Maresias

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(Oh! triste engano… …morro de vergonha só de pensar sê-lo. Melhor será parecê-lo.)

senos da fonseca

A companhia do poeta

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Ficha Técnica Título: Maresias Edição: Senos da Fonseca Recolha: Ana Maria Lopes Ilustrações: João Batel Execução gráfica: Officina Digital – Impressão e Artes Gráficas, Lda. Lote 15 • Zona Industrial de Taboeira Telefone 234 308 697 • 3801-101 Aveiro Data da edição: Outubro 2013 Tiragem: 300 exemplares Depósito legal: 366718/13


Confidências… Muitas vezes pensei: se conseguisse reunir, em mim, as palavras com que entendo se pode fazer arte (escrita), era Poeta, o que eu gostava de ser. Assim, fiquei-me pelas faldas das palavras que nunca quis dizer, senão ao Blog. E nunca dei que, afinal, eram muitas. Um dia fui surpreendido por pessoa amiga que as reuniu,e mas ofereceu, em livro. Quisera eu, que bem menos fossem, mas muito melhor fossem. Fiquei além do desejado. Como habitualmente. Resta-me querer que da leitura destas palavras que aqui vos entrego, Vos reste, no final, ao menos, um doce e cálido sabor voluptuoso. Os momentos destes poemas foram, quase sempre, o fim da noite. Por isso eles são um pouco vagabundos, apesar da ordenação.

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Poderiam ser melhores? …poderiam e deveriam. Mas se com isso me preocupasse, ainda agora ia no primeiro. Tenho o gosto predilecto pelo desafio. E se não é dos outros, desafio-me a mim mesmo. Como nasceram, não sei. Sei porque nasceram. Na cadeira postada na varanda que criei no meu absurdo paraíso, pareço esquecer-me de tudo. Mesmo o de tocar a vida com a mão. A minha liberdade está na minha capacidade de isolamento. Deixo a vida, e sinto que é possível viver o amor primeiro, a glória, a derrota. Fico ali longe das asperezas e da insinceridade do fingimento humano. Naquela cadeira estrategicamente posicionada na imensidão da ria, esqueço sempre o que me oprime. Ali ganho forças. Liberto-me. E libertando-me, libertei-as….. SF 2013

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Índice Amor...................................................... 9 Ria......................................................... 81 Angústia /Inquietude.............................. 121 Solidariedade.......................................... 173 Natividade............................................. 189 Liberdade............................................... 207 Meu Ílhavo............................................. 223 Vida....................................................... 235 Saudade.................................................. 243 Mar........................................................ 253 Amizade................................................. 265 Dispersos............................................... 271



Amor





O Marinheiro não volta… (Glosa a Reinaldo Ferreira)

Maria dos olhos d’água Por quem tanto estás a orar? – O marinheiro não volta Do outro lado do mar… Menina dos olhos doces Por quem estás tu a chorar? – O marinheiro não volta Do outro lado do mar… Rapaz dos olhos cansados Porque os deixas cerrar? – O marinheiro não volta Do outro lado do mar… O Capitão que é o seu É que nos vai afirmar – O marinheiro lá volta Do outro lado do mar… Maresias

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O marinheiro lá volta Está agora mesmo a chegar. Vem numa caixa de pinho – Desta vez o marinheiro Já não volta para o mar…

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Maio em «Atenas» Era o fim daquele dia de Maio, em Atenas. Quanto me queres? Queres mesmo? Quanto? Perguntaste inquieta com voz doida E quando em mim pousaste teus olhos Vi neles a vontade proibida O meu corpo com tuas mãos entrelaçaste Enquanto lá fora o sol se sumia. Era tempo de nos abrirmos Ao querer, e em dádiva consentida Deixarmos de ser nós, mas loucura vivida Beijámo-nos sôfregos, de amor vencidos Pelo eterno vaivém dos nossos corpos Até que nos olhámos, quase mortos Não perguntaste então – não sei porquê? – Se te queria mais. Ou já não tanto, Por de amor restares convencida?

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Para todos tão longe Para todos tão longe Para nós, não tanto! Fogueira distante Que aquece a noite gélida. Ai!… meu pranto.

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… E com os teus seios desenhava o vale … E com os teus seios desenhava o vale Por onde corresse meu corpo Pronto para o impetuoso vaivém Até me desejar longe de mim – além!

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Ué?!… Águas azuis desta ria Que correis direitas pr’ó mar Onde escondeis meu amor? Não me façais Mais sofrer, Tende pena da minha dor Ué?!… Dizei-me Que eu morro d’amor. Águas de prata da ria, Em noite de luar d’ Agosto P’ra onde foi a minha amada Matai-me este fogo posto Esta vida, Tão cedo já acabada. Ué?!… Contai-me … Que eu morro por nada. Maresias

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Águas vermelhas da Ria Tingidas pelo Sol à tardinha, Para onde levastes meu bem? Não a deixei À noite sozinha, Levai-me com ela também. Ué?!… Falai-me Que eu morro sem ninguém. Águas negras, águas da ria, Vestidas na noite, de breu Onde está a minha alteza? Triste destino é Este, o meu, Viver em tal incerteza. Ué?!… Levai-me Que eu morro nesta pobreza.

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Fingidor… Perguntou-me se eu também sabia ser um fingidor (?!). – Claro – respondi-Lhe. – Então mostra-me… Foi o que tentei… Amar não é para todos Amanhã Sim amor, Amanhã, deixarei de ser fingidor.

Na Tua Ausência O amor é fogo que arde Quebrado pela tua ausência. Diz-mo Para quem o amor tem, Não só a sábia arte

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Mas guarda dele, também, Voraz, faminta, apetência. Eu sem de tal saber Ou de amor, ciência ter, Vendo-te assim, longe de mim Tão longe assim, Eu creio antes Coitado! …pobre de mim, Que o amor é fogo ao vento Que fraco apaga; que forte alenta.

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Sabes quem eu amaria? Sabes quem eu amaria? Quem Não me pedisse palavras. Leve ou pesada. Quem enterrasse os olhos nos meus E quisesse ser O meu Orfeu, E de todas A melhor, a minha amada. Pareces ave à procura de nova primavera Novo tempo, prenúncio de outra era. Não sonhes assim tão alto Eu sou romântico. Mas falso. Há sempre um começo Uma rosa, um cravo, uma promessa Mas eu falhei Ousei voar e só tropeço.

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Quando me apresso… Quando me apresso E te digo: – tenho de ir Ouço a Tua queixa: deixa-te um pouco mais Não tenhas pressa! Eu não ouço, nem Te bendigo Que é castigo, Que não mo impeças. Finjo não crer Nem saber, ou até, que isso me importa. Mas mal te deixo Sinto que um dia vai ser Que vais bater com a tua porta E fechá-la para sempre Para um beijo teu, nunca mais haverá hora. Quando parto, sei depois Ser outro, e não eu que esteve, amor Preso dentro de teus braços Quando de dois éramos um só Maresias

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Enrolados num só laço, E vem-me a terrível dor De não saber, nem querer, desatar o nó.

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Boa a noite, com maré-cheia sem baixios para encalhar Boa a noite, com maré-cheia sem baixios para encalhar Lá vou por entre margens perdidas na solidão Navegando entre as águas nuas, amor feito desatino Consumindo-me no fogo azul da paixão.

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Neste percurso egoísta Neste percurso egoísta Por mim percorrido A carregar com o mundo, Uma rosa me chamou A prometer amor. Parei e olhei-a. A descobrir o seu rubor. Foi então que lhe disse por onde vou, enfim! Vou-Te amar… Não por Ti, Mas por mim.

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Não contes Não contes do meu Sorriso Que corre para ti, hoje. Nem que fecho A cortina Para a tua ternura ficar comigo. Deixa que te envolva, Ao menos, No carinho de um suave abraço. Não contes a ninguém O desvelo Com que o faço. Deixa ficar o segredo E com ele O nó sem laço.

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Deixa passar o vento Abre a janela E deixa-me entrar. Um dia havemos de ir Como os rios Correr direitos ao mar. Para ouvir um bĂşzio Na praia Dizer que ĂŠ bom amar.

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Oh! nesta noite… Oh! nesta noite… Agarro-me a ela em desespero. Nesta noite Oh! nesta noite Queria estar na praia, nu, Exposto ao vento A sentir o mar ondular Por ti a chamar. Em doce intento. Oh! …nesta noite Eu e Tu Sós… Nesta noite Oh! nesta noite Diluídos no perfume da maresia Envoltos no vento Em procura de novo alento,

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Voando para lรก das palavras Ao encontro Das estrelas a anunciar um novo dia.

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Vem por mim… Queria esta noite Beijar a mais bela rosa do meu jardim Encostar a minha boca à tua Para que ela fique tão rubra Como papoila viva, carmesim. Queria ver, afogueadas e brilhantes As maçãs do teu rosto lindo, Transformadas framboesas gulosas, assim. Embriagar-me no licor doce do teu olhar E envolver meus dedos no dourado do teu cabelo Para dele sorver a fragrância do alecrim. Anda, vem! Atravessa a solidão da noite E vem acolher-te nos meus braços de pedinte Para deixar de ser o que somos, na madrugada. (vem por mim)

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Exigência Era noite e havia luar Quando passámos pela Capelinha E juntinhos fomos até ao mar. Deitados na areia, entre o céu e a água Sonhávamos que a vida era poesia. Havia paz na noite E no ar que nos trazia a maresia, Tela pintada ao natural. Só o marulhar da vaga cortava O desvelo com que olhava Os contornos ternos do teu rosto. Dos teus lábios vinha a frescura. Eram mais rubros que a papoila. Cantavam a vida imaginada Onde o mar não fosse enfurecido E o dia se não escondesse enevoado. Para que o barco por nós conduzido Transformado ilha flutuante Aportasse ao mundo mágico, acordado, Maresias

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Onde a água fosse tão límpida Que permitisse ver nossas mãos entrelaçadas Reflectindo no cristal Tanto amor a exigir eternidade.

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Não gosto de Ti… Gosto é de querer gostar de Ti. De te descobrir. E quão pouco tempo tenho para o fazer!… Contigo estou condenado Em não saber quando serei Ou se vale este meu fado Nem se para ele, tempo terei. Mas sem saber: Tenho o raio do teu perfume Diluído na memória Digamos violeta ou outra flor Mas de Ti seja qual for Tem a cor.

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Tinhas de ser Tu Tinhas de ser Tu Tu me havias de enloilar Um trejeito Teu Desafio meu Aonde me pode levar?!

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Ir… Breve, tão breve foi Este sonho findo Que a vida sonhou E agora?…por onde irei. Só sei que por aí não vou… E se for?!… O que de mim farei?!

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Amor de Amor E não terem mais fim Estes dias, E esta vida, Para beber dos teus seios Encaixar no teu ventre Sorver o teu bafo Dançar a tua música Em mil volteios Em mil enleios, A deixar que o fogo do teu olhar Me queime E nele se consuma A paixão sem parar Tornada cinza, Para me diluir em ti No frio Inverno Não digas nada, Amor,

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S贸 amor de amor S贸 n贸s, eu e tu Somos eternos.

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Ai! … meu pranto… Ai! …meu pranto… Para todos tão longe Para nós, não tanto És a fogueira distante Que me aquece a noite, Um suave instante. Ai !…meu pranto… De te não ter perto Para me matares a sede Com o gosto Dum sorriso aberto No mar do teu rosto. Ai! …meu pranto… Não ter aqui Teus olhos doiros desaguados Ancorados nos meus E poder olhar Para Ti, deslumbrado. Maresias

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Ai! …meu pranto… Triste esta solidão. Lá fora, há chuva e há vento Ninguém vem pela rua Para me estender a mão. ………Mas a vida continua.

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Dar de beber à sede A um canto O piano me sugere. Música, quase a medo. Não, não é dele que provém É o teu corpo a se desnudar Para se dar Em secreto aconchego. É como ter a maresia Na dobra do meu lençol Para eu sentir a vontade De o voltar a beber …………Um outro dia

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Inventando os teus lábios Silencioso este voo nocturno Nem é dia nem é noite, tanta é a claridade Perturbá-lo seria trair o instante que indecifrável, passa.] Deixo-o seguir viagem Por mim aqui fico a inventar o espaço De olhos fechados. Deixo-o passar. Na sede de adormecer Inventando teus lábios.

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Perto e longe… Remeto-me ao silêncio E nele formulo a tua ausência Nos lábios que invento. Quanta sede ao adormecer. Quanto secreto sofrer De não Te ter.

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As palavras que nunca LHE cheguei a dizer… Dói-me esta saudade Do tempo em que em ti morava. Dói-me a imagem Dos teus lábios carnudos Que eram de rosa aveludados. Túmidos a implorar que os trincasse, Em tropel furioso de tantos beijos. Enfeitavam provocantes O teu bonito rosto Deixando adivinhar promessas de novas madrugadas;] Onde corpos em dança desencontrada, Unidos por bocas em paixão, Se entrelaçavam numa luta de sombras desassossegadas.] Meu amor, Chega-te a mim, Maresias

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Vamos juntos marear. Se a ria quer morrer no mar A soluçar de saudade, Deixa-a ir‌ Eu quero viver em ti. Postado na varanda do teu olhar A olhar o cĂŠu, Para lhe roubar as estrelas E com elas enfeitar O sonho real de te amar.

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Andorinha a olhar a primavera Vem comigo, princesa; Trouxe-te este alinhado bordado Para enfeitares o leito Onde quero festejar o teu corpo Sorver o morango dos teus lรกbios Carnudos, Beijar os figos melaรงos Que te rosam o peito; Sorver o salgado do mar No declive do teu ventre Onde guardas a fonte Que sacia a minha sede De ti. Esmordaรงar o teu corpo Fundo Dardejando-o e endoidando-o No latejar dos sentidos loucos Deste mundo. Maresias

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Trocaremos beijos entre gemidos Enquanto de olhos fechados Sentirás a maré a subir; Que vinda do mar nos traz a maresia Para perfumar a nossa cama De uma doce poesia. Afogando-nos na espuma que se desmancha Contra os novelos que tecem O teu e o meu corpo. Fujo para o interior dos lábios Encostando a língua ao céu da tua boca; Entrelaço-a nos ais falados Molhados, Na saliva quente das margens do sonho Enquanto enrolo os fios do teu cabelo Desalinhados, Para com eles fazer uma trança ao luar; Encaixados na noite, Somos como sol a penetrar a sombra Para trazer a madrugada.

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Sinto o anel das tuas coxas Enlaçando, Enforcando, o meu corpo Numa avidez louca de desejo. Parecemos na noite barcos negros A marear a vaga alterosa Em vaivém frenético, contínuo. Perdidos não param de se procurar Ligados pela fantasia da intimidade Dos teus e meus, abraços. E só por fim quando a acalmia vem Com ternura me colo aos teus recantos A minha boca inerte, entreaberta, saciada Pousa nos teus ombros suados, Cansados. E enquanto a minha mão enforma o teu seio Túmido e pontiagudo, Abandonado, Os meus pés tocam os teus Que estremecem de novo, Inquietados.


De mansinho lavram os meus, Deitando a semente à terra Que não tarda a germinar E logo a florir no jardim Encantado Do teu regaço lindo. Como que dizendo A quem nos olha, cegos, deslumbrados, Que é tempo de voltar amar. Chegou ao fim O Intervalo.

Sou uma andorinha acoitada no ninho A olhar a Primavera.

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Aprouvesse… Aprouvesse eu ser lampejo E para Ti guardaria Não um, mas todos meus beijos P’ra matar o teu desejo. Aprouvesse eu ser flor E no teu regaço lindo poria Não um dedal Mas um jardim feito d’amor Aprouvesse eu ser mar E viria à praia Não uma, mas mil vezes Para em ti me afundar. Aprouvesse eu ser céu E te daria as estrelas Não uma, mas miríades Para com elas teceres um véu.

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Aprouvesse eu ser dia E te daria o sol Não um, mas todos os precisos Para só tu brilhares na noite fria. Aprouvesse eu ser noite E te daria o luar Para não uma, mas mil vezes Em ti, eu pernoite. Aprouvesse eu ser outro E te daria esse «eu» Não mil (!) mas uma só vez Para saberes que não há nenhum Tão doce como eu

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Regresso Provo o sal do tempo No teu corpo Reencontrado. Percorro as montanhas ocultas No teu corpo Recomeรงado. O regresso.

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É de verdade morrer Vá …. Sei que queres que te diga Uma palavra. Verdadeira ou não, Que te importa?! Mesmo que seja tolice Ou mais ainda, doidice. Sei que por ela estás morta. Algo que ninguém consiga entender, Ou do porquê dela Sequer perceber. Eu sei que queres apenas De mim ouvir dizer Que viver sem ti, Não é viver; nem sequer sofrer É de verdade, morrer….

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A beleza vai A beleza vai Esvoaça no tempo célere que se afasta. Somos coisas Ainda por explicar. Sem termos a certeza de nada Por ínfima que seja. Deixa-a ir. Aconchega-te aqui junto a mim. A olhar a cor macia Do entardecer encantado. Tu és a flor mais bonita do meu jardim Que ano a ano desponta na primavera A renovar, ano a ano, todo o meu ser. Enternecidos com a imutabilidade Dos nossos afectos, Envoltos pela sua beleza, Deixamo-nos ficar. Iguais para nós. Para os outros desconhecidos. Maresias

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Sinfonia à beira-mar… … Olha amor: Esta noite a lua não virá. Vem tu que outro luar não há Tão bonito como o teu olhar Vem daí e antes da madrugada Vamos juntos, de mão dada, percorrer a estrada Vamos pelos becos e congostas Que percorremos na nossa meninice De novo ganhar o tempo que nos foge. Vamos encher os olhos de nós. Entretidos na doçura dos nossos beijos Esqueceremos as vastas constelações Vamos semear esperanças E colher as flores Para com elas enfeitar o bragal dos sonhos. Entre beijos e abraços ternos Tomarei nas minhas mãos as rosas dos teus seios Que cobrirei de doces beijos.

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Chega-te a mim: Anda, vem daí Enlaçados vamos ouvir o mar que nos anseia; Mergulhar nas suas águas A matar a sede dos nossos corpos, Que o mel da maresia sopra e ateia. Ver inquietos pássaros vadios A sair do branco farfalho da vaga Para branquear o negrume da noite; Deixa-te ficar no meu regaço A ouvir a rouquidão do seu choro nocturno. E até que a maré alta nos entrelace Deixa-me vadiar nas ameias do teu corpo Numa caravana de beijos, de abraços E carinhos, Mil feitiços, enleios tais A despertar as estrelas que há no mar Para as colar no azul do teu olhar, E dele fazer um firmamento estrelado.

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Ó mar, ó noite, venham ouvir a melodia É o teu sussurro, rumor amado A implorar uma e outra vez… [Mais!… quero mais…


(Sim! Eu sei que tudo são recordações…) Lindos eram os teus olhos Vivos! Rasgados em tua cara, eram de amora gostosos bagos Davam-te um ar mais que formosura Uma graça de mil agrados. Tua voz era mistura de som e doçura Saídos De uns lábios, mais do que a cor, sugeriam o amor Férvidos beijos prometiam Sugestões para horas de louco ardor. Os teus cabelos eram fios de ouro Caídos Enrolados, desciam sobre alvo peito, suave enleio Onde dois rubis sanguíneos Maresias

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Desafiavam da meiguice, credenciado jeito. São desse retrato as saudades que padeço Vivas! Teus olhos roubadores na face de carmim, sendo Prenda que não sei sequer merecê-la Meus olhos, outros olhos, olhar não pretendem.

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Olha!… Lua Olha!… Lua Se alguém bater à minha porta Diz-lhe que eu não estou. Fui vadiar para longe com a minha amada, Envolver-me nos seus braços, Embriagar-me nos seus afagos Beber do seu corpo mil regalos Matar a sede de desejos que o amor Provoca. Vou no seu azul marear Enlear-me na teia do verbo amar A quebrar a noite de solidão. Tão longa ela me pareça Que contrafeito O sol se embrume e a luz adivinhada Tarde a sua madrugada. Olha, lua! Empresta-me a estrela que tens a teu lado Maresias

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Para a levar ao candeio A fisgar a sereia, enganosa e leda Que canta a chamar-me baixinho. Quero acabar o encantamento Que me chama vindo do mar; Quero trazê-la à praia Na cava de uma onda irada E aí fazer ouvir o seu grito Na nudez do seu levanto. A poesia, essa!, deixo-a no teu luar. Olha!… Lua… Se eu te chamar, não me ouças Deixa-me amar de todas as maneiras Não respondas, nem interrompas O galope sem rédeas, a loucura desvairada Quero morrer de amor Afogado nos beijos que não mereço Quero morrer e renascer a cada instante: A única coisa que lhe peço É que não pare a embriaguez da noite, Por amor afadigada. 76 | senos da fonseca

Olha!… Lua «Corre» devagarinho Corre… tão de mansinho para o mar Que faças a manhã tardar; Esconde-me no escuro e silêncio da noite Deixa que os meus gemidos se confundam Com o piar do maçarico a acasalar; Eu sou como ele Ave perdida que regressa ao ninho Depois de largo voo de ausência, A querer de novo, e sempre, noivar. Olha!…Lua Já te podes mostrar. Eu fico aqui na praia rumorosa A ouvir o vento que passa A arfar na alcova da areia revolvida, Corpo suado de exaustão A regressar ao meu estado em pura redenção.


Porque o melhor estava em nós… Passaram primaveras e ardentes estios, Passou a vida por nós; Fados e Fados nos poderiam ter trocado As voltas Fruto de enganos ou até desvarios. A tudo fomos resistindo Porque o melhor estava em nós. E não no uso que fizemos do nosso corpo Mas tudo e só o que prometemos apenas. Lembras-te (?): começava a noite Barcelona a nossos pés, E nós em «Atenas».

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Cores de vida nenhuma A tarde parece tardar Adormecer. A luz branda do sol Esbate-se lentamente até que a lua, Cheia na sua redondez Vem espalhar o empalidecer pelo areal. Os últimos raios de um Sol a esconder-se Esvaem-se por todo o céu; Reflexos indefinidos, cores brandas, suaves Cores de coisa alguma Cores de vida nenhuma. Uma leve brisa percorre o meu corpo; Atento ao sussurro do vento Vou matando a agonia desta tarde De um tempo sem sentido De uma vida cuja chama já não arde.

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Tempo perdido de espera De um amor que ficou de vir E já não vem. Já é tarde… Olho a montanha ao longe Recortada no contraluz a sua verdura: Na tua ausência acho-a negra Sombra de uma procura Que deixei em farrapos do nada. Se tu viesses, Pousado no teu regaço apetecido Vê-la-ia Com esperança renovada. Em um tempo logo acordado Olharia o céu, a água, os montes A natureza viva e apetecida Reflectida no teu olhar. A lua vai alta, Grande na noite morna de angústia E tu, ausente. E eu (?!): – presente mas sozinho …

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Alheado, tudo para onde olhe Me parecem olhares escuros Desta luz empobrecida de fim do dia; Vejo perfeitamente o que não quero ver Sem ver o que quero ver Pareço sonhar sem querer acordar É preciso que chova Para me tirar deste tempo de entediante Onde tudo parece morrer. Tudo me parece inútil, frustrante Excepto o desejo de te ter perto de mim.


Ria





Do Meu Terraço, Deslumbrado A Ria Quando um dia Já nada restar de mim Quero que te lembres Dos meus olhos logo pela manhã De Ti, de amor se encharcavam Então Foge de mansinho para o mar. Vai a correr até bem longe. Vai mesmo até lá ao fim onde estarei À Tua espera. Guloso de Te beber, E Te guardar, Toda e para sempre, cá dentro, bem junto a mim.

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Saciado, mas não farto Esta é mais uma noite em que me embriago Em ti, e de ti, Olho-te no reflexo da lua que me atordoa os sentidos Revejo-te em todos estes anos vividos Nos ciúmes de outros, que como eu, amorosamente te cativam.] Estás hoje diferente do que me mostraste ontem. E sei que amanhã serás de novo diferente. E é por isso que tão estranhamente Me apaixono por quem repetidamente me mente. Sigo as tuas formas de mulher esquiva, Quando despida das tuas águas me mostras os recantos do teu corpo] E me desatinas, No desejo irrecusável de nele mergulhar – Maresias

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Mulher viva! A sorver impudicamente a tua maresia, minha boca feita, teu porto.] Saciado, mas não farto, deslizo sobre os teus seios e beijo-os sofregamente] Até que me digas: – basta! Na promessa de que amanhã tudo recomeçará de novo. E que o teu desejo volte, renovado, a provocar o meu, Que pode, eu sei, estar cansado, Mas para Ti jamais estará morto.

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Aquilão Foste cantado por Plínio, Quando vindo lá da serra Trazes contigo O perfume da urze e o cheiro da caruma, Descendo encosta abaixo, caminho ínvio Sobrevoando a terra, apressado, Fugindo do braseiro bravio Para te vires refrescar na laguna. Exsudaste o marnoto Fazendo-lhe correr rios de suor Enquanto cometias o prodígio De transformares água em flor. E assim nascia o sal. Mais do que um milagre, Igual, só vivido no natal! Teu sufoco causticava O moço do moliceiro Que de vara ombreada Percorria a auto-estrada da borda Maresias

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Na procura de um novo veiro, Enquanto lá longe Um maçarico acordava. Fazias do mar, lama Levando contigo a «xávega» A paragens que pareciam infindas. Enquanto o arrais endoidado por ti Te seguia como à sereia Sem saber se havia mar e norte Ou se o atrevimento findava em morte.

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Ria Esquiva Quando pela frígida madrugada Entras devagarinho, Parecendo envergonhada E me dizes, psst! Tão de mansinho, Sabes bem que te acolho e recebo, Oferecendo-te o meu corpo Para que nele te aconchegues enrolada, Mesmo que já não sirva para nada. Cubro com bragal de linho bordado Teu corpo feito de lindas águas Agora cansado. E deixo que adormeças a sonhar com o norte, E com as gaivotas grazinas E os peixitos Traquinas Que te debicam o peito E assim afugentam a morte Salvando-se da má sorte. Maresias

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Acordado belo Para que nada perturbe A paz do teu sono, tão belo Até que a manhã desponte E seja eu a chamar Para te acordar, psst! Para que não percas O grandioso momento Em que o Sol te vem beijar E as grazinas traquinas começam a gorjear. Partes sem nada dizeres A recomeçar teu fadário. Sem nada fazeres Ou de mim algo quereres Deixas-me em lágrimas banhado. E sem que dos teus lábios Venha palavra meiga, Partes em alto devaneio Bonita, bela, esquiva. E eu aqui resto, sem vida.

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Esquecer de Te amar Olho o mar como olho para ti, pretendendo ir mais longe] Que perca o olhar no desvendar da verdade da tua carícia.] Sinto-me perto e logo longe, tão longe como me parece estar a tua ausência.] Quando a vaga vem, lá de longe enrolada, desfazendo-se em farfalho] Parece trazer-te no regaço, deixando-te de mansinho envolta em mil flores silvestres] Adormecida na areia… Já a maresia, os búzios enroscados, as conchas doces e as algas te envolvem e prendem] No areal dourado, o teu corpo abandonado De Sereia. Para que possas sentir o sol pousar sobre o mar azul, inundando-o de vermelhão,] Maresias

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Lembrando um campo de papoilas loucas, ondulando ao vento, tão longe que o meu] Olhar não apeia. Corro a aconchegar-me a ti, no contacto com a tua frescura, ansioso de ouvir tudo o que] Ecoa e me enleia: As marés que trazem os búzios, as conchas e as pedras a rebolar, alertando-me os] Sentidos, prendendo-me na teia… Enquanto os meus lábios já gretados aspiram o salgado do vento que nos enlaça.] Com eles beijo os teus seios de onde se soltam gotas escorregadias] Da água azul do mar. Mergulho a minha face nos teus vales, ou subo ao alto das tuas serras,] Até que saciado, Procuro um lugar de refúgio, fundindo-me no teu corpo,]

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Fixando o horizonte para nele encontrar a linha imaginária onde está escrito] Nunca me esquecer de te amar.


Eternidade afinal, existe Volto a esta tela Neste dia ensoalheirado Revendo a ria, o cĂŠu e os montes Olhando para tudo, extasiado. Quem teria sido o autor (?) Que pintou com tĂŁo grandiosa intensidade E com tĂŁo aguda sensibilidade, Para deixar Em frente de mim postada, Para me provar Que afinal existe eternidade.

Maresias

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À espera Minha Costa Nova Do mar Dos barcos, dos búzios E dos burriés Das gaivinas e borrelhos Que bonita que tu és Reflectida ao espelho. Foi na tua areia que pisei, E gastei, uma vida, Olhando a ria embevecido, E tudo quanto nela havia: Lá estava uma gaivota a pairar (Quem sabe?!) Tal como eu a esperar Que chegasse o fim do dia.

Maresias

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Reescrever a vida… Um espantoso luar Baila prateado sobre a Ria Vem acompanhado por ligeira brisa perfumada A deslizar sobre as quietas águas Enredando-as na maresia. Na noite, deslumbrado Sôfrego de me encharcar no belo, Adormecido pelo êxtase, Procuro reescrever a vida. Há nesta noite amanhecida Um sonho no vento Um sonho no ar Um sonho por desvendar. O de te levar pelas águas Em passos ledos Para lá da imensidão Onde restaremos quedos. A deixar que o amor mande ousar, Os meus olhos pousados em Ti Maresias

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A desfolhar a flor da primavera Teu corpo de mulher aberto Sorvido atĂŠ que chegue a madrugada.

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Morre comigo de mansinho Já se somem as pegadas que ficaram para trás Nas tortuosas veredas que percorri. Na convicção de que era caminhada obrigatória. E o que dela retenho na memória? A sensação de uma fogueira apagada Dias de sol de mudez descarnada Faróis de lonjuras que se fundiram Perdidos todos os orientes e ocidentes Da nossa imaginação desalinhada. De tudo isso ficou apenas a certeza De uma paz interior aliviada, No endemoninhado caminho Do relógio que não pára a olhar para trás Para a vida que agora teima em ser lenta Quando a morte acena cheia de pressa. Hoje apetece-me a paz real. Tão cansado estou de a percorrer Que me deixo soçobrar no areal A ver a ria morrer comigo, de mansinho. Maresias

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Ciúmes da Ria Surpreendes-me sempre que te visito. Nunca pareces cansada de andar de um lado para o outro.] Serena Calma na tua frieza de hoje Eras a mais bonita no teu entardecer Onde só a ausência do sol dava pena. E eu parado Cansado de tanto correr Em mim ausente o prazer de viver Olho para ti extasiado. Que pena!… Não encontrando semente para semear, D. Quixote, atiro-me aos moinhos Ergo o braço e ferro o punho Num desbaratar, até de ilusões. Apenas e só a desbaratar Pois já nada, nem eu me ergo do chão. Quem me quer nesta idade sonolenta? Quem me leva a recriar desejos despidos (?) Maresias

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A fazer-me lembrar pecados já esquecidos. Parado enciúmo-me de ti Desse amor que vens fazer à praia A horas repetidas, não te cansando de amar, Envolvida com o areal ainda estremunhado A deixá-lo beber do teu ventre salgado.

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A ria e só nós, os dois Quando já não tiveres lágrimas para verter Vem à minha porta Àquela casa pousada sobre a ria Que não tem chaves nem muros, nem segredos Ou enredos. É tua. Entra. Guardadas estão lá todas as palavras Que não disse, ou não soube dizer À ria. E a Ti, tão grande era meu medo. Colhe uma flor nesse jardim escondido E desse modo percebe o que quis contar de mim E não me atrevi, porque a mais ninguém ousaria Desnudar a intensidade da paixão. Descalça-te e vem comigo oferecer-lhe este verso Vem comigo afundar os pés na areia molhada, Vem comigo De mãos dadas sentir a dádiva refrescante Da sua maresia perfumada; Vem olhar o voo das gaivotas inquietas Maresias

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Pelo lento marulhar da velha bateira. Olhar o rosto enrugado de quem lá vem a contar histórias.] Aconchega-te ao meu ombro e fiquemos Na noite a contar o verso, corpos em lume A ouvir o vento levar o eco latente do nosso queixume.] Sou eu e tu à espera de ser o que nunca seremos… A ria, e só nós, os dois…

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Morrerei de menos por a amar demais… Neste azul, tão azul vindo sei lá de onde; Da imensidão do mar, infinita! Mergulho o olhar na paleta Densa e resumida Onde só o sono das asas ondula A perturbar a solidão. Invento na luz o sonho De que a minha palavra Alcançará o mundo. Nenhuma o alcançará. Mas vou repetindo: Não lhe saberei – nunca! – dizer adeus Enquanto fiapos restarem de mim; O sobressalto da sua luz Embriaga-me de paixão, Desassossegando o meu sossego.

Maresias

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Quero cingi-la, Envolvê-la em mil volteios, Em louco delírio, em mil enleios Valsar…rodopiar…. Sob os céus iluminados Enlaçá-la em mil anseios, Prender-lhe as tranças feitas de espuma; Beijar-lhe os olhos fatigados, Que esses olhos são meus Para quando eu chorar Neles verter a água do mar inteiro. Coisa impensada: Amo-a sem ela saber E até sem eu, De tanto amor me dar conta. Amo-a por tanto a olhar Por tanto em mim a inventar. Sempre a desejar que o seu corpo Venha na luz, despido, Afogar-se na praia reclamando A última carícia, a última tontura.

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Iludo a vida; iludo a morte; iludo o norte Tudo!, na extrema felicidade De pousar o meu corpo No abismo das suas funduras. Que venha então a morte Meu louco desejo saciado. Que me importa? Morrerei de menos por a amar demais…


Na noite olhei a ria (Ausência) Na noite olhei a ria Para nela matar a sede do teu corpo Ver na Água o teu reflexo E descobrir o silêncio da luz A forma súbita da tua presença Na visão nocturna Surge-me o prateado do teu cabelo Não há barcos, nem aves Só ausência Na água de mel O teu reflexo É maré de luz Fico a olhar O teu corpo de silêncio, Nu. O poema suspenso Traz-me o teu cheiro. Inventando os teus lábios, Maresias

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Fecho a janela E deixo-me adormecer.

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Ria adormecida (2ª versão)

Desligo-me do mundo real E volto a sonhar com o deixar-me entrelaçar Nos teus cabelos. E em ti pousar. Mergulhar Meu corpo sobre o teu, ofegante, Bate em uníssono de desejo Não há brisa para o momento ser ainda maior. A brancura falsa do luar toma muitas cores No suave anoitecer concedido aos amantes. As casas de risquinhas coloridas, Já se cobriram de um cinzento em redor Basta de demora com as palavras fora de nós; É chegado o momento de comunhão apetecida. Porque melhor que o sonho da vida em cenário falso É mesmo concretizar o sonho quando acordados Antes que a noite se aposse do nada da minha vida.

Maresias

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Vejo-te chegar: Vens! Os teus lábios carnudos oferecem-me O céu. Os teus braços correndo ao meu encontro Trazem-me as tuas mãos, primeiro. Enlaço-me nelas, percorro o teu peito Obedecendo ao teu puxar suave. E em gestos de pressa arrebatadora Louco, corpo febril em procura ardente Desnudo-te, puxando a ponta do teu véu, Para assim poder sorver a tua seiva nascente. Já não há tempo para nada. Deixamos de ser os dois para ser um só; Ouço o teu sussurro, sinto o teu espasmo E todas as suaves variações do teu corpo Ah! como é bom tanta coisa fazer No cúmulo do prazer A loucura da vida esquecer. Sinto-me igual por dentro como por fora: – nu Procuro refúgio de náufrago resgatado E colo-me a ti languidamente.

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O mundo não existe: só eu e tu! Na suavidade dum enlaço, sossegado. Como pode um mar assim tão bravo Virar, ainda que tão brevemente Ria adormecida? Ah! Como é bonito este poente de hoje: As suas cores nevoentas a esconderem que a vida corre.


Natureza adormecida… Desligo-me do mundo real E volto a sonhar com o entrelaçar-me Nos teus cabelos. Em ti pousar Meu corpo sobre o teu, ofegante Batendo em uníssono de desejo Em comunhão apetecida. Merecida. Vejo-te chegar: Vens. Os teus lábios carnudos oferecem-me O céu. Os teus braços correndo ao meu encontro Trazem-me as tuas mãos, primeiro. Enlaço-me nelas, percorro o teu peito Obedecendo ao teu puxar suave. E em gestos de pressa arrebatadora Louca, Desnudo-te puxando o teu véu. Já não há tempo para nada. Maresias

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Deixamos de ser os dois para ser um só; Ouço o teu sussurro, sinto o teu espasmo E todas as suaves variações do teu corpo Ai como é bom tanta coisa fazer No cúmulo do prazer. Tanto de nós sofrer, e até A noção da vida esquecer. Sinto-me igual por dentro como por fora: – nu Procuro refúgio de náufrago resgatado E colo-me a ti languidamente. O mundo não existe: só eu e tu! Na suavidade dum enlaço, sossegado. Como pode um mar assim tão bravo Virar, ainda que tão brevemente Ria adormecida?

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Andorinha do mar Detenho-me Neste fim de tarde ensolarado Sentado no murete que me separa da ria Encho os olhos com o azul vivo das suas águas. E trago lá de longe as asas da gaivota que graciosamente] Esvoaça. Conto uma a uma as conchas sem perceber Para onde foi o seu morador. E desperto com o chap-chap da tainha que esvoaça. Sentado aqui, solitário, vejo mais céu. Intriga-me esta enormidade sem fim Onde as estrelas se penduram. Sinto no confronto com a sua grandeza Que a vida parece custar menos, a mim. Ou que é menos fria, e que nela há (ainda) acenos frescos:] Maresias

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Uma andorinha do mar veio pousar a meu lado. Apetece-me viver apenas com os sentidos. Sentir sem possuir, guardar cĂĄ dentro; A vida na essĂŞncia do momento.

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Ria adormecida Tarde limpa, intemporal Que o acaso pintou De uma tranquilidade imaculada A ria parece estender-se até ao infinito. Sobre ela, docemente pousadas As embarcações miram-se no vitral espelhado Num momento exacto a sugerir eternidade; Há nesse olhar a mudez da saudade De um tempo não esquecido Ou então apenas, um murmúrio traído (?!) Aqui o tempo findou Anunciando a noite mais bela Onde amor se escreve tão longo Como curta a vida. No marulhar dos murmúrios. A luz parece despida, recolhida, Alheada a entretecer os dias da memória. Deixo-me aqui ficar, esquecido, a sorver a maresia, Maresias

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A sonhar acordado Com a estranha precisão daquela simetria. Fico à espera que as sereias venham de madrugada Para me levar para qualquer lado. Singrando no seu peito nu Chegarei a um porto de abrigo, Onde a noite não escureça; A encontrar a natureza redoirada. Para a pintar no silêncio recolhido, [de meus olhos amanhecidos.

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Namoro renovado E brinquei… brinquei Enlevado Quando depois da longa ausência Te vi de novo. Amanhecia! Logo te namorei com os meus olhos Inquietados À procura do amor nos teus; Da tua pele amanhecida, beijada pelo sol Vi surgirem miríades de estrelas Que pareciam pousadas em teus olhos Para fazer de mim, teu cativo Com mil brilhantes me ferias, Ou era assim tanto, o quanto me querias? Apeteceu-me contá-las… Mas depois achei loucura; Para cantar a beleza e o teu encanto Nem todas as estrelas do céu chegariam Porventura.

Maresias

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Ditosa esta a sorte de assim te amar; De nunca te olvidar Indiferente ao tempo da separação. Se a arte de amar eu não soubera E nem contigo a aprendera, Eu não seria louco, tão pouco, Pois que a vida sem de amor enlouquecer Não é vida, É pálido entardecer.

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AngĂşstia Inquietude





Despedida… Hora de cerrar os vitrais, Correr as portas E deitar um olhar de adeus Ao silêncio daquela luz. Ouço o longínquo apelo Da gaivina a espairecer No quintal da infância.

Maresias

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Verão ainda, ou já inverno? Sou todo silêncio, pouco mais; As pálpebras dormentes Impedem saber em que rosa-dos-ventos Descortino o tempo. Invento no espaço A cor da palavra suspensa No torpor da tarde. Já inverno, o pôr-do-sol Vem de madrugada. Por ali fico indefeso a ler teu poema Com a luz apagada. Na praia iluminada.

Maresias

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128 | senos da fonseca


Os Setenta E chegaram Nesta insípida noite Os setenta anos de uma vida Atribulada, Marcada pelo sonho Desmedido. Bonita de ser reinventada. Cinquenta primaveras. Mais os vinte Outonos Fica a sensação De que neles tudo valeu Até a indisponibilidade Para ser outro Que não eu.

Maresias

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Sigo ao colo do vento A vida o que não diz mostra Não na epiderme mas no silêncio interior Na mudez da sombra Ou no silêncio das pupilas já gastas, Onde pouco a pouco nem sequer há chama. Chegado o Inverno Olho para mim e não dou comigo Corro sem correr Corro sem saber Sigo ao colo do vento À espera que chegue o momento.

Maresias

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Horas vagabundas Roubaram-me as horas vagabundas, Perdidas na sem razão do fugir à lógica da vida. Já nelas me não descortino, especado A olhar o fulgor do sol a se esvair, envergonhado. Horas de vida sem tempo Em que eu era o mesmo sem ser igual; À procura de um ou outro momento Em que a tua imagem viesse num cavalo alado Ali, se sentar ao meu lado Para alívio dos meus ais entediados.

Maresias

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Angústia Temo o dia Em que traído deixe escapar A angústia que vou guardando, E me faz sangrar. Mas que escondo – sei lá! – Tantas vezes mesmo de mim. Não sei exactamente quando. Mas um dia Deixo de fingir Que desprezo o afecto teu. E o sonho, a noite, o desejo Ai! tudo belezas da minha mentira Que julgas? Que fora eu Sem dela me alimentar, Para que todos os dias ao acordar Tenha, sempre e ainda, vontade, A vontade de não desesperar.

Maresias

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Os Rios que quis levar ao Mar… Espaço, Galáxias; Eu sei lá Exactamente até onde vai o espaço sideral? Não cabe em mim a noção do infinito, sem fim, Por onde se passeiam vias lácteas Errantes. Penetrar num daqueles buracos negros Ao encontro de um momento já passado, Soterrado na massa ultra densa, inerte, Tão negra como mil sóis apagados, Furacão de sombra errante no infinito, É regressar a uma nova infância. Assombro-me (!) ou caio em paz? Ao perceber que tudo comecei e nada dou por concluído] Fico quieto no silêncio à procura do infinito da razão.] Saio destas noites, sereno, mais convicto e Maresias

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reforçado] Que por muito que a vida esteja já puída Ainda bate seguro este pobre coração À espera de uma nova alvorada E outra …ou outra …ou outra ainda De onde brote minha vontade renovada. Sou eu próprio, assim, um mistério Em contínua feitura, fazendo-me. Sem um Deus que me guarde no seu Império Ou uma Nau que me leve p’rá «ilha afortunada» Para lá viver, aquém, na bruma A sonhar Com os rios que quis levar ao mar Deixados encalhados na praia, Feitos espuma.

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Dobrado o «Cabo dos Setenta» E o que fazer agora dobrado o Cabo dos setenta? Olhar com os olhos tristes os poucos e esganados horizontes,] E ficar por aqui a mendigar emoções novas Quando o suão que traz na mão a foice Espreita escarrapachado no varandim o momento em que me distraia?] Que hei-de dar à vida, senão uma enorme vaia, À magana que não poucas vezes, em vez de amor, só me deu coice;] E que em vez de talento só soube colocar à prova O sôfrego que a quis beber em taça de ouro, num só momento,] Todas as delícias prometidas: – o céu, o azul, a loucura vã de quem inventa (?)] Revejo-me nessa já longa história, Maresias

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inconsequente. Onde ontem esperei, hoje, já não espero, nem sequer tento,] Deixo-me conduzir não por aquilo que queria ver, mas que vi] E sem nada esperar, contudo, não me renego. A vida foi-se,] Eu sigo. Coração apaixonado, sem saudade de voltar àquela «praia».

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Em que por assim querer, estamos Sou o homem de olhar acinzentado Que segue a mulher insinuante De cor de canela que surge do império. Já não olho para a sua silhueta, surpreendentemente, pasmado. Mas para o que retenho da imagem que se foi dissolvendo. A luz não me ofusca porque dela apenas retenho a miragem. Interessa-me pouco por onde foi, o que fez, ou onde andou. A sério… É um enigma de que perdi o desejo. Voltar a descobri-la. Vou jogando com ela à batota. Há um terno de mãos que não se mostra. Fingese. Ela joga comigo estranhos jogos florais. E às vezes a vida. Eu não. Maresias

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Melhor deixar repousar a poeira do passado Que ficar com os olhos perdidos do presente, ausente. Sinto por vezes que sorrimos. Ou choramos? E que insinuando, sem nunca o dizer Lembramos esses anos que nos fugiram. A noite de ausĂŞncia que por assim querer, estamos.

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Hoje ainda… mais só… A paz e a inquietação, habituais. A paz de quem voltou costas à vida. A inquietação de quem dela quer mais! Ir ou ficar? Tomar a posição da inércia, ou assumir movimento? Essa a difícil decisão deste solitário momento. Paneio como a vela da barca da vida Preso ainda ao chão, mas prestes a voar. Oh! como seria boa a vida, a durar E nós dois sempre, aqui, a não perceber que passava. A fazer de conta, a olhar Além do orvalho, o gemido, o eco latente de quem se afastava.]

Maresias

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O Barco da Ilusão Terminada a tarde Feita braseira de mil sóis Veio a noite primeva Sem sopro nem sombra Errando na ria, neste praiar do mar; Os meus olhos, outrora sonhadores, Olhando o que Aos outros trará vida. A mim, apenas vejo sorrir a morte. Silêncio coalhado de prata, Solidão estendida no sono impaciente Cortada pelo pio de uma ou outra gaivota. No meu choro correm bagas de gritos: Já não virá o dia, algum dia(!) Que há-de ser «novo dia». Avança ao som de toques marciais Comandados pelo soar estridente do clarim. Amanhã haverá nova alvorada Maresias

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Azul, enevoada, ou imprecisa Pouco já me importa, ou colhe, Que chegue a fria madrugada E apague e dê por finda Esta errante caminhada. Sou gaivota de asa ferida Na borda do mar irado, enxerida Esperando o barco da ilusão. Colher amarras, alar a vela, largar do cais E vogar além… ainda mais além…sempre além, Partir como ave de arribação.

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O «baú» que se deixa na Costa-Nova, tipo «Reserva» é surpreendente. Encontrei lá este. Porque não hei-de compartilhar com os amigos

A Vida é «soma e segue» Pudesse eu sentir o bafo dos dias quentes Para deixar de sentir a dor A dor tremenda de me ver ainda acordado Em tudo o que escrevi. Nessas folhas em que amei e fui amado Ainda que noutras, não sei (?) odiado… Sinto a dor tremenda de nelas não ver gestos, Seria que lá não couberam? Ou estando lá, eu os não vi, tão escassos eles eram? A vida é “soma e segue”. Por isso quem me dera morrer num instante Antes que o inverno mos negue. Ateio as poucas brasas que ainda há Maresias

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Enfim! São frias pelos beijos que não recebi. Recuso o sono, a paz e a solidão Que só hei-de querer no fim. Quando então já longe de mim. Mas não deixo, hoje, de escrever Num cravo ruivo para Ti O que já não sei dizer a mim.

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Eu… Neste Tempo Dos dias sem tempo Colho uma flor Da roseira de espinhos Que foi esta vida, Sem riso nem graça, Roda de náusea em que girei Na absurda maneira de querer ser, Ao mesmo tempo, fogo e orvalho, Na mesma hora, meigo e trovão. Estridente e desatinado clarim A procurar o peregrino Que havia em mim. Guarda-a. Aqui ta deixo. É a mais bela, a mais vermelha rosa Deste sonhado jardim. Com ela te aceno. Estou de partida; Já nada me prende a nada Tanta foi a esperança gasta, ofendida. Tempo este, de inexorável solidão Maresias

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Lancinante desassossego Onde se desfazem sonhos e ilusão Lá fora já vem a noite. Não tenhas pena. Nada mais peço, nem sequer já mereço Paguei à vida chorudo preço O de querer sempre ser, só e apenas, Eu…

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Onde estão «os céus» prometidos (?) Grande desatino Percorre este tempo Num turbilhão de emoções; Crianças, velhos e novos, Todos (!) À espera que chegue o momento Em que trazido na noite, Enovelado no xaile do vento, Chegue o adulado menino. Mas o menino não virá. Para quê (?) regressar ao ponto de partida, Se o Homem é negação de obra-prima, Clamorosa imperfeição da obra divina. Se o menino viesse Encontraria de novo, Na praça, os Vendilhões A chorar (pel)a pobreza do Povo. Choram a pobreza mas não O servem. Maresias

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Alarido de carpidores, São os mesmos que em surdina Nos púlpitos do templo À uma se levantam, votam E a decretam. De novo (e sempre!) em nome do Povo traído Prometem um mundo novo. Eu por mim desiludido Naufrago varado na praia afortunada Procuro na rosa-dos-ventos Orientes (ou ocidentes?) Novo rumo para esta pátria ousada. Nova epopeia iluminada, Em procura de outra Antília de novo amanhecida, Bem lá nos longes do mar, escondida. Um Portugal revoltado De onde fosse banido Crianças a tiritar de frio E homens a estender a mão A uma escassa migalha de pão.

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Deus, Ó Deus, porque ficam assim tão longe, Inacessíveis (!), Os «céus» que prometeste?


O passado… passou… Sentado no terraço Afundo o olhar na ria, Ao querer saber tudo a meu respeito. Sinto a brisa quente que me traz o aroma da saudade Vejo no espelho do seu azul prateado Enigmático sorriso estampado no meu rosto baço; Afinal, a vida pode ser olhar…e nada mais. Neste fim de tarde quero lembrar As últimas ofertas de sonhos Os últimos momentos em que me dei As derradeiras palavras que escrevi Os últimos afectos com que matei a tua sede … Não consigo reencontrar-me; Recolho o olhar E regresso para dentro de mim. Nesta desconstrução que persigo Maresias

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Mas não consigo dilucidar Pareço não ter deixado rasto Naquilo de que me afasto. Nem ao menos dos momentos que contigo [vivi.

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Pegadas … Ou Pela beirinha do mar sigo as pegadas (2ª versão)

Pela beirinha do mar sigo as pegadas Infindáveis, Por outros, deixadas no areal; Muitos outros, tantos! Que como eu perseguem A procura de se reencontrarem. Esquecer o passado meu É o mesmo que correr atrás do vento que me fustiga; Nele pouco encontro de que valeu. Vem o farfalho branco da vaga E tudo que está para trás, se apaga. Como se a vida recomeçasse de novo Tento olhar em frente e seguir caminhada. Para onde vou (?) Não sei. Sem o peso dos erros vou mais leve, A deixar de novo as minhas pegadas, Maresias

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As minhas marcas, na vida ainda que breve. O passado foi-se O importante ĂŠ que desperte um novo dia Em que volte de novo a ser eu, Mas um outro eu. Agora, inteira e totalmente: LIVRE!

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Novo poente Sem luz na luz Lá veio De mansinho despertar-me Outro ano Outro peso O tempo é um louco desengano Que fique dele Este momento Em que olho para trás E pressinto que a vida Em mim não coube, Que só em mim mora A solidão E este jeito de dizer: – não!

O tempo passa e caminha E tu sem chegar Maresias

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A Ria e as penas que sinto de mim… Escurece Mas eu vejo aquele voo da gaivina Em dança fandangueira Voa rente e logo se eleva, Vadia e graciosamente ligeira Rasando o farfalho da vaga que persegue E onde refresca As «penas» das suas asas. E eu por aqui fico por perto À espera do momento de te ver. Enquanto espero e sorvo a poção da maresia Que me embriaga. Já a provei… Sabe-me a pouco E só tu matarás esse desejo louco Da saudade que quero Em ti afogar. Maresias

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Anda!… vem daí Vem em segredo, que eu prometo Não contar a ninguém O que vamos celebrar. Anda!…vamos voar! Para eu matar em ti As penas que sinto de mim

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Despedida …. hoje… Cansado De mim ou da vida por mim, Venho aqui ao meu terraço Para me despedir de ti, neste ano tão ruim, Que não deu nem para um pequeno namoro Nem para te dizer as palavras que para ti guardei; Não houve tempo. Coitado de mim. Vieste bonita pra o adeus. Encharco o olhar no brilho que reflectes nesta noite. Embevecido Pouso os olhos no prateado Que flutua em ti São miríades estrelas a brilhar No vestido com que me convidas Para em ti nadar.

Maresias

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É então que me decido; Lanço-me nos teus braços, Aconchego-me ao teu corpo húmido Bebo do teu perfume Afogo-me na doçura dos teus enlaces Embriago-me no licor dos teus beijos Teço a rede com que entrelaço teus olhos. Faço-me teu, assim, na Inteireza do meu nu Como nunca me fiz Para assim melhor te sentir E possuir, Teu desejo a desaguar em mim Meu desejo a morrer em ti. E sei… sei que amanhã já não virás Viverei então de recordações: voltarei a ser eu O mesmo de sempre Inconstante a desatar o nó cego, Lucidamente a repudiar quanto não enxergo A voltar, lentamente, à realidade

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A sonhar contigo, o mar e o longínquo firmamento Serei eu, sozinho A cantar o azul do meu encantamento. Pois: compreendo uma vez mais Que não posso ser só teu E que a ilusão me venceu Por ora. Descansa; não sou de ninguém Não posso mais dar-me Pois não posso moldar-me A ser outro que não eu, Tão longe de ti, como de mim. Não … Não posso ser mais nada Só eu… Só eu No intervalo das aventuras A procurar-me Por entre o vazio das palavras Que guardo para ti.


Mãe! Tenho frio, mãe; Não de agasalho, mas frio Que vem de dentro de mim Como de quem morre por fora Ainda que vivo por dentro. Já não ouço as canções com que me Embalavas E eu acordado sonhava…. Estendendo os braços de forma abstracta: A noite chegava e tu a meu lado velavas, ………………………….……Mãe! Mãe! Tenho sono, mãe Mas não consigo dormir. Procuro a dobra de cetim do cobertor Aonde a chupar adormecia E só encontro as dobras ásperas da vida. Fico com os olhos abertos Maresias

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A ver tudo sem enxergar nada, Por mais que tente e faça Não valho nada, não digas nada, ……………………………Mãe! Mãe! Tenho sede, mãe, Não de água para a mitigar Mas das palavras em que me dizias Que a verdade Nunca me iria abandonar. Mãe: Quem me quer agora, não me conhece E quem eu conheço Não me apetece. Deixei tudo passar E tudo ficou para trás. Até tu, ……………………….Mãe!

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Mãe! Tenho fome, mãe; Não fome de vitualhas Mas de ouvir chamar-me de «teu herói» Por saber dizer não!, aos canalhas. Hoje não sou já herói de coisa nenhuma Mas tão só pedinte de que me deixem morrer igual Ao que sempre fui, Preso ao chão, descrente dos céus. Ai a vida, Mãe: amargo caminho deste teu menino… A que nem a morte de mim Te afastou ……………………………….….Mãe! Mãe! Olho para a vida que correu, mãe E lembro que me dizias Ser eu para ti um livro aberto: Bom por dentro


E «mau» por fora. Hoje Mãe, Já nem por dentro serei bom. A vida não concede esse privilégio Aos vencidos da história; Condenados a não triunfar Já não vale a pena parecer Apenas mau por fora, a protestar; Há que sê-lo de corpo e alma: inteiro ………………………………Mãe!

Maresias

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Reencontro Vem Ria! Corre e vem roubar-me a este desengano A este silêncio amargo que me entedia, Tão intenso que o seu «ruído» me ensurdece. Tenho frio de ver a noite, tenho sede de ver o dia. Vem Ria! Foi no meu mar interior que o rio da vida veio desaguar; Trouxe no seu ventre o inverno da vida. Vejo pessoas como barcos negros a navegar Cruzando o breu da noite sem se verem, ou sequer saudar. Vem Ria! Traz contigo o vento para varrer as minhas penas. Quero nele verter as minhas rosas de espinhos Quero nele sentir o ressoar do meu coração Maresias

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distante Quero que ele me traga a parte do meu sonho que pereceu. Vem Ria! Traz-me o azul para nele embrulhar as recordações Onde nem tudo, no passado, foi falso Quero recordá-lo para o volver presente Trazer para junto de mim, quem está ausente. Vem Ria! Oh! Quanto nos afastámos neste verão de dor Recomecemos, hoje, o nosso inocente amor. Deixa que este tempo do não viver, não dura sempre: Eu vou acordar deste sono falso, deste cansaço aparente. Vem Ria! Eu não sonho possuir-te, ser contigo carnal Não: contigo não quero ser, assim, banal

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Quero voltar a ver-te nua, mas não possuída Quero voltar contigo ao pedaço de vida interrompida.]


Desculpem-me companheiros: hoje não estarei Quisera eu, de novo, reunir convivas Amigos! E para eles erguer fausta mesa Onde a amizade fosse coisa viva. De Baco colher o melhor mel das cepas Vinhos sublimes, sem igual e variados E com eles erguer o copo, saudar a vida Falar de coisas sérias, outras não Que a vida não é só siso, é também riso. Corro até à janela do meu navio Onde embarquei neste resto de vida; Fico absorto, olhando o céu, hoje sem sardas luminosas A noite está fria como eu. E insossa sem o acre da maresia. A vida parece parada, untuosa, Já nela não mora a poesia.

Maresias

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Vou-me esconder atrás da porta Para enganar a realidade; Se ela entrar que me não encontre. Fico apenas com as duas sensações: A de viver só o que é real E de já não sonhar com os «impossíveis». Mesmo o mínimo de sonho me parece logo real. Desculpem-me companheiros: hoje não estarei.

170 | senos da fonseca


Encolhi as asas… e continuei. Saí de um sonho. E nessa bonita pompa de sensações Olhei pela janela A contemplar, espantado, o voo de uma gaivota, Na curva que deu para vir ter comigo. Via-a(!), Asas esticadas, tinha na ponta de uma, o azul do firmamento E na outra, o azul riscado da ria. Já acordado, espero como ela agachado, A chegada do ocaso arroxeado, Para no crepúsculo esconder as amarguras De ser um barco à deriva, perdidas as amuras. No sonho voltei por momentos a ser criança A pensar que a vida é sempre azul Que no azul só há «penas» brancas. Maresias

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Estremunhado, despertei: A minha vida foi um vale de lågrimas, Seco(!), Porque nela raramente chorei. Apenas encolhi as asas‌ e continuei.

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Solidariedade





Um dia pediram-me umas palavras para os 25 Anos do CASCI. Nem a ilusão foi capaz de esbater Do nosso espírito, a pobreza dos afectos, E assim disfarçar o final da nossa utopia. Nem o egoísmo do conforto em que vivemos Nos levou a esquecer o drama dos que Lutavam com a vida, tentando, só e apenas, Sobreviver. Nem sequer hesitámos em deitar para trás, A cobardia de negar às almas infelizes, As migalhas com que fomos aliviando a sua dor… Nem lhes negámos a Solidariedade Para, ao menos, ressuscitar horas felizes em que Visionassem outro mundo…

Maresias

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Nem nos ausentámos das durezas do mundo, Nem esquecemos a realidade trágica dos que, Nem exigir já sabiam…

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A Morte, afinal, existe! E sem que fosse ainda Primavera Cobriram-Te de flores Fazendo de Ti uma criança. Parava ali a dádiva da Tua vida. A Morte, afinal, existe! Mas sossega: Apesar dela o Mundo avança. A luta foi cheia de sentido Quando transformaste dores, em sorrisos Nos rostos de tantas crianças. Ninguém poderá destruir as pontes que Te levaram ao sonho. Nem os passos com que calcorreaste as veredas sinuosas] Com fantasmas espreitando a toda a hora, medonhos!] Toldados de rancor e desamor, prontos a lançar suas verrinas insidiosas.] (No dia do Teu Aniversário) Maresias

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Ser Solidário(a) Ser solidário(a) é desejar ir correndo ao rumo. Ir sem medo de regressar Mesmo que a caminhada seja inútil. É ousar e logo transformar o sonho Na freima dos abraços. É bater à porta e ouvir dizer: – Não! É ter frio e tão ter agasalho; Para os outros, para si, não! É suportar a hostilidade dos que Nem sequer sabem abrir a mão, Pois só sabem dizer: – Não! É sentir-se escorraçado(a), vexado(a), intolerado(a) Pelos que têm prazer para dizer sim, Mas só sabem dizer: – Não! Maresias

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É voltar sempre de novo A gritar… A ousar… A levantar os olhos do chão Para dizer: Vencido (a) eu (?!) …Não! (29º Aniversário do Casci)

182 | senos da fonseca


Adopção Nesta noite queria adoptar uma estrela Para com ela m’envolver Em sonho louco Que de tudo tivesse um pouco Fossemos só nós dois, apenas, Aqui ou noutro lugar, não sei onde, nem como, Queria uma noite de vida sem amanhecer Transformada em amor para a todos dar, Solidariedade bastante para a todos chegar. Queria usar o seu brilho como condão Para iluminar os campos das guerras – De todas as guerras – Volvendo-os trigais ululantes de espigas prenhes Para transformar (armas) em pão. Fazê-la «rosa de marear», Não para procurar outros mundos Com novas pobrezas para explorar, Mas caminhos de papoilas imaginados Onde não mais corresse o sangue dos fracos, Substituído das levadas Maresias

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Para lavar as feridas dos oprimidos Em gesto de humilde misericórdia. Novos «Orientes» imaginados Em descoberta do «Homem Novo», livre. Irmão de irmãos sorrindo ao vento Em tempo intemporal, nunca acabado Rostos enxutos de lágrimas Postas a forrar o mundo De Paz, Fraternidade e Concórdia.

184 | senos da fonseca


30 Anos a dar-se Queria ver-te sempre assim Parecendo que foi ainda ontem, Era então a madrugada dos sonhos Quando te vi nascer. Poder aqui contar Em cada imagem Em cada linha deste verso O querer que ultrapassou a miragem. E ousou, ousar. Quereria hoje olhar o sol E nos longes da memória de então Contar as queixas de antemão desiludidas. Longo e extenso é o rol Desse tempo apaixonado, irrecusável A querer chegar a qualquer lado, Que lado? – a todo o lado. Era o mundo da fraternidade Maresias

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Que apelava, ali, à nossa frente, Girava …girava, imparável. Nele havia Olhos em rostos de silêncio Que a miséria desenhara, Onde uma lágrima fugidia Corria, à tua espera.

Dos meninos da poeira. Sozinhos, sentados à beira da estrada, Sem sonho maior que a ilusão Sem ilusão maior que nada Colhem o vento sem forma, Na noite sem tempo, Dum tempo que é nada.

Foste então Ancoradouro seguro Aconchego macio, Veludo Para pés nus de tanta criança. Foste abrigo quieto, Cais de desembarque, Substituto de ausência, Para quem tinha sido e já não mais era, Senão anseio de existência.

Hoje trinta anos vividos As estrelas continuam no céu. Só que encobertas pelas nuvens. Há muitas escondendo a dor. Outros serão os fados Ninguém sabe o que serão E que importa? Fados serão….

Foste mão estendida Que se deixa entrelaçar Nas mãos sujas

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A vida nunca foi um paraíso. No jardim resta ainda tanta flor……


Solidariedade Sei que não posso mudar tudo que está errado. Mas sou Solidário: Mudo aquilo que posso e me atrevo. Vivo preso no diário dos meus sonhos. Fecho os olhos para ver, de mim, o que faço para os outros,] Meus irmãos de sangue, meus irmãos de língua, meus irmãos do mundo tristonho.] Quero ver-vos desiguais, iguais. Adivinhar em vós a igualdade finalmente alcançada.]

Maresias

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Natividade





Natal…Tempo de incomodidade Noite limpa, De pureza imaculada Nas gentes, na alma “corre” parada. No Amor, e na Dor, A insensibilidade desnudada Reflecte o negrume do “presente”, passado, Onde sonhei o mundo. Tudo! Hoje perplexo Olho e não vejo, Falo…e estou mudo.

Maresias

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194 | senos da fonseca


Natal 2007 Trazes notícias da fome Que corre no Chade, na Nigéria Onde meninos tristes Andam à solta, sob a fúria dos homens. E com eles corre a miséria Que por todos os lados existe. Tristes notícias trazes contigo E nos vens dar, hoje, Menino… Nesta noite em que a solidão Nos cerca como um muro E nos leva a crer Que é inútil lutar; Que tudo é em vão, Que para o homem só a guerra É a única, e a grande razão.

Maresias

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196 | senos da fonseca


Outro Natal… Que salvei no naufrágio desta viagem acidentada, mas única, da vida? Os vendavais são cada vez mais soltos. Voltar ao desejado porto, Ou naufragar, e deixar ir este miserável corpo? Seja para que lado enxergue Vejo na tábua a tempestade Fora de água sobra apenas, a vontade. Que salvar deste naufrágio? A vida?! Que importa? Já não há prémio; Nem fama. Nem da amizade, sentido grémio? Mas venha de lá desdita Eu ponho de lado a tristeza Sorrindo-me da sua vileza.

Maresias

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E bebo convosco amigos Às damas que bem amei A quem no peito guardei Todas que ao longo de lustros Não me deixaram tempo para ódios. Tão loucos e geniais foram os bródios.

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Natal Feliz… Encho a concha das minhas mãos vazias Com a Esperança, Para contigo a repartir. Olha que se esvai por entre os dedos, Não a deixes fugir. O Inverno não há-de durar sempre Os pousios dos tempos são passageiros.

Maresias

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200 | senos da fonseca


O Presépio da vida Ah! Noite finalmente chegada Nesta vida perdidiça, de sabor a fel. Amargurada. Presépio de figuras esquecidas, Perdidas Na imensidão de um céu sem a estrela, Com magos de mãos vazias Sem pão para ofertar Ao menino(s) Para a fome lhe(s) matar. Ah! Noite fria, noite de cão Onde não há reis nem roque, Nem sequer um poeta a cantar As razões da inconformada visão.

Maresias

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Noite de luz despida, de fria solidão E cruel desamor Onde tantos têm tudo E muitos outros, Nem sequer uma migalha de pão. Ou a esperança de um dia promissor. Nem sequer o direito de «amanhã», dizerem Não!

202 | senos da fonseca


Noite de ausência Nestes dias sem noite Sento-me à lareira A olhar, indiferente, As rabanadas na mesa, Os pinhões e ovos moles Queijo e iguarias tais, Café, bacalhau e grão Cardápios de todos os Natais Em casas onde não falta o pão. (Por onde estarão os comensais?) Mesa cheia e eu vazio. Mato com whisky a solidão. Volto-me entre dois suspiros Tiro a mão que me suporta a cabeça Fixo o olhar em algures, distante, E vou por aí aos tropeções dentro de mim Em claro desatino À procura de mim, menino. Maresias

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A felicidade não está no que temos; Vai «naquilo» que perdemos.

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Presépio Nesta noite De tanta acalmia interior Fico-me a olhar o presépio Absorto, por certo maravilhado. Brota em mim um enlevo da inocência Que julgava já perdida, O sol já se escondeu. O silêncio estreme Convida-me a aproximar da fronteira do sonho. Fico pasmado com tamanha transparência Da cristalina doçura daquele menino risonho; AH! Só uma criança pode sorrir assim…, Na imaculada pureza original. Olhar para o mundo, E crédulo, Dar-se para O humanizar.

Maresias

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Apetece-me soerguê-lo das palhas E levá-lo para longe do mundo, comigo Para juntos passearmos no jardim da primavera Não para falarmos de poderosos nem reis Nem chorar penas das guerras, ou do medo que já era Ou da fome das crianças, Ou da pomba do mundo substituída por feroz fera. Mas da chama de um novo sonho que remoça Que nos leve à reconquista da distância O mar, o mar de novas areias, o mar das ilusões Navegar é preciso… Para encontrar a alma de um mundo novo: Ser Povo De novo.

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Liberdade





Liberdade Foste a gaivota Que de mansinho a esvoaçar Num dia d’ Abril, Nos mastaréus desta Caravela feita País, Por entre perigos mil Suave, vieste pousar. Sabia que irias chegar Que podias ou não ficar Ou partir para longe. Voar! (Era preciso ousar) Onde andas hoje?! Em que longes Semeias sonho ou ilusão (?) Que mar, que vela, Que arte, O que é preciso (?) p’ra dizer: – NÃO! Que Tu não existes LIBERDADE, Maresias

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Se em qualquer parte Uma criança chorar por pão. Mas se em mim não te sentisse, Ou contigo não sonhasse (Que voltarás um dia) Que dor, que verdade Que ia ser de mim (?!), sem Ti Meu amor Ó LIBERDADE!

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Liberdade não se dá… Conquista-se Flor! Minha flor d’Abril Toda perfume Toda feita de sonhos E promessas, Eram mais que mil. Eras uma flor por esfolhar Trazias nas pétalas vermelhas A cor do amor. Eras a chama, eras lume A incendiar nosso fervor Levando um povo a cantar, Um só Povo, Povo unido, Convencido A ir pelas ruas, pelos becos, Pelo mar, pelo ar Punho erguido, a gritar, Que não…, Que o Povo unido Nunca! … Nunca mais será vencido. Maresias

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Olho-te hoje, flor, Minha flor, flor de Abril E choro um bem perdido. Hoje o sonho morreu. Pois não sendo sonho Era talvez acto pueril. E só agora percebo, O erro meu. A Liberdade não se dá. E muito menos se compra. A Liberdade só será Pelo povo entrevista, Se resultado da luta, Imposta pela conquista.

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25 Abril 2009 Seja o que seja, haja o que houver Foste o dia mais lindo Que algum dia, dia por dia Em outra qualquer manhã, de tantas manhãs, O tempo se cumpriu Naquela manhã de Abril. Eu sei que os meus olhos sonham Mais do que a razão, o infinito Moram neles mais sonhos, Sonhos bonitos Do que o mundo possa conter Mais do que olhando, só imaginando, os posso ver. Não quero tudo que prometeste. Apenas um pouco da esperança que trouxeste Quando da bruma de um tempo de nevoeiro Surgiste com fulgor. Era Portugal inteiro Debruçado à janela a ver-te acontecer Era Portugal nascido, a ver o amanhã. Maresias

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25 Abril 2010 Em Portugal De novo os corvos debicam Os restos. O povo calado, Já pouco ensaia o gesto. Deixo secar as lágrimas Mas não o sonho Da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, De um mundo novo. Só secando as minhas lágrimas Poderei ver as do meu POVO. Coragem Amigo Coragem Companheiro Chegada a hora, Num outro «abril» qualquer A gente ainda sabe o que quer Ainda sabemos dizer não. Maresias

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Sairemos de novo à rua. Cravo ruivo erguido Passado de mão em mão, A clamar Grilhetas de volta?! Não!

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Abril 2011 Murchou o cravo florido Que nos mostraste naquela manhã Erguido no cano de uma espingarda, Ali deixado por mão de uma criança. Símbolo da paz afirmada Vinha contar a história: Era uma vez uma guerra acabada. O cravo rubro era a soma de todos os sonhos sonhados Alquimia de vontades, fantasia, magia, Nascidas naquela madrugada Onde todos éramos irmãos soldados, Acabara a incerteza, indizível ansiedade. Quem não quis cantar Esse dia de Abril amanhecido, Em que havia vozes, lágrimas, mãos a vibrar Era a poesia que corria, O anunciar um Portugal, então apetecido. Todos colhemos um cravo Maresias

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E com ele na lapela Passeámos a esperança. Ou com ele na mão erguido O povo foi vaga no amanhecer No desejo de tudo querer Não importava saber o que queria Queria tudo aquilo que via E sabia tudo aquilo que não queria nunca mais… Não! nunca me arrependerei do que fui E nós – todos nós – sonhámos assim esse dia demais Em que uma flor fosse mais do que uma flor Um país para se fazer adiante – e ser! Princípio do fim de todos os medos, Naquele Abril, o país amanheceu. Hoje, de novo é Abril, Mas um Abril igual a tantos mais. Já não há cravos, nem sonhos, nem rosas Nem da promessa do Graal, se enxerga o sinal O de cumprir Portugal.

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25 Abril 2012 E foi neste caminho tortuoso Mais longo que as curvas da vida, Que o resto das tuas promessas se desvaneceu, Já não há cravos nem rosas, nem espingardas Nem sonhos gritados aos céus, Tudo é nebuloso. O Povo desunido, foi claramente vencido. Meu canto é triste. Choro em cada verso a desilusão Dos sonhos que não cabiam na mão. De todas as mãos. Hoje é véspera do não chegar nunca a ser. Vou por aqui ficar a velar À espera de que aconteça o que quer que seja; Ao longe ouço tambores, mas não os vejo E eu queria vê-los e ouvi-los rufar A anunciar Que é lenta a marcha, mas há que recomeçar. No ar paira uma promessa Maresias

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De um dia se voltar a cantar Os versos da primavera, de novo florida. Seremos então tantos, seremos todos De braço no ar a empunhar de novo a flor A gritar a raiva que nos move A perguntar «aos tais»: De novo enganados?! Não! Nunca mais.

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Meu テ考havo





Futuro A viver Desiludido, Vou porfiando nesta terra, Centro do meu mundo, À espera que amanheça O futuro. Ser assim. Inquieto, Mais que tudo Mistério intenso e profundo. Na ânsia que apareça. Força, Vontade, Espírito Que derrube a indiferença E o muro, Deixando ousar O futuro. Maresias

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A Ousar, Ousando, A Construir, Construindo, A Amar, Amando

228 | senos da fonseca


Ílhavo a apodrecer Nem amor, nem ódio, nem guerra Desenha o perfil, o ser Desta triste e pobre Terra Que é Ílhavo a apodrecer. Ninguém sabe o que quer que seja Ninguém alma mostra ter, O que é mau, ou o que é bom Ninguém chora; Tudo é distante, inverdadeiro. Ílhavo não sorri por ora Cobre-nos cerrado nevoeiro.

Maresias

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Um canto novo virá Minha terra Minha amada de sempre Minha terra para sempre Terra das gentes Da ria, do sol E do mar, Porque Te sinto chorar? Eu sei que já não és hoje A mesma que foste outrora. Tuas azenhas já não choram E o teu sol já não brilha, Tua ria está cansada de correr Para se ir afogar no mar. Mas Tu estás longe de morrer! Um dia lá virá um canto novo No bico de uma gaivina Que pousará levando a acreditar Maresias

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Que com ele chegou a hora De devolver o sonho ao teu povo E pô-lo de novo a ousar‌ De novo a navegar.

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Ser homem sem preço Quero esconder-me dos Homens Embrulhar-me na saudade Desta terra que já foi Estrada marinha, E hoje se arrasta num torpor Sem sonho, nem crença Despida de amor. Naufraga à deriva No mar da bazófia Saloia, atrevida. Quando me despedir De mim, quero Por todos e para todos Os que comigo viveram o sonho, Deixar As folhas em que me retratei, Intranquilo, A defrontar a onda, Vivendo a vida a querer ser igual Maresias

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Aos que, nunca o desejando, Sempre foram desiguais. Por ensejo ou coisas mais. Não lhes deixo agulha, Rumos, cartas, ou destinos, Ou até loucos desatinos, De sítios por onde andei A marear a minha lonjura. Longes que já nem eu sei, se ousei. Sei apenas que queria zarpar, Sair de mim, cortar raízes, Ir tão longe que impossível fosse Voltar, A ter a idade que nunca tive. Mas prometo Ainda inventar último verso, A reafirmar de mim Que morri, talvez, Por muito viver; Sempre a querer

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Mais do que ser homem, «Ser Homem» sem preço.


Vida





Vida Vieste de mansinho, urgente e imprevista. Parecias tiritar de frio na noite primeira Que me oferecias… Sem fingires ou sequer disfarçar, Que te preparavas lesta para abandonar, À sorte que me oferecias… Psst! Disse-Te eu… E Tu espantada com tamanho desatino Olhaste-me, nu, inocente, inquieto humano Esquadrinhando o tudo dentro do nada, Ainda sem tino, dando asas à fantasia…

Que queres tu?!… menino, ainda agora amanhecido.] Que queres?!… que outros não ousam de mim. Inquiriste cansada, soturna e dorida Enquanto lá fora o vento zunia. Maresias

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Que me deixes ser eu… Não, apenas e só, um igual a tantos mais Que por certo esquecerias. Mas outro que se mude a cada hora que mude, Que viva sôfrego e sedento, a vida no vento Desafiando o tempo No prazer de um só momento. E viva sem horas vazias O canto da tua magia… Em quão longo tempo, de tão breve momento.

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Cinzento é que não… Tudo em mim, é preto, ou branco. Parece que desconheço o cinzento, Pois o sonho impede-me de dizer, talvez. Ando sempre à procura do tempo Onde me debato, à vez Entre a afirmação, cruel momento Que me diga estar ainda vivo, Ou na ausência, apenas adormecido Dou a minha voz à revolta. Não entendo a vida envolta em névoas. Por isso ateio o fogo onde m’ imolo, Errante, na procura da verdade sem tréguas Propondo-me levá-la comigo, ao colo. Nunca sou só eu; mas eu e os outros, Pondo os olhos de sonhador, até bem longe Não para ver o que não sinto; mas para me sentir o outro.] Que olha, olhando não só para a esperança, mas para o grito.] Maresias

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Saudade





Saudades de mim, menino Ai barcas, ai barcas Tão triste Ê vosso negror, Por onde ides navegar? Que espreita O olho que levais na proa? Ai amores, ai amores Da ria amada, Ai amores do verde pino‌ Ai saudades de mim, menino Levai-me em vosso vagar.

Maresias

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Hoje a minha Mãe É noite. É noite na noite. A morte veio, e levou-Te Para baixo da terra Onde só há noite. Que venha…Que venha… Essa magana. Venha ela e me detenha, Que eu levo-Te um cravo. O jardim já não tem gente Nem sequer nele há sonhos Mas apenas olhares vagos. Só a custo suporto o travo Dos que vivem tristonhos Sem nada entenderem, Ou sequer quererem Que surja outra madrugada quente.

Maresias

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Terei saudades Terei saudades do mar Quando na terra me esquecer. Anda, vem amor, Vem-me aconchegar. Anda. Vem daí Vamos marear. Vadiar descalços Pela beirinha do mar Perdidos na areia náufraga Que deu à praia. As nossas pegadas Darão o passo para acontecer. Ficarás a saber Que Tu és ainda o meu fogo E que só dentro de ti Sei, exausto, que me venci. Juntos adormecemos, Eu, Tu e o Mar. Maresias

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Terei saudades de ti Quando o dia amanhecer.

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Mar





Arrais olhando o mar O Desafio do Arrais AH! MAR! Cabes inteiro no meu cachimbo Quando louco espumas de raiva, E te dobras alevantado Olhando-me espantado! Bebo-te de um gole. Embebedo de ti os meus olhos Na esperança de ser gaivota A medir as braças do teu infinito, Para então te dizer… Afinal…OH MAR! És tão pequenito…

Maresias

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O Mar e o Arrais Que trazes farfalho da vaga que lá vem? Com que dimensão, com que medo me queres aterrecer,] Ou com que inquietação me queres saber? Não aceitas (?), danado, quem tem medo de ti não tem.] Pode vir de breu, negro e ameaçador. Podes trazer contigo o vento a chiar e a rugir, Relâmpago ou trovão a zunir; Podes trazer tudo, Mar sem fundo, Mar de todo o mundo. Vem estipor! A tudo direi basta Que o medo é breve, mas a glória vasta. De ti, minh’alma não teme fugir Nem dor colher, sorriso ou afago. Chegada a hora de te fruir Bebo-te, mostrengo, de um só trago. Maresias

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Vem danado! Se a tua grandeza é vasta Para a dominar, uma mão me basta. Pois tu, afinal – ó Mar! – És tão pequenino Que a tua imensidão Cabe aqui, todinha, No seio da minha mão.

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Mar Olho assombrado para ti Mar! Não sei das lonjuras de onde vens; Nem razão do desassossego que trazes contigo. Mora em ti permanente inquietação E uma eterna crispação Quando vens apressado No regresso de outras paragens; Que mostrengos viste tu MAR?! Dos que Portugal sonhou primeiro, Que ainda os não tivéssemos aquietado. Vens de azul vestido guiado pelo voo da gaivota Que te convida a descansar no leito da praia. Para que melhor possas olhar o céu. Num repente ensombras o teu ondular E ela desatina e vem pousar em terra À espera que emudeça o teu escarcéu E eu sei apenas que só por te chamar Mar! … Percebo a tua dimensão Maresias

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Vislumbro as montanhas ocultas no teu corpo A erguerem-se cobrindo-se de branco véu. És abismo profundo em dialecto de carícias com a praia] Enrolando ao compasso do vento, A beleza afogueada da vaga ao entardecer; A espalhar-se na areia prateada pela Lua Que já lá vem, ciumenta das serras a descer És sonho, és dor, és acaso, Sombra dos que sepultaste, maldição de vivos, Apenas o teu nome continua a me abismar MAR! Fera amansada Rugindo na noite assombrada Com cega brutalidade. Acordas azul, envolto na bruma da ilusão. E os meus olhos ficam azuis, imensos, Com a febre de querer ir contigo: – navegar Vieste antes da palavra; Na rara intenção de provar A existência da eternidade. Antes dos tempos tu já eras

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Depois dos tempos tu serás. Nada que eu faça sou eu O mundo é teu. De ti todo inteiro; de mim nada. Mar!!!Mar!!! se eu te chamar Não voltes para trás, MAR. Eu sou como o vento na forma incompleta. Vai; deixa que nele se esvaia este longínquo apelo meu.]


Poder de novo voltar a ser… Mar… Olho a tua grandeza A imensidão das tuas lonjuras E de um modo absurdo Sinto que (ainda) existo Num passado que foi teu. Sinto-o no desassossego que me causas Sinto-o na pequenez que me rodeia E apetece-me perguntar: Porque nos não ajudas De novo a cumprir Portugal? A partir para achar, Cá dentro, A árvore, a flor, a praia, a ave e a fonte A encher de esperanças as horas navegadas Para assim ultrapassar o medonho. Galgar valas, aldear encostas, subir os montes, Em conquista de novo o sonho Maresias

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A recuperar a altivez, E entre o chão encontrado e o império perdido De novo, tão só, voltar a ser português. A desejar querer Poder de novo ser Povo de um país amanhecido.

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Amizade





Amigos hoje, nem eu sei… Amigos hoje, nem eu sei já quantos o são, ou restam,] De verdade. Uma mão é bastante para os numerar. Longe vai o tempo Em que eu era ilha afortunada Rodeada de ilhéus Que mar algum tornava longe. Um a um foram-se afundando no horizonte, Deixando-me em estranho despertar. O vento uiva a ditar a sorte E eu cada vez mais só, Fico a olhar, absorto, para a imensidão do mar. Vá, mar! Solta de dentro de ti uma alegria Hoje, amanhã Que o seja, seja qual for o dia Em que o meu olhar, olhando Maresias

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Mesmo sem ver Sinta no perfume doce da maresia A inebriante magia da sua presença. Não só a de desejar, mas de a ter.

270 | senos da fonseca


Dispersos





Faina Maior Agora é tarde. Outros contam a história que escreveste E chamam-lhe sua. E Tu que calçavas as botas e cerravas os punhos, Marinheiro que o sonho abençoara E partias depois de beijar teu filho, Ficas a ouvir a história das «estórias» que lhes escrevias.] Que não falam da tua inquietação de então. Terra pão? E não falam do teu sofrimento, no momento, Terão alimento? E não falam da tua alienação quando em vão Andavas sozinho perdido na imensidão. Ninguém explica a dor sombria que então sentias Naquele lugre carregado de medos, Sabia-se lá se haveria humanos regressos?! É por isso que clamo pela tua presença Maresias

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Queria reunir os destroços que sobraram E dizer aos contadores da tua história imensa Que era o medo quem fazia os heróis. E toda essa imensidão de bravos, Que sonhavam, sofriam e choravam Só para que os seus filhos não fossem, Eles também, Os novos escravos…

276 | senos da fonseca


«Outoniço» Acordo hoje, Nesta manhã que sendo linda A mim, doente me parece. Como as folhas das árvores que o Outono empalidece.] Olho o céu que se mostra, aqui, pequeno, Sem lonjuras onde pouse o meu olhar Além! Estou triste, a olhar a minha gente deprimida E eu, outoniço também.

Maresias

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278 | senos da fonseca


Carpe diem Recolho-me aqui, bem para junto de Ti Na tentativa de me render à filosofia Da natureza que nos criou e alimenta. Carpe diem, É a mensagem que me pareces recomendar: Saber é proibido. Querer saber o fim que um qualquer «deus» Me dará, é proibido. Saber se faltam ainda poucos Ou muitos invernos, que um qualquer «deus» me concederá, Saber até se este não será o último É proibido. Fugaz, é a única certeza da vida. Mas se o for, que este sendo o último Não seja o menos importante. Traz pois contigo as musas para com elas beber Todo meu vinho; O melhor que não fique guardado Bebamos à vida; olha que o tempo é ciumento E foge para longe de nós. Maresias

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Deixa-o ir; fica aqui junto de mim, Nunca acredites no amanhã! Vamos aproveitar o que a vida nos oferece E colher cada botão acabado de florescer Antes que só nada mais haja que espinhos Para viver ou …morrer.

280 | senos da fonseca


Nova mensagem Hoje, amigo, deixa-me falar de um País Que foi soldado pelo braço forte de Afonso Curto da perna mas longo na bravura Correu com o moiro iroso que só da vida já cura, E olhando para a praia ocidental Afirmou aqui vai nascer Portugal! Hoje, amigo, deixa-me falar de uma pátria Que teve um rei trovador Que trovou cantigas de amigo Por Isabel perdido de amor: Que as rosas não eram o bastante de lhe bastar Mas urgente fazer uma Pátria para ao mundo a dar. Hoje, amigo, deixa-me falar de uma pátria Feita de um punhado de arraia-miúda A erguer-se para dizer ao mundo inteiro Que aqui não há lugar para nefandos andeiros Maresias

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Portugal não foi feito para vender Portugal foi feito para ser; e a vida para o defender. Hoje, amigo, deixa-me falar de um império Filho de uma pátria que queria ser maior que o mundo Que teve um rei, pai de longínquos mares Maiores de todo o olhar que fosse bem até ao fundo; Neles rei algum mandava. Viu-se terra nunca sonhada Que tanto a queria o nosso El-rei D. João Segundo. Hoje, amigo, deixa-me falar de uma pátria Onde intrusos mostrengos ousaram criar e porfiar Três vezes o francês entrou Muitas mais o espanhol veio na noite de breu Sonhando um povo conquistar De um país que não era o seu.

282 | senos da fonseca

Hoje, amigo, deixa-me falar de uma pátria Que deuses malévolos um dia castigaram: Que desgraça que vileza fazer gládio da natureza. Para baixo a morte, para cima a vida, ordenou Pombal E de novo se fez, fazendo-se Portugal. Renascia o Sonho de revelar o Santo Graal. Hoje, amigo, deixa-me falar de uma pátria Que desde então caminhou pela bruma Nos sonhos de um quinto império acreditado, Desfeito no farfalho da maré, à praia atirado Tempo foi, séculos correram Nem primeiro nem segundo, tudo se foi à uma. Hoje, amigo, deixa-me falar de uma pátria Onde entraram robots sem rosto, homens sem alma A espezinhar o seu povo, a calcar as suas gentes Uma troika de mostrengos vindos lá dos confins do mundo]


Para nos dizer que já nada é certo, senão saber o que se não quer:] Que tais mostrengos deitem a nau ao fundo. Mas, hoje, amigo, deixa-me falar de uma pátria Amedrontada à beira mar posta a entristecer Sem trabalho e sem pão. É tempo de dizer basta É tempo de dizer não. Fazer da voz uma canção E da canção uma arma. Não para ser império de novo então.] Mas para se ser livre e dono da tua pátria. [Escravo, isso (!) não!

Maresias

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maresias

(Oh! triste engano… …morro de vergonha só de pensar sê-lo. Melhor será parecê-lo.)

senos da fonseca

A companhia do poeta

maresias

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