Coletânea de Textos brasileiros

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M1U9T5 Entrevistando Caetano Veloso* Monique — Caetano, a idéia central desta proposta de educação infantil — tratada no livro “A fome com a vontade de comer”1 — é que as transformações têm a chave do saber e que essas transformações se dão quando existe uma interação entre o que a pessoa é, o que ela sabe, os seus conhecimentos prévios, e aquilo que é ensinado a ela. Essa é a função da escola, ensinar algumas coisas para as pessoas, não é? Aqui no estado da Bahia a gente tem uma diversidade enorme de modos de vida e cultura, e essa diversidade está, me parece, mais fundada atualmente nas coisas de uma cultura popular que se mantém pela preservação das tradições, do que uma cultura popular que se transforma. Algumas pessoas acreditam que não se pode, ao mesmo tempo, ser um ouvinte de rock and roll e preservar a tradição dos ternos de Reis, por exemplo. Como é que você vê essa questão, dessa diversidade do estado em relação a essa questão da cultura popular e daquilo que pode ser trazido como contribuição pela educação? Eu fico pensando que educação é exatamente o lugar de acesso ao conhecimento, aos bens culturais que são daquele lugar, mas que também dão acesso às pessoas que são daquele lugar a qualquer outra coisa, de qualquer outro lugar do mundo. Como é que você vê essa questão? Caetano — Bom, até onde a minha cabeça pode chegar, eu concordo sobretudo com a sua conclusão, esta última parte do que você falou, o conhecimento local como meio de acesso para o conhecimento universal, não sendo uma defesa contra o contato com o conhecimento exterior àquela área, mas como na verdade uma instrumentação maior para você entrar em contato, para fazer conexões com os outros círculos de saber, eu concordo sobretudo com isso. Quando você menciona a posição de algumas pessoas que crêem que o fato de as pessoas ouvirem rock and roll impede que elas mantenham contato com tradições como um terno de Reis, ou um samba de roda, que essas coisas não podem conviver, eu tenho a experiência pessoal que essas coisas convivem. Agora, não sei por quanto tempo, nem em que termos, qual dessas duas expressões culturais, digamos o rock and roll e o samba de roda, vai ser dominante, ou estar mais ligada ao futuro das pessoas que participam dela e qual a que ficaria com apenas um resíduo do passado; se é assim que o rock and roll e o samba de roda se contrapõem em sociedades onde essas duas coisas podem conviver, ou se pelo contrário uma ou outra coisa vai nascer da audição de rock and roll por pessoas que cresceram praticando samba de roda e que não deixaram, por ouvir rock and roll, ou fox-trot, ou boleros mexicanos, ou tangos, não deixaram de praticar samba de roda. É o caso do Recôncavo da Bahia: em Santo Amaro, por exemplo, o samba de roda continua sendo uma prática normal, não uma prática assim programada por grupos de preservação do folclore: é uma prática normal. Quando tem uma festa na minha casa em Santo Amaro, tem samba de roda, e assim em muitas outras casas em Santo Amaro. Monique — Pois é exatamente isso, e você eu acho que é um excelente exemplo que responde essa questão, porque você traz, conserva no sentido de guardar, todas essas tradições e ao mesmo tempo cria sempre novas coisas. Mas você foi uma pessoa que teve dentro de casa uma situação muito especial, de acesso a uma série de informações sobre o mundo. Quando você diz que lia a revista Senhor, ou que você tinha uma professora de português que te sugeriu a leitura de poemas de João Cabral de Melo Neto, isso deu a você possibilidades, que talvez você não tivesse, se permanecesse na situação estrita do samba de roda. * 1

Concedida a Monique Deheinzelin em Salvador, em 18 de janeiro de 1993. Extraída de Trilha: educação, construtivismo, de Monique Deheinzelin, Petrópolis/RJ:Vozes, 1996. Participou da entrevista a educadora baiana Maria Dolores Coni Campos. Petrópolis, Editora Vozes, 1994.

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