Fuligem: Terrores Paulistas (O Buraco)

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Tiago Teixeira

Fuligem: terrores paulistas 1ª Edição SãoPaulo Time Machine 2015


Publicado por Time Machine Copyright © 2015 por Tiago Teixeira Todos os direitos reservados ISBN 978-85-918800-0-3 Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais é mera coincidência


O Buraco Engoli o orgulho e entrei na sala, pronto pra ouvir. O Lino estava derretido em cima da cadeira: O senhor do seu castelo de dois por três e paredes de compensado. Fechei a porta, as paredes tremeram. Em frente ao Lino estava um velho metido num terno azul escuro de conciérge. Os olhos pretos e pequenos como tachinhas estavam fixas em Lino, à espera da resposta para uma pergunta que não cheguei a ouvir. Sentei-me a seu lado. “Nós dois aqui temos a solução para o seu problema.” Lino disse. Concordei com a cabeça. Soluções eram boas. O velho ao meu lado continuava olhando para Lino, como se estivessem sozinhos na sala. Talvez tivesse tido um derrame. Talvez estivesse apaixonado. “E de que problema estamos falando?” eu disse. “Você sabe”, Lino teria esticado as pernas por cima da mesa se tivesse espaço, mas se limitou a se espreguiçar como um gato velho e efeminado, “Na Consolação.” Então, eu tinha razão, era o meu na reta. Falei cuidadosamente, como se me dirigisse a uma criança retardada


segurando uma AR-15. “Lino, você sabe que eu já fiz tudo que era possível. A d. Polônia não quer sair. Eu sei que já tem quatro”– “Seis.” “Seis, porra, seis meses, que seja”, eu desabotoei meu colarinho, “Eu só queria deixar claro que eu fiz o que eu podia.” Lino olhou a caixa de arquivo morto em cima de uma estante. Era lá onde ele guardava as fichas dos empregados. Tinha chegado a hora? Calculei mentalmente meu FGTS. Com a pensão alimentícia e o financiamento do carro, acho que dava pra viver uns quatro meses. Daria mais se não estivesse ainda pagando o apartamento que a Viviane me tomou. Ele se desinteressou da caixa e botou uma caneta esferográfica na boca, mordendo a carga durante um longo minuto. “Essa cidade devia ser a cidade do futuro, dos empreendimentos, do amanhã. É o motor do Brasil.” Lino disse apertando a carga da caneta com os dentes, “Quem se importa tanto em derrubar uma casinha no motor do Brasil?” ele levantou a caneta no ar, dando ênfase a si mesmo e exibindo os dentes, “É o rolo compressor do Brasil.” Tinha esquecido do velho ao meu lado. Ele virou a cabeça para mim, dando-se conta da minha presença pela primeira vez.


“Como o Senhor Lino disse, nós temos a solução para o seu problema.” disse o velho. O velho tinha um colar de feira hippie escondido embaixo da camisa social bege. Pedrinhas coloridas em um cipó fino. Onde eu já havia visto aquilo? “Você vai demolir a casa por engano”, o velho terminou. Lino sorria com tanta força que achei que a pele retesada sobre suas bochechas ia se rasgar como um tomate maduro. “Você vai levar o pessoal lá e demolir a casa”, ele torceu a carga da Bic entre os dedos, “Quando a polícia chegar, se chegar, você diz que foi por engano. A responsabilidade não vai cair sobre você, mas sobre a demolidora.” “E a d. Polônia?” “Provavelmente vai processar a demolidora e vai receber da gente uma indenização de trezentos mil.” “A casa vale pelo menos o triplo.” “É bastante pra uma velhinha.” “O juiz vai arrancar o nosso coro, Lino.” “Não vai. Eu conversei com ele sobre o assunto no aniversário da Cláudia semana passada. Tamos juntos.” Meu olhar flutuou pela sala. Uma ideia tão genial e cruel que


só poderia ser gerida em uma construtora. Fixei-me na caixa de plástico amarela. Lino martelou a caneta na mesa com força, mas sem nervosismo. “Eu não vou fazer isso”, eu disse. Lino levantou a Bic no ar mais uma vez. Seu olhar passeou pela sala, circulando sem rumo, até parar sobre a caixa de arquivo morto amarela para onde eu também olhava. “A d. Polônia não sai de casa”, eu disse. O velho girou a cadeira, “Essa noite ela vai sair. Uma emergência na família. Ela volta pela manhã.” “Ela tem família?” O velho girou a cadeira de volta para a direção de Lino. “E quem é o senhor mesmo?” eu disse. “Alguém que quer que isso tudo acabe.”

*

Vai dar merda. A Paulista estava parada. Peguei a São Carlos do Pinhal


ignorando a sinalização, cortei a Augusta, cheguei à Consolação. Vai dar merda. Saí do carro na frente do terreno. Um retângulo enorme de terra cor de rim, com uma casinha perdida bem no meio da calçada. Toda a vila em volta já tinha sido vendida para a construtora e demolida, com indenizações consideráveis. Menos a casa da d. Polônia. Andei até lá sujando minha calça cáqui de terra. Era só mais uma casa sem personalidade nem valor arquitetônico, como quase todas em São Paulo. Um quadrado funcional de dois andares feito pra você comer, dormir, cagar. Nisso o Lino tinha razão, quem se importava com aquela porra? Bati porque a campainha não funcionava. D. Polônia se arrastou até a porta. Era uma velha incolor de olhos quase invisíveis perdido em bolsas de pele. O cabelo continuava preto e liso. Devia estar perto dos 90, talvez 100. E me recebeu com um sorriso, mesmo sabendo por que eu estava ali. Como todas as outras vezes em que estive na casa, ela me levou até a sala entulhada de lembranças, quadros, lixos variados que deviam valer pouca coisa. Uma vida inteira em forma de quinquilharia. Sentamos nas poltronas no meio do tapete redondo de sisal.


Ela falava sem pressa. Conversamos sobre o tempo, o trânsito, as eleições. Precisava sempre de pelo menos dez minutos de conversa mole pra tocar em algum assunto importante com ela. Sou péssimo de conversa mole, mas com ela não me importava. Acabamos por esgotar os assuntos inofensivos. “A senhora já pensou sobre a oferta da construtora?” Dona Polônia sorriu um sorriso de velhinha. “Quantas vezes você já me perguntou isso?” “Trezentas”, respondi em uma aproximação razoável. “E o que eu sempre te respondi?” Os olhos pequenos apertados pelas bochechas grandes me observavam com a superioridade sincera de alguém que não ia ser movido. Ou empurrado. Dona Polônia já havia resistido por quase um ano ali, mesmo quando derrubaram tudo em volta, quando deixaram os motores ligados de noite durante uma semana de propósito, quando a remoção dos restos mortais da sua ex-vizinhança cobriu sua casa de terra vermelha por semanas. A velha era uma muralha. Não, não uma muralha. Uma muralha podia ser derrubada pelo Lino. “A senhora concorda que a gente tem um impasse aqui, certo? O que acontece é que isso tudo, esse problema todo, tá caindo todinho em cima de mim.”


Ela continuou em silêncio. “Eu entendo que a senhora não quer sair. De verdade. Essa é a sua casa. Mas isso já foi decidido, por forças maiores que eu ou a senhora, a gente não é nada nesse processo, sabe, formiguinhas. Podemos gritar, espernear, e vamos continuar sendo insetinhos. A construtora vai pisar na gente do mesmo jeito”, aproximei o indicador do polegar esmagando um ser invisível, “formiguinhas.” E ela lá, sorrindo. “Eu estou implorando pra senhora”, segurei suas mãos ossudas. Eu preciso deste emprego”, sussurrei sem querer. Era verdade. Dona Polônia deixou as mãos ali e olhou pra mim durante um longo instante com seus globos oculares do tamanho de bolinhas de pebolim. “Essa pode ser a última vez que eu venho aqui, a senhora entende? A construtora não tem tanta paciência.” A velha ajeitou algo no pescoço. Olhou em volta e tensionou os braços, ainda musculosos para sua idade, que me lembraram dos pedreiros que trabalhavam comigo todos os dias. Verificou o último botão da camisa. Ajeitou os cabelos ainda negros. Preparava-se para dizer algo difícil. “É a primeira vez que você está sendo sincero comigo.”


“Não fala assim, d. Polônia.” “Então eu vou ser sincera com o senhor.” Ela observou a sala pensativa. Depois olhou para o tapete. “Essa casa não pode sair daqui.” “A casa?” “Sim.” “A casa não pode sair daqui?” A velha retirou as mãos das minhas e se reclinou na cadeira, olhando em volta. “Eu tomo conta da casa. Sempre houve uma casa aqui.” “Nesse endereço?” “Desde que existe gente.” Reclinei-me na cadeira, tomando uma distância segura, como se a senilidade fosse um vazamento de butano perigoso, pronto a explodir minha cabeça. “A senhora está aqui desde sempre?” “Claro que não.” Levantei-me. “Então essa casa aqui, está aqui desde sempre?”


“Não esta casa. Houve outras antes. Mas sempre teve uma casa, aqui, nesse lugar. É importante que tenha uma casa aqui. Senta.” Era uma ordem e eu obedeci. “Minha mãe morou aqui. E a mãe dela. Quando Isaias Pederneiras chegou, já encontrou uma casa. Era um bandeirante que atravessou o pacífico com Manuel Preto. Ele matou os que moravam aqui, menos uma. Ela mostrou a ele a importância da casa. E os dois continuaram no mesmo lugar. Tem tido uma casa aqui desde essa época e tem tido sempre alguém guardando a casa. Quando meu tempo acabar, meu filho tomará meu lugar. E o filho dele. E assim por diante.” “A senhora não pode sair daqui?” “Eu nem sei se é possível. A casa não deixaria. Ela tem um propósito, e é perigosa quando precisa ser.” Eu também terminaria assim? Sozinho e senil, pegando uma pensão absurda com uma filha que me odeia? Eu não conseguia dizer mais nada. Aquilo era só triste. A velha se levantou. Com um aceno de mão, pediu que eu a imitasse e obedeci. Andou até a ponta da sala, abaixou-se dobrando em noventa graus na altura da cintura e puxou a ponta do tapete redondo sem esforço, derrubando duas cadeiras forradas de palhinha.


No meio do chão de madeira havia um pequeno buraco circular do tamanho de um punho. D. Polônia e apontou para o buraco. “Tem uma coisa ali embaixo. Uma coisa ruim. Ela tenta sair todo o tempo e tem muitos artifícios. A casa tem que estar aqui para impedir que ela saia.” Se d. Polônia tinha enlouquecido, podíamos conseguir um impedimento legal. Talvez eu pudesse servir como testemunha. Eu precisava falar com Lino. “Olhe.” ela continuou. “No buraco?” “No buraco.” “Não precisa, eu acredito na senhora, sério.” Ela permaneceu parada, o braço estendido terminando em um indicador beligerante apontado para o pequeno orifício no chão. Olhei o buraco. Era um buraco escuro. Uma corrente de ar subia por ele junto com cheiro de folhas secas, tempero forte, sebo. “Não consigo ver nada.” “Mais perto.”


Dei um passo na direção do buraco. “Mais perto.” Sei lá por que me ajoelhei. Aproximei a cabeça do buraco, e um vento úmido subiu lá de baixo. Qual era a profundidade daquilo? Ainda não conseguia ver nada. Então, o som: unhas arrastando contra concreto. Pulei para trás. “Porra, isso é barulho de rato, tá cheio de rato aí, caralho!” Pedi desculpas pelos palavrões com um olhar de moleque bagunceiro. A velha tinha parado de sorrir. Andou até a porta e a segurou aberta, esperando minha saída com um queixo apontando para a rua. “Vai. Pode contar pros seus chefes.” Botei as cadeiras no lugar. Madeira de lei, pesada. Antes de fechar a porta, ela segurou minha manga. “As coisas por aqui crescem sem se perguntar o que havia antes. E outras coisas estão em seu lugar por uma razão. Nem tudo é transitório como sua gente gostaria que fosse. Algumas coisas não devem mudar. A casa fica aqui. E eu fico com a casa. ” O botão do alto da camisa da velha tinha aberto e vi em seu colo enrugado um cordão de cipó com pedras coloridas. Era a


segunda vez que eu via um colar daqueles hoje. Pensando bem, era a segunda vez que eu via aqueles olhos pequenos e negros. A velha fechou o botão e a porta.

*

Liguei pro mestre de obras e deixei todos de sobreaviso. A equipe estava ciente do que ia se passar ali de noite. Poucos homens de confiança, que não iam dar com a língua nos dentes se a justiça engrossasse. Fiquei esperando dentro da Ranger cabine dupla do outro lado da rua, prestes a demolir as lembranças de uma velha senil para preservar meu emprego e as prestações do carro. Pelo menos o dinheiro tinha sido bem gasto, porque a Ranger tinha tudo, incluindo vidro filmado que não permitiu que o velho de paletó de conciérge me vise quando parou num táxi e tirou a senhora de dentro da casa. D. Polônia se segurou no teto do carro antes que o velho a guiasse para dentro e olhou direto nos meus olhos, a mágoa e decepção atravessando o vidro, acertando meu olhar em cheio. Eu era invisível atrás do vidro. Mesmo assim tive que controlar minha vontade de me enfiar embaixo do banco. Pobre velha.


Ele segurou seus ombros e a depositou no banco de trás. Consegui ler nos seus lábios, “Vamos, mãe.” Eles se foram, deixando para trás uma nuvem de terra vermelha. Fui encontrar o pessoal no fundo do terreno.

*

A tesoura hidráulica Elephant, acoplada na escavadeira, possuía uma válvula de alívio de pressão para proteger o motor ao mesmo tempo que a válvula de aceleração fornecia uma alta agilidade na abertura e fechamento da mandíbula, que tinha um pino único para aumentar a força de corte. Ela podia ser usada para esmagamento, pulverização e demolição. A abertura das mandíbulas e dentes customizados tipo soldados ou substituíveis podem ser escolhidos, como os dentes endurecidos feitos de aço especial e lâminas retangulares que estávamos usando. Oto ia usar a tesoura para derrubar a casa em poucos golpes. Quando ele terminasse, Cabaço usaria a segunda escavadeira para jogar o entulho dentro do caminhão que já estava estacionando do lado de fora. Péricles, o mestre de obras, balançava a cabeça de um lado para o outro, dizendo em silêncio, que aquilo não era certo. Como se tivéssemos escolha. Oto acionou a escavadeira, e o motor ecoou por toda a rua. Em


alguns minutos, as linhas ficariam congestionadas por moradores endinheirados telefonando para a polícia para reclamar não da demolição ilegal, mas sim do barulho no meio da noite. A polícia faria a vista grossa de sempre, ou encaminharia a multa irrisória para a construtora. De qualquer jeito ia ser tarde demais. A escavadeira começou a se mover. Ela deu uma volta em semi-círculo e aproximou da casa, rangendo e esmagando o chão laranja, os dentes de aço tintilando de ansiedade. Péricles e eu andávamos a seu lado. “Fui falar com a d. Polônia hoje.” eu disse. Péricles deu de ombros. “Ela falou que a casa está aí desde, sei lá, o começo do mundo.” Péricles pensou um pouco antes de responder. A tesoura se aproximou da primeira parede, metros, centímetros, milímetros. “Tomara que a velha tenha deixado o IPTU em dia.” Péricles disse. Eu ri. Ele riu. Gargalhadas nervosas ecoaram pelo terreno vazio, quase acima do ruído insuportável do motor– E a escavadeira parou. Nossas risadas também. A tesoura estava parada a um dedo da parede, a escadeira morta e apagada.


Oto chutava o painel, “É a porra da bateria, quer apostar?” ele desceu do veículo e examinou o motor. Não era a bateria. Tentou dar a partida mais umas três vezes. Alguns moradores enfiaram a cabeça na janela, crentes que seus telefonemas raivosos tinham adiantado. Alguém gritou “Chupa, baiano”, o que não condizia com o suposto padrão sócio-cultural da região. Quer dizer, condizia. Oto começou a telefonar. Cabaço já estava dormindo na direção da segunda escavadeira, esperando sua deixa. Oto se afastou, gritando com alguém do outro lado da linha. Eu e Péricles ficamos de braços cruzados vendo o plano do Lino ir pro saco. “Tem um buraco lá dentro.” eu disse. “Como?” “Um buraco, desse tamanho, ó. A velha falou que tem alguma coisa lá.” “Tem o quê?” “Uma coisa.” “Que coisa?” “Eu não olhei.” “Tipo um tesouro?”


“É uma velhinha, não o pirata do Caribe.” “Um pirata. Não ‘o’ Pirata. São vários piratas.” Eu podia ler no rosto de Péricles o que se passava na sua cabeça. Não era preciso muita imaginação. “Ela podia ser a tua mãe, Péricles. A tua avó.” Péricles grunhiu e olhou em volta, checou a hora, acompanhou a gritaria de Oto, que a essa altura já estava do outro lado da rua berrando com seu celular no ouvido de algum técnico, se sacudindo como um boneco inflável de posto de gasolina. Apertei os braços contra o peito e encarei a casa. Era uma porra de casa feia, quadrada, grades nas janelas, um quintal arrasado coberto de terra vermelha, uma porta dos fundos, que a velha tinha deixado apenas encostada. Péricles percebeu. E entrou primeiro.

*

“Onde é?” Péricles disse. “Debaixo do tapete.” Ele deu uma bicuda no tapete, derrubando as cadeiras. O repreendi com um olhar de reprovação que ele matou no peito e


chutou a gol. O buraco estava lá. Péricles murmurou um palavrão, arregaçou as mangas da camisa do Palmeiras e se colocou de quatro. Colou o rosto no assoalho e um olho dentro do buraco, “É escuro pra caralho.” Andei pela sala. Não bastasse derrubar a casa e destruir as memórias da vida de uma senhora, nem o mínimo respeito com a privacidade da pobre Polônia tinha resistido. Eu tinha sido transformado em um bandido à serviço da especulação imobiliária. Péricles apertou mais a cara contra o chão. Havia uma série de fotografias encostadas no parapeito da janela, dispostas em porta-retratos de R$ 1,99. A velha. A velha, menos velha, com seu filho velho, menos velho. O filho que a havia arrancado de casa. Os pais da velha, os pais dos pais da velha. Era fácil ver que pertenciam aos mesmos ancestrais, uma mistura de genes europeus e indígenas, todos com olhos minúsculos, cabelo liso e negro, braços compridos. Essa parte da história da d. Polônia conferia. O Péricles havia sacado o celular, usando a luz do visor para iluminar o buraco. Agora apertava sua cara contra o chão, “Acho que tá vazando gás.” “Então tira a fuça daí.” eu disse. “Peraí, tem alguma coisa aqui.”


Foi a última coisa que Péricles conseguiu articular. Ele berrou e seu corpo convulsionou para trás, atirado contra a parede, derrubando pratos de porcelana no chão, quebrando um jarro com girassóis. Corri até ele, mas eu não existia para Péricles, com seus olhos fixos no buraco, a mão apertando o celular até trincar o vidro e tirar sangue dos dedos. Ele se afastou de mim, correndo de costas sem tirar os olhos do buraco até bater na parede oposta e destruir uma coleção de gatinhos de porcelana. À medida que seu grito aumentava, ele se encolhia mais contra o canto da sala. Péricles havia sido reduzido a um instinto primitivo de horror. Ele enrolou os membros ao redor do peito redondo, uma carapaça feita de carne e medo. Segurei seu ombro e ele gritou ainda mais alto, as veias nopescoço inchando se retorcendo debaixo da pele. Pulei para trás como se houvesse encostado em uma chapa quente. O berro reverberou pela casa e dentro da minha cabeça. Que porra era aquela? Ninguém conseguia gritar naquela altura. Tentei sacudir o corpo retorcido, mas Péricles continuava gritando. Eu gritei também, chamando seu nome, mas o barulho agora se tornou mais alto, metálico, áspero. Quando o reboco começou a cair, vi que não era Péricles.


Era a tesoura hidráulica. A parede de trás da casa tremeu e entortou. Vigas de madeiras partiram, ouvi as telhas se quebrando no andar de cima e uma nuvem de pó branco caiu sobre nós. A porta da frente estava trancada. Enfiei a cara pela pequena janela na porta que servia de olho mágico e gritei por Oto, mas ele não ia ouvir. O filho da puta ia matar a gente. A casa rangia entre os berros alucinados do Péricles. Tentei a saída dos fundos por onde entramos, mas a parede já havia cedido, trancando a porta no batente. Um bloco de tijolos caiu na minha direção, rasgando minha camisa e minha perna. Voltei para a sala, puxei Péricles para a parede oposta. Gritei por Oto trezentas, quinhentas vezes e nada. Corri até a janela gradeada da sala, tentando alertar alguém na rua. E lá estava Oto, do outro lado da calçada, olhando embasbacado para algo atrás da casa. Cabaço veio gritando pela rua, correndo para longe. Oto pensou em fazer o mesmo, mas gritei de novo e ele saiu do transe, correndo até a janela, e anunciou o que já passava pela minha cabeça. “Não tem ninguém na Tesoura, cara, NÃO TEM NINGUÉM.” Mandei ele abrir a porta da frente. Oto chutava a porta pelo lado de fora, e eu por dentro. Péricles se arrastou pela sala, ainda


gritando e segurando os olhos, e se enfiou embaixo da escada de madeira. Acertei a porta com meu ombro e o grunhido da tesoura agora enchia toda a casa: mais perto, mais alto, o rangido do metal vinha pela abertura feita nos fundos. Peguei uma das cadeiras de madeira de lei e acertei a porta. Uma fresta de abriu na parte de cima. Enfiei os dedos ensanguentados pela fresta e puxei pra dentro, atravessando minhas mãos com farpas. Oto entendeu e começou a empurrar no lado oposto. A tesoura grunhiu de novo e acertou algo vital na construção. Uma parede do segundo andar desabou, caindo em cima da escada, que enterrou Péricles embaixo de duas toneladas de entulho. Eu não conseguia ver nada, entre lágrimas, pó e desespero, meu pulmão se enchendo de lascas de madeira e tijolo velho. Investi uma última vez contra a porta, e ouvi um som alto de algo se partindo. Não a porta, mas meu ombro. Gritei, preenchendo o vazio deixado por Péricles. Oto chutou do outro lado e a porta se partiu. Ele me segurou pelo ombro destroçado pelo esforço e eu quase desmaiei de dor. Me puxou para fora na hora que o segundo andar desabou. O estrondo e a nuvem de detritos nos jogaram em cima de arbustos secos do quintal, cobertos pela grossa poeira que tinha sido a casa da d. Polônia.


*

Quando a casa estava no chão, a tesoura parou. Eu continuava gritando e tapei a minha própria boca com as mãos até me acalmar. Não conseguia ver nada, apenas a silhueta de Oto vomitando do meu lado. Meus olhos ardiam, minha cara estava coberta de catarro. A dor no ombro era insuportável mas eu estava muito cansado para gemer. A nuvem de poeira tinha coberto todo o terreno, salpicando de cinza a terra vermelha. Limpei os olhos e olhei para o que sobrou da casa. Cambaleei de volta, chutando placas de madeira, pernas de mesa, telhas. A escada tinha ficado poucos metros na frente. Apertei os olhos, tentando enxergar algo que pudesse indicar o paradeiro do Péricles. Finalmente achei o lugar. Não foi difícil, porque havia alguém de pé no lugar onde Péricles tinha sido soterrado. A poeira ainda estava alta. Tossi até o estômago doer. Em algum lugar, Oto chamava por mim. Enrolei minha camisa ao redor da cara, tapando o nariz. Venci uma pilha de livros velhos e roupa de cama coberta por telhas e me aproximei do homem. Ele estava coberto de pó branco, grudado em uma camada grossa de sangue. Podia ver tendões, ossos inteiros a mostra, uma cabeça amassada de um lado, quase caindo, a cabeça de Péricles.


Ele me percebeu ali. Eu não sei como estava de pé. Alguma coisa dentro de mim estalou, um instinto de sobrevivência que eu nunca havia usado. Oto me chamava e não consegui responder. Mal conseguia respirar. Aquilo não era Péricles. As cavidades oculares vazias e esmagadas estavam ocupadas por uma nova substância que servia de órgãos sensoriais que examinaram sem pressa os prédios, a ponta dos espigões da Paulista, as luzes das torres de rádio piscando no horizonte tomado de concreto, ouviu o barulho do trânsito ao longe, a sinfonia de motores e buzinas silenciosas de toda noite, uma pequena multidão de torcedores do Corinthians que tinha se amontoado na esquina para assistir à desgraça alheia. Aquilo via a cidade pela primeira vez. Parecia que estava pensando. Tive outra crise de tosse, cuspi catarro branco, a coisa me ignorou. Ela se moveu. Um passo. Depois outro. Um fêmur partido rasgou sua perna como um espeto de churrasco. Pensei que fugia da sua prisão. Mas não. Estava voltando pra casa. Ele se deitou no chão, colando a boca no buraco. Deu um


suspiro que demorou horas. O corpo de Péricles murchava, inerte. E ficou em silêncio. Meu sangue voltou a correr devagar, a respiração voltava aos poucos, minhas pálpebras estavam parando de convulsionar. Eu me aproximei. Sua cabeça estava deitada em cima do buraco no chão, a boca colada na borda, como se houvesse vomitado seu conteúdo na pequena abertura. Do seu lado havia uma uma bola de cristal vagabundo que havia sobrevivido ao desabamento. Eu a enfiei no buraco. Como uma luva. A poeira começou a abaixar. Oto gritava cada vez mais perto. Apesar da poeira, comecei a ver as coisas com clareza. Juntei alguns tijolos e comecei a empilhar um muro.


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