Revista Raízes Jurídicas

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própria verdade, quer dizer, a verdade do alienado, mas a verdade do racional. Por isso, para Foucault, há sempre uma intimidade entre loucura e verdade.83 Nesse sentido, a verdade do homem acaba por ser a loucura, a nãorazão, presa pela própria razão, de tal modo que, o louco e o homem dizem a si suas próprias verdades, e o homem para indagar sua verdade, precisa fazer-se objeto, aprisionando, assim, sua razão em seu determinismo e seus condicionamentos. Para se conhecer o que o homem é, sua posição de sujeito, seria necessário saber o que o homem não é (o que se apresenta em sua loucura), o que o separa, através do conhecimento médico, da sua negação, de sua loucura, só possível por expressões máximas da literatura, enquanto formas livres, como de Nietzsche, Van Gogh e Artaud. Nesse senti0do, uma nova perspectiva para reler a loucura se abre para Foucault em Histoire de la Folie, pois somente através dos desatinos desses autores, é que a loucura se torna ausência de obra84, quer dizer: “... a loucura ocidental se tornou uma não-linguagem, posto que se tornou uma linguagem dupla (linguagem que apenas existe nesta palavra, palavra que não diz senão sua língua) –, isto é, uma matriz da linguagem que, em sentido estrito, não diz nada. Uma dobra do falado que é uma ausência de obra”, 85 ruptura absoluta da obra, um momento de abolição, que fundamenta o seu tempo e sua obra, e que permite, na sua ausência, demonstrar-se e estabelecer sua própria linguagem, sem o ‘não-senso’ da razão impositiva. É preciso ressaltar ainda, que Foucault, apesar do que muitos críticos procuram mistificar, tenta lançar as bases para um correto pensamento sobre a loucura, isto é, busca encontrar saídas para se repensar a doença mental como maneira de fuga ao projeto disciplinar e excludente, através do conceito de estrutura global. No último capítulo de Maladie Mentale et Psychologie Foucault salienta que se deveria procurar realizar um estudo que se fundasse numa “lou-

83 FOUCAULT, Michel. Folie, littérature, société. Dits et Écrits (org. Daniel Defert et François Ewald). Paris: Gallimard, v. 2, 1994, p. 112. “On peut alors tenter une histoire panoramique de la culture occidentale: cette coappartenance de la vérité et de la folie, cette intimité entre la folie et la vérité, qu’on pouvait reconnaître jusqu’au début du XVIIe siècle, ont été, par la suite, pendant un siècle et demi ou deux siècles, niées, ignorées, refusées et cachées. Or, dès le XIXe siècle, d’un côté, par la littérature et, de l’autre, plus tard, par la psychanalyse, il est devenu clair que ce dont il était question dans la folie était une sorte de vérité et que quelque chose qui ne peut être que la vérité apparaît sans doute à travers les gestes et les comportements d’un fou.” [trad. do autor. “Pode-se tentar, então, uma história panorâmica da cultura ocidental: esta coexistência da verdade e da loucura, esta intimidade entre a loucura e a verdade, que se podia reconhecer até no início do século XVII, foi, desse modo, durante um século e meio ou dois séculos, negada, ignorada, recusada e escondida. Ora, desde o século XIX, de um lado, pela literatura, e, de outro, mais tarde, pela psicanálise, tornou-se clara que na loucura havia verdade, e que, qualquer coisa que só pode ser verdade aparece, sem dúvida, através dos gestos e dos comportamentos de um louco.”] 84 FOUCAULT, Michel. Folie et déraison. Histoire de la folie ..., p. 302. [trad. br. História da loucura ..., p. 529.] 85 FOUCAULT, Michel. La folie, l’absence ..., p. 418. “... la folie occidentale est devenue un non-langage, parce qu’elle est devenue un langage double (langage qui n’existe que dans cette parole, parole qui ne dit que sa langue) –, c’est-à-dire une matrice du langage qui, au sens strict, ne dit rien. Pli du parlé qui est une absence d’oeuvre” [trad. do autor] RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011

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