aParte XXI - v. 4

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um círculo de crianças, outro de mulheres, outro de velhos e outro de homens jovens que ficam fora para proteger o círculo. Lá, fazemos teatro sempre para todos, ao mesmo tempo. A terceira palavra nós usamos para dizer o que vocês dizem com “vamos ao teatro”. Dizemos, em nossa língua, algo que poderia ser traduzido por: vou tirar o véu que cobre minha visão, me divertindo, ou ainda, vou clarear minha visão, brincando. É isso que temos na África. Não se pode dizer que entre nós não há teatro.

4. Uma história (e algumas digressões) sobre inteligência, escuta e resolução de problemas.

O relato que se segue, sobre a “casa da palavra”, foi feito para mim, em 2003, pelo amigo Abdou Ouologuem, de etnia dogon3, genro de Sotigui, artista plástico, cenógrafo e ator, atualmente em cartaz na ópera A Flauta Mágica, dirigida por Peter Brook. As digressões são minhas. A Tuguna ou “casa da palavra”, o também chamado lugar de encontro tradicional dogon, é um lugar público onde os problemas são discutidos e resolvidos. Aberto nas laterais, coberto por uma tampa de pedra, em geral com oito pés baixos, feitos de pedras empilhadas, o lugar serve para abrigar homens em suas discussões de problemas de todo tipo: uma praga na plantação de alface que afete a economia local ou prejudique a comunidade, um parente abrigado por tempo excessivo na casa de outro que venha a atrapalhar a vida familiar dentro da casa, etc. Na casa da palavra só entram homens. O teto de pedra e com baixa altura impede que os debatedores se encolerizem. Ao ficarmos tensos, nervosos, tendemos a nos levantar, ficar em pé. Quem tenta levantar ali, bate a cabeça na pedra. Isso é feito assim para que todos se mantenham calmos o tempo todo e lembrem disso ao baterem a cabeça no teto de pedra quando tenderem à agressividade. Nenhuma mulher entra para discutir o problema. O homem mais velho – em geral aquele que melhor sabe apresentar e descrever o problema – é o primeiro a falar. Enquanto ele fala, todos os jovens devem levantar uma das abas de seus chapéus – os dogons usam chapéus com abas que protegem as duas orelhas até abaixo do lóbulo. Somente uma das abas é levantada, pois se eles levantarem as duas, pode ser que deixem escapar o que escutam! Depois que o problema é apresentado, um primeiro jovem deve repetir tudo o que ouviu, redizendo todas as palavras ditas pelo velho, com 3 Etnia que vive numa região entre o Mali e o Burkina Faso. São considerados especialistas em astronomia a olho nu. 55

Juliana Jardim

Pensar a Desdramatização a partir de uma Aliança

“Para todo problema existe uma solução, se não, não é um problema. É outra coisa. Se é problema, tem solução” – frase proferida à exaustão por Sotigui Kouyaté em seus estágios e em conversas de aconselhamento com diversos amigos brasileiros e estrangeiros. “Pas de problème” é a frase mais falada no Burkina Faso, e pode ser traduzida por “não tem problema”.


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