A experiência do cinema - Ismael Xavier

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paradox de uma hipertrofia da concepção da montagem que permea-

va a estética do cinema mudo soviético como um todo e minha obrá em particular. Ao retomar o "instituto do conceito abstrato" como moldura para os possíveis produtos do cinema intelectual e como fundamento de base desta proposta fílmica - e uma vez reconhecido o avanço do cinema soviético, agora perseguindo outros objetivos, quais sejam, a demonstração de tais postulados conceituais por meio de açóes concretas e de personagens vivas, como acima observamos - , vejamos qual pode, qual deve ser o destino futuro das idéias expressas naqueles tempos.

E necessário, pois, descartar o colossal material teórico e criativo, no bojo do qual a concepção do cinema intelectual nasceu? Provou ser este tão só um paradoxo intrigante e curioso, uma tata morgana de possibilidades abortadas de criação? Ou provou seu caráter paradoxal residir não em sua essência, mas na esfera de sua aplicação, de modo que agora, após examinarmos alguns de seus princípios, pode ser que - sob nova aparência, com nova utilidade e nova aplicação - os postulados então expressos tenham desempenhado e ainda possam desempenhar papel altamente positivo para a abordagem teórica, compreensão e domínio dos "mistérios do cinema"? O leitor, sem dúvida, já adivinhou o modo como nos inclinamos a abordar a situação - e tudo o que segue servirá para demonstrar, talvez em linhas gerais, nossa compreensão e seu. provisório emprego como hipótese de trabalho que, para o desenvolvimento cultural da forma e composição fílmicas, tende a formular, pouco a pouco, pela prática cotidiana, uma concepção lógica e global. Gostaria de começar com a seguinte consideração: É extremamente curioso o fato de certas concepções e teorias, representativas do conhecimento científico em uma dada época histórica, decaírem enquanto ciência em períodos posteriores, mas continuarem, válidas e admissíveis, a existir, não mais no domínio da ciência, mas no domínio da arte e da imagicidade. Tomando a mitologia como exemplo, verificamos que, a certa época, ela nada mais foi senão um complexo corrente de conheci-

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mentos sobre os fenômenos relatados, em geral, em linguagem figurada e poética. Todas aquelas figuras mitológicas que agora, na melhor das hipóteses, consideramos materiais de alegoria, representaram, a certo estágio, uma compilação imagística do conhecimento do Universo. Mais tarde, a ciência passou da narrativa por imagens aos conceitos, e o conjunto de antigos símbolos de natureza mitológica personificada sobreviveram como uma série de imagens pictóricas ou metáforas literárias, líricas, etc. Por fim, mesmo este conjunto de símbolos esgotou esta sua condição e perdeu-se para sempre nos arquivos. Basta refletirmos sobre a poesia contemporânea, comparando-a à poesia do século dezoito. Outro exemplo: tomemos um postulado como o do apriorismo da Idéia, mencionado por Hegel em relação à criação do mundo. E que era o ápice do conhecimento filosófico a certo estágio. Mais tarde, o ápice foi superado. Marx pôs este postulado de cabeça para baixo na questão do princípio de apreensão da essência da realidade. No entanto, se considerarmos nossas obras de arte, encontramo-nos efetivamente num estado que se aproxima bastante à formulação hegeliana. Pois o autor se possui da ideação, está sujeito ao preconceber da idéia, dado que deve determinar o processo total da obra de arte em seu movimento. Se cada um dos elementos da obra de arte não representar uma corporificação da idéia inicial, não alcançaremos jamais como resultado uma obra de arte acabada, em sua pJenitude total. Supomos naturalmente que a própria idéia do artista não nasce de modo espontâneo, nem é engendrada por si mesma, mas é uma imagem-espelho socialmente refletida, que é um reflexo da realidade social. Porém, a partir do instante de formação no artista deste ponto de vista inicial, acaba esta idéia por determinar toda estrutura real e material de sua criação, todo o "mundo" de sua criação. Imaginemos um outro exemplo de um outro domínio: a "Fisiognomonia", de Lavater, tida em sua época como um sistema científico objetivo. Mas a Fisiognomonia hoje não é mais ciência. Lavater já tinha sido desprezado por Hegel, muito embora ainda Goethe, por exemplo, colaborasse com ele (na verdade, anonimamente; a Goethe atribui-se um estudo fisionômico da cabeça de Brutus). Não atribuímos à Fisiognomonia nenhum valor científico, mas na ocasião de recorrermos, no curso de uma representação exaustiva de uma per-

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