltamos somente segunda-feira. Luciano Dias, 42 anos, na época integrante da torcida Máfia Xavante, do Brasil de Pelotas.

OS NTES A V U J COAD

Domingo, 28 de novembro de 1993, 17h, estádio Edmundo Feix, em Venâncio Aires. Arbitragem de Carlos Eugênio Simon, auxiliado por Jorge Veloso e Nadir Ascóli. A renda foi de CR$ 975 mil para 1.550 pagantes. O

GUARANI

De volta ao trabalho, João teve seu destino traçado por um novo acidente, que o deixaria impossibilitado de exercer sua profissão. Em 2001, uma colisão de moto ceifou a perna esquerda do mecânico. Com dois filhos do primeiro casamento e mais dois do atual, o agora aposentado e morador do bairro Brands, em Venâncio Aires, se reúne mensalmente com um grupo de deficientes e tem um carro adaptado para dirigir. “Estava em casa, triste e sem perspectiva. Entrei para esse grupo de orações e hoje posso dizer que me encontrei novamente com a felicidade, sempre com o apoio da minha família”, ressalta Moraes. No campo tudo ocorreu normalmente. Não houve uma discussão sequer. Mas, no final, sofri o maior susto da minha vida. Imagina mais de quatro mil pessoas no estádio e uma grande parte se envolvendo no tumulto. Ficou incontrolável. Oneide Dallafavera, 47 anos, goleiro do time de Venâncio Aires em 1993 a 1995.

público estimado foi de três mil pessoas. Cartões amarelos para Alvinho e Almir (Guarani), Cássio, Paulo Roberto, Silva, Aílton e Leandro Guerreiro (Brasil). Cartões vermelhos para Édson Luís e Marquinhos.

0x0

Oneide Jorge Luís Zé Ricardo (Carlos) Alamir Gilmar Nass Alvinho Almir (Édson Luís) Carlinhos Sérgio Oliveira Marabá Gérson Técnico: Paulo Sérgio Poletto

BRASIL

Cássio Paulo Roberto Silva Aládio Marquinhos Aílton Uana Cléber Leandro Guerreiro, Badico (Jabá) Sássia Técnico: Francisco Édson Rebouças Pontes (Ceará)

RUI BORGMANN

“Nunca mais retornei”

Em toda a minha carreira de policial, não me lembro de nenhuma outra situação como aquela. Foi o maior tumulto de rua, talvez em nível de Estado. Dentro de campo éramos apenas três soldados. Não havia o que fazer. Pedro Juarez de Melo, 53 anos, sargento da Brigada Militar em Venâncio Aires.


Hiroshima, 06 de agosto de 1945. A cidade japonesa, cuja população era composta por 80% de civis, foi vítima de um dos atentados mais covardes de que se tem notícia: o lançamento da bomba atômica. Aparentemente, aquela manhã ensolarada de verão não reservaria nenhuma surpresa, até que certos aviões sobrevoaram o espaço aéreo da cidade. Os moradores ignoraram esse fato, pois concluíram que se tratava de aviões meteorológicos. Por este ‘’desdém’’, o preço pago por eles se tornou caro demais. Segundo o documentário Hiroshima: O Dia Seguinte¹, a cidade foi devastada em dez segundos. Construções feitas de papel e madeira não resistiram ao impacto fulminante proporcionado pela altura de lançamento da bomba, 580 metros. Tal explosão provocou uma radiação superior a da superfície solar. Um “cogumelo atômico’’ ergueu-se a 16 km de altura. Este fato vitimou milhares de pessoas, inutilizou dezenas de hospitais, instalou o caos no local. Uma das justificativas para o ataque americano à Hiroshima provém de 1941. Com o intuito de conquistar o Pacífico, naquele ano, os japoneses surpreenderam os Estados Unidos ao atacarem a base naval de Pearl Harbor. Nessa ocasião, mais de 2000 militares e civis morreram. Isso resultou na entrada estadunidense na Segunda Guerra Mundial, pois até então o país se mantinha neutro. Durante quatro anos, os Estados Unidos projetaram uma bomba atômica, a fim de lançá-la no Japão. A partir daí, o resto da história já se conhece. Com base nessas análises, podemos levantar uma série de questões. Primeiro, se o Japão não tivesse atacado a base norte-americana em 1941, a bomba atômica teria sido produzida? E, durante as fases de projeções, execuções e lançamento da Little Boy, em nenhum momento sequer, os americanos pensaram nas consequências? Não há como responder de forma concreta a primeira questão, mas a verdade é que, por mais que pudessem se sentir ameaçados com a proximidade de Pearl Harbor, os japoneses cometeram um erro grave ao atacá-la. Foi o estopim para a ofensiva norte-americana. Já no caso dos Estados Unidos, realmente as possíveis consequências não foram medidas. Todos nós concordamos que os resultados do ato se tornaram brutais, porém são perdoáveis. Apesar de tudo, pode-se entender os motivos, pois o revide foi inevitável. No entanto, o objetivo principal era provocar a rendição japonesa, que veio a ocorrer após eles não terem mais como reagir aos ataques norte-americanos. Por fim, a bomba atômica nos ensinou que o ser humano pode ser muito mais maquiavélico do que se imagina. Além disso, mostrou que se, naquela época, produziu algo capaz de devastar uma metrópole, hoje até mesmo o planeta Terra pode vir a ser atingido por ameaças ainda maiores. ¹ Documentário Hiroshima: O Dia Seguinte. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=U2jAH6dQCtg. Acesso em: 28 de outubro de 2013

A iniciativa e a vingança MARCEL LOVATO YURI VASSALO 3º semestre de Comunicação Social - Jornalismo na Unisc

O Ser Criativo THIAGO HAAS CARLOTTO 5º semestre de Comunicação Social - Jornalismo na Unisc O Ser Criativo precisar imaginar algo e materializá-lo. Para isso dependente de uma coisa que parece surgir do nada e num piscar de olhos desaparece. Ele precisa da sua criatividade. Este ser estranho ao olhar alheio se manifesta muitas vezes de forma paradoxal. Ainda não há explicação científica, nem fórmula matemática que explique o seu modo de ser. E ninguém conhece o que ocorre na sua mente imaginativa e “fora da casinha”. No entanto ele deixa algumas pistas sobre como interpreta o mundo e compõe suas ideias originais. Dizem que o Ser Criativo analisa o mundo ao seu redor e sempre quer saber por que as coisas são como são. Há boatos que ele inventa enquanto está sonhando, não só quando dorme, mas também quando olha atentamente um ponto no vazio e imagina um mundo de possibilidades. Também falam que este indivíduo tem momentos “eureca!”, que se manifestam tanto nos momentos de solidão, quanto nos papos numa roda do bar. A única certeza que se

tem deste ser é que o seu diferencial não se manifesta quando ele vive na rotina e no “politicamente correto”, e que a sua luz de criatividade só surge quando “sai da casinha”. Ele precisa comunicar algo por meio de sua forma de arte. Para o Ser Criativo Comunicador surgem diversas questões: Como dar um enfoque novo àquela notícia anual? Como criar “a” campanha publicitária, original no meio da vitrine que virou a cidade contemporânea? Como pensar a comunicação e colocá-la em prática de forma diferente, para o emissor e o receptor? Como seguir os padrões estéticos e fazer um material audiovisual novo, que mexa com o emocional e o intelectual do público? Não há fórmula mágica para comunicar, mas é necessário conhecer o bicho humano. Para isso, sempre acrescenta estudar, pesquisar, inventar, praticar, e compreender que cada um tem o seu Ser Criativo, o qual pode parecer estranho ao senso comum, mas sempre estará imaginando à frente do seu tempo.


Quotidiano SUILAN CONRADO 5º semestre de Comunicação Social Jornalismo na Unisc

É gol de Fábio ANGÉLICA WEISE* Jornalista formada pelo Curso de Comunicação Social da Unisc Essa história é uma história de ficção contada a partir da visão de uma criança de 10 anos. Mas, não é totalmente uma história de ficção. O nome é fictício, mas o sonho do personagem é real, bem como a realidade em que ele está vivendo.

Meu nome é Fábio e eu tenho 10 anos. Moro numa cidadezinha perto de São Paulo e o que eu mais gosto é jogar futebol. Não costumo jogar sozinho, mas sempre na companhia de meu amigo Túlio. A gente se diverte pra caramba. E o Túlio também tem 10 anos, assim como eu. Todo dia a gente vai pra escola e depois da aula, estudamos mais um pouco para à tardinha jogarmos futebol. E é sobre futebol que escrevo essa história. Lá em 2007 foi decidido que o Brasil seria a sede da próxima Copa do Mundo, e eu tinha três anos, e nem me lembro desse fato. Quem me conta essa história é meu avô Miguel que também gosta muito de futebol. Ele diz que houve muita alegria por parte do povo brasileiro, mas diz também que ficou preocupado devido aos gastos que o nosso governo teria. Sabe, disso eu ainda não entendo muito bem porque sou criança, meu avô diz que esse assunto eu vou entender melhor quando for adulto. E então, desde a escolha do Brasil para ser sede da Copa do Mundo em 2014, começaram os tais projetos, as verbas, o dinheiro. Eu diria

que é muito dinheiro, meu avô sempre diz em tais milhões, não sei quanto é, mas deve ser bastante pra construir esses estádios tão grandes. Só que o que aconteceu é que bastante dinheiro foi desviado. Não sei se é verdade. Tem muitas obras que não ficaram prontas para a Copa. Então, a população começou a se revoltar e começaram a fazer muitas greves. Eu até lembro ano passado, eu tava indo na escola com a minha mãe quando vi um monte de gente gritando e colocando fogo em muitas coisas. Eu achei tão feio. Minha mãe também. Mas, ela disse que as pessoas tem o direito de expressar o que sentem, mas acho que não precisa estragar as coisas. E de 2007 a 2014, muita coisa aconteceu. Estádios foram construídos, os aeroportos, melhorias em algumas coisas para receber as pessoas dos outros países e o mais legal também: eu cresci e comecei a jogar bola. Aumentei os meus sonhos. Eu torço muito pelo Brasil. Eu torço pra toda a população brasileira porque a gente é um povo batalhador, já dizia meu avô. Quem sabe daqui a uns anos eu não esteja jogando na seleção. Eu vou sonhar e me preparar. Porque como diz minha mãe, sonhar não custa nada e torcer também não. Vai Brasil, o gol é nosso.

Tarde ensolarada de um inverno cinza. A sala vazia me inquieta. Preciso de ar. Perambulo sem rumo pelas ruelas da cidade antiga que naquele dia claro, desnudam-se diante de meus olhos . Os gerânios sobrevivem ao frio e embelezam as sacadas dos edifícios clássicos do bairro, colorindo de rosa e vermelho a indiferença de seus moradores. Repouso num banco. Ali perto avisto uma fonte em forma de leão. Da grande boca do felino inerte, jorra água fresca. Estou no coração da vieille ville, em frente à imponente catedral romana. Vejo alguns turistas que, freneticamente, tiram fotos das torres, dos vitrais, das gárgulas daquela igreja. Saberiam eles que abaixo de tão bela arquitetura, dezenas de corpos estão enterrados? Um cemitério oculto de ossos e sombras. Caminho em direção ao lago. Cruzo a Rue du Marché no instante em que sou surpreendida por um ciclista apressado que quase me atropela: o frenesi do fim de tarde de sexta-feira começa a invadir a cidade. Uma multidão de andarilhos cobertos de sobretudo preto embarcam e desembarcam dos bondes. Muitos portam pequenas bagagens de mão, certamente rumam para a estação central. Outros carregam baguette fresca, cujo cheiro me desperta o mais urgente dos sentimentos: a fome. Chego no boulevard que dá acesso ao Léman quando os resquícios dourados de sol cedem lugar ao crepúsculo azulado da noite. Acomodo-me no Café Mont Blanc. Uma xícara de cappuccino e duas fatias de pão quente espantam o frio intenso que paira nas imediações do lago. Os letreiros dos hotéis e bancos refletem na água escura e proporcionam um espetáculo de luzes aos poucos que ousam sentar-se a borda do lago para ver o tempo passar. A medida que a noite avança, as ruas esvaziam-se. Lotado mesmo estão os restaurantes da volta. Ao longe, ouço risadas, conversas, música. A vida acontece dentro de cômodos confortáveis e aquecidos pela calefação. A cidade tão só e tão bela, aguarda pela manhã seguinte, quando novamente será invadida pela multidão de casacos pesados afoita por comprar leite, pão, e as notícias do dia. Quem sabe passear com os cachorros pelos parques enquanto o sol beliscar a pele. Ninguém por aqui pensa em morte, sente dor ou sequer conhece a pobreza. Todos só precisam de mais uma xícara de café.


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Um começo inesperado

Q Catedral São João Batista e o teatro possuem mais coisas em comum do que se possa imaginar ANA CLÁUDIA MÜLLER REPORTAGEM

uem entra na Catedral São João Batista não imagina que foi graças a sua construção que o teatro teve início em Santa Cruz do Sul. Foi o responsável pelas pinturas dos afrescos no interior da igreja, Roman Riesch, que fundou o primeiro grupo de teatro da cidade: o Riesch Bühne. Nascido na Alemanha, Riesch mudou-se para o Brasil em 1938, durante a Segunda Guerra Mundial. Filho de mãe judia, ele precisou fugir do país para não ser mais uma vítima dos nazistas. Já no Brasil, foi para Ijuí, onde encontrou seu grande amor, Ilse. Sem falar português, Riesch não conseguia trabalhar com teatro e assim, dedicou-se a seu outro dom: a pintura. Foi por meio dela que o artista chegou a cidade que seria seu lar até o fim da sua vida: Santa Cruz do Sul. Foi em terras santa-cruzenses que Riesch resolveu que estava na hora de retornar aos palcos. Assim, mobilizou alguns artistas locais e reativou a companhia Riesch Bühne. O fato do ator não ter domínio do português acabou não sendo problema numa cidade em que a maioria da população tinha origem germânica. As peças eram apresentadas em alemão e o grupo fazia sucesso não só no interior, como também nas

capitais e até mesmo fora do país, em turnês que duravam de quatro a cinco meses. O Theatro São Pedro, em Porto Alegre, foi um dos palcos onde o alemão pode mostrar seu talento. O pintor, ator e dramaturgo faleceu no ano de 1972 em Santa Cruz do Sul, cidade que lhe acolheu por quase quatro décadas. Roman Riesch deixou um legado que teve continuidade com seu filho, Roman Riesch Filho. Com o fim do Riesch Bühne, em 1954, Riesch Filho e seu amigo, Pedro Schneider, fundaram o Grupo Amador de Teatro Independente, o Gati. Não havia nenhum ator profissional na companhia, apenas pessoas da sociedade local, com profissões paralelas, que levavam o teatro como um hobby. Entre elas, a santa-cruzense Gilda Rauber. Na época, a cozinheira, ou melhor, culinarista, como prefere ser chamada, tinha apenas 17 anos e soube da companhia graças a uma vizinha. “Ela me falou que iria a casa do Pedro Schneider ensaiar uma peça e me convidou pra ir junto. Fui, me apaixonei pelo teatro e só parei quando o Gati acabou”, conta ela, agora com 78 anos. O teatro foi mais que um hobby para Gilda. Nos ensaios da companhia conheceu Paulo Rauber, o grande amor da sua vida. “Meu ma-

rido e eu nos conhecemos fazendo teatro, em 1956. Estávamos ensaiando a peça Pivete e dali em diante começou o nosso namoro”, conta. Namoro que virou noivado e, anos mais tarde, casamento. Os dois ficaram juntos por quase cinco décadas, quando Paulo descansou, há três anos. Foi o casal que protagonizou o primeiro beijo em palcos santa-cruzenses. “Foi na peça Feitiço. Na época nós éramos noivos e nos beijamos em pleno palco. Imagina como foi naquele tempo, no ano de 1959. Foi um falatório tremendo, apesar de sermos noivos. Isso que aquele beijo não foi como esses que a gente vê hoje na televisão, nada disso. Foi um beijo muito comportado”, relembra Gilda, aos risos. O beijo entre Paulo e Gilda não chegou a escandalizar os santa-cruzenses, mas o mesmo não pode ser dito da peça O Beijo do Asfalto, de Nelson Rodrigues. Uma companhia de Porto Alegre, durante uma turnê, apresentou o espetáculo na cidade e causou polêmica. É possível imaginar como foi para a população de uma cidade interiorana, com descendência germânica, ver representado no palco a história de um homem que, ao ser atropelado, pede a um pedestre que este lhe dê um beijo antes dele morrer. “Foi um


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escândalo! Nós sempre escolhíamos peças mais conservadoras e nunca sofremos nenhum tipo de preconceito. O pessoal gostava muito de teatro na época”, diz Gilda. Depois de 24 anos, contabilizando apresentações em Santa Cruz, demais cidades da região e, inclusive, a capital Porto Alegre, o Gati encerrou suas atividades. Sem tempo e sem o mesmo ânimo das décadas passadas, seus integrantes optaram por acabar com o grupo. A última vez que a companhia subiu ao palco foi em 1978, com a peça Infidelidade ao Alcance de Todos. Mas, o fim do Gati não foi o fim do teatro em Santa Cruz do Sul. Com o passar do tempo, surgiram outras pessoas engajadas a fazer arte na cidade, caso de Graciomar da Silveira, que marcou época com o seu grupo na escola Polivalente. Esse período foi decisivo na vida do ator Eduardo Spall. Foi nos palcos do Polivalente que ele descobriu sua verdadeira vocação. “Era ano de 1989. Eu dei carona de moto para um primo que havia passado num teste para fazer um personagem na peça Viúva, porém honesta, de Nelson Rodrigues. Fui com ele, o diretor conversou comigo e perguntou se não queria fazer o papel de um psicanalista.

Fiz! Depois disso os trabalhos foram aparecendo e eu nunca mais larguei a profissão”, conta Eduardo. Como aconteceu com Gilda e Paulo Rauber, foi graças ao teatro que Eduardo conheceu sua cara metade, Simone Bencke. Os dois são referência quando o assunto é cultura em Santa Cruz do Sul, assim como a atriz Pilly Calvin. Juntos, montaram peças que fizeram história na cidade e inspiraram em gerações mais novas o amor pelos palcos. Destaque para Enquanto os Anjos Tomam Coca-Cola, um musical dirigido pelo porto-alegrense Camilo de Lelis, com estreia no ano 2000, um período que a companhia era veiculada à Universidade de Santa Cruz do Sul.

Espaço Camarim O grande feito de Eduardo, Simone, Pilly e sua turma não foi no palco, foi fora dele. Quando decidiram que precisavam de um local para guardar figurinos, cenários e ensaiar, em 2002, não podiam imaginar que estariam contribuindo para transformar a cidade num pólo de cultura. “Um dia entramos no antigo colégio Mauá e vimos uma sala com piso comido por cupins, paredes encardidas e teto

manchado pelas goteiras. Chamamos Fernando Fischer, Pilly Calvin e Renato Sperb e resolvemos alugar. Aos poucos, com nossas próprias mãos, fomos reformando, arrumando o que dava e ali, na Borges de Medeiros, nasceu o Espaço Camarim”, conclui Eduardo. Anos mais tarde, em 2007, surgiu a oportunidade de mudar de endereço. Da Borges de Medeiros, iria para a Marechal Floriano, onde ficava o antigo auditório do Colégio Mauá. “Nesse lugar, o Espaço Camarim tomou rumos não imaginados por nós no início. Virou palco para as mais diversas manifestações artísticas e hoje é reconhecido fora de Santa Cruz do Sul”, conta o ator. Atualmente, o Espaço Camarim recebe com freqüência espetáculos musicais e teatrais, muitos deles promovidos pelo Sesc. Quem passa por lá, sempre quer voltar. O clima intimista, o espaço agradável, a história do lugar (era naquele palco que o Gati se apresentava) fazem do local, único. A trajetória de quem pisou nos palcos santa-cruzenses se confunde com a história do teatro na cidade. Cada um desses atores, diretores e dramaturgos contribuiu para fazer de Santa Cruz um exemplo de arte e cultura.


LUÍSA ZIEMANN

Entre a bola e o caderno

N

eymar, Messi, Cristiano Ronaldo, Fred, Balotelli. A lista de ídolos de muitos meninos é extensa. Os craques do futebol são o espelho de uma meninada que sonha em chegar onde eles chegaPara evitar decepções, ideal ram. Mas, seguir carreira no mundo da bola não significa apenas ter é que esporte e educação fama e dinheiro. O sucesso exige caminhem lado a lado esforço, suor e muita dedicação. Treinos, concentrações, viagens. O tempo acaba ficando curto e, muiLUÍSA ZIEMANN tas vezes, é preciso abdicar de algo REPORTAGEM para seguir em frente. O problema está, justamente, quando este “algo” são os estudos. Confrontar uma trajetória profissional iniciada tão precocemente com a formação integral da criança como ser humano não é uma tarefa fácil. A baixa escolaridade dos jogadores de futebol constitui um elemento que torna esse profissional vulnerável à precarização do trabalho, ao desemprego e à ação de agentes mal-intencionados. Uma pesquisa realizada em 2003 no Laboratório de Psicologia do Esporte do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) revelou que 48,9% dos

atletas entrevistados não estavam estudando. Pior: 72,4% não tinham sequer o ensino fundamental completo. Realizado com o intuito de mudar a mentalidade dos clubes de futebol em relação ao treinamento que devem oferecer, o estudo avaliou 94 atletas de 15 a 21 anos dos três principais clubes da cidade do Recife. Culturalmente, ainda existe a crença de que esta profissão, por permitir um acúmulo de dinheiro e ser caracterizada pelas facilidades nas relações de trabalho, descarta a necessidade da formação. Porém, entre os atletas que ingressam em escolinhas de futebol são poucos os que se tornam profissionais. Menos ainda os que terão salários elevados em suas contas bancárias. Juliano Schwantz tem 14 anos e, mesmo com a pouca idade, já sabe o que quer: ser jogador de futebol. A escolha, aliás, foi tomada ainda na primeira infância, quando o santa-cruzense tinha 6 anos. Desde então, sua rotina se divide entre treinos na escolinha do Clube Avenida, competições e viagens. E, claro, estudo. O menino está na 7ª série e nunca deixou de frequentar

a escola. Porém, já repetiu de ano duas vezes – na 4ª e na 5ª série. “Mas, não foi por causa do futebol, eu bagunçava”, se apressa em dizer. Juliano é mais um menino correndo atrás de um sonho. Com o tempo cada vez mais curto. “Os treinos são segunda, quarta e sexta-feira à tarde. Terça e quinta eu venho para correr”. Tamanha dedicação não se repete na escola. “Eu estudo, mas não gosto. Minha irmã me ajuda”. Com pelo menos 5 anos de livros e cadernos pela frente, Juliano já tem os planos decididos para o futuro. “Não penso em fazer uma faculdade logo que terminar a escola. Por enquanto não. Primeiro vou seguir atrás do meu sonho até não poder mais”. E o menino já começou. No ano passado participou da primeira peneira no Internacional, em Porto Alegre. Não foi selecionado. Mas, não pensa em desistir. Como ídolo: Oscar, ex-atleta do Colorado. A paixão tem a ver com a história do craque. Assim como Juliano, o jogador saiu do interior. Oscar nasceu em Santa Bárbara do Oeste, em São Paulo. Hoje joga na seleção brasileira.


No entanto, o técnico de Juliano, Júlio César da Rosa, conhecido como Tite, que já foi jogador e trabalhou durante seis anos na comissão técnica do Avenida, lembra que não é fácil alcançar o que a maioria não consegue. “No Internacional, a cada mil jogadores, um craque é revelado. Imagine isso na proporção do interior, é mais difícil ainda chegar lá. Quantos meninos das escolinhas ao menos se tornam profissionais?”. O treinador ainda lembra que este é apenas um dos motivos para que os jovens não abandonem os estudos. “Aqui a gente incentiva, fala, é tudo na base da conversa. Ser jogador de futebol, mesmo que profissional, é algo temporário”, diz. “O atleta, na maioria dos casos, tem condições de conciliar os treinos e a rotina no clube com a escola ou faculdade. E isso deve ser feito”. Por isso, ter o acompanhamento de um adulto nunca é demais. Na casa de Juliano, o assunto já foi debatido inúmeras vezes. “Tenho o apoio da minha família, todos sabem do meu sonho”, diz o garoto. O incentivo dos pais e familiares é imprescindível. No entanto, também são eles que devem tomar as rédeas da situação. Um dos maiores incentivadores de Juliano é o tio, Rogério Marcos Schuster. Para ele, o talento do sobrinho é inato: “Desde pequeno ele tem afinidade com a bola. Desde que nasceu, aliás”. Schuster lembra que já nos primeiros anos de vida, Juliano demonstrou habilidade no esporte. Com o futebol, em especial, a paixão é antiga. “Ele sempre gostou, e eu também. Como não apoiar?”. Mas, tudo isso pode ter uma explicação bem clara. O tio sonhou em ser jogador de futebol. Na adolescência, inclusive, chegou a jogar profissionalmente – no arquirrival do clube onde Juliano joga hoje, o Santa Cruz. Teve de deixar o futebol de lado quando completou 18 anos. “Ou ia para os juniores ou eu ia para o quartel. Fui para o quartel”. Não voltou às quadras e nem foi aos campos de batalha. Acabou se tornando assessor de negócios. E ele confessa: transferiu o sonho não realizado para o sobrinho. “Ninguém o pressiona para nada, mas como ele demonstra que há interesse, tentamos ao máximo viabilizar isto pra ele”, explica. O tiozão ajuda como pode. Mensalidade, uniforme, chuteira. Tudo é pago por ele. Porém, Schuster garante que os estudos ainda estão em primeiro lugar. “Quando ele era mais novo, não gostava nenhum pouco de estudar. Mas, isso seria assim jogando

futebol ou não”, opina. “Através da escolinha nós até conseguimos fazer com que ele se dedicasse mais. Tem que ter boas notas, não pode repetir de ano. É algo do tipo ‘se não passar, não vai poder treinar mais’. Dá certo, agora ele melhorou no colégio”. Quanto à continuidade nos estudos depois do término do ensino médio, hipótese já descartada por Juliano, o tio pondera: “Vamos tentar dar um jeito dele fazer faculdade. Temos que aconselhar, mostrar que é interessante, que ele pode conciliar. Não queremos que ele pare de estudar”. Para o assessor de negócios, o futebol ainda é uma válvula de escape das mazelas da sociedade e da vulnerabilidade a qual o jovem está exposto. “Assim ele tem uma ocupação, não está na rua. O caminho para o mal é muito curto, é rápido. Com a cabeça ocupada, se evita que ele tome este rumo”. Mesmo inserido no universo esportivo, também existem preocupações. “Dentro do possível, torcemos para que ele consiga uma boa colocação no futebol no futuro. Sabemos que ele pode ser induzido, pode se deslumbrar. Em questões de contratos, nos preocupamos. Mas, temos o apoio do Tite e ele tem o nosso. Vou fazer tudo que posso para que ele prospere. É o filho que não tive”.

Estabelecer limites A psicóloga Alessandra Steffens Bartz lembra que praticar esportes é saudável até mesmo para o desenvolvimento mental. “Porém, como tudo na vida, deve ser dosado”, salienta. É preciso estar atento à inserção precoce no meio esportivo. Se a criança sonha em ser jogador de futebol, existe, sim, uma idade adequada para que ela comece a ir atrás deste sonho. “Muitas vezes, a criança está apenas correspondendo a uma expectativa dos pais. É após os 6 anos que, aos poucos, ela começa a discernir suas vontades”. Rodeados de dúvidas e incertezas, a pressão psicológica é enorme. Mas, ainda mais difícil do que determinar a idade certa para iniciar em uma escolinha de futebol, é definir o momento de fazer com que o hobby se torne um emprego. “É na adolescência que começa a preocupação, quando se está maduro para pensar sobre isso”. Seja na infância ou já na adolescência, na hora de calçar a chuteira pela primeira vez ou ir para o alojamento de uma categoria de base, Alessandra destaca que a família deve apoiar os filhos naquilo que eles almejam. Mas, não sem apresentar a rea-

lidade. “Se deve permitir outros estímulos, não exclusivamente o futebol”, alerta. “A família precisa estabelecer limites e valorizar o estudo também. Mostrar a trajetória de jogadores pode ser uma forma de ressaltar a importância de conhecer outras línguas, outras culturas, e até mesmo o fato de que o futuro exige, muitas vezes, alguma outra ocupação”. É claro que isso pode ser difícil, já que muitos craques milionários abandonaram os estudos – e deixaram para as crianças uma imagem que acaba sendo absorvida como uma possibilidade. “Creio que o principal desafio da família é mostrar ao filho que ele precisa se desenvolver em vários aspectos, pois é um ser integral. Ninguém é só esporte”. O sociólogo César Hamilton Brito de Goes alerta que se houver, por parte da criança, da sua família e daqueles que o cercam, a ideia equivocada de que a carreira de futebol exclui o processo de educação formal, a inserção prematura do jovem no universo esportivo pode atrapalhar seu futuro. “No mundo do futebol predomina uma ideologia que faz as pessoas crer que basta jogar bem para virar craque”, explica. “A média salarial da maioria dos jogadores de futebol ainda é baixa e poucos jogadores alcançam cifras maiores que lhes permitam alavancar outros negócios vinculados à carreira quando a condição de atleta esgotar”. Quando o atleta recebe uma proposta adequada, que lhe dê garantias e estrutura para que possa assumir esta condição na forma de um compromisso de trabalho, o que até então era incerto pode se tornar o início de uma carreira profissional de sucesso. Mas, toda oferta precisa ser avaliada – e, para isso, nada mais adequado do que a retaguarda de um adulto. “Muitos pais sacrificam parte de seu futuro para acompanhar o que eles consideram uma oportunidade”, salienta. Contudo, nem mesmo eles escapam da possibilidade de ser iludidos. Quando há indicadores de uma promessa, a pressão aumenta também sobre os membros da família. “Como é um campo de oportunidades, é comum ver familiares diretamente envolvidos com a ascensão profissional do jogador”. Em grandes clubes, por exemplo, uma das condições para que o jovem se mantenha na escolinha de futebol é que ele estude. “Mas, sempre há o risco das regras serem burladas diante de possíveis negócios. Os prejuízos aparecerão mais tarde”.



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