O acordo ortográfico e o direito dos comboios à greve

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Público • Domingo 19 Junho 2011 • 33

Bartoon

Luís Afonso

O ócio do Julho

Miguel Esteves Cardoso Ainda ontem

E

ste ano, caracteristicamente, faço anos, no mês que vem, numa segunda-feira. É de mau gosto. É que em Julho, segundo um blogue colonialista (http://bit.ly/iEOUlQ), ocorrerá uma coisa que não acontece há 823 anos, desde os tempos, mais ou menos, de Afonso Henriques: vai haver 5 sextas-feiras, 5 sábados e 5 domingos. As sextas serão a 1,8, 15, 22 e 29 de Julho; os sábados a 2, 9, 16, 23 e 30 de Julho e os domingos a 3, 10, 17, 24 e 31 de Julho. Julho vai ser o mês, como não há há 800 anos, dos fartos fins-de-semana. São cinco weekends num só mês: é obra e ocasião de festejo. Estranha-se que, num mês de 31 dias, haja 5 dias que sejam sexta, sábado e domingo – por serem, só três dias, 15 dias contra os restantes 16, espalhados pelos outros quatro dias de uma semana. Os meses do ano são obstinados e fazem questão de representar-se, por muito obliquamente que se deixem assinalar. Temos uma ideia de cada mês que só um dia ou dois por mês corresponde a essa ideia. O amor do tempo e a raiva ao momento bebem da mesma fonte. Há dias que temos como trabalhos e outros que damos por descansos. Ninguém sabe distingui-los. Temos só de não compreender nem aceitar ou esperar o caminho certo. Ou, mesmo que seja tremendamente errado, o que mais se aproxima da nossa felicidade. O amor pelo mundo e pelos outros é a paixão casmurra e bondosa de quem não se quer decidir acerca de nada. Como vai ser este Junho? Como vai ser este dia? É bom não saber.

Um exemplo recente da RTP põe em causa valores fundamentais do elementar bom senso

O acordo ortográfico e o direito dos comboios à greve Quia parvus error in principio magnus est in fine S. Tomás de Aquino, De ente et essentia

H

á alguns meses, após ter apresentado uma comunicação no Instituto Franco-Português, em Lisboa, em seminário organizado pela União Latina, fui publicamente confrontaFrancisco do pelo senhor embaixador Lauro Moreira, defensor do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90) e en- Miguel tão embaixador do Brasil junto da CPLP, com o facto Valada de insistentemente me referir à supressão do acento da flexão verbal “pára”. Tratava-se de reacção ao exemplo de que me munira: um título do PÚBLICO de 13/4/2009 (“Bloqueio nos fundos da UE pára projecto de milhões na área do regadio”). Após supressão do acento agudo, tal como prescrito pelo AO 90 na sua base IX, 9.º, qualquer leitor poderia ser induzido em erro, pois “para” tanto poderia ser preposição, como flexão verbal, com óbvias consequências sintácticas e semânticas de tal “simplificação” na frase em apreço. Nesse longínquo mês de Novembro de 2009, recorri a uma ficção para ilustrar as consequên- O facto de em “sector” cias nefastas noutros planos, para além do gra- a consoante C ter valor fofonémico. Infelizmente, com a adopção acrítica, obediente e arbitrária do AO 90 por parte de acento continua de alguns meios de comunicação social, a coa não ser considerado, medida simulação deu lugar a uma perceptível realidade. Um exemplo recente da RTP põe em quando se trata de causa valores fundamentais do elementar bom senso. Aparentemente, os comboios adquiriram componente essencial o direito à greve. das importantes Com “greve na CP para comboios em todo o país”, como se pode ler em notícia da RTP, excepções ao processo estamos perante a descarrilada hipótese de do vocalismo átono do os comboios poderem fazer greve. Admitese, desta forma, que a greve se aplique aos português europeu

comboios e não a quem é responsável pela sua circulação, independentemente da forma verbal elíptica (neste caso, “convocada”). Assim, considerando que “para” funciona na perfeição como preposição, a frase “convocada greve na CP para comboios em todo o país” é perfeitamente plausível. Poderia ser gralha, mas não é. É determinação do AO 90. Mais lamentável do que a ambiguidade criada pelo AO 90 é o avanço impetuoso para a aplicação de lei tão defeituosa, sem conjuntamente se reflectir de forma séria, serena e ponderada acerca duma ampla revisão da mesma ou do seu completo abandono. A aplicação do AO 90 é claramente promovida por quem sobre esta matéria nem lê o que sobre ela se escreve, nem escuta os argumentos que sobre esta se aduzem. Parecerá um paradoxo dizerse que só quem não lê pode impor a aplicação de um instrumento para facilitar a leitura, mas que efectiva e objectivamente a complica. Pode parecer absurdo, mas é o que se passa no início do segundo decénio do século XXI, num país chamado Portugal. No PÚBLICO de 7/6/2011, José Mário Costa responde ao editorial da direcção do PÚBLICO de 4/6/.2001. Relativamente a “sector”, estranho que José Mário Costa defenda a dupla grafia, socorrendo-se da transcrição fonética. Apesar de o Grande Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora atestar ambas as formas, o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências limita-se à transcrição com oclusiva velar [k]. Basear um instrumento ortográfico num “critério fonético (ou da pronúncia)” e alicerçá-lo em transcrições fonéticas, atribuindo-lhes carácter prescritivo, é escorar um erro com outro erro. Recordo que o facto de em “sector” a consoante C ter valor de acento continua a não ser considerado, quando se trata de componente essencial das importantes excepções ao processo do vocalismo átono do português

europeu. Uma primeira hipótese é o facto de o processo ser desconsiderado. Uma segunda hipótese não se limita à desconsideração do processo, mas à do próprio português europeu. Concordo em absoluto com José Mário Costa, quando afirma: “Faça-se a discussão como outros fizeram, com argumentos sérios e sustentados.” Contudo, o argumento não colhe, por inexistência de árbitro isento que valide o argumento pela seriedade e pela sustentação. A manutenção, a promoção e, pior, o carácter impositivo de um instrumento inadequado à realidade do português europeu é a prova cabal do que acabo de escrever. Afirma José Mário Costa que “a ortografia […] em nada contende com as componentes fundamentais da língua”. Trata-se de um espectacular argumento contra o AO 90, defendido por um seu protector e promotor. Com toda a naturalidade o escrevo, pois já alhures utilizei este mesmo argumento, com menção ao paradoxo. Para José Mário Costa perceber onde quero chegar e para entender a disparidade entre o por si escrito e o por si defendido, desafio-o a substituir “ortografia” por “base IX, 9.º, do Acordo Ortográfico de 1990”. Verificará, sem grandes dificuldades, o facto de a bota não dar com a perdigota. Quando S. Tomás de Aquino, no De ente et essentia, remetia para o Acerca do Céu de Aristóteles, manifestava uma das grandes preocupações de todos aqueles que reflectem sobre os actos e as acções: o pequeno erro inicial resultará, no final, num enorme erro. Uma supressão perfeitamente arbitrária de um acento numa flexão verbal, tornando-a homógrafa de uma preposição, é esse pequeno erro inicial. Se a esta supressão juntarmos todas as supressões arbitrárias, temos o AO 90 como um conjunto de pequenos erros iniciais, que resultarão num erro final ainda maior do que o próprio: a sua adopção. Autor de Demanda, Deriva, Desastre – os três dês do Acordo Ortográfico, Textiverso, 2009


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