A mulher que colecionava tempos inexistentes

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A MULHER QUE COLECIONAVA TEMPOS INEXISTENTES


FICHA TÉCNICA EDIÇÃO: Edições Vírgula

® (chancela Sítio do Livro) Mulher Que Colecionava Tempos Inexistentes AUTORA: Maria Teresa Loureiro TÍTULO: A

CAPA: Patrícia Andrade REVISÃO: Maria Helena Loureiro e Manuel José Loureiro PAGINAÇÃO: Paulo S. Resende

1.ª EDIÇÃO Lisboa, Maio 2014 ISBN: 978-989-8678-66-9 DEPÓSITO LEGAL: 373864/14

© MARIA TERESA LOUREIRO COPYRIGHT FOTOGRAFIA DE CONTRACAPA © BEATRIZ LOUREIRO PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO

Av. de Roma n.º 11 – 1.º Dt.º | 1000-261 Lisboa www.sitiodolivro.pt


MARIA

TERESA

LOUREIRO

A MULHER QUE COLECIONAVA TEMPOS INEXISTENTES



À Beatriz e aos meus pais, pelo amor a perder de vista. À Sónia, à Luísa, à Helena, ao Frederico, à Celeste, ao António e à Antonieta, e a todos os meus amigos que me fazem sentir protegida e especial. Ao Sérgio, que deu origem a muitas das palavras que se seguem.



Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar; Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar; Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar; Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora; Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar; Tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz. Eclesiastes 3:1-8



Epílogo Há dias em que antes de acordarmos já sabemos que aquele não vai ser um dos mais agradáveis, por causa de um sonho deslocado, por causa de uma recordação que escondemos de nós próprios, não tão eficazmente como pretendíamos, ou apenas por causa de um sinal dado pelo nosso corpo que nos diz que algo não está como devia estar. Há dias em que gostaríamos de ser invisíveis. Em que preferíamos não ter que nos mexer. Em que olhamos para trás e não compreendemos como temos o que temos pela frente. Em que tentamos descobrir as falhas que cometemos com os outros, e não percebemos as falhas que cometeram connosco. Em que a chuva e o vento nos fazem sentir insignificantes. Em que nos apetece conversar e dizer tudo o que não dissemos na altura devida. Em que gostaríamos de ter outra pele, outro corpo, outro pensamento, outra memória. Em que precisamos dos olhos, da voz e do toque das pessoas de quem gostamos. Há dias em que a música nos magoa e outros em que nos salva. Nesses dias, olhamos para dentro de nós, sem pressas, e gostamos de ser como somos, embora preferíssemos ser diferentes. Hoje não é um desses dias. Caderno da Coleção de Pensamentos de A.

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Olívia recosta-se no sofá, depois de pousar o caderno entre eles, e pergunta: «Gostava de saber escrever assim, tu não?» «Repete lá, Olívia, estava distraído.» «Deves estar a gozar comigo, não vou ler isto outra vez, não em voz alta.» «Está bem, então lê em voz baixa, tanto me faz, sabes que não tenho alma de poeta.» «Isto não é poesia, Pedro.» «Mas parecia… talvez por causa do tom da tua voz.» «Deixa-te de conversas.» «Ainda bem que estás de volta.» «Porquê, não gostavas da outra versão de mim?» «Não, prefiro esta.» «Ainda bem. É bom estar de regresso a mim. Queres mais um whisky?»

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UM Inspiras e expiras, uma, duas, três vezes. Baixas as pálpebras, inclinas a cabeça ligeiramente para trás, num esforço de concentração, e contas em voz alta até dez. Após uma pausa, inspiras lentamente pelo nariz, até sentires todos os alvéolos dos pulmões cheios, e expiras com um único sopro, que te faz tossir. Retomas a contagem, que desta vez não é mais que um murmúrio, e chegas ao trinta, sem gaguejares, nem tropeçares nas palavras como te acontecia quando eras miúda sempre que a professora da segunda classe, depois de te chamar pelo apelido, um Monteiro que detestavas e que ela fazia questão de transformar em Monteira, por maldade ou simples estupidez, e de te mandar pôr de pé em frente de toda a turma, te obrigava a cantar a tabuada completa, como suposto tratamento para a tua gaguez. Marcas mentalmente o compasso de um tempo entre a verbalização de cada número, para absorveres em pleno o alívio que sentes ao descobrires que sabes pronunciar o nome do que vem a seguir, e que a capacidade de os contar pela ordem correta não foi obliterada da tua memória. E satisfaz-te compreenderes que esta é uma capacidade que só depende da tua vontade, que se te apetecer podes 13


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continuar a fazê-lo sem hesitações, em surdina ou a cantar, até ficares rouca e com a língua colada ao céu-da-boca. Enquanto saltitas entre números e pensamentos que não têm nada para contar, as sombras dentro do quarto alastram-se e parecem ganhar vida própria. Interrompes a contagem nos setenta e três, momentaneamente desinteressada, e concentras-te a explorar os buracos negros da tua memória; sorris ao localizar as linhas sem imaginação do emproado 1, com o indicador da mão esquerda desenhas no ar as linhas cruzadas do 4, os arredondados elegantes do 2 e do 3, o infinito 8, e a sensualidade do 6 e do 9… «Que grande disparate!», exclamas e encolhes os ombros, um tique feio que pelos vistos também não perdeste. Tentas retomar o exercício de contagem, desta vez em sentido decrescente, mas antes de chegares ao número sessenta e cinco, o teu esforço de concentração e o teu ânimo esmorecem. Abraças-te durante um momento na tentativa de sacudir o desânimo que sem quereres se agarra à tua carne. E quando a tua pele morna, apenas saída da cama, absorve e descodifica a sensação de frio transmitida pelas tuas mãos, constatas com surpresa e algum divertimento: estou nua! Estremeces, mas não abres os olhos, ficas muito quieta, apreensiva, à espera de mais uma palavra ou uma frase que te tranquilize, mas os ruídos que pairam à tua volta são apenas os que as janelas entreabertas deixam passar, indistintos, e demoras, mais uma vez, a perceber que o que acabas de ouvir é o som da tua própria voz. Na obscuridade das tuas pálpebras fechadas e da tua mente confusa, não podes ter a certeza se é prazer o que sentes naquele vaguear por entre as sombras e as pequenas lembranças que 14


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sobreviveram ao holocausto que exterminou parte da tua memória. Só quando o frio se transmuda num tremer generalizado que põe em perigo as sensações recuperadas é que te vês forçada a abri-las, para que os olhos te ajudem a orientares os teus movimentos naquele espaço que te é estranho. * E se a minha vida estivesse a acordar neste instante? Pergunta a si própria, sem qualquer pingo de esperança. Fica muito quieta a ver as sombras da noite esmorecerem e, por fim, escaparem pela janela aberta, à medida que a claridade vai cobrindo as paredes com a indolência de mais um dia que desponta. Os contornos à sua volta vão recuperando gradualmente os respetivos volumes, através da palete de cores e tonalidades que os preenchem até lhes devolverem a existência inanimada de objetos. Aproveita os movimentos de alongamento dos músculos que espreguiçam a réstia de sonhos e de sono, para alcançar o roupão de turco que sobressai com a sua cor de sangue no gancho em que pende atrás da porta lacada de branco, mas interrompe o gesto a meio caminho, deixando os braços cair ao longo do corpo. O frio que a estava a incomodar é arredado para segundo plano, dando lugar à curiosidade: quem será aquela que está ali colada à parede, mesmo ao seu lado, a tentar passar despercebida? Uns olhos vazios observam-na, primeiro de relance e, depois de pestanejarem, fixamente. Com a ponta dos dedos, sente a superfície dura e fria quando percorre os contornos da cara à sua frente. Durante uns momentos fica presa na ausência de reconhecimento daquela mulher que a olha 15


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sem expressão. Só quando o seu corpo se volta a queixar, desta vez com um arrepio que lhe percorre a coluna vertebral, e um violento espirro a leva a instintivamente completar o movimento de pegar o roupão e o cingir contra o corpo, é que Olívia compreende que tem estado a observar o reflexo da sua própria imagem. Aproxima-se até deixar de se ver com nitidez e cola o nariz ao espelho, embaciando-o com a respiração; que estúpida. «Sei contar até cem, mas não me lembro da minha própria cara», conclui antes de virar as costas a si própria com um movimento zangado. Fecha a janela com brusquidão e quase rasga as cortinas quando as tenta abrir uma e outra vez com um puxão; felizmente, logo a seguir, a luz do candeeiro da mesa-de-cabeceira acende-se, distraindo o seu aborrecimento. Em cima do tampo branco está uma folha de papel, tal como todos os dias da semana nos últimos dois meses, ao lado de uma moldura grande, que enquadra a fotografia de um homem vestido com uma camisola de gola alta azulescuro. Por baixo, uma legenda identifica o fotografado: PEDRO – MARIDO. Mas à medida que se aproxima, a sua atenção desloca-se da fotografia para a folha de papel branco, confirmando que a sua predileção pelas palavras manuscritas mantém-se, mesmo que seja uma letra que parece lutar contra um vento tão forte que lhe atira a cabeça e os ombros para trás. Já com a folha entre os dedos, lê a primeira frase, uma indicação para o seu dia. 1. VESTIR A ROUPA QUE ESTÁ EM CIMA DA CADEIRA VERMELHA. 16


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Desconhece o que lhe provoca aquela certeza de que deve seguir as instruções escritas e obedecer à ordem ali estabelecida, talvez tenha que ver com uma lógica numérica crescente ou seja apenas a sua tendência natural para cumprir uma dinâmica de rotinas. O que sabe é que não pode perder de vista aquela folha. Procura à sua volta e identifica a cadeira do outro lado do quarto. Sem largar a folha de papel, dirige-se para o objeto vermelho enquadrado no seu ângulo de visão. A meio do caminho volta a dar de caras com os seus olhos escuros, sem expressão, refletidos no espelho: «Estamos longe de ser bonitas», exclama sem emoção, ao reparar nas linhas finas à volta dos olhos e dos lábios, e termina com um encolher de ombros: «e também já não somos lá muito novas», após o que retoma a linha de pensamento condutora das suas atividades matinais. Aproxima-se da cadeira, atira o roupão para cima da cama e começa a vestir-se; a ordem da maioria dos gestos diários é algo que a memória lhe permitiu manter, desde que não reflita muito antes de os fazer, eles surgem e processam-se com naturalidade. Ao terminar, regressa para a frente do espelho, aproveitando as suas capacidades de duplicação de imagens, e avalia o aspeto com que está; agrada-lhe a roupa escura em tons de verde, quebra a palidez da pele e conjuga bem com o ruivo do cabelo. Uma impressão nos tornozelos fá-la olhar para baixo, a folha de papel acabada de deslizar da sua mão ficara encostada aos dedos encavalitados dos seus pés descalços, as letras e os números estão virados para cima. Durante 17


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um pedaço daquilo a que já reaprendeu a chamar de tempo, fica imóvel, sem saber qual o próximo passo a dar. Finalmente, e já que não lhe ocorre nada de diferente para fazer, relê a primeira instrução, e roda a cabeça até voltar a ter o vermelho da cadeira no seu campo de visão, verificando que não está mais nada em cima do tampo. A impressão nos tornozelos reaparece e recaptura-lhe a atenção; sorri ao ver um gato aos seus pés, e põe-se de cócoras para lhe afagar o pelo branco. Uma chapa metálica que pende da coleira azul que lhe envolve o pescoço tem escrito o que deve ser o nome dele: «Bo-rra-cha», lê-o sílaba a sílaba em voz alta. Ao ouvir uma voz articular o seu nome, mesmo que vazia de modulações e inflexões, o gato começa a ronronar e a mordiscar-lhe os dedos dos pés. «Para, estás a magoar-me!», exclama, dando-lhe uma palmada ao de leve no rabo. O gato reage com uma pirueta de circo e esconde-se debaixo da cama, onde fica a espreitar, espalmado entre o estrado e o chão de madeira. Mas toda a gente sabe que o ressentimento dos gatos dura menos que um piscar de olhos, apenas o tempo de inventar uma outra tropelia qualquer. E o bicho acaba por exibir a sua destreza felina ao sair de debaixo da cama e saltar para cima da cadeira, rodopiando sobre si próprio, enquanto tenta manter um brinquedo do momento entre as patas. Mas no minuto seguinte desaparece pela porta do quarto como uma bola de pingue-pongue. Sem mais nenhuma fonte de distração, Olívia observa os seus pés nus e a folha de papel caída no chão, e lê pela terceira vez, como se fosse a primeira, sem saltar a numeração nem a pontuação: «Um. Ponto. Vestir a roupa que está em cima da cadeira vermelha.» E quando olha, também pela terceira vez, para a cadeira, vê que 18


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em cima do tampo está agora o brinquedo com que o gato andou a brincar, não estava ali nada, pensa, sem que faça grande sentido pensar nesta evidência. Apanha o papel, e enfia-o no bolso das calças depois de o dobrar meticulosamente em quatro, vai novamente até à cadeira e verifica que afinal o objeto com que o gato brincava é a peça de roupa que lhe falta vestir. Apoia-se nas costas da cadeira e, depois de desembrulhar as meias, enfia-as nos pés frios, apreciando a sensação morna aconchegante. Os sapatos hão de estar junto da porta da rua, estrategicamente colocados pelo seu marido, para que se sair de casa não o faça descalça. Este cansaço… Não compreende o seu corpo, não se lembra de ter feito nada que justifique estar tão cansada. Deixa-se cair em cima da cama, encolhe as pernas e encosta-as ao peito, até poder apoiar o queixo nos joelhos, e o pensamento vagueia livremente por aquele espaço numa tentativa inútil de lembrança. É apenas um lugar no mundo, como tantos outros desconhecidos para si. Mesmo à sua frente, um quadro enche parte da parede; como é que ainda não o tinha visto? A primeira impressão é a de uma fotografia tirada por uma grande angular, precisamente a partir do sítio onde se encontra. Mas quando se aproxima da tela repara na rugosidade da superfície e ao tocar-lhe ao de leve com os dedos sente o relevo imperfeito da tinta, afinal trata-se de uma pintura a óleo, neste caso híper-naturalista. A legenda plastificada que sustenta a reprodução dos objetos, colada na parede por baixo da tela, parece coisa de museu; ajuda-a na identificação da CADEIRA, no reconhecimento do objeto maior, que é a CAMA, branca, e até a colcha de lã às cores coincide na perfeição com a que vê naquele instante, das 19


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duas MESAS-DE-CABECEIRA, também pintadas de branco, sobre as quais sobressaem duas molduras com fotografias; fazendo fé nas respetivas legendas, a da esquerda mostra uma imagem sua de corpo inteiro e um PEDRO – MARIDO na da direita. Reconhece ainda o GUARDA-FATOS, e uma CÓMODA preta de quatro gavetas, cada uma delas com o desenho tosco de uma peça de roupa, que Olívia acredita corresponder ao género das que guarda no seu interior: um soutien vermelho para mamas descomunais, na de cima, uns collants pretos com pés demasiado pequenos, na do meio, e umas cuecas de gola alta azul claro, na de baixo, mesmo rente ao chão. Uma pintura de homem distraído ou de mulher zangada ou frustrada com a sua feminilidade. Ao fundo, encostado à parede, junto à janela, um cadeirão de orelhas, chama-lhe a atenção, não só pela cor invulgar para um objeto daqueles, mas por ser a única peça de mobiliário que não tem um modelo correspondente no quarto. Vai até à janela e encosta a testa ao vidro, o frio provoca-lhe uma sensação de bem-estar que se estende a todo o corpo. Não tem vontade de fazer nada, talvez porque não se lembre de nada para fazer, a sua existência decorre num plano paralelo à realidade, criando-lhe uma sensação de não pertença a lado nenhum. Toca ao de leve na cara, no pescoço, afaga e aperta os ombros; a sensação de prazer que o contacto das suas mãos no seu corpo lhe dá é reconfortante, e Olívia aproveita esse momento ao máximo. Os cheiros da noite ainda pairam no quarto apesar da janela entreaberta, colam-se às últimas sombras que vão sendo levadas pela luz de mais um dia que desponta. Enlevada por esta miscelânea de sensações, que se desmorona e renova sucessivamente, apura 20


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os cinco sentidos e tenta identificar os sons, os cheiros à sua volta, leva os dedos das mãos ao nariz, mas antes de inspirar afasta-os, tem receio que o cheiro da sua pele não tenha ficado entranhado na memória, e desiste, pelo menos para já. Prefere ensaiar alguns sons, pronunciando o nome dos objetos que a rodeiam, mas a voz que ouve tanto pode ser dela como de uma outra mulher, limita-se a ser um som rouco e arrastado. Só me resta a sensação de repetição do que penso e do que digo. Volta a concentrar-se no quadro, e pensa que o acha muito feio, de mau gosto, mas insiste em observá-lo, na esperança de encontrar uma impressão de déjà vue algures dentro de si. Mas, passado o que lhe parece ser uma eternidade, nenhum pormenor faz o seu coração libertar-se da indiferença monocórdica dos seus batimentos. Assim, desgasta-se menos, pensa em jeito de consolo e sorri das suas considerações mudas, para uma audiência inexistente, transferindo a atenção para o acessório essencial, vital: a folha de papel dobrada, que sem ter dado por isso tirou do bolso das calças, e segura entre os dedos. Desdobra a folha: 2. VAI PARA A COZINHA (PORTA LARANJA). TOMA O PEQUENO-ALMOÇO. Só depois de ler a segunda instrução é que compreende que parte do desconforto físico que sente, já para não referir os roncos que a sua barriga deixa escapar, tem que ver com a falta de ingestão de alimentos; feliz ou infelizmente, esta é uma das sensações que a fazem sentir-se viva, embora não se recorde quando foi a última 21


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vez que sentiu fome antes desta. Atualmente todas as últimas vezes são as que vive no imediato. Antes de sair do quarto para o que ameaça ser o desconhecido de mais um dia, dirige-se à fotografia do marido e pega nela. Um homem alto, com excesso de peso e careca, que olha para um ponto qualquer atrás dela através de uns óculos sem aros de lentes retangulares. Tem um sorriso torcido que devia ajudá-la a lembrar-se de alguma emoção que lhe estivesse associada, mas não ajuda. Ao ver a fotografia nem compreende o que a levou a casar com aquele homem: «Pelos vistos, sou uma mulher que gosta de homens sem cabelo!», afirma sem grande convicção mas divertida com a conclusão a que chega, devolvendo a moldura ao seu lugar. Se bem que atualmente gostar ou não gostar seja uma mera afirmação positiva ou negativa vazia de emoção. O estômago de Olívia emite mais um rugido de protesto e ela apressa a saída do quarto. Mas o seu entusiasmo esmorece perante o corredor comprido e sombrio que se estica à sua frente; estantes repletas de livros encavalitados uns nos outros forram as paredes de ambos os lados. A sucessão de livros é interrompida por três portas fechadas, à direita. A primeira é azul e pertence à CASA DE BANHO. O desenho quase pornográfico de uma mulher nua, sentada num bacio, torna evidente o que se pode encontrar para lá da porta. A segunda, cor-de-rosa, tem pendurada uma fotografia de uma rapariga de cabelo mais vermelho que o seu, com uma legenda bem visível, QUARTO DA ALICE - FILHA. Depois de agarrar na maçaneta e colar a orelha à porta hesita em entrar. Nenhum som, 22


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e do interior escapa-se um cheiro a ervas secas e canela; talvez mais tarde… O seu objetivo é a porta laranja ao fundo do corredor, mas antes ainda passa por uma porta branca, a SALA, com uma fotografia colada ao nível dos seus olhos que a faz interromper, mais uma vez, a sua marcha. Num primeiro plano está a mesa de vidro rodeada por seis cadeiras metálicas, que pelo aspeto devem ter sido pensadas para não ter ninguém sentado muito para além do tempo de comer as entradas, e num segundo plano o sofá branco à frente da lareira. Na parede destaca-se um ecrã plasma de televisão que lhe parece desproporcionado em relação ao tamanho da sala. Tem vontade de entrar, só para confirmar se o interior é mesmo assim, tão sem graça, mas mais um protesto do seu estômago leva-a a desistir da ideia e a estugar o passo até à porta da COZINHA. O excesso de luminosidade, que trespassa as janelas, encandeia-a e impede-a de avançar, ergue o braço com a intenção de proteger os olhos, mas o movimento esmorece antes de conseguir completá-lo, mais uma vez aquele cansaço condiciona os seus movimentos, deixando-a paralisada. E assim, fica de pé entre a entrada e a saída, de braços caídos ao longo do corpo, com o papel de instruções esquecido numa das mãos, como se se tratasse de uma bússola avariada, incapaz de a trazer de volta para si própria. Um mundo de objetos, (re)conhecidos mas sem familiaridade, vai engolindo a sua atenção numa explosão de cores e texturas que têm o dom de lhe dar uma ilusão mínima de pertença. Tenho que me sentar. A ausência injustificável de energia aborrece-a, acabou de se levantar da cama e pouco mais fez do que 23


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vestir-se. Três passos suspirados e senta-se num dos bancos altos que rodeiam a mesa. O ruído descontínuo dos carros que circulam na rua quebra o tiquetaque monocórdico do relógio de parede que está pendurado por cima do lava-loiça. O dueto desafinado preenche uma parte do seu abismo íntimo, deixando o resto na mais completa escuridão. * Um dia do teu passado, há quantos dias, semanas ou meses não sabes, terias de perguntar a alguém, desmaiaste na rua, à porta da empresa onde trabalhavas, e desligaste-te do mundo, algo que todos gostaríamos de ser capazes de fazer de vez em quando. Talvez estivesses zangada, ou apenas cansada da vida que tinhas. Se foi cansaço, demoraste muito tempo a recuperar; durante dois meses deambulaste entre a vida e a morte, numa espécie de coma. Acordaste quando os teus amigos se preparavam para te esquecer e os médicos começavam a desinteressar-se do teu caso. O teu estado de confusão deixou-os tão atarantados como tu; sentias-te perdida no interior de uma pessoa que desconhecias, e que por sua vez não reconhecia nada nem ninguém à sua volta, como parte de uma vida já vivida. Só alguns dias mais tarde, talvez uma ou duas semanas, depois de um sem número de exames médicos, quando as dores brutais que ameaçavam estalar-te a cabeça abrandaram e os músculos do pescoço e dos ombros relaxaram, é que começaram a tratar-te como um ser humano e não como uma cobaia. 24


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Uma manhã, um homenzinho de cara triangular e uma barbicha que encaracolava no peito quando falava - vieste a saber pelos mexericos das enfermeiras que fora quem te salvara devido à sua casmurrice, pela qual era odiado no hospital -, explicou-te a ti, na medida em que o teu desligamento de ti própria te permitia entendê-lo, e a um homem, de voz densa e agradável, que te garantiram vezes sem conta ser teu marido, que a tua doença, um herpes esquisito e perigoso, encefálico?, danificara irreversivelmente uma parte do teu cérebro, situada no hipocampo, tendo sido a memória semântica a grande vítima. Memória semântica? Mais tarde tiveste que procurar o significado destas duas palavras no dicionário, mas o resultado da busca não te ajudou por aí além. Memória, já tinhas percebido do que se tratava, era algo que perderas em parte, agora a junção com a semântica é que te baralhava. Na verdade continuavas a reconhecer a maioria dos objetos e a associar-lhes as devidas imagens e designações, porque é que não conseguias associar uma cara aos nomes das pessoas que iam passando por ti? * Uma voz de homem distorcida quebra a opacidade dos seus pensamentos: «Bom dia, Olívia!» Instintivamente olha por cima do ombro, mas não está ninguém atrás dela. Mais dois ou três ruídos, seguidos de um estampido, e a voz não diz mais nada. Empoleirada no banco de madeira, Olívia passa o olhar pela fachada do prédio em frente; durante algum tempo não passa de uma paisagem parada que ocupa o seu campo de visão e lhe é indiferente, mas a certa altura, a imobilidade da imagem é cortada pelo movimento da porta 25


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de uma das varandas a ser aberta mesmo à sua frente. Um homem sai, encosta-se às ferragens do parapeito, e acende uma cigarrilha, que tira de um dos bolsos da túnica branca que o cobre até aos pés. É muito alto e de uma magreza extrema. Dá passas prolongadas e brinca com o fumo, tentando moldá-lo com trejeitos da boca que o fazem parecer palerma. Quando acaba, atira a beata para o chão da sua varanda e esmaga-a com a sola grossa das botas pretas que traz calçadas. Logo a seguir, no andar por cima dele, surge uma mulher que a faria sorrir ao compará-la com uma das figuras femininas do Botero, se se lembrasse dele e das suas pinturas. Tem o cabelo amarelo, quase platinado, e as suas formas generosas estão envoltas num vestido preto esvoaçante. Cambaleia numa dança incoerente, ou talvez ao som de uma música sem ritmo, inaudível para Olívia, e, sem interrupção ou hesitação, sobe para o parapeito de mármore da varanda com uma destreza improvável. Em desequilíbrio, e com os cabelos a esvoaçar à frente da cara, olha de relance por cima do ombro, e depois para a janela aberta à sua frente, através da qual Olívia a vê; os olhares chocam-se a meio caminho. Talvez a mulher procure uma esperança, algo que lhe dê uma razão para voltar atrás na sua decisão, mas os olhos que a observam não lhe devolvem nada, são como uma parede intransponível, sem emoção nem curiosidade, apenas existem numa cara que está virada para ela, por acaso. A voz metálica dentro da cozinha faz-se ouvir novamente e a atenção de Olívia desprende-se do desânimo silencioso da mulher loira. Apenas tem uma perceção auditiva, vaga, da alteração de ruídos no exterior, travagens bruscas, seguidas de um chocar de chapa e alguns gritos, antes e depois do baque que o corpo faz ao 26


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embater no asfalto. Nem lhe passa pela cabeça levantar-se para ir à varanda ver o que se passa. Desta vez, a voz nas suas costas não interrompe o seu discurso. Concentrada nas palavras e na descodificação dos respetivos significados, já só quer encontrar o dono daquela voz. Roda o corpo até ficar de costas para a janela. «Hoje, depois do almoço, vais ter a visita de dois colegas teus, o Nuno e o Alexandre. Se calhar não estás a ver quem são.» Olívia descobre finalmente que a voz parte de um televisor suspenso na parede de um dos cantos da cozinha. Compreende que está a olhar para a cara do marido, ao ver o crachá azul que ele usa ao peito e a nítida falta de cabelo; talvez tenha sido a voz que a levou a casar com ele, transmite-lhe uma sensação de conforto. «Continua focada nestas imagens e a seguir podes ver o vídeo que gravaste com eles quando foram os três a um encontro qualquer a Amesterdão, há um ano ou dois. Mais uma vez, não me perguntes o que foram lá fazer, não faço ideia. Assim quando eles aparecerem já sabes quem são, pelo menos fisicamente.» No ecrã da televisão surge um homem e uma mulher a passear de braço dado, num jardim. Pela luz do ambiente que os envolve, a cena passa-se no final do dia. Vê-os de costas, mas os reflexos avermelhados do cabelo revolto dela levam-na a suspeitar que está a olhar para si própria. Ouve-se o barulho dos carros muito ao longe, gritos e risadas de crianças, e a dada altura, a campainha de uma bicicleta que passa por eles muito depressa. Logo a seguir, surge um outro homem, de frente para a câmara, que olha para o casal com cara de poucos amigos. Abre a boca para falar e começa a gesticular no 27


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preciso momento em que o som começa a falhar, e pouco depois, a imagem acaba por ficar parada nesta cena. Olívia sente o tempo a flutuar à sua volta, mas quase nem se atreve a respirar. Esta imobilidade temporal é o seu melhor refúgio, nada lhe pode ser exigido ou perguntado, e ela prolonga-se até o barulho de uma sirene de ambulância cortar o ar. Meus Deus, este som horrível outra vez, não. Por favor! * Recuperaste os sentidos na ambulância, apenas o tempo suficien-te para perguntares à socorrista, que segurava a tua mão esquerda entre as dela, onde te encontravas e te queixares das dores de cabeça, se bem que as desvalorizando, pois suspeitavas que pudessem estar a ser provocadas pelo barulho estridente da sirene. Sempre tiveste vergonha de queixar-te. Estavas irrequieta e a arder de febre. Na verdade, eras a única dentro da ambulância a acreditar que nada do que te estava a acontecer era grave, nem sequer preocupante. A tua última perceção consciente foi o aumentar de velocidade depois de um outro socorrista verificar os teus sinais vitais. Só voltaste a recuperar os sentidos já no hospital, olhaste à tua volta, estavas rodeada de homens e mulheres com batas brancas, e deu-te para gracejares: fizeste um sorriso de orelha a orelha, ou pelo menos tentaste orientar os músculos da cara nesse sentido, e balbuciaste que te sentias no paraíso, com tanta gente a tratar de ti, antes de caíres num túnel sombrio, sem fundo. Entraste em coma, e assim ficaste durante duas semanas, a pairar entre a vida e a morte 28


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enquanto o herpes encefálico se banqueteava com um pedaço da tua memória. Terás sonhado que vivias uma outra vida ou pura e simplesmente vagueado numa inconsciência opaca e solitária? Nem tu nunca virás a saber. * O pequeno ecrã recupera a vida e quando Olívia volta a olhar para ele, dois homens conversam acaloradamente, sem que consiga ouvir o que dizem um ao outro. Nada na gravação ajuda a saber quem é um e quem é outro, apenas lhe foi dito que são colegas seus, mas nada de nomes, nada de pormenores que lhe permita identificá-los, apenas vê que um é loiro, de cabelo encaracolado, e o outro tem cabelo preto, muito liso. Agita-se no banco, incomodada com o ruído estridente da ambulância que a atinge através da janela aberta para a varanda, o desconforto físico que lhe provoca é desproporcional à intensidade do barulho em causa, mas também não sabe como abrandá-lo. Tenta distrair-se, retirando o miolo das fatias de pão que descobre no saco de pano às flores azuis e amarelas, que está à sua frente em cima do tampo da mesa, e põe-se a moldar figuras em miniatura, primeiro sem prestar grande atenção ao que faz nem despender grande esforço, mas a certa altura concentrando-se naquela atividade criativa. Aprecia a destreza com que molda as pétalas de uma flor, agrada-lhe o toque do pão entre os dedos, e o mais importante é que a descontrai. Mas o apito da sirene da ambulância reacende-se, 29


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desta vez num lamento que se lhe agarra à cabeça e impede a sua atenção de se manter focada durante muito tempo. Olívia massaja as têmporas com as mãos e tapa os ouvidos. Finca os cotovelos na mesa à sua frente e a dor de cabeça surge do nada, ligeira quando aparece, mas tornando-se insuportável à medida que se vai instalando em todo o crânio. Embora não seja capaz de a situar temporalmente, sabe que já sentiu esta dor horrível num qualquer ponto do seu passado ou talvez numa outra vida que poderá ter sido a sua ou a de outra pessoa qualquer. Com as palmas das mãos toca na cara e na testa, estão a escaldar. Enquanto o corpo mantém uma temperatura normal, as suas pernas estão frias e os tornozelos quase gelados; mal consegue mexer os dedos dos pés, e quando o tenta fazer, as cãibras obrigam-nos a encavalitarem-se uns nos outros. A dor é quase insuportável, obrigando-a a levantar-se. Dá uns passos à volta da mesa enquanto trauteia uma canção qualquer, em inglês para ser mais difícil e tentar desviar a atenção do desconforto. Não faz ideia de que canção é. Olha para o que a rodeia durante o seu deambular forçado naquele espaço apertado, até que se imobiliza, presa à viagem de um pingo de água que sai da torneira do lava-loiça no que parece ser uma cena em slow motion, mas quando ele cai e se espalha no alumínio, o som que produz é irreal na sua intensidade e faz ricochete nas quatro paredes da cozinha antes de lhe atingir a cabeça, quase a fazendo implodir. Abre a boca, mas a língua cola-se-lhe ao céu-da-boca, travando-lhe o grito. Apoia a cabeça no tampo de mármore da bancada, tenho que me endireitar, preciso de beber água, pensa, sem no entanto fazer um 30


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gesto nesse ou em qualquer outro sentido; se bem que algo lhe diga que só a água tem o dom de lhe fazer passar as dores de cabeça. Olívia fica durante uma eternidade de tempo naquela posição, esquecida dos movimentos necessários para se endireitar e dar um passo; ignora que o seu cérebro tem a capacidade de obrigar o corpo a cumprir o que ele lhe mandar fazer. Nunca comentou isto com ninguém, esta luta interior que não consegue dominar, esta desconexão entre o ela físico e o ela cerebral, e na verdade nem saberia com quem o fazer, todos lhe são estranhos. Sem qualquer sinal de pré-aviso, o seu corpo endireita-se numa atitude de rebelião, e antes que ela se aperceba bem do que está a acontecer, as pernas levam-na até ficar à frente do lava-loiça. Toca com os dedos na água que se acumulou no fundo. Está fria. Faz uma concha com ambas as mãos para apanhar os pingos que a torneira desperdiça e quando acumula uma dezena leva-os à testa: que alívio! Renova por diversas vezes a água fresca nas mãos, molhando a cara. Nas primeiras vezes, a sua pele está tão quente que a água se evapora quase de imediato, mas aos poucos a temperatura do seu corpo vai baixando, mas as dores de cabeça persistem. * Numa outra realidade interior, adormece, ou provavelmente sonha acordada, e o seu olfato é impregnado do cheiro a maresia liber tado pelas ondas que se desenham no interior dos seus olhos. Ouve o som dos pés a pisar a areia seca, e uma carícia morna começa por lhe envolver a ponta dos dedos, sobe lentamente ao longo das pernas, toma-lhe o corpo, tornando as imagens à sua volta 31


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mais intensas: uma praia de dunas douradas, onde só a energia ou a melancolia do mar se transforma no seu devir permanente, uma massa azul imponente e que nunca se repete, por muito que se tente reconhecer-lhe algum movimento igual a um anterior. Se estivesse disposta a pensar no assunto, nunca iria chegar a perceber como é que a sua memória guarda esta vivência tão real, quando, como neste instante, fecha os olhos para se libertar de uma vida que já não é a sua nem voltará a ser, deve ser isto que sentimos quando descobrimos o lugar onde pertencemos, ouve-se a pensar, mas nem os pensamentos que a sua cabeça produz lhe fazem sentido. Não está sozinha nesta praia, sabe que há mais alguém ali, mas é incapaz de descobrir quem. Se ao menos pudesse transferir o corpo, e não só a mente, para aquele lugar que os seus olhos fechados veem. Nesse mundo irreal nada tem a rigidez de um nome imposto, o mar, as nuvens, e até as dunas de areia podem alterar o nome conforme apetecer a quem olha para eles, num dia o mar chama-se azul e no outro verde ou branco, e as nuvens podem ter o nome de flocos de neve ou de algodão, tanto faz. Quando olha para o que está à sua volta não identifica substantivos apenas imagens sem nome, e alguns adjetivos que ajudam a traduzir as sensações que as imagens deviam provocar-lhe. Adjetivos como mar melancólico, ou dia eufórico, ou passeio sereno; em cada sonho, um diferente, só para não as perder, as palavras. Nunca sabe ao certo quanto tempo aquela irrealidade se vai manter ao alcance do seu toque. Tal como as palavras, o tempo é mais uma armadilha montada contra a sua paz interior. Detesta 32


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a noção de tempo, esse pedaço de qualquer coisa que se vai reduzindo, até desaparecer por completo. Uma sensação desconhecida leva-a a olhar para os pés mergulhados até aos tornozelos na água salgada, mexe os dedos para poder fixar na memória a sensação do contacto da areia molhada na sua pele, e os pés enterram-se um pouco mais enquanto a rebentação rasteira lhe salpica as pernas nuas. Gosta de acompanhar o vaivém do mar, o movimento das conchas e das pedras minúsculas na rebentação. E assim se vai deixando ficar, a gozar o contraste entre o calor do sol e o frio da água, o reconhecimento das sensações, e a ouvir o tempo parado em mais uma cena colecionada pela sua imaginação. Quando a sua atenção se cansa da rebentação, olha para o horizonte, mas o brilho da luz refletida no mar fere-lhe os olhos e obriga-a a desviá-los. Atrás de si, as ondas de areia a perder de vista e eis que ele aparece, primeiro o seu cabelo negro a esvoaçar, depois os ombros, demasiado pálidos para estarem desprotegidos num dia de sol, e por fim todo um corpo esguio, braços a baloiçar ao ritmo do seu caminhar por entre as dunas. Ele está em todos os seus sonhos, não a vê, nem olha para ela, mesmo quando interrompe a passada para observar o mar, é como se nenhum dos dois existisse. De todas as vezes, acena-lhe e chama-o pelo nome que sabe ser o dele, mas ele não ouve a sua voz, ou ignora-a. A primeira vez que o viu, no seu primeiro sonho, tentou alcançá-lo, mas a distância entre eles nunca chegou a diminuir; apesar de ele não alterar o ritmo da sua passada e de ela correr para ele, 33


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nunca se aproximaram. Mas prepara-se para tentar mais uma vez, tenta sempre. Um ruído metálico desenquadrado do seu sonho, onde tudo é macio e moldável, transtorna a sua permanência naquele outro mundo; há sempre qualquer coisa que a impede de chegar ao homem que se desloca entre as dunas ou nada ao longo da praia, sem nunca dar mostras de se interessar por ela. Ainda não conseguiu ver-lhe os olhos, e na verdade nem precisa de o fazer, sabe que têm todas as cores da natureza, são rebeldes e doces. * Não quero voltar a mim. Dói-me tanto a cabeça, lembra-se de ter pensado ainda a pairar entre os dois mundos. Apoia o queixo nas mãos que guardam o cheiro e a humidade salgada do mar. Quando já nada mais lhe resta para além do véu opaco das pálpebras, abre os olhos, sem grande convicção; assim de repente não sabe bem onde se encontra, só se lembra do barulho desagradável que a trouxe de regresso a esta realidade. Olha para o chão da cozinha à procura do que o terá provocado. Assusta-se ao ver o gato branco esgueirar-se para debaixo da mesa. Fica presa ao jogo de escondidas do bicho, até ouvir o som repetitivo de uma campainha ao fundo. Ignora-o. Um reflexo de um espelho ou de um vidro encadeia-a e desvia-se logo de seguida para a parede atrás dela. Segue-o com o olhar. Num ponto ao nível dos olhos vê um retângulo imperfeito desenhado na parede branca, levanta-se e debruça-se sobre a masseira, mas quando está quase a tocar-lhe com as mãos, eis que ele se desloca uns centímetros para a esquerda. 34


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«O que é que será isto?», interroga-se em voz alta e divertida com o que parece ser um jogo. Passado um momento já está sentada numa das extremidades do móvel, de tronco torcido, com uma mão apoiada no tampo de madeira e a outra a tentar chegar ao misterioso pedaço de luz. Com a ponta dos dedos desenha os contornos da forma imprecisa, mas nada acontece, nenhuma sensação para além da rugosidade da parede. Quando começa a ganhar confiança e a observar com curiosidade as costas da sua mão banhada por aquela luz misteriosa, ela desloca-se, fugindo-lhe por entre os dedos e fixando-se um palmo mais à frente, e deixa de a conseguir alcançar. Concentra-se nos pequenos ruídos à sua volta, apura o ouvido mas nada. Continua sozinha. Põe-se primeiro de joelhos e depois de pé em cima do tampo de madeira, o contacto da madeira na planta dos pés é agradável. Porque é que estarei descalça? Mas mal acaba de pensar já a sua atenção é desviada para o pedaço de luz mesmo à altura da sua cara. Encosta a testa à parede e depois uma das bochechas, sente o frio do estuque, que contrasta com o calor que lhe queima a bochecha exposta ao reflexo. Protege-a com uma das mãos e o ardor provocado pelo calor passa para as costas dessa mão. Percebe finalmente que o reflexo está a ser provocado algures no prédio da frente, atravessando a rua e trespassando as janelas da cozinha. Fica encadeada e com os olhos a arder quando descobre a origem daquele fenómeno, que afinal mais não é que a projeção do reflexo do sol no vidro da janela da casa mesmo em frente da sua. Depois de recuperar a visão e esfregar os olhos, procura um outro ângulo para observar a varanda vizinha, a mesma de onde a mulher de olhar sonhador e triste a tinha fixado antes de se deixar 35


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cair. E quando consegue voltar a olhar para o outro lado da rua, o reflexo passa pela sua cara num ápice, atravessa a parede da cozinha ao seu lado e desaparece pela portada que liga à varanda. Depreende que alguém acaba de fechar a janela com brusquidão, ao ver o cortinado branco esvoaçar no interior e uma silhueta movimentar-se e desaparecer do seu campo de visão, ocultando-se na penumbra. Sente um arrepio nas costas e estremece, mas a curiosidade é mais forte que a prudência, um instinto incompreendido no caso dela, e por isso aproxima-se da sua janela, devagar, e fica a observar a janela da mulher triste. A distância parece-lhe irreal e dá mais uns passos até sentir as ancas e os joelhos encostarem-se às ferragens da varanda. Pousa a mão direita no parapeito e estica o braço esquerdo como se quisesse alcançar a varanda do outro lado da rua. Quando completa o gesto, e se surpreende por não o conseguir, ouve um grito na rua, alguém utiliza mais uma vez uma palavra que lhe soa estranhamente familiar, mas a impressão é demasiado breve e o vislumbre de reconhecimento perde-se no seu vazio interior. Olha para baixo, para o local de onde partira o grito e vê dois homens a observarem-na e a gesticularem. A atrapalhação leva-a a recuar para o interior da cozinha, não faz ideia de quem sejam aquelas pessoas e por essa razão sente-se esquisita. As lágrimas desfocam-lhe a visão à medida que se vão amontoando nos olhos, está cansada da estranheza que a rodeia, mas não sabe como sair do labirinto de vazios que substitui todas as suas referências como ser humano. Pelo menos não perdi a capacidade de pensar. Sorri com o pensamento e quando o faz as lágrimas escorrem-lhe pela cara até ao queixo, antes de as conseguir limpar com um guardanapo de 36


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papel. O sorriso esmorece ao imaginar como seria perder a capacidade de pensar… abana a cabeça numa negação. Ouve uma voz nas suas costas, mas ao olhar apreensiva por cima do ombro não vê ninguém; dá uma volta completa, em câmara lenta, e vai olhando para tudo o que surge à frente dos seus olhos, por vezes atardando-se num determinado ponto qualquer, num esforço para registar na sua cabeça todos os objetos que ali estão, e todos os pensamentos que cada um lhe vai provocando. De vez em quando um flash de reconhecimento parece querer irromper do interior do seu cérebro, mas nada mais flui na sequência desse lampejo. Volta exatamente à mesma posição, sentindo-se confusa. Não está mais ninguém ali e mesmo assim uma voz continua a encher o espaço. Uma voz de homem que tem a certeza de já ter ouvido num outro lugar, numa outra altura, mas a sua memória não reproduz nenhuma imagem que a ajude, apenas a recordação de um cheiro intenso, diria mesmo agressivo, algo que lhe desperta as glândulas salivares, uma bebida forte talvez. Fecha os olhos num esforço de concentração. Aos poucos os movimentos do corpo vão libertando-a da tensão que o desconhecimento das emoções do passado lhe provoca, e ao fim de uns quantos exercícios, quando se vê obrigada a abrir os olhos, depois de ter tropeçado num banco, descobre a origem da voz que entretanto continua no seu tom monocórdico. Por cima do lavaloiça vê um homem a gesticular e a falar dentro do pequeno ecrã, que confundira com um relógio de parede. Olha e ouve com alguma atenção, mas a voz é apenas um zumbido metálico que lhe é impossível de identificar. Não é que lhe 37


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interesse o que ele está a dizer, mas o ar empenhado do homem, aliado ao cheiro que paira, e que se tornou bem mais intenso, levam-na a considerar que apesar de não lhe apetecer, o seu cérebro preguiçoso vai ter que se esforçar por descodificar todas as palavras que se perdem no ar à sua volta. O som está demasiado baixo, o que a obriga a aproximar-se e a empoleirar-se num banco, mesmo a tempo de ouvir o reinício da gravação: «Olívia, minha querida, não te esqueças de almoçar, a comida está dentro do micro-ondas por causa dos gatos. Vê as horas neste relógio aqui mesmo ao meu lado, e se já passar da uma, aquece-a; para isso basta selecionares os minutos e carregares no botão cinzento. Come! […]» A monotonia daquele discurso e a falta de qualidade do som aborrecem-na. Olha para o relógio de parede indicado pelo marido, mais para distrair a atenção do que para ver as horas, seja como for não vou comer mais nada sem ter fome, já lhe basta ter que existir sem ter vontade. Se ao menos soubesse como acabar com aquela ladainha artificial… A maneira mais fácil de se escapar é sair dali. Levanta-se do banco e avança para a porta, mas sem grande pressa, o sol bate-lhe nas costas tornando a sua decisão mais difícil; o prazer daquela sensação de aconchego fá-la hesitar; adora o Sol. Talvez se conseguir abstrair-me do som… «Os teus amigos Alexandre e Nuno vão visitar-te depois do almoço, devem chegar às três horas. Deixei-te na gaveta da bancada, ao lado da porta da varanda, um DVD com a gravação da apresentação que fizeram depois da viagem a Amesterdão, por aí podes reconhecê-los e distingui-los quando chegarem, estão os dois 38


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bem de frente para a câmara e são completamente diferentes um do outro. Sabes como funciona a maquineta?! Se não te lembrares como se faz pede ajuda à Alice ou telefona-me para o número que está ao lado do telefone da sala. Na mesma gaveta, também tens a câmara fotográfica para pores ao pescoço, se quiseres registar o vosso reencontro, não te esqueças de a ligar…» De repente a voz e a imagem morrem e logo a seguir ouve a campainha da porta. Se se lembrasse do que é um ataque de pânico diria que estava a ter um, mas desconhece a designação das reações que por segundos a paralisam: o coração a martelar-lhe o peito que nem louco, suores frios, e pior ainda, uma tremura nas mãos que não ajuda nada quando tenta colocar o DVD na máquina e pô-la a funcionar.

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