Essas Águas

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“Escuto a travessia cantora dos rios no mundo depois aparece a longa frase cheia de água.” (Herberto Helder)




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ESSAS ÁGUAS

Este livro é o primeiro de uma série: depois da água, virão o ar, a terra e o fogo. Aqui as águas aparecem em diferentes estados: congeladas nos instantes fotográficos, liquefeitas em cursos de palavras, vaporadas em cada aspecto do design. Trata-se de ambiência de origens: os escritos, as imagens e o próprio livro nasceram das corporeidades, dos movimentos, do espírito d'Essas Águas.

Vagner Muniz





Sem corredeiras Uma canoa ancestral Um rio longo e reto Um remo Ă guas que levem Pra ponte fluvial Pra uma troca Com Caronte Que seja Mas que se possa ouvir Grilos, sapos Ver pedras E anotar o silĂŞncio Das estrelas.



O topo da cadeia alimentar Quantos amores estarão dispersos? Quantos medos? Toda a ambição transformada em Trapos submersos Num enorme batismo O Mar lavará A raça E debaixo das águas Por um longo tempo Haverá novo alimento Para os peixes.



Uns dias depois E tudo se conformará E o que é turbilhão De gentes Habitará o simples Das anêmonas e peixes Continuará reinante A violência Do predador E presa É certo que também Desaparecerá A caridade É possível que a Gravidade Abra uma exceção Chorosa E derrame um pouco De água No Universo.





O ESQUECIMENTO DA ÁGUA Na superfície a temperatura é morna / O sol é tímido sobre um mundo raivoso / e o vai e vem da maré imita o fluxo do sangue / Plâncton plaquetas viscoso líquido que tem palavras e diz / : basta // O corpo está nu / – assim a dor o fulminará com rapidez / livres do embaraço das roupas tanto o sexo quanto a dor são mais eficazes em seus ofícios / O corpo cai e atravessa a linha que separa ar e água // Sístole e diástole por pouco / asfixia / É lento o processo / É completo e horizontal o abandono / Os músculos estão ausentes dos movimentos / Antes casca do que muco de molusco // A memória não / : é cardume / E ainda desenha planos curvas gumes no azul que escurece a cada metro / Memória / : o quase nenhum contato das peles / o diálogo dos pelos e da pele / arquipélagos emergindo de corais / corando as extremidades / Era assim quando rigidez e mucosa e fome explodiam cursos furiosos redemoinhos cataratas // As nuances das membranas da lesma marinha lembram antes a ponta dos dedos tateando as costas do que a implosão em abismos / E um debrum dividia perna e ventre / Um encontro rochoso abriria fendas / Era // O corpo nu desce imóvel / A anatomia projetada para o ar surpreende a arraia / A memória decresce / O medo de segredos inúteis se desfaz aos poucos / Cracas arpão // Memória / : o ódio nos olhos de mar / os olhos saindo de um corpo para outro corpo / Predatórios cancerígenos mortais / A humana crueldade erguendo-se em toda a sua extensão / Seus tentáculos / os da crueldade / não eram invertebrados / Eram as setas incuráveis de um crustáceo / Cumpriram seu destino // O corpo desce / A memória atrai as línguas da sufocação / : naufrágios / a dor dos mil afogados e daqueles deixados à tona / as rupturas / as mil mortes que a água fez entrar pelas bocas // Lento o corpo nu esfria e azula / Desce / Desce / Desce // O delírio mostra lábios que retornam do fogo / Os lábios são água-viva / medusa flor // O corpo desce / A água é útero / É ácido / A luz está longe e antes / A memória é quase pedra / É pedra / Dentes abissais atravessam a medula / As toxinas são paralisia / O corpo desce nu / Imóvel / O fundo / O fundo / O fundo / (quando o corpo tocar o fundo nenhum outro dia despertará) / A areia se desloca suave como vestígio da pira imersa / O sol distante ilumina o mundo inútil que ainda / Agora está escuro / Só a água / O corpo cessa e o nu é nada / Dispersa a memória na água / Quem lavará a memória da água? / Quando tudo termina?




~n~a~d~a~m~ a todos os nadadores

cada braçada é um arco acima da linha da água ~ dorso de cobra ~ barbatana ou escama ~ de enguia ~ de monstro marinho ~ entre outros habitantes de atlantis ~ em urbanas piscinas ~ aquecidas ou frias ~ de líquido salinizado ~ porque o cloro ~ cuja química prejudica ~ em contrapartida ~ os cabelos das meninas vaidosas ~ destrói os microorganismos ~ há pisos e bordas nestes aquários ladrilhados onde o mundo é capaz de parar ~ mesmo lá ~ entre as raias e bóias desta microfísica controlada ~ do tanque onde humanos praticam juntos a habilidade de seus músculos e ossatura cortarem a água ~ a certa velocidade ~ em fatias razoáveis ~ aí a natação se torna esporte de esforço sóbrio ~ pois contra a água não se pode lutar ~ apenas aceitar as condições do habitat ~ do líquido que invade os ouvidos ~ e inadvertidamente o adoece


~ ou resseca as suas paredes internas ~ no tal "mal do nadador" ~ contra o qual ~ estar apartado da água diária sequer pareceria razoável a qualquer assíduo praticante desta ou daquela praia ~ de alguma piscina ~ fosse pública ou de clube ~ ao sul ou no subúrbio ~ todas as pequenezas cotidianas debaixo d'água dissolvem ~ às vezes problemas enormes se vão ~ enquanto a mente se assemelha ~ à dos peixes e ~ se deixa levar pelas quase imperceptíveis ~ flutuações do corpo ~ que submergido ~ é menos reativo ~ muito embora isso pareça contradizer as leis de física ~ todo stress dissipa nesta mecânica dos fluidos ~ a dor esvai ~ se evade ~ enquanto o ar entre e sai ~ dos pulmões ~ de todo o nadador ~ que ~ mesmo hábil ~ ou iniciante ~ deslizaria menos que os navios ~ mesmo se movido a combustível





A JANGADA A jangada era um ponto no longe, muito longe, quase na borda da terra Levava uma leva de esperan莽a, um pouco de pranto e de gl贸ria que era para ensinar o mar a fazer suas ondas pescar era destino, voltar era outra hist贸ria.



DESCOBRIMENTO Eu navegante buscando ventos em mar revolto Eu comandante de nau portuguesa de grandes bujarronas Eu assaltante sem calmaria tentando descobrir teu continente.



RUMO Ele tem a pressa das pedras do rio o cansaço das margens e a visão turva da chuva Refaz seu trajeto como peixe como ave como vida A forma humana e líquida não o faz projeto nem segredo Apenas aponta o leste como seu norte.




A mais líquida das mulheres Era tudo muito forte. Havia a confluência do Ganges e do Nilo, do Amazonas e do Yangtzé, o maior rio da China. Todos corriam para o mar. Àquela hora era ela a mais líquida das mulheres, aquela que verte o choro e ainda tem os líquens e os orvalhos. Esta natureza de água decerto era um risco, no mundo sem muitas fontes era um contraste. Tudo muito seco e inóspito, tudo ansiava por água que seria sorvida por uma sede de terra antiga. Porque havia os desertos humanos. Parecia não ter fim aquela sede do mundo e a mulher-água tinha muitos afluentes: ternura e graça, poesia e maciez na língua, oásis e plantas irrigadas. Mas assim que toda a verve líquida desejava correr em fluxo contínuo, rochas obrigavam a água a estancar e a se repartir, perdendo força, transformando-se de novo em pequenos lagos isolados. A natureza seguia seu curso em movimentos, às vezes contrariando a si mesma. Estancava quando queria puxar, até que, aqui e ali, uma nova reunião das águas se transformava numa cascata que arrebentava as emoções sutis. A ternura e a graça, a poesia e a maciez da língua, os oásis mais puros e as plantas irrigadas, tudo exposto à tempestade.


Quando chegava neste ponto, para não sucumbir à brutalidade a mulher-água se recolhia e deixava-se levar pelo rio interior onde a emoção contínua transformavase num pensamento quase ordenado. Havia palavras para colocar pingos nos is, gotas na chuva, moléculas no oceano. Vistas assim como moléculas que se juntam num determinado instante, as águas não eram tão assustadoras, porque a água, como se sabe, tem duas naturezas: uma de riacho doce, um convite de Oxum, outra de onda marítima de arrebentar diques, cidades e civilizações. A mulher-água, com toda sua emoção, depois que corre junto ao Ganges e ao Nilo, encontra a resistência das montanhas, se revolta, se reparte para seguir seu curso, cai em cascata, despenca em abismo, reúne outra vez os afluentes, ruma para o oceano, provoca as ondinas, dança o balé das ninfas, bebe o sangue das bestas, apazígua-se em espuma, quebra-se num remanso de praia onde se deita exausta. Sua natureza é de onda e quando as rochas a recolhem para ficar ali, ela já partiu, fazendo o caminho de volta ao Ganges e ao Nilo para providenciar a semeadura dos sentimentos sobre a terra inóspita, os desertos humanos. Assim, apesar de todos os obstáculos, fertiliza para sempre e sempre o renascimento, líquido como a criação.




Antes da chuva Sentada na varanda, nada havia de urgente. Veria chuva, viria a chuva. Transeuntes apressados. Alguns corriam. Fiquei para assistir. Eu ia e vinha dentro de mim, catapultando-me para lonjuras. Como se fosse livre, mas era dia de espetáculo, passaram-se dias (ou foram meses?) sem que vi(e)sse um temporal. A previsão do tempo à minha frente, à queima-roupa: os oitizeiros se assanhando. Tive vontade de uma xícara de café, mas colocar a água para ferver, esperar esperar e esperar... desisti do aroma, renunciei ao sabor. Não sabia o porquê, mas precisava ficar ali, naquele lugar. Sentei-me na beirada da janela: paisagem sem alcance, vista ruim. Fiquei de pé: desconfortável. Como se fosse um tesouro, fixei meus olhos fatigados na cadeira de balanço no canto. Estofado puído. Assistiria dali o desconhecido. Isolamento das pressões do viver – era o meu projeto. O vento entrou em cena, como um zéfiro, varrendo o mundo e eu participando. Mas bastaria o telefone tocar, o carteiro chegar e eu não teria tempo para a contemplação, todavia tive sorte, entreguei aos detalhes. O quarteirão tomado pela poeira. As folhas das árvores despencando no chão. Iam e vinham assim como eu, mas sopradas por uma força maior. Surpresa: uma sacola destaca-se no bailado. Vuuuuuuuuuuuuuuuuuu (a voz do vento). Alto, a bailarinante embalagem subiu. Mais alto. Impressionante. Ao chão, como se morta. Quis aplaudir, mas uma mulher interrompe-me, passa sem cerimônia. Vai-se. Não a conheço, nem ela a mim. A bailarina descansa por entre o verde que subverte a paisagem florescendo entre o lixo que se acumula. Ressuscita. Lindo. Linda. Vuuuuuuuuuuuuuuuuuu (a canção do vento). Ouço trovões. Alegro-me. Entristeçome. Vivo na dualidade. A cadeira acolhendo-me. Eu indo e vindo, mundos estranhos, os meus. Penso em algo espinhoso. Imagino um boi sendo arrastado por um tufão. Massa pesada como uma bofetada. Um piano seria mais ético? Posso criar quando sonho e o piano é levado, some, dilui-se como o som na imensidão do universo. O boi rodopia assustado. É pesado como a mão do homem com um feixe de lenha nas costas, ou aquele que leva o botijão de gás na casa da Dona Glória, vizinha antiga. As


mãos matam. Morrem. Ferem. Ferem-se. Sinto cheiro de pipoca, há crianças a minha volta? As mãos matam. Morrem. Ferem. Ferem-se. Sinto cheiro de pipoca, há crianças a minha volta? Fragilizo. Vuuuuuuuuuuuuuuuuuu - o vento me impressiona. Possante. Poderoso. Arrasta a bailarina com sua alvura. É branca. Quase translúcida. Quase eterna. “Não jogue lixo na rua”. Mas essa é mais, muito: um convite à dança. Tourada? Melhor fechar os olhos, escutar o vento e deixar o corpo liberto: percebo-me flutuando. Se caio? Levanto. A bailarina na mente, professora dos ritmos. Ouço o sussurro do vento: Vuuuuuuuuuuuuuuuuuu. Não estou de pé, continuo sentada, brinco de cabra-cega, olhos fechados; danço com as mãos, tento acompanhar a sacola esvoaçante. Sou desajeitada. Outro trovão. Cheiro de poeira. Perdi-me, fui (aonde? não sei tudo de mim, pouco sei) e não retornei de súbito: pegadas em descaminhos. Vuuuuuuuuuuuuuuuuuu – é o vento. Que importam as contas, os terremotos, as tragédias, as eleições, os protestos, a Copa? Hoje eu não tenho medo. É preciso leveza para a entrega. A bailarina da minha rua confia no seu parceiro, ele a impulsiona nos saltos, depois a entrega ao solo levemente. Eu, matéria pesada, continuo sentada, mas a alma engendra revoluções. Seara da ruminação de mim sobre mim. Enlouqueço, dialogo silenciosamente com a ventania. Cantamos juntos. Refugio por minutos no que para mim transforma-se naquela planta dentro do livro: um dia viva, hoje diferente. Somos múltiplos, grito. Os olhos continuam fechados. Trovões ao longe. Enfraquecidos. Algo em mim segue meus rastros, se pulveriza, se multiplica, encontro-me para além de mim. Nada mais ouço. As mãos paralisadas: pausa. O tempo altera-se pelo vazio. Imagens surgem como produtos desse encontro. Radiografia. Volto de algum lugar: dentro. Cheiro de poeira. A Bailarina morta, velha, inútil. A chuva não veio, nuvens espalharam-se noutra região. Era uma ventania. Eu? Outra. Outras. Envelhecei, mas sentindo-me mais humana. Frágil, arrasto-me (já é o anoitecer) até a cozinha; a chaleira em fogo alto, aguardo impaciente o café para brindar essa experiência que de banal não tem nada.





Ophelia A chuva molha os campos – até o verão – áridos. E o vento anuncia a tempestade que durará 5 dias. Enquanto cactos e orvalho pendem encharcados (e um mesmo rio não corre duas vezes) o leito permanece intacto. No rio em que Virginia Woolf se afundou haveria espaço para o sonho [Um casaco distinto com pedras no bolso]. À margem, a hesitação do gesto e se escreveria uma outra história: Mulheres não sobreviviam ao desafio – vida em punho. Pálidas, estampavam quadros renascentistas – e Hamlet não intuiu o amor frágil que o espreitava. Essas mesmas águas, no futuro, vertem outra imagem: Um rosto fiando o tempo lasca a lasca. Entre charco e musgo, põe suas mãos naquele mesmo rio [sorvendo todo o líquido espesso] que não ousa entrar.


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Lethe Descer ao Hades centenas de vezes – Despir-se da linguagem primordial. Perséfone chorou ao se despedir do Olimpo. No cais Refletido sua imagem, avistou seu amante eterno. Ciclo permanente: Todo poeta desce ao inferno E sobe – mais forte. As escrituras ensinam que se deve evitar as águas do Lethe: O Esquecimento reside por lá. Os passantes, em procissão, cansados Afundam suas mãos no Rio – O engano se faz presente. Pálido, oco O tempo Escoa E restos da memória capturam ecos dissonantes. Palavra é lembrança.




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DESASSOSSEGO Quando vi a praia longe logo supus um leito disposto ao azul. Cansado do meu peso oceânico nela aportei. Desdobrei a colcha ilimitada que levo no alforje. Toda a margem da enseada calculei por medida. Difusa, a tua imagem-corpo em pétalas se abria à flor da água adensando-se em carne fêmea silhueta.


Ofereci-te o leito em areia desdobrado E supus também ali nascer. Eu – tantos nomes que esqueci. Eu - viajante sem porto onde morrer. Quisera-me então deitado em aconchego carne de maresia e passado ventanias que tantas amiúde a água tudo apaga. Eu oceano em desassossego infinitamente chego à praia sem nunca achar repouso e leito.


Por isso avanรงo e retrocedo infinitamente contrafeito em ondas de alvoroรงo estrondos ecos de pensamento. E sรณ encontro como pouso pequenas praias em que nรฃo deito.




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diário das águas ia longe a época dos rubores e constrangimentos quando decidiu retirar as travas de todas as portas e janelas. ele, caso retornasse, não precisaria ficar à espreita. ou, como ela, a vida inteira, à espera de convite. como ela, um bicho sentimental, à margem de tudo. edificou um santuário para servir de consolo. tolice. a cama continuava vazia, os lençóis impecavelmente ajeitados e um travesseiro macio que não guardava mais do que três lembranças interessantes. a bem da verdade, achava um enorme desaforo viver em desgraça permanente por ter escolhido não dobrar os joelhos em adoração ao mundaréu de santos espalhados pela casa. agora, anda se dando o luxo de algumas coisas, o de sentir pena de si mesma, por exemplo, e dessa seca e dessa sede.

eu não quero um pouco d’água. quero o mar inteiro.


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Ondine para Vagner Muniz

pensava em imensidões. as azuis, de seus olhos, invadindo outras: do mar. não fosse o murmúrio distante de todo o resto que lhe trazia os cinzas, as gentes, as cidades. o caos. tão pequenos sob seus pés. tão gigantes às suas costas. bastava abrir os braços e esperar pela distração do vento. e abrir, ainda mais, os olhos e fazer-se de surdo. em seus ouvidos o ruído branco das ondas orquestrava o próximo movimento. absoluto e dele e grande. como nenhum outro. agora, era ele e o abandono. o mergulho certeiro, em gozo, do azul, de seus olhos, na suavidade imensa do mar.



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lacrimal



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a passagem



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deriva





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espelhos d’água dérmicas escamas sopradas pelo vento barbatanas revérbero dos peixes e outros seres do abismo mundo invisível onde a luz é apenas miragem quem? habita meus olhos onde? a máscara do sol quem? sabe dos sonhos submersos das camadas da pele do sal dos olhos míopes cristalinas águas a se perder contidas pelas ásperas bordas do vazio


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algas marinhas flutuam nas águas de um mar vermelho — é tarde um céu de fogo arde e o sol mergulha tudo é marinho agora — é noite


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perto de mim flui generoso o rio todos mergulham ou molham as pontas dos p茅s (s贸 os meus sempre secos)




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ESPELHO Nas águas do velho rio que passa pela minha cidade e corta minha memória feito lâmina inclemente há barcos misteriosos que conduzem sonhos e malogros do menino que adormece em mim. Velhas histórias vão nesse leito que serpenteia por estranhas terras. E a ponte que se estende num dialético salto para distantes margens transpõe um espelho partido, provisório reflexo do que fui na imprecisão das coisas que me cercam. As vorazes correntes que me levam no ofício tenebroso das procelas expõem os meus dilemas e trazem no rude aprendizado a metamorfose crucial dos (des)caminhos.


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RESQUÍCIOS Nas águas do velho rio navegam barcos da infância que lancei rumo às estrelas. Ah, como dói saber que o menino ainda sobrevive na espera infundada dos sonhos. Sobre o beiral da ponte que atravessa a cidade, perco-me no espelho que me espia e diviso outras miragens. Onde ancorei a esperança? E em que ponto naufragou a utopia? Indago às novas torrentes, mas o murmúrio do leito imune aos meus apelos denuncia o imponderável que há nas coisas. Volto-me para a retaguarda de fastios, meus olhos testemunham ruga e mofo e em todo o canto algo deduz que o tempo, esse mar adiante das remotas águas, engoliu a minha história.


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RIO ANTIGO Nessas águas andarilhas do velho e escaldado rio que serpenteia pela minha cidade (ou pela minha veia?) debruço-me num espelho insosso: histórias que vão e vêm entre expurgos do que não fui.




paisagem urbana o andar bisonho denuncia o sapato apertado: o defunto era menor o vento levanta a saia e a sombrinha de dez real perde prumo e serventia veias arrebentadas do lado esquerdo da coxa esquerda atestam certo desencanto


o carro último tipo frea na poça e a moça impassível percebe-se ensopada até a alma o motorista acelera e vai: com o sorriso que têm as pessoas que deram sorte na vida


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a poรงa

na rua sopa de lua




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TRÍPTICO DAS ÁGUAS QUE FLUTUAM

I. SERENIDADE Algo de água no ar uma suspeita Na pele das coisas a busca de marcas em contraluz, de sombras (a face escura da ínfima gota) a mão pela janela: o que não se vê Respira-se água o vento (vivência primeva de peixe) Chuva-não vem.


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II. NOS DIAS DE QUASE,MENOS dias depois de Nos dias de chuva fina, música de Sílvio Ferraz para Rubens Zaccharias

rallentando

Às pétalas e pouca, ocas pérolas desaba pesada que o ar Ao menos, plana um quasemenos (céu que pensa nuvem.


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III. SUSSURRO DE UM DEUS O que está um nada acima uma nata de coisa-nenhuma abre num beijo o ar num sussurrohálito de palavra aerada A névoa o branco sobre o branco do dia: língua no ar a saliva de um deus É um deus quem sussurra

Sente em minha pele a umidade.




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Todos os olhos Certa vez ouvi, com ceticismo, a afirmação de que a água seria, no futuro, o produto mais valioso em nosso planeta. Primeiro porque eu sentia que as pessoas repetiam o senso-comum, difundindo, papagaios, o que escutavam pela rua. Segundo porque eu antevia que o futuro não estava tão distante assim, como imaginava meu interlocutor. A água, por meio das chuvas abundantes da minha infância mineira, me deixa a certeza de que ela é a representação mais lógica da esperança. E a esperança é a miscigenação de diversos acasos que ponteiam nossa vida. Há diversas águas neste livro. Ronaldo Cagiano retrata, por meio da impetuosidade das correntezas de seu Rio Pomba, a sua infância se esvaindo, a meninice de descobertas e privações. Isso, para o poeta, é memória. E é lembrança porque, como defendeu Heráclito, não se pode banhar duas vezes no mesmo rio. “Velhas histórias vão nesse leito/que serpenteia por estranhas terras.” Histórias que ainda abalam o homem, que o levam de volta para sua cidade natal, na tentativa de resgatar aquela ingenuidade latente que, temos certeza, não nos serve de nada, mas que nos atrai, como um sonho que sabemos que nunca se concretizará.


O poeta tem a vantagem de conhecer estas duas águas – a que o molhou no passado e a que o banha hoje. Porém, é um presente de grego, pois o autor entende que não é possível mudar o que já passou. “debruço-me num espelho insosso:/ histórias que vão e vêm/ entre expurgos do que não fui.” Cagiano e sua busca infrutífera por um rio que nunca mais será o mesmo. Eltânia André nos presenteia com a prosa poética “antes da chuva”. Como o título sugere, o que vale é o presságio, é o cheiro do vento que prenuncia a tempestade, são outras águas transmutadas dentro de casa, é o mistério: “Assistiria dali o desconhecido. Isolamento das pressões do viver – era o meu projeto.” A escritora nos traz os sentimentos desconexos que antecedem um grande evento: “Ouço trovões. Alegro-me. Entristeço-me. Vivo na dualidade. A cadeira acolhendo-me.” A água transformada em algo útil, como o café, que a personagem beberá como se soubesse que aquela metamorfose lhe traria uma surpresa, que ela não sabe o que é, mas que aguarda ansiosamente.


Silvana Guimarães canta as inutilidades, as pequenezas da água. Dela são as poças aparentemente desprezadas, que se formam nas ruas das cidades. E a beleza surge do olhar atento de quem ainda tem tempo para as ninharias: “na rua/ sopa/ de lua.” É a esperança de que a vida nos traga, diante das insignificâncias, o lado bonito das coisas, como se o cheiro do orvalho, que trouxe da infância, tivesse esse poder de deixar tudo o que é feio mais palatável. Mariza Lourenço relaciona a água à religiosidade. Em “diário das águas”, a escritora nos lembra que as escolhas nos definem e que é apenas um luxo o “sentir pena de si mesma.” Com uma prosa lírica e contundente, ela nos revela o desconhecido por meio de um mar que nossa vista não abarca inteiro: “em seus ouvidos o ruído branco das ondas orquestrava o próximo movimento.” E o que estará nos reservando um horizonte que ainda não alcançamos? O contraste pulsa no texto de Célia Musilli: novo/ antigo, mar/ deserto. A exemplo do que escreveu Eltânia, Musilli também trata das transformações que a água parece carregar. Todavia, a água de Musilli é a da fertilidade, a da continuidade, como nos mostra por meio de uma prosa enxuta, certeira: “Assim, apesar de todos os obstáculos,


fertiliza para sempre e sempre o renascimento, líquido como a criação.” Líquida, eu acrescentaria, como a própria origem. A água de Alberto Bresciani é traiçoeira, e é duas: uma na superfície e outra em sua profundidade: “a dor dos mil afogados e daqueles deixados à tona / as rupturas / as mil mortes que a água fez entrar pelas bocas”. É a descida, a tentativa de se alcançar o fundo de alguma coisa, que também, é óbvio, é mistério. E parece não haver a pretensão de se desvendar o problema, pois a vida desnudada não é vida. A água de Bresciani também é enigma e incondicionalidade: “O fundo / O fundo / O fundo / (quando o corpo tocar o fundo nenhum outro dia despertará)”. Bresciani, em “O esquecimento da água” atinge a plenitude de sua criação literária, com versos firmes, descobrindo-se num mergulho que é o esquecimento de si próprio, é a imobilidade de uma viagem dentro dos segredos do corpo, como se a morte fosse uma inesperada excursão rumo à iluminação: “O medo de segredos inúteis se desfaz aos poucos”. Vagner Muniz, em seu “Tríptico das águas que flutuam” nos lembra da mistura, da impureza: “Algo de água no ar”. E as gotas


que boiam na superfície do vento são como pérolas que ocultam o lado obscuro das coisas: “(a face escura da ínfima gota)”. Tudo tem seu lado obscuro. Como em Bresciani, é necessário que se localize o lado oculto de tudo. “O ar num sussurro” prepara o homem para a proximidade de uma chuva ou de um chuvisco que é, acima de tudo, reconfortante. Lilian Jacoto traz um mar incansável, que jamais sossega suas águas em praia nenhuma. É nessa vontade de bonança a origem do movimento: “Ofereci-te o leito em areia desdobrado/ E supus também ali nascer.” E o esquecimento que nos oferece também essa água que nunca banha a mesma areia duas vezes: “a água tudo apaga.” Ela leva em seu bojo a memória que, em algum instante, foi apenas alvoroço. Também encontramos o desconhecido em Ana Maria Lopes. Entretanto, em seus versos, há a necessidade de se compreender aquilo que a vista abarca: “muito longe,/ quase na borda da terra”. Ela intui que o fundamental é a busca e que nessa viagem, o retorno não importa: “Eu navegante/ buscando ventos”. E o que nos traz o inexplorado senão curiosidade e medo?, o que nos traz de volta senão o vento? E o que é o vento senão o prenúncio de algo talvez maior e mais complexo?


Fernanda Fatureto nos revela que a água é também espelho e esquecimento: “Essas mesmas águas, no futuro, vertem outra imagem”, o que não é necessariamente ruim. No espelho sempre podemos encontrar algo que nos agrade e o esquecimento muitas vezes nos livra daquilo que dói. E a palavra nada mais é do que uma armadilha e a ela recorremos apenas quando desejamos. Nydia Bonetti faz também sua ode ao desconhecido, ao abismo que é miragem. Os sonhos estão escondidos nessa aspereza que é o ignorado: “cristalinas águas a se perder contidas/ pelas ásperas bordas do vazio”. Mas alguém não deseja molhar seus pés no inexplorado: “(só os meus/ sempre secos)”. E todo esse sonho é tãosomente a peregrinação rumo ao próprio “eu”, ou àquilo a que chama “alma”. A força da água e a inevitabilidade de se sofrer as agruras de seu poder está presente nos versos de Alexandre Guarnieri. O nadador é um gladiador e testa a musculatura líquida de uma piscina que é, acima de tudo, prisão: “do tanque onde humanos/ praticam juntos a habilidade de seus músculos”. A beleza desta luta está justamente no fato de que não há vencedores, pois a água apenas emoldura, com seu ventre, um desejo de superação.


Adriane Garcia exalta a quietude das águas e sua capacidade de se transformar em um enorme cemitério, invertendo a lógica do rio. E “Uns dias depois” nos remete à violência de um novo dilúvio, “E o que é turbilhão/ De gentes/ Habitará o simples/ Das anêmonas/ e peixes”. Esta amostra de pontos de vista nos leva sempre a um mesmo sentido: a água, além de ser um suporte para a existência, carrega em nossas concepções, o acaso e a saudade. Os escritores desta antologia nos fazem repensar o significado da humanidade ao confrontá-la com sua natureza predatória e incoerente. Alguns mais outros menos incisivos, mas todos deixam seu naco de pólvora neste rastilho insensato que transporta sempre a mesma dúvida. Espero que todos encontrem na leitura destes textos o mesmo prazer que senti quando me debrucei em minhas análises. E que ninguém tenha receio do mergulho.






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design

Nana Santos Vagner Muniz

fotos da capa e das vinhetas

Nana Santos

tipografia Scala

Julho2014



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