Folhear edição número 2

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julho/agosto de 2014 | n o 2

www.bahiaciencia.com.br

projeto do senai cimatec liga universidade À indústria

vermes atenuam resposta alérgica da asma

entrevista Roberto santos infindáveis batalhas de um mestre persistente

A bruxa já não está tão solta Pesquisas ajudam recuperação da economia cacaueira


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10 10 Entrevista Roberto Figueira Santos Ao falar de seu trajeto, da pesquisa na área médica às altas esferas da política, o ex-governador reflete sobre a construção do Brasil contemporâneo e desvela uma Bahia fundamental na formulação de futuros 26 Capa Com tratos culturais corretos e clones resistentes, produtores conseguem manter vassoura-de-bruxa sob controle

Seções

3  Outros olhares 4  Carta da editora 5 Rememória 6 Cartas 8  Poucas e boas 72 Resenhas 74 Charge

Artigos

24  Glauco Arbix e Fernanda Stiebler 34  Roberto Paulo M. Lopes

Ilustração: Cau Gomez

capa

56 política 36 Ideias inovadoras Fapesb distribui 12 prêmios e lança edital do concurso 2014 40 Reconhecimento Luana Serrat, coordenadora da Escola Picolino, recebe o Prêmio Fundação Bunge por contribuição às artes circenses produção do conhecimento 42 Saúde Pesquisadores identificam parasitas que atenuam eclosão da asma alérgica 48 Química Fungos de plantas coletadas em área de proteção ambiental em Salvador servem de molde para sensores microscópicos de ouro

48

pesquisa e desenvolvimento 52 Parceria Protótipo para inspeção veicular do Senai Cimatec é um exemplo da aproximação da pesquisa acadêmica com a indústria cultura e humanidades 56 Artes plásticas Interrompida há 46 anos, Bienal da Bahia volta a existir, tateando relações entre o Nordeste, o Brasil e o mundo 58 Conexões entre a arte e o imaginário tornam visível a experiência histórica e dão voz aos que foram silenciados 66 Perfil João Ubaldo Ribeiro traçou o mais profundo retrato da cultura e da psicologia nacionais 70 Florisvaldo Mattos homenageia o amigo em prosa e verso


outros olhares

3. Pensar de certa maneira é isto: planar dois metros, cem metros, acima do que está a acontecer neste momento; mil metros, digamos assim, acima do presente. Pensar de forma concentrada é não ver o que está à frente, é ver outra coisa. E ter um projecto na cabeça é sempre construir mentalmente, mesmo que simbolicamente, um aeroplano. Quem não quiser construir um aeroplano que não entre nesta sala! – eis o que a ciência poderia exclamar. 4. Pensar, pois, numa escola de artistas e cientistas que recusa a entrada a qualquer elemento da multidão conhecida como “a multidão daqueles que nunca quiseram construir um aeroplano”. Dividir, portanto, a espécie humana em: a. seres vivos que um dia pensaram em construir sozinhos um aeroplano. b. seres vivos que nunca na vida pensaram em construir um aeroplano.

Aviação e pensamento

fotos Luis Maria Baptista (Os Espacialistas)

Gonçalo M. Tavares

1. Ludwig Wittgenstein em 1908, com 19 anos, queria construir um aeroplano. Estudava engenharia. Bertrand Russell, que o recebe na universidade de Cambridge, escreve sobre o jovem Wittgenstein (tratava-o por “o meu alemão”), que ainda não conhecia bem, e diz: “O meu alemão vacila entre a filosofia e a aviação”. 2. Um filósofo passar a sua juventude a querer construir um volume que suspenda por momentos, minutos, horas – a força da gravidade.

5. Uma questão ainda: como se desenha um aeroplano? A mão que desenha um aeroplano move-se milimetricamente, move-se quase em imobilidade por cima do papel exactamente da mesma maneira que se move aquela outra mão que em vez de desenhar um aeroplano desenha um carro? Eis uma pergunta. 6. Interessante também pensar na questão do peso. Um aeroplano, mesmo que com igual número de quilogramas (kg) de um automóvel, pesa sempre menos. Sem dúvida alguma. O que voa não pesa o seu peso; o seu peso não vem em gramas, mas em expectativa e algum espanto; metade espanto, metade expectativa. 7. Ciência que apenas pesa o seu peso versus ciência que tem peso e expectativa. Duas ciências. Quem deixar de querer construir um aeroplano deixou de ser cientista. Gonçalo M. Tavares é escritor, português, autor de Imagens dos Espacialistas, entre outras obras bahiaciência | 3


Carta da editora www.bahiaciencia.com.br ISSN 2358-4548

Editora Mariluce Moura Editora de arte Mayumi Okuyama Maria Cecilia Felli (designer) Editor de fotografia Léo Ramos Colaboradores Ana Luiza Abreu, Cau Gomez, Dinorah Ereno, Florisvaldo Mattos, Fabrício Marques, Fernanda Stiebler, Fernando Vivas, Glauco Arbix, Gonçalo Tavares, Gustavo Fioratti, José Bento Ferreira, Juliana Serzedello Crespim Lopes, Luciano Andrade, Mauro de Barros, Ricardo Zorzetto, Raíza Tourinho, Roberto Paulo M. Lopes, Rodrigo Lacerda, Silvana de Souza Ramos

Tiragem  10.500 exemplares Impressão  Plural Indústria Gráfica Distribuição  Jornal A Tarde É proibida a reprodução total ou parcial de textos e imagens sem prévia autorização

Contato cartas@bahiaciencia.com.br T: 55 11 3876-7005 / 3876-7006

Bahiaciência é uma revista bimestral da

Aretê Editora e Comunicação Rua Joaquim Antunes, 727, conj. 61 CEP 05415-012 Pinheiros, São Paulo, SP T: 55 11 3876-7005 / 3876-7006

4 | julho/agosto de 2014

Um coro afinado e colorido Mariluce Moura

H

á quem não aprecie especialmente a música vocal e se deleite mais com a profusão das conversas entre cordas, madeiras, metais e percussão da música instrumental. De todo modo, mesmo os que não curtem especialmente os vocais, se amantes da música em termos amplos, saberão reconhecer quando um coro se apresenta bem afinado, harmonioso, marcado por uma notável riqueza de sons e belos timbres bem entrosados para oferecer algo que soa como uma unidade. Essa imagem me vem de repente nos momentos finais do fechamento da segunda edição de Bahiaciência. Observo a revista como um belo e colorido coro, atravessada por uma sensação quase física do movimento das vozes que se foram somando, às vezes inesperadamente, dos fluxos de inteligência que foram convergindo para estruturar solidamente um projeto que se pode ter, enfim, concreto nas mãos. E para mim há sempre algo de apaixonante nessa construção coletiva. Os leitores poderão perceber neste coro-revista a força das vozes do professor Roberto Santos, rico personagem da entrevista pingue-pongue desta edição (página 10), e do pneumologista Álvaro Cruz, interlocutor central na reportagem sobre as pesquisas da asma levadas a cabo por grupos baianos, elaborada pela jornalista Raíza Tourinho (página 42). Será audível a imensa contribuição ao coro dos pesquisadores Gonçalo Pereira, Daniela Thomazella, Carlos Priminho Pirovani e José Marques Pereira, além dos cacauicultores Rogério Sampaio, Edmond Ganen e Thomas Hartmann, para a bela reportagem de capa regida pela jornalista Dinorah Ereno sobre as pesquisas que permitem esperar que, daqui por diante, a ameaçadora vassoura-de-bruxa possa ser mantida sob estrito controle (página 26). Também as vozes dos pesquisado-

res Lílian Guarieiro e Jailson Bittencourt de Andrade (página 52), e Marcos Malta (página 48), capturadas respectivamente pelos jornalistas Fabrício Marques e Ricardo Zorzetto, ressoam nas revelações do mundo da pesquisa científica da Bahia. O tema da capa é, aliás, ótimo pretexto para destacar a contribuição fundamental à qualidade da obra de todos que nesse espaço lidam com o visual e o gráfico. Começando por Cau Gomez, criador genial da capa, e chegando a Gentil, o excelente chargista que fecha esta edição, percorremos um caminho facilitado pelas extraordinárias imagens fotográficas de Léo Ramos e de Luciano Andrade, trabalhadas com sensibilidade por nossa editora de arte, Mayumi Okuyama, e viabilizadas espacialmente por nossa designer, Ciça Felli. Esta obra coletiva se nutre ainda das contribuições notáveis de Glauco Arbix e Roberto Paulo Lopes, de Florisvaldo Mattos e de Rodrigo Lacerda, de José Bento Ferreira, Silvana de Souza Ramos, Juliana Serzedello e, num lance quase mágico, da ajuda de Antonio Nery Filho e Ligia Vieira, que se mobilizaram para nos contar uma história de um antigo clube de ciências tocado pelo doutor Anibal Silvany Filho, cujo filho, Paulo, ainda nos brindou com fotos dos anos 1940-1960. E não posso encerrar sem juntar a tantos nomes o do jornalista Luis Guilherme Pontes Tavares, entusiasmado e altamente colaborativo, que rapidamente, a meu pedido, enviou o livro do professor Luis Henrique resenhado na página 72 e ainda nos deu notícias e imagens do “abraçaço” ao Palácio Arquiepiscopal, em 13 de agosto (página 8). Todos nós, e mais uns tantos não citados, fizemos juntos esta revista. A mim coube honrosamente reger o coro. Torço para que apreciem!


Rememórias

Duas lembranças e um clube de ciências inesquecível

1969 sob minha presidência, certamente o mais importante evento estudantil durante período difícil da história do Brasil. Finalmente, lembro-me que Silvany organizava verdadeiras excursões pelas praias e em seu sítio Caratinga, em Itacimirim, para observação de organismos marinhos e vegetais. Para surpresa de Silvany, em 1968 decidi que minha vida profissional seria na psiquiatria, deixando a cirurgia iniciada com Lair Ribeiro, Carlos Maltez, Coracy Bessa e Adriano Gordilho. Creio que merece ser mencionado o apoio irrestrito que o diretor do Hospital Aristides Maltez, doutor Luiz de Oliveira Neves, emprestou a todas as

O professor Silvany Filho assumiu o

iniciativas acadêmicas do professor Aníbal

curso de embriologia para minha turma

Muniz Silvany Filho. É o que me lembro.

em 1965. No ano seguinte, levou para o Hospital Aristides Maltez os alunos

Antonio Nery Filho

que mais se aproximaram dele: Roque

Professor Associado IV da Faculdade de Medicina

Andrade, hoje renomado quimiotera-

da UFBA (aposentado)

peuta, ex-presidente da Associação Baiana de Medicina (ABM); Augusto

O Clube de Ciências foi organizado pelo dou-

Castilho, residente em Manaus e pato-

tor Aníbal Muniz Silvany Filho, médico patolo-

logista, certamente por influência do

gista que era também um educador e vivia

professor Silvany; José Francisco da Silva, que viveu muitos anos em Cam-

Silvany conversando com alunos da Medicina que faziam parte do Clube de Ciências

foto  arquivo paulo silvany

pinas (SP) e hoje é o diretor do labora-

cercado de estudantes de medicina. Seus dois filhos, Aníbal Neto e Eugenia Cristina Silva Silvany, estudaram no Colégio de Aplicação da

tório de patologia clínica do Hospital Aliança; acho Gilson Fei-

UFBA. Eugênia foi minha colega desde o curso primário [primeiros

tosa, também de nossa turma, professor de clínica médica da

cinco anos do atual curso fundamental] no Colégio Pedro Calmon,

Escola Bahiana e renomado cardiologista; e Robson Souza,

no Matatu. Doutor Silvany queria desenvolver a curiosidade cien-

jornalista de formação, que iniciou com Silvany seu percurso

tífica em estudantes secundaristas e teve a ideia de organizar esse

como patologista e que vive hoje, salvo engano, em São Paulo.

clube. Convidou colegas de Eugenia e de Neto do Aplicação – daí

Não posso me deixar de fora! Em 1966, fui com mais alguns

a participação de Márcia Porto, de Rivane e minha, colegas dela, e

colegas, contratado como auxiliar acadêmico, o que nos permitiu

de Paulo Costa Lima e Chico Santos Pereira, colegas de Neto. Tam-

dedicar mais tempo e organizar o Clube de Ciências. Nós de me-

bém havia filhos de outros médicos amigos de Silvany, como An-

dicina, como estávamos saindo do curso de anatomia e entrando

gela Garcez Senna. Nossos professores no Clube eram os estudan-

na fisiologia, nos responsabilizamos por estas “matérias”. Assim,

tes de medicina Robson Souza, Antonio Nery, Jairnilson Paim e, de

anestesiamos inúmeros camundongos e vimos seus pequenos

física, Cacuá [Carlos Eduardo Veloso de Almeida].

corações e pulmões funcionando, sob o olhar maravilhado de

Todos os sábados, íamos ao Hospital Aristides Maltez para ter

“nossos alunos”. Evidentemente, raramente aqueles pequenos

aulas práticas de biologia, dissecando animais de pequeno porte.

camundongos escapavam da morte!

Íamos a praias observar as algas e animais. A ida ao cais do porto,

O estudante de física Carlos Eduardo Veloso de Almeida (co-

creio que estava ligada a alguma aula prática de física, já não

nhecido na Bahia como um dos rapazes mais bonitos da terra,

lembramos muito bem. As aulas eram de química, física e biologia.

tinha o apelido de Cacuá, provavelmente corruptela de seu nome,

Desse grupo, vários vieram a cursar medicina, como Paulo

pronunciado por sua irmã mais nova). Carlos Eduardo dedicou-se

Costa Lima, Maria Romilda e Angela Garcez. Márcia Porto fez ini-

à cancerologia e à física das radiações, tendo sido diretor do Ins-

cialmente engenharia e depois medicina. Paulo Lima abandonou

tituto Nacional de Física. Foi um dos 50 cientistas homenageados

o curso de medicina e foi ser músico e compositor com uma

na Europa por sua contribuição ao tratamento radioterápico. Após

trajetória acadêmica importante. Eu fiz inicialmente uma residên-

sua aposentadoria, fez concurso para a UERJ, onde mantém im-

cia em anatomia patológica e meu trabalho de iniciação científi-

portante laboratório de pesquisa.

ca foi nessa área, numa clara influência do Clube de Ciências. Em

Talvez valha lembrar que o Clube de Ciências foi para nós,

seu memorial para o concurso de titular, em 2001, Jairnilson diz

estudantes de medicina, o ponto de partida para inúmeros traba-

que também a experiência do clube foi importante para ele.

lhos. Daí surgiu, mais tarde, a proposta de realização do I Encon-

Ligia Maria Vieira da Silva

tro Científico de Estudantes de Medicina (Ecem), realizado em

Professora Associada do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA (aposentada) bahiaciência | 5


cartas

maio/junho de 2014 | edição n o 1

www.bahiaciencia.com.br

interior baiano pode se tornar grande exportador de energia eólica

quilombos inauguraram luta por cidadania empreendida até hoje

eventos marcam os 120 anos do instituto geográfico e histórico

entrevista zilton andrade contribuições ao conhecimento da esquistossomose

parque tecnológico da bahia

Um território de inovação 001_CAPA_No1.indd 1

19/05/14 16:15

Bahiaciência nº 1 Repercussão

seja esta edição a primeira de uma longa série com a mesma qualidade, na certeza de que os baianos leitores da A Tarde terão muito a aproveitar da leitura do suplemento Bahiaciência. Cordiais saudações. Roberto Figueira Santos

w Ao terminar a leitura minuciosa da edição número 1 da revista Bahiaciência veiculada pelo jornal A Tarde, apresso-me em enviar a presente mensagem parabenizando a senhora Mariluce Moura e demais responsáveis pela iniciativa de gerar matéria de tão fundamental importância para o público baiano. Acrescento estas minhas congratulações aos que assinam os vários capítulos do suplemento e aos que foram entrevistados pela redação. Em pesquisa encomendada pela Academia de Ciências da Bahia sobre a percepção pública dos habitantes da cidade de Salvador quanto aos assuntos de desenvolvimento científico e tecnológico, ficou evidente a escassez de meios de informação habitualmente consultados pelos entrevistados, nossos coestaduanos. Por isso mesmo, ficou evidente o acerto da escolha dos que, por serem conhecedores profundos da nossa realidade, apontaram os temas dos quais se ocupam os diferentes capítulos da primeira edição do suplemento. Faço votos de que 6 | julho/agosto de 2014

Professor aposentado e ex-reitor da UFBA. Presidente da Academia de Ciências da Bahia

w Parabéns pelo lançamento do encarte da revista Bahiaciência. Tal iniciativa contribuirá, em muito, para ampliar a percepção da importância da CT&I pela sociedade baiana. Roberto Paulo Machado Lopes Diretor-geral da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb)

Via Facebook

w Hoje, no plenário, elogiei iniciativa da revista Bahiaciência. Parabéns à editora e equipe! Lídice da Mata Senadora pelo PSB do estado da Bahia

“Senhor presidente, senhoras e senhores senadores, quero registrar nossa satisfação com o lançamento, no último dia 25 de maio, da revista Bahiaciência, voltada especificamente para a divulgação do conhecimento científico produzido por pesquisadores, empresas e aca-

dêmicos da Bahia. Trata-se da primeira publicação com esse teor surgida em nosso estado e, ainda que tardia, merece todas as nossas homenagens, por sua meritória iniciativa de levar um tema pouco acessível ao grande público e que, por isso mesmo, ignora a produção científica e tecnológica realizada ou em desenvolvimento na Bahia. Neste primeiro número, a publicação apresenta uma reportagem sobre o potencial que a Bahia tem para se tornar o maior exportador de energia eólica do Brasil, graças à sua posição geográfica e sua vasta extensão territorial, que permite a instalação de parques eólicos em áreas inabitadas e onde os ventos sopram a sete metros por segundo em sete regiões diferentes. Esta confluência de fatores permite ao estado a capacidade de gerar 70 mil megawatts de potência elétrica, mais do que a produção somada das seis maiores hidrelétricas do mundo. Também quero destacar trabalho registrado pela Bahiaciência de pesquisadores que, de forma incansável, estão desenvolvendo estudos para conter os avanços da lagarta Helicoverpa, uma praga que já provocou perdas avaliadas em R$ 2 bilhões à safra baiana, especialmente nas plantações de soja, milho e feijão do oeste do estado. A revista traz, ainda, artigo do reitor da Universidade Federal do Sul da Bahia, professor Naomar Almeida, em

que aborda o projeto político-pedagógico da nova universidade federal e sua adequação ao desenvolvimento da Bahia. Nunca é demais lembrar que tivemos a oportunidade de ter na Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado, o reitor desta Universidade, doutor Naomar, oportunidade em que debatemos o Plano Orientador Institucional e Político-Pedagógico da Universidade Federal do Sul da Bahia, sessão que ocorreu em 3 de julho do ano passado. Portanto, senhor presidente, quero parabenizar os jornalistas desta revista, a editora Mariluce Moura e toda a redação e a produção pelo lançamento da publicação que vem preencher uma lacuna enorme do jornalismo baiano, de tanta importância para a divulgação daquilo que acontece exatamente na área do desenvolvimento científico-tecnológico no estado da Bahia”. (Senado Federal, 02/06/2014) w Estou encantada com o número de maio/junho de 2014 da revista Bahiaciência, que traz importantes entrevistas do doutor Zilton Andrade, do historiador João José Reis e uma matéria excelente sobre o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, que está completando 120 anos de serviço à Bahia. Seria interessante que a Secretaria de Estado da Ciência e Tecnologia da Bahia concedesse apoio a esse importante periódi-


co editado pela competente jornalista baiana Mariluce Moura, que foi minha aluna na Ufba. Quem receber essa revista considere o seu valor e preserve esse número para a posteridade . Consuelo Pondé de Sena Presidente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia

w Conteúdo raro de interesse do jornalismo cotidiano, embora apareçam de quando em vez reportagens e páginas em jornais sobre esse campo do conhecimento, circula hoje encartado na edição de A Tarde o primeiro número da revista bimestral Bahiaciência, que tem como editora a jornalista Mariluce Moura e traz entre seus colaboradores nomes como Claudio Bandeira, especialista em jornalismo científico, dois ex-reitores da UFBA, Eliane Azevedo e Naomar de Almeida Filho, e o ex-presidente da Federação das Indústrias da Bahia e atual vice-presidente da Confederação Nacional da Indústria, José de Freitas Mascarenhas. Além do competente elenco de textos dentro da sua especialização editorial, chamou-me a atenção trazer a revista em sua contracapa um poema, e um poema justamente do simbolista baiano Pedro Kilkerry (1885-1917), talvez por se tratar de um poeta de lavra esquisita, na linha de um Augusto dos Anjos,

que a melhor crítica classifica de protomodernistas, isto é, primeiro que os modernistas. Embora não fosse de extração romântica, Kilkerry morreu jovem, de tuberculose, em consequência de uma traqueotomia. Era de Santo Antônio de Jesus. O que permanece da obra dele se deve ao concretista Augusto de Campos, que publicou em 1970 o livro intitulado Re-Visão de Kilkerry, após laboriosa pesquisa. Florisvaldo Mattos Jornalista e poeta

w O recomendável é distribuir mais uma vez o número 1 da revista Bahiaciência. Em meados de maio último, o periódico chegou ao público encartado em A Tarde, mas essa distribuição não foi suficiente para alcançar mais e mais leitores interessados em produtos jornalísticos de qualidade. Há, todavia, uma versão eletrônica: www. bahiaciencia.com.br. A revista é editada pela jornalista Mariluce Moura, também editora da conceituada revista Pesquisa Fapesp, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Li com agrado as 58 páginas do primeiro número e não temo informar que ali estão as melhores matérias sobre o Parque Tecnológico da Bahia, sobre a implantação de fontes de energia eólica em nosso estado e sobre

o Projeto Neojiba (Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia). Sem demérito das demais reportagens, todas de muito boa qualidade. A estreia de Bahiaciência lembrou-me da iniciativa da professora Tatiana Teixeira, quando, na coordenação do Curso de Jornalismo da FIB/Estácio, criou o jornal-laboratório Infociência, que obteve reconhecimento e elogio da comunidade científica baiana. Lembrei, ademais, do incentivo que do professor Othon Jambeiro, então na Facom/UFBA, para implantar, no final da década de 1970/ início da década de 1980, um núcleo de jornalismo científico em nosso estado. Na ocasião, o jornalista Carlos Ribeiro, então seu aluno, viveu a experiência extraordinária de ter passado alguns dias na estação brasileira da Antártica (polo Sul). Luís Guilherme Pontes Tavares Presidente da ABI

w Iniciativas como estas são muitíssimo bem-vindas!!!! Que o jornalismo científico ganhe cada vez mais corpo em nossa sociedade e que haja efetivo apoio para que possa se popularizar, afinal, ter acesso a informações sobre o desenvolvimento da ciência em nosso pais, bem como sobre as atuais políticas de ciência, tecnologia

e inovação, é um direito de todo cidadão. Parabéns! Tattiana Teixeira Professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

w A Bahia acaba de ganhar a revista Bahiaciência. Quero compartilhar com os “amigos da rede” que me sinto duplamente contemplada: primeiro, pelos enlaces familiares, porque quem “gestou” e “pariu” a revista foi minha irmã, a jornalista Mariluce Moura, através de sua empresa de comunicação Aretê; e , segundo, como professora e pesquisadora, por ser a revista um espaço que mira, nas palavras da própria Mariluce, “ irrigar o debate sobre uma face pouco visível e debatida do estado da Bahia, ou seja, sua capacidade de contribuir para a expansão do conhecimento científico no Brasil e para a ampliação da capacidade nacional de inovar em múltiplos campos da atividade econômica”. Bahiaciência dá corpo a um diálogo entre as produções do conhecimento científico, incluindo as humanidades e o campo da cultura, local em consonância com os contextos nacional e internacional. Solange Moura Professora de artes visuais do Colégio Oficina Cartas devem ser enviadas para o email cartas@bahiaciencia.com.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, conj. 61 - CEP 05415-012 - Pinheiros, São Paulo, SP. As cartas poderão ser resumidas por razões de espaço e clareza.

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poucas e boas

Isolados genéticos Reportagem de capa da edição de agosto da revista Pesquisa FAPESP, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, fez uma incursão ao município de Monte Santo, no sertão baiano, onde há uma concentração anormal de doenças raras, fruto de casamentos entre parentes. Pesquisadores “Abraçaço” reuniu arquitetos, jornalistas, professores e estudantes no dia 13 de agosto

de Salvador já diagnosticaram 13 portadores de mucopolissacaridose tipo 6, proporção 240 vezes maior do que a média nacional – a doença causa prejuízos em diversos órgãos. Oi-

Um abraço no palácio de 300 anos

tenta e quatro pessoas têm deficiência auditiva de possível origem genética, 12 sofrem de hipotireoidismo congênito, nove de fenilcetonúria, entre ou-

Um “abraçaço” do Palácio Arquiepis-

da Praça da Sé requerem imediata

tros exemplos. A reportagem

copal, em Salvador, reuniu arquitetos,

recuperação, sob pena de desabarem

trata do Censo Nacional de

jornalistas, professores e estudantes

e levarem o restante do imóvel. A

Isolados (Ceniso), levantamen-

na manhã de 13 de agosto. O even-

ABI e o IGHB estão empenhados na

to que lista 81 municípios onde

to foi promovido pe­­la Associação

luta pela restauração do palácio há

há 4.136 pessoas com caracte-

Bahiana de Imprensa (ABI) e pelo

mais de dois anos. Em abril e maio

rísticas genéticas específicas,

Instituto Geográfico e Histórico da

de 2014, as duas instituições pro-

nem sempre doenças, os cha-

Bahia (IGHB), representados, respec-

moveram as palestras do professor

mados isolados genéticos.

tivamente, pe­los seus presidentes,

e arquiteto Francisco Senna e do

jornalista Walter Pinheiro e profes-

arcebispo de Salvador e primaz do

sora Consuelo Pondé de Sena. O

Brasil, dom Murilo Krieger, sobre o

abraço foi motivado pelo estado de

assunto. Os dois enalteceram a im-

arruinamento do imóvel que, em

portância do edifício, sobretudo por-

2015, completará 300 anos de exis-

que funcionou como a primeira se-

tência. O Instituto do Patrimônio

de da administração da Igreja Cató-

Histórico e Artístico Nacional (Iphan)

lica no Brasil. O professor e arqui­teto

informou em julho à Arquidiocese

Mário Mendonça, que prestigiou o

de Salvador que a restauração será

“abraçaço”, concordou que os pilares

iniciada em setembro, com recursos

exigem cuidados urgentes, até por-

do Banco Nacional de Desenvolvi-

que a área em que se assenta o pré-

mento Econômico e Social (BNDES)

dio é uma falsa rocha e sua resis­

e do banco Itaú. Após esse anúncio,

tência não é das mais confiáveis.

o Instituto para o Desenvolvimento

O Palácio Arquiepiscopal integra

Humano (IDH), que administrará os

a mancha urbana tombada pela

recursos e a obra, advertiu que os

Unesco e se constitui Patrimônio da

pilares posteriores do grande prédio

Humanidade.

8 | julho/agosto de 2014


Plataformas do conhecimento O governo federal lançou em junho o Programa Nacional de Plataformas do Conhecimento, que busca criar parcerias entre empresas e grupos de pesquisa em 10 áreas do coConcepção artística do veículo: viagem em 2020

nhecimento para resolver desafios tecnológicos e criar produtos inovadores. “Todas as plataformas precisam combinar a participação de grupos

instrumentos do robô que vai a Marte

de excelência em pesquisa e de uma ou mais empresas ou

A Nasa, agência espacial americana,

da superfície, enquanto um equipa-

consórcios de empresas”, ex-

escolheu os instrumentos científicos

mento batizado de Sherloc usará raios

plicou a presidenta Dilma Rous-

do veículo-robô de uma missão a

ultravioleta para detectar compostos

sef. Os setores escolhidos para

Marte programada para 2020. Um

orgânicos. A ferramenta Mars Envi-

gerar plataformas são: saúde,

deles é o Mars Oxygen ISRU Experi-

ronmental Dynamics Analyzer (Meda)

energia, agricultura, aero­

ment (Moxie), que tentará produzir

vai monitorar as condições ambien-

náutica, manufatura avançada,

oxigênio a partir de dióxido do car-

tais do planeta e o Radar Imager for

indústria naval e de equipa-

bono presente no planeta vermelho.

Mars’ Subsurface Exploration (RIMFAX)

mentos submarinos, tecnolo-

O robô também será municiado com

irá rastrear o que está abaixo da su-

gia da informação e das co-

uma câmera panorâmica e com ou-

perfície do planeta. O conjunto de

municações, mineral, defesa

tra capaz de analisar a composição

equipamentos vai custar US$ 130

e Amazônia. O governo pla-

mineral e química das rochas. Já o

milhões. O novo veículo robô ajuda-

neja investir cerca de R$ 20

Planetary Instrument for X-ray Litho-

rá a planejar a primeira missão tripu-

bilhões em dez anos – cada

chemistry (PIXL) ajudará a determinar

lada a Marte, que poderá ir ao espa-

parceria terá um comitê gestor

a composição elementar de minerais

ço dentro de 15 anos.

e lançará editais específicos.

fotos •joseanne guedes •nasa •secti

Para aproveitar o licuri Uma vertente de um projeto que

Cooperativa dos Produtores e Bene-

busca transformar a vida de comu-

ficiadores do Licuri de Caldeirão

nidades rurais da Bahia começa a

Grande (Cooperlic), foram adquiridos

exibir resultados. No âmbito do pro-

equipamentos para o aproveitamen-

jeto Tecsol, que é patrocinado pela

to total do licuri. Ali, 36 famílias coo-

Financiadora de Estudos e Projetos

peradas produzem artesanato e ali-

(Finep) e executado pela Secretaria

mentos. Com a palha é possível

de Ciência e Tecnologia da Bahia

produzir esteiras, vassouras, penei-

(Secti), a comunidade de Caldeirão

ras, bolsas e chapéus. A amêndoa

Grande, no semiárido, ganhou mais

do licuri é ingrediente de doce, bar-

estímulo para produzir renda com

ra de cereal, paçoca, licor e leite de

o licuri, palmeira nativa da caatinga

licuri. Há pesquisas para o uso do

cujos frutos são comestíveis e as

licuri em cosméticos, óleos e na ali-

sementes, fonte de óleo vegetal. Na

mentação animal.

O trabalho na cooperativa: licuri como matéria-prima de doces e bebidas

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entrevista roberto figueira santos

10 | julho/agosto de 2014


Um líder de concretas criações Ao falar de seu trajeto, da pesquisa na área médica às altas esferas da política, o ex-governador reflete sobre a construção do Brasil contemporâneo e desvela uma Bahia fundamental na formulação de futuros mariluce moura fotos léo ramos

U

m senhor de notável elegância em suas roupas bem cortadas segura com naturalidade na mão direita a bengala que lhe dá apoio na caminhada. É fácil notar a seguir seu sorriso afável com vocação para tornar-se caloroso riso aberto e eventualmente se transmutar em sonora gargalhada, as palavras leves e bem medidas que capturam delicada e rapidamente a atenção do interlocutor, e o intenso azul das íris espantosamente cristalinas por trás dos óculos que não conseguem barrar uma singular mistura de acuidade, inteligência, autoridade e determinação do olhar. Toda a gestalt, digamos assim, ali apresentada de chofre, sugere que se está diante de um líder formado para se exercer como tal por toda a vida. Roberto Figueira Santos, é ele o personagem, 88 anos a serem completados em 15 de setembro próximo, é, entre outras qualificações, uma referência viva sem competidores quando se trata do tema da produção do conhecimento científico e tecnológico na Bahia. De todo modo, sua rica e multifacetada biografia permite que se tome, ao gosto de

cada um, uma multiplicidade de pontos de partida na intenção de apresentá-lo. A seu próprio juízo, por exemplo, duas construções marcam mais profundamente que outras seu trajeto pela vida e pelo mundo: primeiro, ter formado novas gerações de médicos, “instilando neles o gosto pela pesquisa científica”; em segundo lugar, “haver gerado e iniciado a formação de meia dúzia de baianas e baianos, também brasileiras e brasileiros, que por sua vez estão gerando outras e outros que irão enfrentar o futuro que a Deus pertence”. É uma forma de enfatizar com inegável graça seus papéis de mestre e de pai atento e amoroso de 6 filhos, ou, se preferirmos ainda, seu exercício essencial de líder nas esferas intelectual, educativa e afetiva. Originário de uma tradicional família da elite baiana, filho do fundador da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Edgard Rego dos Santos, e de Carmen Figueira Santos, casado por cerca de meio século com Maria Amélia Menezes Santos, de quem ficou viúvo em 2010, Roberto Santos foi reitor da UFBA, governador da Bahia, presidenbahiaciência | 11


te do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e ministro da Saúde, entre outras funções proeminentes que exerceu. Ocupou cargos políticos relevantes nos anos da ditadura mantendo-se ao largo e na ignorância, ressalta, dos métodos violentos adotados pelo regime militar para esmagar toda e qualquer oposição ou contestação. Transitou para a redemocratização ao lado de Tancredo Neves, atuando na formação do Partido Popular, integrou-se adiante ao PMDB, posteriormente ao PSDB, e tem uma interlocução tranquila e aberta com o governador Jacques Wagner e outros políticos do PT. Não são poucos, na verdade, os admiradores e amigos de Roberto Santos que estiveram em campo oposto àquele em que se dava sua ação política e administrativa em muitos momentos do passado. Culto, a curiosidade intelectual estendida sobre amplos domínios, sempre às voltas com a leitura em paralelo de pelo menos três diferentes livros e ardoroso devorador de boas biografias, sua formação de pesquisador científico da área médica foi sólida e sofisticada. Ela incluiu três anos nos Estados Unidos, especialmente no Massachusetts General Hospital da Universidade Harvard, onde trabalhou com temas então de ponta do metabolismo hidromineral humano e, entusiasta da aventura do conhecimento, não viu problema em fazer-se cobaia de um pequeno experimento -- o que minimiza sob a ponderação de que isso era muito comum na época. Adiante, Inglaterra, Alemanha e França entrariam no circuito de sua formação contínua. Roberto Santos, com todo o seu conhecimento do campo, tem uma visão crítica aguda do processo de desenvolvimento científico no Brasil, onde vê largamente a emergência de uma ciência que apenas faz acréscimos ao conhecimento já estabelecido, é pobre em ideias inovadoras e em sua articulação com o processo de inovação no setor produtivo. Uma chave central para transformar isso, em sua visão, sempre esteve no âmbito da educação, e não é gratuito, assim, que sua criação mais recente, a Academia de Ciências da Bahia, fundada em 2010 e da qual é presidente, tenha na educação das crianças para a ciência um norte fundamental. A entrevista a seguir, concedida especialmente para a Bahiaciência, aprofunda algumas questões abordadas 10 anos antes para a revista Pesquisa Fapesp (revistapesquisa.fapesp. br/2004/11/01/observacoes-de-um-espectador-engajado/) e trata de forma sintética temas mais largamente esmiuçados em uma série de conversas gravadas em 2012 e 2013 (e que deverão ter em breve aproveitamento adequado). Registre-se a propósito que, a par de outras características que o tornam a personalidade que é, com sua poderosa coerência e humanas contradições, o professor Roberto Figueira Santos domina como poucos a arte de narrar histórias e conversar descortinando mundos para o interlocutor. y Vamos começar pela Academia de Ciências da Bahia. Como foi criar essa academia em 2010? O que me levou a cogitar a criação de uma Academia de Ciências na Bahia foi uma motivação de várias décadas: 12 | julho/agosto de 2014

para o Brasil se tornar mais inovador na pesquisa científica é preciso que a formação do futuro cientista ocorra desde os primeiros tempos de escola

contribuir para maior evidência da participação dos institutos básicos dentro da universidade. Uma retrospectiva histórica permite esclarecer melhor essa questão. y Antes da retrospectiva, o senhor nos diria como funciona a instituição? A Academia está com 54 membros, todos pesquisadores em algum ramo da ciência. Aos poucos constituímos também um grupo com personalidades da filosofia e das artes, e isso nos levou, em seguida, à formação de novos grupos. Por exemplo, o tema do ensino das ciências no nível fundamental despertou muito interesse, e formou-se um grupo a esse respeito. Tomou corpo no Brasil ultimamente a ideia de que o país tem pouco trabalho que represente inovação em comparação ao que aconteceu com a produção científica. Medida em publicação de artigos em periódicos e livros, esta cresceu muito. O número de patentes resultantes de ideias inovadoras que tiveram sucesso em empreendimentos econômicos é muito menos frequente que o número de pesquisas em ciência que apenas complementam trabalhos já feitos e que não representam, portanto, avanço. Assim, entendemos que para o Brasil se tornar mais inovador na pesquisa científica é preciso que a formação do futuro cientista nesse sentido inovador ocorra desde os primeiros tempos de escola, quando se pode incutir num grande número de brasileiros a vontade de inovar. E então, quando eles chegarem à idade de trabalhar com a aplicação dos princípios científicos, teremos uma chance maior de ver aparecerem ideias verdadeiramente inovadoras. y Por que é difícil que as ideias verdadeiramente inovadoras ganhem corpo? Se olharmos para a pesquisa no ambiente baiano, vemos que uma criatividade muito grande logo se manifestou no campo das artes – da música, da dança, do teatro e de outras expressões da atividade artística – e que ela não foi tão intensa no campo das ciências, embora tenhamos, sobretudo na área de saúde, alguns pesquisadores que se destacaram. Nos anos 50 do século XIX, entre 1856 e 1857, surgiu na Bahia a primeira


revista científica, a Gazeta Médica da Bahia, que perdurou por várias décadas, depois foi interrompida, atravessou uma segunda fase de publicação e sofreu depois uma nova interrupção. Assim, a pesquisa em saúde foi precoce, especialmente em virtude da projeção da nossa Faculdade de Medicina desde o começo dos oitocentos. Os números da Gazeta Médica da Bahia, hoje digitalizados e disponíveis na internet, mostram que muitos dos primeiros pesquisadores descreveram doenças incidentes na Bahia antes descritas em outros lugares -- portanto, eram pesquisas não tão inovadoras. Mas um deles, [Manuel Augusto] Pirajá da Silva, sustentou por meio de trabalhos realmente inovadores uma intensa polêmica com alguns tropicalistas internacionalmente reconhecidos sobre a espécie de schistosoma que existia na Bahia. Eles entendiam que se tratava apenas de uma variedade do que já tinha sido descrito no Egito enquanto Pirajá da Silva sustentou que eram duas espécies diferentes: o Schistosoma japonicum e o Schistosoma mansoni, muito espalhado na Bahia. Por muito tempo aqui era comum se encontrar, nos hospitais que recolhiam os doentes mais graves, pacientes com a forma avançada da esquistossomose desse segundo tipo, incidente com muita frequência no sistema porta da circulação que atinge o fígado. E era igualmente frequente um tipo de cirrose resultante dessa hipertensão portal, que levava inclusive à hematêmese,

vômito de sangue. Isso já não é visto com tanta frequência nos hospitais, embora a incidência de Schistosoma mansoni continue bastante alta no estado, mesmo na vizinhança de Salvador. Mas ela vem sendo tratada em suas fases iniciais e as pessoas estão comendo melhor, então há provavelmente um fator nutricional associado à redução notada. y A Academia de Ciências da Bahia foi criada com o apoio da Federação das Indústrias do Estado da Bahia, a Fieb. Como está hoje essa articulação? Inauguramos a Academia na sede da Federação das Indústrias da Bahia (Fieb). Seu presidente era José de Freitas Mascarenhas, um grande realizador que teve a seus cuidados, nos anos 1970, a organização do Polo Petroquímico de Camaçari, de enorme importância para o estado. Na verdade, o Polo seguiu desempenhando pelos anos afora seu papel transformador na economia baiana, uma vez que, a partir do complexo petroquímico, surgiram várias outras indústrias que transformaram Camaçari num polo industrial muito mais abrangente. O modo como a Fieb foi conduzida até recentemente resultou na criação do Cimatec [Centro Integrado de Manufatura e Tecnologia], que tem levado adiante a modernização dos equipamentos destinados ao aproveitamento da ciência na indústria. Sob a gestão de Mascarenhas foram instalados, por exemplo, o Instituto Brasileiro de Robótica e três supercomputadores no complexo Senai Cimatec, dois deles com apoio da Petrobras, que são os de maior capacidade de processamento da América do Sul. O Cimatec começou formando artesãos e técnicos no nível secundário de educação e cresceu a ponto de criar uma Faculdade de Engenharia e até implantar mestrado e doutorado nas áreas científicas. Houve muita colaboração entre a Academia e a Federação. y Como a Academia apresenta os resultados de seu trabalho? Publicamos três livros de memórias, um por ano, e um quarto está sendo preparado para sair no começo de 2015. Neles se tem uma visão das atividades da Academia: as palestras, em sua maioria proferidas por acadêmicos convidados das áreas dos setores básicos do conhecimento, e os simpósios e seminários. Tema de grande evidência, como a ética na ciência, já mereceu a publicação de um livro [ver resenha na página 73] com a participação de vários membros da Academia. y Poderíamos passar à retrospectiva histórica a que o senhor se referiu no começo? Sim. Durante mais de 300 anos, desde o descobrimento do Brasil, a Metrópole Portuguesa impediu a criação de universidades em seu território. O assunto só foi acolhido pela Corte Portuguesa quando o regente Dom João chegou ao Brasil, em 1808. E só em 1934 surgiria a primeira universidade no país, a Universidade de São Paulo (USP). Não bastasse essa carência, foi muito reduzido o número de profissionais que frequentaram escola superior na Europa e vieram para cá. Assim, houve grande escassez de profissionais de nível bahiaciência | 13


superior no Brasil ao longo dos referidos 300 anos. Por isso as primeiras escolas superiores aqui formadas se destinaram a suprir essa falta. Em 1808 foram criadas as primeiras escolas na área da saúde - a de Cirurgia no Real Hospital Militar da Bahia em fevereiro, enquanto a família real estava em Salvador, e em novembro a de Medicina no Rio de Janeiro, que era desde 1763 a sede do governo central da colônia. Pouco depois se formaram as duas primeiras Faculdades de Direito, uma em Olinda e outra em São Paulo. E, mais tarde, criou-se no Rio de Janeiro a Escola Central do Exército, destinada a formar militares, porém oferecendo cursos equivalentes aos de uma escola politécnica. Todas ofereciam o ensino dos setores básicos do conhecimento necessários à compreensão das práticas necessárias ao futuro profissional e, em seguida, no mesmo currículo, as disciplinas profissionalizantes. Isto perdurou ao longo do século XIX e na maior parte do século XX, quando todas as escolas criadas no Brasil tiveram esse feitio. Houve várias tentativas de criação de universidades desde o século XIX, que não foram adiante. Em 1934 o governo do Estado de São Paulo criou a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e, na mesma época, a Universidade de São Paulo (USP). Por acaso isso se deu numa época propícia à vinda de personalidades mundiais de excepcional valor, em razão das perseguições aos israelitas na Alemanha nazista de Adolf Hitler e na Itália fascista de Benito Mussolini. A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo formou professores para o ensino básico e iniciou a formação de pesquisadores nos setores básicos do conhecimento (matemática, física, química, geociências, ciências humanas, letras, filosofia), o que teve importância decisiva na educação superior no Brasil. Outras Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras foram implantadas em vários estados, nas quais era ministrado o ensino e se realizavam pesquisas nas disciplinas referentes aos citados setores básicos do conhecimento. A seguir, em algumas cidades do Brasil, foram implantadas universidades pela aglutinação de faculdades até então isoladas. As universidades da Bahia e de Pernambuco datam de 1946.

As primeiras escolas superiores aqui formadas destinaram-se a suprir uma escassez de profissionais que perdurou por 300 anos

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y A da Bahia com seu pai, o professor Edgard Santos, à frente do processo. Exatamente. Ele foi fundador e primeiro reitor de nossa primeira universidade federal. Mas houve um precursor, na pessoa de Ernesto Souza Campos, professor de microbiologia da USP, que tinha o título de doutor em medicina preventiva pela famosa Universidade John Hopkins. O professor Gustavo Capanema, que ocupou o cargo de Ministro da Educação no governo Vargas, valeu-se muito do professor Souza Campos como assessor de altíssimo nível para as iniciativas nas áreas acadêmicas ligadas à saúde, inclusive quando da criação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Bahia, hoje Hospital Universitário Professor Edgard Santos (HUPES). O Professor Souza Campos foi trazido à Bahia em 1935, quando meu pai era diretor da Faculdade de Medicina, e se tornou, desde então, um profundo conhecedor da situação do ensino superior na Bahia. A pedra fundamental do Hospital das Clínicas foi lançada em 1938 e só 10 anos mais tarde ocorreu a sua inauguração. y Há um fio que liga esse processo à sua motivação para criar a Academia de Ciências da Bahia? Sim, o meu entendimento sobre a formação do ensino superior no Brasil. Considero um problema fundamental que as escolas superiores destinadas a formar profissionais, mesmo depois da constituição das universidades, tenham continuado a abrigar o ensino dos setores básicos do conhecimento, juntamente com o das disciplinas referentes às práticas das profissões que exigem nível superior de educação. Assim, na Bahia, por exemplo, havia cátedras de matemática na Escola Politécnica e outras nas Faculdades de Arquitetura, Economia, e mais outras na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Dessa forma, as cátedras de matemática eram distribuídas em várias faculdades e não adquiriram massa crítica para a pós-graduação stricto sensu (títulos de mestre e doutor) nem para a formação de pesquisadores e a realização de atividades de pesquisa. O mesmo se aplicava à física, à química, à biologia básica, às geociências, às ciências humanas e às letras. y Mas essa era, na verdade, uma condição geral do ensino superior no país, não? Sim, todas as universidades federais sofreram com o atraso nos setores básicos do conhecimento. A primeira mudança a esse respeito nasceu na Universidade de Brasília (UnB), concebida sob a orientação de Anísio Teixeira, um baiano, e de seu discípulo Darcy Ribeiro. Não havia, pela forma como fora concebida a construção da nova capital do país, faculdades isoladas que viessem a ser aglutinadas para formar a universidade local. Anísio e Darcy a idealizaram, então, desde o seu início, com a implantação de unidades responsáveis pelo ensino e a pesquisa nos setores básicos do conhecimento. Assim começou a UnB a funcionar em 1961. Mas poucos anos após, em 1964, ocorreu a grave crise política, da qual resultou a implantação do governo militar, com profundos reflexos na recém-criada UnBa. Assim, a concepção original da estrutura desta insti-


tuição foi sofrendo alterações. Pouco depois, no Conselho Federal de Educação (CFE), alguns conselheiros, inclusive Walmir Chagas e Nilton Sucupira, entre outros que haviam conhecido a estrutura originariamente proposta para a UnB, concentraram-se sobre o tema da reformulação das universidades brasileiras a partir daquele modelo inovador. Eu fazia parte daquele Conselho ao apreciar o assunto, que era então presidido por Deolindo Couto, professor de neurologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), uma grande personalidade, dono de uma inteligência fora do comum. Era ele amigo íntimo de Luiz Vianna Filho, então ministro da Casa Civil do presidente [Humberto] Castello Branco, e essa relação facilitou a assinatura por Castello Branco dos dois decretos-leis que, pelo destaque dado aos setores básicos do conhecimento, representaram a grande reforma nas universidades federais do Brasil: o 53, de 1966, e o 252, do começo de 1967. Conto toda essa história porque houve nas universidades quem esquecesse, talvez propositadamente, esses dois decretos-leis por considerá-los leis do governo militar. Mas sua origem era outra. Eles favoreceram o avanço das universidades e foram esquecidos em favor de outros decretos-leis, atribuídos aos acordos MEC-Usaid [convênios de cooperação técnica assinados entre o Ministério da Educação brasileiro e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional], cujo pessoal não chegou a se reunir, e não teve efeito nenhum. y Mas se tratava de uma luta política, não é? Sim, era uma luta política. Logo depois que entraram em vigor os dois decretos-leis, no final do governo Castello Branco, fui eleito e nomeado reitor da UFBA. Pouco antes eu fora escolhido por Luiz Viana, então indicado para o governo da Bahia, para ser secretário da Saúde do estado. Assumi a Secretaria em 7 de abril de 1968 e fiquei no cargo durante menos de três meses, devido à minha nomeação para a reitoria. y Gostaria que o senhor abordasse, antes de sua gestão como reitor da UFBA, sua trajetória de pesquisador. Logo depois de formado em medicina, fui em 1950 para os Estados Unidos com uma bolsa da Fundação Kellogg, e lá permaneci por três anos. Tive a oportunidade de fazer uma adaptação da medicina de influência francesa que havia aprendido na Bahia, para o estilo de ensino e o exercício da profissão com a orientação anglo-saxã, especialmente norte-americana. Depois de seis meses dessa adaptação na Universidade Cornell, fui para a Universidade de Michigan, em Ann Arbor, onde trabalhei como residente no hospital da universidade. No final desse período fui para o Massachuesets General Hospital, em Boston, na Universidade Harvard, onde estava o máximo da pesquisa médica nos Estados Unidos. O Massachusetts General Hospital funcionava em terreno onde havia então 13 pavilhões, alguns dedicados só à pesquisa médica. Fui para aquele onde estava começando a funcionar o Laboratório de Metabolismo Hidromineral, chefiado pelo professor Alexander Leaf [1920-2012]. Ele

Fiz no laboratório de metabolismo hidromineral chefiado por Alexander leaf, em harvard, minha iniciação em pesquisa médica de alto nível

saíra do famoso laboratório do professor Fuller Albright [1900-1969], que cuidava, sobretudo, do metabolismo de fósforo e cálcio no sistema ósseo, e começara pesquisas sobre água, sódio e potássio no novo laboratório, cujo equipamento principal foi o fotômetro de chama, posteriormente industrializado e que facilitava enormemente a dosagem de sódio e de potássio nos vários líquidos do organismo humano, incluindo sangue e urina. Fiz aí minha iniciação em pesquisa médica de elevado nível. Entre outros temas, Leaf estava então trabalhando com o que na época se chamava, abreviadamente, de “receptores de volume”. y Como estudante na Bahia, o senhor pesquisara algo nesse campo? Não, o metabolismo hidromineral como objeto de pesquisa sofisticada estava apenas começando. Era já bem estabelecido que as pequenas variações da pressão osmótica do sangue, regulada principalmente pelo sódio do organismo, resultavam em alterações do hormônio antidiurético secretado pela hipófise, ou seja, era importante fator de regulação na liberação do pitressin. Mas suspeitava-se de que o conteúdo líquido do organismo também tivesse influência sobre tal regulação. Por isso procuravam-se os “receptores de volume”, que se imaginava ser de regulação muito mais lenta e menos exata do que as variações da pressão osmótica. Trabalhei mais de perto sobre isso e por orientação do professor Leaf, para identificar melhor a desidratação que resultava na diminuição do volume, me internei na enfermaria metabólica do Massachusetts General Hospital. Ali me submeti experimentalmente a uma desidratação que resultou numa variação de volume e tornou claro, por meio da medição do sódio na urina, que havia realmente essa regulação pelo volume do conteúdo líquido do organismo, embora fosse um mecanismo mais lento e menos preciso do que o da variação da pressão osmótica. y O senhor foi então objeto de sua própria pesquisa? Sim, junto com um colega inglês que trabalhava no mesmo laboratório, sob a orientação do professor Leaf, e que também bahiaciência | 15


se submeteu a experiência semelhante. E tudo isso depois foi publicado num artigo cujos autores eram Leaf e colaboradores. y Resumindo, quais são as principais conclusões desse artigo? Que existem realmente os receptores de volume regulados pelo conteúdo líquido do organismo e que influenciam a liberação do pitressin, o hormônio antidiurético da hipófise. y Onde se encontram esses receptores? Sobretudo no segmento cefálico do corpo, provavelmente na vizinhança da própria glândula hipófise. Tinha sido publicado um primeiro artigo no Journal of Clinical Investigation, sob o título “Evidence in man that urinary electrolyte loss induced by Pitressin is a function of water retention”. y É outro artigo que leva sua assinatura. Outro sobre o mesmo tema que assino como coautor. O primeiro autor é o professor Leaf. Depois, já na Bahia, fiz uma tese de doutoramento trabalhando com a literatura por mim levantada em torno do assunto e com a demonstração mais minuciosa dos vários exames feitos durante a experiência da ação dos receptores de volume. Havia, até 1929, uma tradição de exigência das teses de doutoramento na Faculdade de Medicina para o exercício da profissão. Depois essa tradição foi abandonada e essas teses passaram a constituir apenas uma forma de desencadear a carreira universitária, como foi o meu caso. y Na tese foi possível agregar dados locais aos achados da pesquisa em Harvad? Fiz experiências em torno do metabolismo hidromineral como aprendera em Harvard, mas com material baiano, depois da tese de doutoramento. Com isso, elaborei durante dois anos a tese submetida ao concurso para a docência livre da Clínica Propedêutica Médica, cujo título é “A prova de tolerância a água nas hepatopatias crônicas”. Havia no Hospital das Clínicas muitos pacientes com aquele quadro a que me referi da esquistossomose avançada, cirrose hepática e desnutrição, com consequente hipertensão no sistema portal, que resultava em vômitos de sangue e terminava com óbito do paciente. Estudei, então, o metabolismo hidromineral dos portadores de hepatopatias crônicas, com e sem ascite [barriga d’água] e edema. Para isso submeti à prova da tolerância a água três grupos distintos. Ou seja: a) pessoas jovens e saudáveis, b) portadores de hepatopatias crônicas sem ascite nem edema, e c) portadores de hepatopatias crônicas com ascite e edema. A principal conclusão foi de que nos pacientes do terceiro grupo existiam fatores que levavam à retenção primária de água, somada à que deve ocorrer secundariamente à retenção do sódio. E essa prova de tolerância a água tanto serviu de matéria para o concurso como foi objeto de publicações, uma delas no sofisticado Journal of Clinical Investigation. Mais tarde fiz uma outra série de estudos que serviu para a minha tese de cátedra, sob o título “Da regulação renal e extra-renal do equilíbrio ácido-básico”. A tese foi objeto de publicações em jornais internacionais, como o 16 | julho/agosto de 2014

Journal of Clinical Investigation e o American Journal of Physiology (“Extra-renal action of adrenal glands on potassium metabolism”), ambos muito exigentes na aceitação das matérias. y Seu trabalho com função renal, metabolismo hidromineral, regulação do sódio etc., sempre lidou com a fisiologia do corpo humano? Fisiologia clínica, muitas delas experiências feitas no ser humano. A tese submetida ao concurso para a cátedra de clínica médica, por exemplo, tomou por base dois trabalhos referentes ao metabolismo hidromineral. Um deles tratava da regulação renal do equilíbrio ácido-básico e resultou de experiências realizadas em pessoas saudáveis para pôr à prova a hipótese de que a depleção sódica [perda de sódio] seria o estímulo essencial para o aumento da excreção urinária de amônia resultante da ação de sais ácido-formadores. A conclusão das experiências-testemunho em seis adultos normais foi que o aumento da excreção renal de amônia em resposta ao uso de sais ácido-formadores, em vários dias consecutivos, não resulta necessariamente no estado de depleção sódica. O segundo trabalho refere-se à regulação tecidual do equilíbrio ácido-básico. Alguns autores negam e outros admitem a influência dos hormônios das suprarrenais sobre a permeabilidade ao potássio das células do organismo em seu conjunto. Eu queria conhecer melhor o mecanismo de ação desses hormônios e os fatores que influenciam o transporte de iontes através da membrana celular, diante de perturbações do equilíbrio ácido-básico. Para isso pesquisamos em animais adreno-privos [sem função da suprarrenal], com a supressão da função renal, se a resposta a sobrecargas ácidas e alcalinas estaria ou não modificada. Realizamos experiências em cães submetidos a nefrectomia bilateral [extração dos rins] quando ainda em situação de normalidade e em outros previamente adrenalectomizados [com as glândulas suprarrenais extirpadas]. A conclusão dessas experiências mostrou que, suprimida a função renal no cão, os produtos das suprarrenais não exercem influência sobre as relações entre as alterações do equilíbrio ácido-básico do líquido extra-celular e a permeabilidade ao potássio da membrana das células do organismo em seu conjunto. Nos trabalhos então realizados, na parte que envolveu seres humanos, assim como tinha ocorrido comigo no estudo em Harvard, alguns alunos de Medicina que se prestaram a experiências ainda hoje se lembram disso com muita alegria. y Isso não levava problemas éticos à pesquisa? As experiências não ofereciam riscos, perigos reais. Tudo era levado até certo ponto, de modo que não causassem perturbações metabólicas. y Em sua experiência no Massachusetts, por quantas horas o senhor ficou desidratado? Não foi um processo implantado subitamente em poucas horas. Durou três ou quatro dias, foi gradual, com uma dieta muito cuidadosamente feita pelas supernutricionistas


y Nesse momento o senhor tinha dedicação exclusiva? Passei a fazer dedicação exclusiva por minha conta. Eu não estava casado -- namorei e casei pouco depois de ter feito essa carreira muito puxada em direção à cátedra --, morava na casa de meus pais, de modo que tinha pouca despesa e o salário de tempo parcial era suficiente para eu sobreviver.

e enfermeiras da Enfermaria 04, chefiada pelo professor Albright. Ele era uma figura extraordinária, um homem ainda relativamente jovem com um parkinsonismo muito avançado. Vejo o livro dele sobre fisiopatologia de cálcio e fósforo no metabolismo ósseo como uma das coisas mais bonitas de toda a literatura médica. Em sua enfermaria sempre trabalhavam em regime de rodízio três ou quatro estudantes e, justamente por causa de seu problema de saúde, uma das condições para se merecer trabalhar na Enfermaria 04 era o estudante poder conduzi-lo de casa para o hospital e vice-versa em automóvel próprio. y O senhor chegou ao topo da carreira de professor ainda muito jovem. Com quantos anos? Cumpri em pouco tempo as várias exigências acadêmicas e me tornei catedrático exatamente com 30 anos, em outubro ou novembro de 1956. E nesse momento, a Fundação Kellogg, que me concedera a primeira bolsa para os Estados Unidos e, por meu intermédio, para vários alunos recém-formados em medicina e em enfermagem que haviam trabalhado comigo, proporcionou recursos para eu montar meu laboratório de metabolismo hidromineral, no 6º andar do Hospital das Clínicas. Estava desocupado, e então o fui ocupando. Depois vieram outros laboratórios dos ex-alunos da Faculdade que tinham recebido bolsa da Kellogg. Foram vários: o meu, o de genética clínica da professora Eliane Azevedo, o do metabolismo do pós-operatório do professor Álvaro Rabelo, entre outros.

y O senhor não queria o caminho tradicional do médico formado na época: trabalhar metade do tempo no consultório privado e dividir a outra metade entre o hospital e Faculdade de Medicina? Exatamente. E foi a maneira de eu conseguir me preparar para a cátedra em pouco tempo. Gostaria de observar que até o começo da Segunda Guerra Mundial a influência na medicina brasileira e latino-americana era francesa. Depois dos 10 anos seguintes, da guerra até o fim do famoso Plano Marshall, quando os Estados Unidos estiveram mergulhados na recuperação da Europa, este país se voltou então bastante para a América Latina. Escolheram entidades beneficentes que criaram laços com a região e, em relação às faculdades de medicina, a escolhida foi a Fundação Kellogg, da empresa fabricante de corn flakes, grande operadora do mercado de cereais na Bolsa de Chicago. Durante aqueles 10 anos entre guerra e Plano Marshall, o Brasil ficou desligado dos países que tinham uma evolução maior em ciência e tecnologia, dessa forma tivemos um atraso tanto na parte clínica quanto na parte da fisiologia e da bioquímica aplicadas à medicina clínica. Mais ou menos a essa altura assumi a cátedra e senti necessidade de uma atualização das nossas faculdades de medicina. Comecei a trabalhar sobre a questão do ensino da medicina, do currículo e da concepção das várias disciplinas do ponto de vista do conteúdo, e em decorrência disso fui me desligando da pesquisa. Nessa época criamos a Associação Brasileira de Educação Médica, com a nossa mobilização e a de vários professores de outras faculdades de medicina do Brasil mais avançadas, caso das escolas da USP, UFRJ, universidades federais de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul (UFMG e UFRGS), entre outras. O primeiro a presidir a Associação foi Oscar Versiani Caldeira, de Minas. Eu fui o segundo presidente e depois foi Clementino Fraga Filho, do Rio, meu amigo-irmão durante décadas. E a Associação segue viva e atuante. y Como o senhor passou da Faculdade de Medicina para a reitoria da UFBA? Em 1966, Miguel Calmon tinha iniciado seu reitorado como uma renovação da Universidade. Meu pai tinha sido reitor bahiaciência | 17


até 1962, fora reeleito como primeiro da lista tríplice para ocupar o cargo novamente, mas o presidente Jânio Quadros resolveu nomear Albérico Fraga. Meu pai ficou muito desnorteado, até porque consultara Jânio antes para saber se seria nomeado, caso entrasse na lista e, diante da certeza que o presidente lhe dera, se preparara para o sexto mandato juntando recursos num fundo de reserva que resultava das sobras de orçamento de um ano para o outro. Assim, ao assumir, Albérico encontrou a Universidade em situação confortável, mas ao fim dos quatro anos ela entrara em crise financeira. Miguel o substituiu e, além de ser da Politécnica, ele era um banqueiro, sabia lidar com finanças, embora não fosse tão rico como muita gente pensava. Muito bem relacionado no ambiente financeiro brasileiro e internacional, consertou as finanças da Universidade. E ele me convidou para dirigir o Departamento Cultural da Universidade.

ligados, transformaram isso em suspeita de que ele era comunista, então uma palavra feia como o demônio. Eu estava satisfeito na Secretaria de Saúde, mas amigos de meu pai, e entre eles muito amigos de Orlando, começaram a suspeitar que Brasília vetaria seu nome e a insistir para que eu fosse candidato.

y Que missão tinha esse departamento? Bastante ampla, porque passava a coordenar as reflexões e a definir junto com o reitor as ações para a modernização da Universidade. Além disso, criei ali o Jornal Uni-

y Luiz Viana entendia bem todo o caso, não? Sim, ele e Miguel eram casados com duas irmãs, entendiam-se muito bem e representaram durante muito tempo um mesmo pensamento na política baiana. Orlando foi eleito em primeiro lugar por unanimidade, fiquei em segundo, e Hernani em terceiro. E eu estava na reunião mensal do Conselho de Educação em Brasília quando o ministro Tarso Dutra mandou me chamar. Ele tinha sido senador pelo Rio Grande do Sul e fora o presidente da Comissão de Finanças da Câmara e do Senado num tempo em que meu pai ia muito ao Congresso num esforço para incluir no orçamento recursos para a UFBA, e especialmente para construir o Hospital das Clínicas. Quando desci para o gabinete dele, no 2º andar, já estava ali o vice-reitor Adriano Pondé, que fora levar a lista preparada pelo Conselho Universitário -Miguel Calmon tinha falecido. Tarso Dutra disse que me chamara porque ia me nomear reitor da UFBA. Argumentei que esperávamos que o nomeado fosse Orlando Gomes dos Santos. Ele disse que reconhecia o gabarito de Orlando, mas que ele não poderia ser nomeado reitor e acrescentou que me nomeava pelo meu passado tão atuante, apesar de ser ainda um jovem professor, mas também por minha família e por meu pai. Fiz uma ardente defesa de Orlando, mas ele respondeu que, se eu não aceitasse, devolveria a lista para o Conselho Universitário reconsiderar os nomes, o que jamais se fizera. Adriano e eu pedimos a ele que sustasse a nomeação até falarmos com Orlando. O telefone era um problema na época, mas conseguimos falar com Orlando e, quando expliquei a situação, ele disse que não haveria devolução de lista. “Você aceita a nomeação e eu vou lhe ajudar naquilo que você precisar.” Voltamos ao ministro e dissemos qual fora a decisão.

Nem terminei minha participação na sessão do Conselho de Educação, viemos para Salvador. Quando chegamos, já foi aquela aclamação, e eu sem jeito. Mas fui ser reitor versitário, um meio de informar as diferentes faculdades sobre o que as outras estavam fazendo. O jornal era feito por estudantes de jornalismo que, além das condições de espaço para preparar as reportagens, tinham um laboratório de fotografia para fazer as imagens correspondentes. Enquanto Miguel estava como reitor, a expectativa geral, inclusive minha e de minha família, era de que seu substituto fosse Orlando Gomes, que tinha sido vice-reitor durante três dos cinco mandatos do meu pai, sempre com um espírito de lealdade e de colaboração enorme. Ele também desempenhara um papel muito importante junto à Faculdade de Direito, cujo prédio novo, no Vale do Canela, foi construído enquanto ele era vice-reitor, e tinha uma liderança fortíssima no Conselho Universitário – na época, todo-poderoso. Mas havia outro candidato fazendo campanha, um médico. Ao mesmo tempo, como Orlando pertencera na década de 1930 ao Partido Socialista romântico, a que muitos baianos depois eminentes haviam sido 18 | julho/agosto de 2014

y Existia uma lista tríplice prévia? Existia, e nela figuravam os nomes de Orlando Gomes em primeiro lugar, por unanimidade, o médico em segundo, e o terceiro era Hernani Sobral, professor da Politécnica e da Arquitetura – que foi depois meu vice-reitor, uma pessoa excelente. Quando começaram a me pressionar, eu dizia que esperava um dia ser reitor, mas não naquela hora. Mas, diante da insistência, me afastei da Secretaria um pouco antes da lista ser fechada, para fazer campanha.

y Foram momentos difíceis? Muito difíceis. Nem terminei minha participação na sessão do Conselho de Educação, pegamos o avião e viemos para Salvador. Quando chegamos, já foi aquela aclamação, e eu sem jeito. Mas fui ser reitor.


y O senhor assumiu em meio ao crescimento do movimento estudantil, à generalização das passeatas e de outras formas de protesto e luta política que se intensificaram até o final de 1968. Exatamente. Fui nomeado reitor em meados de 1967 e peguei o movimento estudantil em sua maior intensidade até dezembro de 1968, quando da edição do AI-5 [o Ato Institucional número 5, que suspendeu as garantias constitucionais e restringiu dramaticamente a liberdade de expressão, entre outros efeitos, assinalando o começo do período mais duro dos governos militares]. y Lembro-me de vê-lo vez por outra circulando nas galerias em torno do salão nobre da reitoria, observando as assembleias estudantis. Eu franqueei ao DCE [Diretório Central dos Estudantes] o salão nobre para o debate dos estudantes. Em determinado momento, em 1968, houve uma greve, a polícia foi advertida e procurou desmanchar a manifestação. Os estudantes, como de costume, dirigiram-se ao prédio da reitoria, entraram no salão nobre, e a polícia quis entrar. Eu estava no andar de cima, junto com outros professores que foram prestar solidariedade diante da confusão que reinava na cidade universitária e tentar impedir que a polícia entrasse. y O senhor, então, desceu até a porta de entrada da reitoria. Sim, e ao meu lado estava Jorge Hage, hoje ministro-chefe da Controladoria Geral da União (CGU), então meu chefe de gabinete, que colaborou muito para acalmar as coisas e impedir que a polícia entrasse. Mas o fato é que coube a mim aplicar os dois decretos-leis da reestruturação. y Com a universidade reagindo... Interessante, a reação não foi tanto dos estudantes, e sim dos professores das escolas profissionalizantes. y Eles acharam que era um esvaziamento profundo dessas escolas. Exatamente. Na medicina houve um esvaziamento não dos setores básicos das ciências em geral, mas da biologia. As disciplinas de anatomia, fisiologia, bioquímica etc., passaram todas ao Instituto de Ciências da Saúde. Portanto, foi na minha primeira fase no Conselho de Educação e, depois, na reitoria, que cresceu em mim a paixão pelos setores básicos do conhecimento. Minha nomeação para o Conselho, em 1963, foi decorrência do trabalho numa comissão de ensino médico criada pelo Ministério da Educação, em que também estavam Clementino Fraga Filho, Rubem Maciel, do Rio Grande do Sul, e várias pessoas que se destacaram depois na vida pública do país. Fui presidente dessa comissão. y De seu ponto de vista, quais foram suas realizações mais importantes como reitor da UFBA? Passei os quatro anos implantando os institutos que já tinham sido cogitados por Miguel Calmon. Além da comissão de reestruturação, graças às suas relações finan-

Os setores básicos do conhecimento não tiveram a projeção social que eu esperava nem provocaram aquele impulso que imaginei

ceiras internacionais, ele tinha bolado um financiamento do BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] para a construção dos prédios dos institutos e para trazer do exterior para a Bahia até três professores de matemática, de física, de química etc., escolhidos pela Unesco [Conselho das Nações Unidas para a Educação e a Cultura]. A liberação desse financiamento só foi ocorrer em meu período de reitor, quando foram implantados nove institutos e elaborados seus regimentos, atividade na qual Orlando Gomes e Calmon dos Passos me ajudaram muito. O Instituto de Biologia só foi concluído mais tarde. Quando os professores estrangeiros foram embora, os docentes que os substituíram, assim como os reitores seguintes, não deram aos setores básicos do conhecimento o suporte necessário. Resultado: eles não tiveram a projeção social que eu esperava nem provocaram aquele impulso que imaginei. Os professores das disciplinas profissionalizantes continuaram governando a universidade e projetando-a junto à sociedade baiana. Acontece que, antes mesmo do primeiro decreto-lei de 1966 de que falamos, Newton Sucupira já tinha emitido, em 1965, o famoso parecer que criava os cursos de pós-graduação stricto sensu. Os institutos de pesquisa são, assim, simultâneos à estruturação da pós-graduação e da pesquisa. Nesse meio tempo, o Conselho Nacional de Pesquisa, depois Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), criado em 1951, tomou impulso. E tudo isso ganhou força junto. y Findo seu período na reitoria, o senhor se mudou para Brasília? Quando meu mandato foi chegando ao fim – e na época não era possível recondução –, comecei a frequentar o Hospital das Clínicas. Mas a reitoria era tão exigente que me afastei. E então, findo o reitorado, me tornei presidente do Conselho de Educação e me mudei para Brasília. O primeiro presidente tinha sido meu pai, o segundo, Deolindo Couto, depois foi Raimundo Muniz de Aragão, baiano que vivia no Rio. Durante a gestão de Muniz de Aragão o Conselho foi transferido do Rio para Brasília. Ele ainda ficou um tempo, bahiaciência | 19


mas não quis a recondução, e então se abriu uma vaga para meu começo de vida na comunidade de educação. O Conselho era muito prestigiado pelo Ministério da Educação, e como membro passei a ter contato com o mundo político. y Foi então no Conselho Federal de Educação que se ampliou a base política para sua condução ao governo da Bahia? Certamente. Entre as figuras políticas com quem comecei a conviver se destacou Petrônio Portela, senador pelo Piauí e presidente da Arena, um político de grande habilidade, e estou certo de que, se ele não tivesse escondido o infarto que o acometeu, a transição para a democracia teria sido melhor e ocorrido mais cedo. Foi Petrônio quem realmente me introduziu no meio federal. Ney Braga era ministro da Educação e colaborou com ele para isso e, acima de tudo, Luiz Viana Filho. Petrônio percebeu, ao tempo em que o MDB [Movimento Democrático Brasileiro, depois PMDB] era muito pequeno em todo o Nordeste, que havia na Arena da Bahia quatro facções que brigavam entre si como cão e gato. Eram os grupos de Luiz Viana Filho, de Jutahy Magalhães – Juracy, o patriarca, já havia se afastado –, de Lomanto Júnior e de Antonio Carlos Magalhães. O presidente Ernesto Geisel, junto com Golbery do Couto e Silva – de quem eu não gostava e que também não gostava de mim, assim como [João Baptista] Figueiredo, enquanto achavam todos muita graça em Antônio Carlos Magalhães – autorizara cada uma dessas quatro facções a apresentar três nomes de candidatos ao governo da Bahia. Todas indicaram nomes que não eram aceitos pelas outras facções. y O que criava um impasse. Sim, mas três das quatro facções admitiam ter meu nome como segundo em suas listas. A exceção era a de Antônio Carlos. E, como parte do processo de escolha, ele dizia na Bahia que os políticos, sequer seriam recebidos por mim, e em Brasília dizia para não me nomearem porque eu não seria escolhido pela Assembleia Legislativa. A essa altura, Geisel havia nomeado Petrônio para percorrer todas as

prevaleceu em nosso governo a ideia de que a atenuação da pobreza e das grandes desigualdades sociais da população exigia prioridade absoluta

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assembleias estaduais do país colhendo impressões sobre os candidatos. Antônio Carlos então armou uma situação para que eu não conseguisse estar na Bahia no dia marcado para Petrônio conversar com os deputados. Mas foi em vão, cheguei na véspera. Petrônio constatou que todos me admitiam como segundo nome e levou isso a Brasília. y O senhor o desarmou com um contragolpe. E isso o deixou furioso. Ele tinha indicado, além de Clériston Andrade, Luís Sande e, em terceiro lugar, Barbosa Romeu. Quando Sande percebeu que não tinha chance, começou a se afastar e acabou brigado mesmo com ele. Um dia, João Falcão, o dono do Jornal da Bahia, que estava numa guerra acesa com Antônio Carlos, me visitou em Brasília. Antônio Carlos soube disso, foi ao Golbery e disse que não podiam indicar ao governo baiano uma pessoa que recebera em seu gabinete na presidência do Conselho de Educação o seu inimigo, portanto, tinham que me tirar da lista. Golbery disse que os nomes já tinham sido indicados. Ele propôs então colocar em sua lista, em vez de mim, José Mascarenhas, um técnico jovem e muito competente, mas Golbery não aceitou e eu fiquei como o segundo na lista de todos. Fui nomeado e voltei à Bahia para preparar o governo. y Quais foram, em sua visão, suas mais importantes realizações como governador? Como disse em um de meus livros, Na Bahia das últimas décadas do século XX, publicado pela Edufba em 2008, dedicar-me à preparação dos planos de governo foi uma das tarefas mais gratas de toda a minha vida pública. Para isso contei com o auxílio de uma equipe que fez um excelente trabalho sob a direção geral do professor Raimundo Vasconcelos. Preocupava-me especialmente atribuir grande destaque aos projetos da área social, porque bastava a simples análise das estatísticas de saúde e educação para verificar a situação constrangedora em que nos encontrávamos, baianos e brasileiros, mesmo quando comparada com a de alguns países cuja economia era menos desenvolvida que a nossa. Assim, prevaleceu em nosso programa a ideia de que a atenuação da pobreza e das grandes desigualdades sociais da população exigia prioridade absoluta por parte dos órgãos oficiais responsáveis pela educação, pela saúde e pelo bem-estar social. E não fizemos outra coisa ao longo dos quatro anos em que fui governador. Ao mesmo tempo, era fundamental promover o desenvolvimento econômico para dar sustentação aos ambiciosos projetos relativos à melhoria da qualidade de vida dos grandes segmentos populacionais, o que ocorreu, prioritariamente, com a implantação acelerada do Polo Petroquímico de Camaçari, que estava em seu início. No final, os indicadores da economia do estado revelariam com clareza o acerto dessas escolhas: por exemplo, o PIB estadual cresceu à impressionante taxa média anual de 13,1% entre 1975 e 1978, apesar da grande seca de 1976, e a renda per capita dos baianos subiu de US$ 302 em 1975 para US$ 582 em 1978, 43% acima da elevação registrada no Brasil e 24% superior ao crescimento verificado em São Paulo.


y Depois de governador da Bahia, o senhor foi presidente do CNPq e ministro da Saúde. Como foi sua experiência nesses cargos em tempos de redemocratização? Ao deixar o governo, a exemplo de outros governadores e prefeitos que tinham servido naquele período sem adotar os métodos e processos do regime militar, comecei a me afastar da Arena. Aproximei-me de Tancredo Neves e de Magalhães Pinto, antigos adversários que tinham se juntado e começado a preparar um novo partido. Conseguimos no Congresso e contra a vontade do regime sair do bipartidarismo e criar outros partidos, inclusive o Partido Popular (PP), a melhor coisa na área política que já conheci no país. Tancredo se apresentou como candidato a presidente pelo partido, e na Bahia eu seria o candidato a governador. Enquanto o PP ganhava o eleitorado que tinha sido da Arena, sobretudo no Nordeste, onde o MDB criara a imagem de um partido “comunista” e tinha um eleitorado pequeníssimo, Golbery deu um golpe nesse novo partido: ele conseguiu passar no Congresso uma lei pela qual os partidos deveriam ter candidatos a todos os cargos abertos à eleição em cada estado. O MDB na Bahia, mesmo sendo muito pequeno, tinha profundas divergências internas, e os grupos de Chico Pinto e de Josaphat Marinho se digladiavam. Ao voltar do exílio, Waldir Pires assumiu o comando do partido e se tornou o candidato a governador pelo MDB. Mas, a minha candidatura pelo PP e a de Waldir pelo MDB, compunham uma fórmula para nenhum de nós sequer se aproximar da eleição, porque, com a oposição dividida, a Arena, muito mais forte, acabava com qualquer veleidade de outra candidatura. Nesse quadro pouco favorável, a solução proposta por Tancredo foi juntar o PP ao MDB de Ulisses Guimarães e formar um partido só. Assim nasceu o PMDB. Importa dizer que fiquei pertencendo ao mesmo partido que José Sarney, que resolveram colocar como candidato a vice-presidente na chapa do PMDB. Ele estava em evidência naquele tempo, não lembro por quê. Sarney hesitou, mas aceitou. Tancredo foi eleito e veio aquele período de sua doença e, como fizera Petrônio, Tancredo escondeu a doença. Quando, afinal, descobriram que ele estava com um processo inflamatório grave, já estava grave demais. Tancredo morreu. Havia um dispositivo legal que indicaria levar para a presidência da República o presidente da Câmara, mas Ulysses Guimarães, não sei por quê – ele era uma figura interessante, mas tinha uns recuos e umas cerimônias – não aceitou. E Sarney tinha sido escolhido vice-presidente, portanto, seria o presidente. y Ulysses dizia que, do ponto de vista legal, Sarney é que deveria assumir. É, ele disse, mas foi ele quem não quis a presidência que lhe foi oferecida com insistência. Sarney começou a preparar o governo de acordo com o que sabia que Tancredo montara. E respeitou que eu fosse presidente do CNPq, o órgão que desde 1950 comandava a área da ciência e tecnologia. Ulysses teve direito a escolher três ministros: Waldir Pires para a Previdência, Almir Pazzianotto para o Trabalho e Renato

Conseguimos no Congresso, contra a vontade do regime, sair do bipartidarismo. criamos o PP, a melhor coisa na área política que já vi no país

Archer, que assumiu um ministério que tinha de ser formado: o da Ciência e Tecnologia. Dentre os órgãos que caberiam num tal ministério, o CNPq, que eu estava presidindo, era o único organizado, com uma estrutura e uma tradição. Archer, acredito que com satisfação e liberdade, me confirmou no CNPq, que passara a ser o principal órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia. Os principais assistentes dele, com quem passei a conviver, eram o atual presidente do BNDES, Luciano Coutinho, secretário-geral do Ministério, e o atual ministro Celso Amorim, chefe de gabinete. De modo que formamos os três o Ministério da Ciência e Tecnologia da época. y Mas o senhor ficou pouco tempo no CNPq. Por quê? No ministério de Sarney tinha sido incluído, por ser um deputado de muito destaque, um ex-secretário da Educação de meu governo, Carlos Sant’anna. Mas exatamente porque era um deputado destacado, ele precisou deixar o ministério em 1986 para se tornar líder do governo Sarney na Assembleia Nacional Constituinte. Voltaria em janeiro de 1989, com a nova Constituição promulgada, para assumir a Educação. Eu fui convidado para o ministério da Saúde em fevereiro de 1986 em substituição a Sant’anna, creio que Sarney considerou aquilo uma promoção. Mas o Ministério da Saúde até a nova Constituição só atuava na área preventiva, e todo o dinheiro da Saúde ia efetivamente para o Ministério da Previdência, que lidava com a saúde do trabalhador. Assim, o que para Sarney foi uma promoção, para mim foi um corte na carreira. Não me ajeitei muito no Ministério da Saúde. y Adiante o senhor se candidatou a deputado e a governador de novo. Quando exerci o cargo de governador, me esforcei muito para atingir assuntos prioritários para a Bahia e, mesmo sem ter trabalhado especificamente para isso, fiz um eleitorado que ficou sem aproveitamento do ponto de vista político. Figueiredo, que se revelaria o pior e mais fraco dos presidentes militares, se entendia bem com Antônio Carlos Magalhães, então já brigado comigo. Figueiredo jamais se entendeu bem comigo, nem como chefe do SNI, enquanto bahiaciência | 21


eu estive na reitoria e no governo, nem enquanto presidente. Então, o que fez? Botou Antônio Carlos para me substituir. Isso era um problema para a política da Bahia, porque ele iria tentar destruir tudo que eu tinha feito. Procurando atenuar isso, o que pude fazer foi me candidatar a eleições partidárias para governador. Fui derrotado, diante do poder enorme que Antônio Carlos havia angariado. Mais tarde, quando me demiti do Ministério da Saúde e voltei para Salvador, Sarney me nomeou para representar o Brasil na Organização Mundial da Saúde (OMS). Fiquei por quatro anos e gostei muito dessa atividade internacional. Findo aquele período, voltei a Salvador e me candidatei a deputado federal. Fui eleito com a maior votação dos candidatos de oposição e exerci o mandato por quatro anos. y Contrariado? Sim, porque a pessoa se mexe muito e não produz nada mais sólido. Vi que não era conveniente para alimentar o eleitorado para continuar os mandatos e encerrei a carreira. y Sua biografia é marcada por várias criações institucionais efetivas. Uma delas é o Museu de Ciência e Tecnologia da Bahia, implantado quando o senhor era o governador, e cuja decadência começou logo depois. Haveria certo interesse em reativar essa instituição pioneira? Como governador, pude refletir no exercício do cargo a minha formação. Daí nasceram iniciativas como a criação do Museu de Ciência e Tecnologia. Eu visitara vários desses museus nos períodos em que vivi no exterior e daí me surgiu a ideia de que precisávamos fazer na Bahia algo similar. Não seria um museu histórico nem artístico, mas didático, e o primeiro da América do Sul. Trouxemos um dos diretores do Museu de Ciência e Tecnologia de Londres, Keohane, e ele teve aqui um papel extraordinário, por sua capacidade de organizar as táticas de um museu didático e pela competência científica em apontar caminhos para a demonstração de princípios das ciências básicas de forma lúdica para as crianças das escolas de ensino fundamental. y O museu foi implantado dentro do Parque de Pituaçu, certo? Sim, dentro do parque, já na periferia, com espaço previsto para ampliação. A topografia do Parque de Pituaçu permitia o uso de pedalinhos nesse pequeno lago, equipamento que insistimos em instalar pensando nas crianças. y Lembro-me de uma réplica de uma torre de petróleo no museu. A Petrobras, entre 1975 e 1979, nos ajudou muito. E talvez as peças mais caras do material de exposição fossem as moléculas em três dimensões de produtos do Polo Petroquímico. Eram modelos específicos que incluíam produtos intermediários da indústria petroquímica, muito complexos, com informações tanto sobre as matérias-primas usadas para fazê-lo quanto sobre produtos de consumo resultantes do trabalho em torno delas. Outra coisa que despertava bastante interesse era o trabalho de um ana22 | julho/agosto de 2014

tomista das faculdades de Medicina e de Odontologia da UFBA, Aldemiro José Brochado, que injetava corantes no sistema vascular. Parte foi feita em adultos e outra parte, em fetos, em modelos reais depois das autópsias. Ele usava um produto que fazia o que chamavam “diafanização” tanto no músculo cardíaco quanto no tecido que forma os pulmões, e por esse processo de tornar diáfanas essas massas de tecidos era possível trabalhar as peças distintas com diferentes cores. y Algo parecido com as técnicas usadas naquelas grandes exposições do corpo humano que vieram dos Estados Unidos nos anos 2000? Exatamente, essa técnica representa um avanço do que conseguimos aqui em 1975. Quanto à torre de petróleo, sim, tinha um modelo que a Petrobras nos facilitou. Já a Secretaria Estadual de Transporte providenciou camadas de estradas e trajetos, desenhos de estradas em diferentes épocas, desde os tempos mais remotos, passando pela Idade Média, chegando ao começo do uso do asfalto, até finalmente as estradas asfaltadas contemporâneas. A Aeronáutica nos ofereceu um pequeno avião e a então Rede Ferroviária Leste Brasileiro nos forneceu uma locomotiva e vagões de estrada de ferro, em tamanho real. y O museu foi inaugurado em 1979, quando o senhor estava prestes a deixar o governo do estado. Isso. Depois houve um empenho do governo do estado em dificultar as coisas para o museu, até que entre 1992 e 1996 ele ficou fechado. Conseguiu-se reabri-lo, adiante foi entregue à Universidade do Estado da Bahia (Uneb), que instalou áreas de trabalho de ordem burocrática nas salas onde antes havia experiências. Mais recentemente surgiu um debate entre vários órgãos do governo estadual a respeito da destinação daquele espaço. y Em que pé está hoje o museu? Praticamente fechado, com o espaço disputado e numa situação de incerteza. Os equipamentos sumiram quase todos. y Parece-lhe haver alguma possibilidade de reativação do museu? Tem havido um empenho. O museu foi oficialmente transferido para a SECTI por decreto do governador Jacques Wagner no final da gestão do secretário Paulo Câmera, que se empenhou por essa transferência. A secretária Andrea Mendonça, que o substituiu, já demonstrou interesse em dar prosseguimento à iniciativa. y O senhor acredita que há condições hoje favoráveis na Bahia para que a produção do conhecimento científico e a capacidade de inovação tecnológica consigam um status decisivo e socialmente reconhecido no processo de desenvolvimento deste estado? Essa é minha expectativa e a minha esperança. Continuo trabalhando para isso na Academia de Ciências da Bahia. w



artigo

CT&I: o Brasil está no rumo certo Glauco Arbix e Fernanda Stiebler

É

praticamente consenso que dado o grau de competitividade o crescimento econômico alcançado, ainda permanece como sustentável dos países está fonte de inspiração. Nesse sentido, fortemente associado à qualificanão somente a maior qualificação ção da força de trabalho – o que dos agricultores, o valor do câmbio realça o peso da educação –, assim e a perspectiva exportadora foram como aos processos de inovação. fundamentais. Mecanização e tecAumento da densidade tecnológica nologia desempenharam papel de e diversificação são peças essenciais destaque: 42% das razões que expara qualquer economia elevar a plicam o dinamismo da agricultura produtividade. No Brasil, a reverNo Brasil, as empresas que brasileira apontaram para a expaninovam remuneram 23% a mais são do quadro de baixa produtivisão tecnológica no campo. do que as empresas que Com essa referência, vários prodade, que permanece praticamente não inovam. Além disso, geram inalterado desde os anos 1980, é gramas lançados nos últimos anos postos de trabalho mais estáveis questão-chave, seja para retomar, deram base para a retomada de poe de melhor qualidade seja para dar sustentabilidade ao líticas industriais e tecnológicas de crescimento econômico. porte: a Política Industrial, TecnolóMesmo com a expansão do investimento em P&D com gica e de Comércio Exterior (2004), a Política de Desenvolvirelação ao PIB (dados da Secex, do Ministério da Ciência, mento Produtivo (2007-2009), a Estratégia Nacional de CT&I Tecnologia e Inovação - MCTI), que passou de 1,06% em (2008) e, mais recentemente, o Plano Brasil Maior e o Inova 2002 para 1,24% em 2012, o Brasil tem ainda um longo Empresa. Este último colocou as políticas industriais em seu caminho pela frente. Para um país com as nossas dimenmais alto nível, tornando-se o plano de inovação mais amsões, seria necessário que os investimentos em P&D se bicioso já realizado no Brasil. Um conjunto de políticas com aproximassem da marca de 2% do PIB no fim desta década. foco, recursos, prioridades e definição de áreas estratégicas. No Brasil, as empresas que inovam remuneram 23% a O Inova Empresa, com R$ 32,9 bilhões de dotação, foi mais do que as empresas que não inovam (conforme dados lançado pela presidenta Dilma Rousseff em 14 de março de do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea). Além 2013 a partir de uma forte articulação entre 12 ministérios, disso, geram postos de trabalho mais estáveis e de melhor agências e instituições, e encontra-se em plena execução. qualidade. Mais do que isso, as empresas inovadoras são Com objetivo de elevar o P&D nas empresas, o Inova cerca de sete vezes mais produtivas quando comparadas Empresa lançou mão da integração de vários instrumencom as empresas que não inovam, além de terem 16% a tos, como o crédito subsidiado, a subvenção econômica, mais de chances de exportar. projetos cooperativos empresa-universidade, recursos não Há um oceano de publicações sobre como elevar a proreembolsáveis para centros de pesquisa e universidades e dutividade das economias. No entanto, em anos receninvestimento em participação (start-ups, venture capital). tes, poucos foram os países que obtiveram sucesso nessa Com foco em áreas estratégicas como energia, petróleo área, intimamente ligado aos avanços em seu desenvolvie gás, complexo da saúde, complexo aeroespacial e defesa, mento. Alguns exemplos na Ásia e, mais recentemente, TICs, telecomunicações, sustentabilidade socioambiental o rápido crescimento na China continuam a desafiar os e agropecuária, o Plano Inova Empresa procura também analistas para explicar e extrair lições consistentes dessas incentivar projetos de maior risco tecnológico, com taxas experiências. especiais e prazos que chegam até 12 anos. No Brasil, a preocupação é constante, e atravessa goMais ainda, o plano utilizou-se do poder de compra do vernos dos mais diferentes tipos. A agricultura brasileira, estado, como, por exemplo, no Inova Fármacos. Os arranjos

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fotos  arquivos pessoais  ilustração  marcos garutti

montados entre empresas, institutos de pesquisa e Finep, coordenados pelo Ministério da Saúde e com base no uso do poder do Sistema Único de Saúde (SUS), mostram que a inovação empresarial pode avançar com base na articulação público-privada. Os resultados já surgiram nas áreas de biofármacos, vacinas, hemoderivados, soros e toxinas com alta tecnologia para atender à população no combate a doenças como câncer, diabetes e artrites, entre outras. Do ponto de vista estrutural, o Plano contribui concretamente para a construção de uma autêntica indústria nacional de fármacos, avançada e de alta tecnologia. Todos esses avanços foram possíveis associados ao esforço para redução de prazos e simplificação de processos. A Finep, por exemplo, lançou o Finep 30 dias, processo em que os projetos de crédito são avaliados no seu mérito em até 30 dias. Essa mudança radical desburocratizando e modernizando processos e procedimentos só foi possível com inserção de inteligência e tecnologia, que contou com a participação de analistas internacionais e nacionais associados à experiência da Finep. Oitenta e seis indicadores de inovação foram criados, o que permite aumentar o rigor e a eficiência do tratamento dos projetos e simplificar e diminuir custos para as empresas. O novo processo, que

fez o tempo de análise de projetos passar de 452 dias em 2010 para 30 dias, é uma verdadeira revolução. Lançado em setembro de 2013, o Finep 30 dias já cadastrou mais de 3 mil empresas e recebeu cerca de 400 projetos de inovação, totalizando aproximadamente R$ 25 bilhões. Diga-se de passagem, o impacto foi tamanho que a simplificação de processos na Finep será feita agora também para as universidades e centros de pesquisa. Ainda neste mês de agosto, o programa Finep 30 dias Pesquisa estará operacional, dando um verdadeiro choque de gestão e de respeito ao contribuinte. Com objetivo de alcançar as micro e pequenas empresas, o Plano Inova Empresa contemplou ainda a descentralização do crédito e da subvenção econômica por meio de dois programas: o Tecnova, descentralização da subvenção econômica, operado pelas fundações de amparo a pesquisa estaduais, e o Inovacred, descentralização do crédito, operado por meio de 14 bancos de fomento estaduais. Apesar das discussões sobre os rumos da economia (fica menos forte), o Brasil hoje dispõe de instrumentos de políticas públicas adequados para impulsionar as empresas inovadoras. Os resultados surpreendentes do Plano Inova Empresa mostram que aumenta o número de firmas que internalizaram a inovação em suas estratégias de crescimento. Com mais de 12 editais já lançados, o Plano recebeu uma demanda total de R$ 98,6 bilhões, envolvendo cerca de 3 mil empresas e mais de 200 instituições de ciência e tecnologia. Até julho de 2014, Finep e BNDES juntos já haviam contratado R$ 18,5 bilhões. Estes dados são a prova de que, quando as instituições públicas apresentam processos eficientes e mecanismos adequados e transparentes de financiamento, a resposta da sociedade é rápida e enérgica, e indicam que o Brasil pode mais e quer mais do seu sistema nacional de inovação. O país tem muito a consertar, mas tem rumo e capacidade de executar e integrar suas políticas, reduzir a burocracia, facilitar o empreendedorismo e melhorar ainda mais a dinâmica das empresas para construir uma economia puxada pela inovação. w Glauco Arbix é presidente da Finep Fernanda Stiebler é mestre em políticas públicas pela UFRJ e analista da Finep bahiaciência | 25


capa

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agricultura

A recuperação do cacau baiano Com tratos culturais corretos e clones resistentes, produtores conseguem manter vassoura-de-bruxa sob controle

dinorah ereno | fotos luciano andrade, enviados especiais à região de Ilhéus

Frutos em processo de amadurecimento (à esq.) e colheita manual de cacau em fazenda de Gandu, em Ilhéus

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e segundo maior produtor de cacau do mundo nos anos 1980 à sétima posição no mercado atualmente, o Brasil e principalmente o sul da Bahia – de onde saem as maiores safras brasileiras de amêndoas torradas – ainda convivem com os efeitos da devastação causada pela vassoura-de-bruxa. A doença, detectada na região em 1989, trouxe em sua esteira gravíssimas implicações econômicas, sociais e ambientais. Causada pelo fungo Moniliophthora perniciosa, que penetra nos frutos e provoca perdas significativas nas plantações, a doença arrasou um modo de vida e de cultura tradicionais no sul baiano – microrregião de Ilhéus e Itabuna, composta por 41 municípios, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para se ter ideia dos estragos, basta comparar a queda de produção enfrentada pelos produtores baianos em pouco mais de dez anos – as quase 400 mil toneladas colhidas em 1988 despencaram para pouco menos de 100 mil em 2000. Se antes bastava plantar os pés de cacau nas clareiras abertas na região úmida recoberta por mata atlântica bahiaciência | 27


e esperar a época certa para colher os frutos, hoje a produção depende de tratos culturais constantes, como adubação foliar e nutrição do solo em épocas certas, controle de pragas, poda de galhos em lugares estratégicos para que a árvore receba luz na medida certa e, principalmente, de clones resistentes à doença. Com os devidos cuidados, a vassoura-de-bruxa pode ser mantida sob controle. Mas basta encontrar um ambiente favorável para ela causar sérios estragos. Isso porque o esporo do fungo pode permanecer por muito tempo dentro da planta sem contaminá-la. “Tem que fazer tudo muito benfeito, com muito zelo, muito trabalho e seguir as etapas na época certa, além de contar com mão de obra capacitada”, diz o produtor Edmond Ganem, que tem duas fazendas, uma em Ilhéus com 30 hectares e outra em Una com 242 hectares. “A produção das duas fazendas ficará, neste ano, entre 2.300 e 3.000 arrobas. Ainda é pouco pela área cultivada, mas está em ascensão”, relata o produtor. Segundo o IBGE, a região concentra atualmente pequenas propriedades produtoras, de 20, 30 e 50 hectares. “As grandes propriedades produtoras, com 10 mil hectares, não existem mais. Se tiver, é uma ou duas”, diz Ganem, que tem na sua fazenda de Una, além do cacau, cultivos comerciais de seringueira, açaí, jequitibá-rosa, guanandi, teca, pau-brasil e diversas espécies nativas da mata atlântica.

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s números fornecidos pela Comissão Executiva dos Planos da Lavoura Cacaueira (Ceplac), órgão do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, mostram uma recuperação gradativa da produção no sul da Bahia. “Temos observado um aumento gradual, com acréscimo na produção em cerca de 90%, nesses últimos 12 anos”, diz José Marques Pereira, coordenador de pesquisas no Centro de Pesquisas do Cacau, da Ceplac. Ele ressalta que, no início da década de 2000, a produção era de 96 mil toneladas, a mais baixa registrada após a entrada

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da vassoura-de-bruxa na região. Uma década depois, na safra 2010/2011, chegou a 153 mil, e na seguinte a 180 mil toneladas. A safra encerrada em abril deste ano, período 2013/2014, ficou abaixo do esperado, com 132 mil toneladas. “A oscilação é reflexo do clima mais seco, que influi sobre a floração e a quantidade de frutos, e da maior ou menor incidência de doenças, como a vassoura-de-bruxa e a podridão parda”, diz Thomas Hartmann, analista do mercado de cacau e cacauicultor. O analista também atribui os resultados ao nível dos tratos culturais que os produtores dedicam às fazendas. “Eles ainda não têm sido tão intensos quanto deveriam por falta de condições financeiras”, relata Hartmann, dono de uma fazenda em Maraú. A estimativa para 2014/2015, segundo o analista, é de uma ligeira recuperação, com safra entre 140 mil e 150 mil toneladas. “Ainda que em ritmo lento, existe uma nítida tendência de recuperação.” A boa notícia para os produtores é que os preços do cacau estão no nível mais alto dos últimos três anos. A cotação da Bolsa de Nova York está acima de US$ 3 mil por tonelada. “O mercado externo está em alta e essa tendência aparentemente vai continuar ainda por mais uns dois meses, mas, em um futuro médio, haverá uma correção para baixo nos preços”, diz. O movimento de recuperação da cacauicultura baiana também pode ser medido pela grande produção de mudas no Instituto Biofábrica de Cacau, em Itabuna. Diariamente são produzidas em seus viveiros de 15 mil a 20 mil mudas de cacau multiplicadas por estaquia, um meio de propagação vegetativa muito utilizado na produção de plantas ornamentais e frutíferas. O Instituto Biofábrica conta com 17 viveiros de produção, de onde saem também mudas de pau-brasil, ipê, jequitibá, jaca, teca e outras madeiras usadas em reflorestamento. A batalha para dominar a vassoura-de-bruxa – doença descoberta em 1895 no Suriname e que já tinha demonstrado o seu poder de destruição ao atingir em 1920 as lavouras


Amêndoas torradas prontas para consumo (à esq.); pé com frutos verdes e maduros (ao lado); e produção de mudas no Instituto Biofábrica de Cacau, em Itabuna (abaixo)

de cacau no Equador – passou por várias etapas desde que chegou à região. Na época os produtores baianos enfrentavam ainda uma crise com a queda do preço do cacau no mercado internacional. Inicialmente incrédulos quanto ao seu poder de devastação, muitos fazendeiros só se deram conta dos estragos após o fungo já estar instalado em suas plantações. Alguns tratos indicados para o combate à doença, como poda radical das copas ou retirada das matrizes para plantio de clones, resultaram em mais perdas para os produtores. Com isso muitos se endividaram e abandonaram suas fazendas.

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o percorrer de carro as estradas rurais ao redor de Ilhéus, Itabuna, Gandu e outras regiões produtoras, constataram-se a degradação de muitas sedes de fazendas, o abandono de outras e a transformação de plantações em pastos. Por entre as nesgas de cacaueiros que se entrelaçam, é possível ver em algumas fazendas, outrora produtivas, mirrados frutos amarelos – sinal de que já estão maduros – pendurados em árvores centenárias. Ou seja, mesmo abandonadas, muitas plantações sobreviveram à vassoura-de-bruxa e continuam a produzir. Nas plantações com tratos culturais, os frutos amarelos convivem com vermelhos e amarronzados, sinal da grande variedade de clones testados pelos produtores que apostaram no renascimento do cacau. Com o passar do tempo, os mais produtivos e resistentes foram e ainda hoje são selecionados para tomar lugar dos pés que não demonstraram aptidão para essa nova fase da cultura. Estimativas de produtores da região apontam que, atualmente, apenas cerca de 30% das fazendas continuam a produzir cacau. Os cadastros do Centro de Extensão Rural da Ceplac contabilizam 35 mil produtores do fruto. “Hoje o maior problema do cacau não é a vassoura-de-bruxa, mas sim a falta de infraestrubahiaciência | 29


Plantação em Gandu é exemplo de tratos culturais corretos, como podas conduzidas (ao lado), e sementes retiradas da polpa antes da fermentação e secagem

tura, de estradas rurais e de mão de obra capacitada”, diz Ganem. “Além disso, muitos produtores não conseguiram se recuperar do endividamento gerado pela crise e ficaram sem recursos para investir em novas tecnologias e na recuperação do solo esgotado pela exploração intensiva.” A primeira fazenda foi comprada por seu pai em Una, em 1976. Após se formar técnico agrícola, Ganem voltou para a região em 1982. “Eu tinha uma vida boa”, resume sobre a fase áurea da cacauicultura. “Pagava bem os meus funcionários e ficava com uma boa sobra.” No final da década de 1980, a doença chegou às fazendas que margeiam a BR-101, a quase 100 quilômetros da sua propriedade. “Ela foi introduzida criminalmente em 1989 e se espalhou em diferentes pontos”, relata. Sete anos mais tarde, ele começou a sentir os seus efeitos. Em 1996 teve a primeira perda de produção por conta do fungo e, um ano depois, a doença já havia tomado conta de 50% a 70% de sua produção. “Eu tinha árvores prontas, produzindo, e quando chegava a vassoura levava tudo embora”, conta. O fungo age de dentro para fora, ou seja, quando a doença se manifesta na parte externa, o fruto já está podre. Ganem ainda tentou por algumas safras, mas acabou vencido pelas sucessivas perdas. “Saí da região, fiz um mestrado em gestão de negócios e procurei outra atividade porque não via mais futuro naquilo”, diz Ganem.

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uma das visitas que fez à região em 2007 encontrou-se com um amigo, que lhe contou sobre os progressos obtidos no combate à doença pelo cacauicultor Edvaldo Sampaio. Morador de Gandu, cidade próxima a Ilhéus, Sampaio formou-se em agronomia e teve como primeiro emprego um posto de técnico na Ceplac. Ao sair da instituição, ele começou a prestar consultoria para produtores da região e com o resultado dos seus acertos nos plantios alheios começou a comprar as suas fazendas. “Fui visitá-lo e assim que coloquei o pé em sua

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fazenda decidi que queria fazer daquele jeito, porque ele sabia o caminho”, diz Ganem. Os ensinamentos de Edvaldo são seguidos em suas duas fazendas e citados em detalhes pelo administrador Reginald Melen. Amigo de infância de Ganem, Reginald nasceu no Congo (África), uma ex-colônia belga chamada Zaire, filho de pai belga e mãe alemã. Aos 4 anos, após a independência da ex-colônia, seus pais se mudaram para Una, no sul da Bahia, onde compraram uma fazenda e plantaram cacau. Inicialmente ele aplicou o que aprendeu com Sampaio na propriedade de Ilhéus e depois replicou na propriedade de Una, onde trabalham e moram atualmente 18 funcionários. “Eles têm casa, energia elétrica e escola rural”, relata. O cultivo de cacau em suas fazendas – assim como na maioria das plantações da Bahia – é feito no sistema cabruca. “Esse é um processo empírico que 250 anos atrás já era adotado pelos antepassados”, diz Ganem. “Eles limpavam a mata fechada, plantavam cacau e iam tirando a madeira, mas a de lei ficava preservada”, diz. Como os preços oscilavam muito na bolsa, nos momentos de crise as madeiras nobres eram vendidas. Quando o preço do cacau retornava


Como o fungo age sobre o cacaueiro Respiração alternativa faz com que sobreviva a ataque da planta

1. Após a invasão do fungo Moniliophthora perniciosa, o cacau tenta expulsá-lo dos seus domínios liberando grandes quantidades de óxido nítrico, substância capaz de bloquear a cadeia respiratória do microrganismo.

óxido nítrico

2. Numa esperta estratégia de defesa, o fungo ativa uma enzima, chamada oxidase alternativa. É como se ele ligasse uma respiração alternativa que lhe permite resistir ao ataque óxido nítrico

3. Nesta fase em que está dentro da planta viva, chamada biotrófica, ele permanece em estado latente, com menos produção de energia pelas suas células. Isso lhe dá forças para virar o jogo. E as substâncias tóxicas que deveriam acabar com ele voltam-se para a própria planta 4. Após a morte do ramo infectado da planta, a produção de óxido nítrico cessa e o fungo entra em uma segunda fase, chamada necrotrófica, quando se alimenta do tecido morto, cresce rapidamente e coloniza toda a planta

tas resistentes. A recuperação da produção brasileira, na sua avaliação, é baseada no conhecimento. Não existe, no entanto, solução definitiva para a praga, porque “o fungo sempre consegue ir mais rápido do que a planta”, diz o pesquisador nascido em Salvador, dono de duas fazendas produtoras de cacau na região.

P [oxidase alternativa ativada]

cacau infectado

a um bom patamar, os fazendeiros voltavam à atividade. “Era um processo empírico que funcionava bem na região, mas foi degradado com a entrada da vassoura, porque houve uma retirada total de madeira em muitas fazendas que foram transformadas em pasto.” Posteriormente, a aprovação de um decreto federal proibiu a retirada de árvores nativas da mata atlântica. Uma nova mudança no manejo está prevista com um decreto estadual, assinado no dia 2 de junho de 2014, que regulamenta a gestão das florestas da Bahia e irá definir metas de conservação de vegetação nativa e permitir ao produtor a extração de produtos madeireiros mediante compensação. “Não temos a cura da vassoura-de-bruxa, mas sim uma mitigação do problema baseada no manejo e na utilização de clones com maior resistência à doença”, diz o professor Gonçalo Amarante Pereira, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que comprovou, por meio de pesquisas científicas, o que Edvaldo fazia empiricamente. Ele ressalta, no entanto, que a resistência dos clones tem sido quebrada com muita frequência em pouco tempo. Ou seja, o fungo caminha mais rapidamente do que as plan-

ereira foi um dos artífices dessa produção de conhecimento. Em 2000, como coordenador do Laboratório de Genômica e Expressão do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ele organizou uma rede de pesquisa para estudar o genoma da planta e do fungo causador da vassoura-de-bruxa nas culturas do sul da Bahia. Participaram da empreitada, financiada inicialmente pela Secretaria Estadual de Agricultura da Bahia, com R$ 1,3 milhão, verba depois complementada com R$ 1 milhão do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, a Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), em Ilhéus, a Universidade Estadual de Feira de Santana, a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Recursos Genéticos e Biotecnologia. Pereira formou-se em engenharia agronômica pela UFBA em 1987, portanto no auge da produção cacaueira. Com mestrado em genética pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), doutorado em genética molecular pela Universidade de Dusseldorf, na Alemanha, e pós-doutorado no Instituto de Química da USP, ele participou do grupo de pesquisa responsável pelo sequenciamento do genoma da Xylella fastidiosa, causadora de uma doença que devastava as plantações de citros, principalmente no estado de São Paulo. No final de 2001, junto com dois sócios, comprou uma fazenda de 900 hectares em Ilhéus, que durante um período funcionou como uma extensão do seu laboratório na Unicamp. Credenciais para liderar a rede de pesquisa que tinha como objetivo descobrir os mecanismos de atuação da doença para ajudar a combatê-la ele tinha de sobra. “A partir do entendimento dos genes do fungo, começamos a estudar o funcionamento da doença”, relata Pereira. Em 2006, quando alguns artigos já haviam sido publicados pelos pesquisadores da rede explicando o modo de ação do fungo, o caminho de bahiaciência | 31


Gonçalo Pereira e o de Edvaldo Sampaio se cruzaram, por meio de uma lista de discussão sobre o cacau na internet, da qual participavam pesquisadores, produtores e compradores do produto, além de interessados no tema. Muitas das descobertas de manejo cultural para o fruto feitas por Sampaio foram depois corroboradas com explicações científicas pela equipe de Pereira. Apesar de parecer que muitas foram ao acaso, os relatos de quem o conheceu mostram que ele era um observador nato e um fazendeiro que vivia o dia a dia junto com os trabalhadores no campo. Descrito como audacioso e polêmico, Sampaio morreu em março de 2013, mas deixou seguidores. Um dos seus filhos, Rogério Sampaio, cuida das quatro fazendas que ele deixou e de mais duas que comprou com os mesmos cuidados que aprendeu no dia a dia convivendo com o pai, que são explicados em minúcias para os interessados em conhecê-los. Diariamente, Rogério sai da cidade de Gandu, onde mora, para percorrer as fazendas e acompanhar de perto a rotina dos trabalhadores nas roças de cacau.

U

Lesão irregular na casca do cacau é sinal de invasão da vassoura-de-bruxa (acima) e parte interna do fruto totalmente tomada pelo fungo

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ma das descobertas de Sampaio, confirmadas depois por Pereira, refere-se à antecipação da época das podas dos pés de cacau, que na Bahia eram feitas tradicionalmente entre janeiro e março, quando não havia produção. “Meu pai gostava de veranear nesse período e adiantava a poda entre setembro e dezembro”, relata Rogério, considerado herdeiro do seu legado. O outro filho de Edvaldo, Danilo, também replica em sua fazenda os ensinamentos do pai. Como a reprodução do microrganismo costuma acompanhar o ciclo reprodutivo do cacaueiro, a antecipação fez com que essa interação fosse quebrada, dificultando o trabalho do fungo em se espalhar. “Sampaio descobriu que havia uma sincronização muito forte da planta com o fungo quando a forçou a adiantar o seu ciclo”, relata Pereira. Outra observação importante feita por Sampaio e corroborada pelas pesquisas é que, ao deixar de jogar a ureia (fertilizante nitrogenado) nas plantações no fim de março, quando começavam as chuvas fortes na região, houve um grande aumento da vassoura-de-bruxa. “Por meio de nossos estudos, observamos que na fase em que o fungo causava a doença parecia que ele estava com ausência de oxigênio”, diz Pereira. Realmente isso faz parte da estratégia


“O banco de dados do genoma do cacau foi utilizado como um disparador para uma série de pesquisas na área molecular’’, diz o professor carlos priminho pirovani, da uesc

de sobrevivência do fungo para resistir ao ataque da planta hospedeira e aos mais potentes fungicidas do mercado. “Na fase inicial da infecção, a planta tenta deter a ação do invasor liberando grandes quantidades de óxido nítrico, substância capaz de bloquear a cadeia respiratória do fungo”, relata Pereira. Para resistir ao ataque, o microrganismo ativa uma enzima, chamada oxidase alternativa, que garante a sua sobrevivência. “Como a respiração do fungo é bloqueada, ele recorre a uma respiração alternativa, em que suas células produzem menos energia, mas que tem a capacidade de detoxificação, de forma que as substâncias tóxicas acabam matando a planta, e não ele”, explica. “O fungo permanece latente na fase biotrófica, quando está dentro da planta viva, e depois, com a morte do ramo infectado, a produção de óxido nítrico cessa e ele entra na segunda fase, chamada necrotrófica, em que se alimenta do tecido morto, cresce rapidamente e coloniza toda a planta”, relata Daniela Thomazella, que entrou no projeto durante a sua iniciação científica e pesquisou os mecanismos de atuação do fungo durante o seu doutorado na Unicamp, orientado por Gonçalo Pereira. Ao tratar o fungo com fungicida comercial, os pesquisadores descobriram que ele induzia uma resposta da enzima, mas apenas após a doença ter se instalado. “Foi quando tivemos a ideia de usar um químico de laboratório, inibidor da oxidase alternativa, que conseguiu bloquear o desenvolvimento do fungo em ambas as fases”, explica Daniela. Os pesquisadores testaram uma combinação de princípios ativos – azoxistrobina e ácido salicil-hidroxâmico – capazes de inibir simultaneamente os dois mecanismos respiratórios da praga. Embora tenha se mostrado promissora nos testes de laboratório, essa combinação de moléculas não pode ser usada como um fungicida comercial porque a fórmula é instável e se degrada com facilidade. Por isso, atualmente a equipe de Gonçalo Pereira está trabalhando em um projeto para desenvolver uma droga capaz de bloquear a enzima oxidase alternativa. “Se conseguirmos isso, será a primeira vez no Brasil que se desenvolve um agroquímico especializado”, ressalta. A mesma enzima está presente em uma série de fungos tropicais, como a ferrugem da soja e do café. Pelas suas pesquisas, Daniela foi contemplada com uma bolsa de pós-doutorado nos Estados Unidos, com duração

de dois anos, dentro do prestigioso Programa Pew Charitable Trusts. A partir de setembro deste ano, ela começará a trabalhar no laboratório de Brian Staskawicz, pesquisador da Universidade de Berkeley, na Califórnia, que fez descobertas importantes na área de biologia de plantas e microrganismos. A interação entre o cacau e o patógeno causador da vassoura-de-bruxa também é o tema de pesquisas coordenadas pelo professor Carlos Priminho Pirovani, do Departamento de Ciências Biológicas, Genética e Bioquímica da Uesc. Aluno de doutorado de Gonçalo Pereira, o tema de sua tese, defendida em 2008, foi a identificação e caracterização de genes expressos no espaço intercelular de folhas de cacau em resposta ao fungo M. perniciosa. Desde 1999 trabalha na universidade como professor e atualmente também orienta alunos no programa de pós-graduação em genética e biologia molecular. A principal linha de pesquisas que coordena é na área de proteômica, em que a interação entre planta e fungo é vista em nível molecular. “O banco de dados do genoma do cacau foi utilizado como um disparador para uma série de pesquisas na área molecular”, relata. “Desde o sequenciamento do genoma para cá, as pesquisas avançaram muito e agora estamos entrando em novas abordagens genômicas, que permitirão avanços biotecnológicos para a cacauicultura.” Um sequenciador de última geração, comprado recentemente pela universidade, irá contribuir para os estudos de genômica funcional da planta e do patógeno em diferentes condições. “As pesquisas em proteômica dependem de bancos de dados robustos para identificação das proteínas nas amostras”, relata. “Só neste último ano identificamos em torno de 2.600 proteínas que envolvem o fungo e a planta”, diz Pirovani. Um dos projetos que coordena atualmente, “Proteômica da interação cacau-Moniliophthora perniciosa e estudos funcionais de genes: alvos e produtos”, foi aprovado no âmbito do Programa de Apoio a Núcleos Emergentes (Pronem), com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) no valor de R$ 467.800,00. “Estamos caracterizando mecanismos de defesa pré-infeccionais do cacau, disparados antes de o patógeno invadir o tecido da planta”, diz. w bahiaciência | 33


artigo

Desafios e avanços da CT&I na Bahia Roberto Paulo M. Lopes

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Bahia, assim como o Brasil, vem apresentando, nos últimos anos, uma expansão das ações de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I). Contudo, a continuidade desse processo e a materialização de seus resultados de forma ampla e continuada impõem três grandes desafios que são interdependentes e determinantes para a efetividade da CT&I enquanto política pública: ampliação da base científica; melhoria da distribuição espacial desta mesma base e a incorporação da inovação à nossa estrutura produtiva. Paralelas a isto, outras demandas urgentes e convergentes se destacam como a revolução do sistema educacional e a internacionalização. A Bahia tem uma relação de doutores por habitantes abaixo da média mundial e uma produção científica concentrada em torno de um conjunto estável de pesquisadores e em algumas áreas do conhecimento. Isso pode ser observado nas propostas submetidas aos editais da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb). Com o aumento no volume de recursos destinados ao fomento, alguns editais da Fapesb apresentam uma demanda bruta inferior ao valor destinado para aquele edital. Em que pesem novas condicionalidades colocadas para submissão de projetos e as exigências na formalização de qualquer processo que envolva a despesa pública – objeto de crítica de muitos pesquisadores –, resta evidenciada a necessidade em avançar na formação de mestres e doutores para garantir saltos na produção científica e tornar a inovação o elemento central nas estratégias de investimento de nossas empresas. A urgência em ampliar a base científica, especialmente a formação de pesquisadores, muito mais do que corrigir um erro histórico decorrente do desenvolvimento tardio da pós-graduação em nosso estado, decorre do reconhecimento de que a ciência incorporou-se ao sistema produtivo. As regiões que estiveram na vanguarda da extraordinária onda de inovação são aquelas que assumiram o protagonismo do desenvolvimento científico. Do início dos anos 70 até o final dos anos 90 do século passado, a formação de massa crítica na Bahia foi protagonizada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) em um processo concentrado espacialmente e que não abrangia as mais variadas frentes de conhecimento. Para se ter uma ideia, a área de

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engenharia, que tem um grande potencial de inovação, teve a primeira tese defendida na Bahia somente no ano de 2009. Ao longo de muitas décadas, a Bahia foi preterida em relação a outros estados na oferta de ensino superior público federal. Diante da omissão do governo federal A urgência na criação de novas universidaem ampliar a des, coube ao governo estadual base científica, atender à demanda insatisfeita mais do que por serviços de ensino superior corrigir um público criando quatro universierro histórico, dades. Contudo, as universidades decorre do estaduais priorizaram a oferta de reconhecimento cursos de graduação. Somente um de que a ciência incorporou-se quarto de século depois de criadas ao sistema é que houve um esforço em avanprodutivo çar na formação de pesquisadores. Este cenário começou a mudar no fim dos anos 1990 com a criação dos primeiros programas de pós-graduação nas estaduais baianas e se intensificou ao longo dos últimos anos. Paralelamente à expansão da pós-graduação nas universidades estaduais, ocorreu a expansão na quantidade de programas da UFBA, a criação das universidades federais do Recôncavo e do Vale do São Francisco, a criação de novos campi da UFBA em Vitória da Conquista e em Barreiras, além de algumas iniciativas, isoladas, de formação científica em instituições privadas. Este sistema tende a ser reforçado nos próximos anos com o início do funcionamento das universidades federais do Sul da Bahia e do Oeste da Bahia. Os avanços na formação científica nos últimos anos são consideráveis. Em 2005, a Bahia contava com 52 cursos de mestrado e 21 de doutorado. O quadro atual é bem diferente, são 166 cursos de mestrado e 72 de doutorado, mais do que triplicando a oferta desses cursos em menos de dez anos. O que é salutar nessa expansão é que ela se deu de forma a desconcentrar espacialmente a base. O interior do estado, que tinha apenas um programa de pós-graduação 15 anos atrás, já responde hoje por 40% dos cursos de


fotos fernando vivas  ilustração  marcos garutti

mestrado e 20% pela oferta de cursos de doutorado. Nesse processo de melhoria da distribuição espacial da base científica, cabe destacar o protagonismo das universidades estaduais, que passaram de um curso de mestrado para 63 cursos em 15 anos e de nenhum doutorado para 13 cursos no mesmo período. Alinhado com a necessidade de expandir a formação científica, o governo do estado, através da Fapesb, tem atuado firmemente no apoio aos programas de pós-graduação da Bahia. Todos os programas do estado contam com cotas de bolsas de mestrado, doutorado e iniciação científica – cotas essas que têm sido ampliadas anualmente –, além do apoio financeiro através de editais específicos voltados para infraestrutura laboratorial, suporte ao desenvolvimento e manutenção dos programas, atração de pesquisadores, entre outras iniciativas. No final de 2012, a Fapesb assinou um acordo de cooperação com a Capes, no valor de R$ 29 milhões, com o objetivo de fortalecer essas ações. Last but not least, o desafio da inovação na Bahia reproduz o esforço nacional. Incorporar a inovação à estrutura produtiva está na agenda das entidades empresariais e das políticas públicas e se traduz como diferencial de competitividade, constituindo-se como elemento central das estratégias de desenvolvimento de países e regiões. Na Bahia, temos uma estrutura produtiva alicerçada em grandes empresas e muitas delas não têm no estado seus centros de P&D. A não geração de novas tecnologias em solo baiano por essas grandes empresas dificulta a difusão do conhecimento tecnológico e compromete a inovação na pequena empresa. Além disso, a aversão ao risco, a reprodução de padrões de comportamento enraizados na cultura empresarial, as dificuldades na cooperação universidade-empresa, o marco regulatório inadequado e a pouca experiência na gestão de empreendimentos baseados na introdução de novas tecnologias dificultam os saltos tão

desejados nesta área. Embora os entraves à inovação demandem um tempo maior para sua superação, uma vez que não se rompe com padrões de comportamento de uma hora para outra, a trajetória é crescente e aponta para um cenário mais favorável no futuro. Com a Lei de Inovação da Bahia, em 2008, os primeiros editais de subvenção econômica da Fapesb apresentavam uma demanda qualificada muito inferior ao volume de recursos disponibilizados, em torno de 35%. A Fapesb, empenhada em uma campanha de sensibilização em parceria com o Senai, Sebrae, IEL, Desembahia, SICM e SECTI, conseguiu ampliar tanto a quantidade quanto a qualidade das propostas submetidas, em torno de 70%. Além dos editais em parceria com a Finep, a Fapesb lança, anualmente, vários editais de apoio à empresa. Merece destaque o edital de cooperação ICT-Empresa (2013), que, pela primeira vez, teve uma demanda qualificada duas vezes maior que o volume de recursos aportados no edital. Apesar dos percalços, nos últimos sete anos, a Fapesb apoiou 142 projetos inovadores de empresas baianas, com um investimento em torno de R$ 70 milhões. Os editais da Fapesb, somados às ações da Fieb – especialmente quanto à interiorização –, o Parque Tecnológico, o Inovatec, as incubadoras de empreendimentos, a Aceleradora do Senai Cimatec e o empenho da SICM - em condicionar investimentos em P&D na sua política de atração de empresas - nos tornam mais confiantes em nosso potencial para traduzir o desenvolvimento científico e tecnológico em progresso material e melhoria das condições de vida para a população baiana. Nos tempos em que a inovação decorre essencialmente do conhecimento científico, é fundamental ampliar a percepção da sociedade sobre a importância da ciência, tecnologia e inovação como eixo estruturante do nosso desenvolvimento. w Roberto Paulo M. Lopes é diretor-geral da Fapesb bahiaciência | 35


política | ideias inovadoras

É tempo de tirar ideias da cabeça Autores de propostas inovadoras e com potencial empreendedor têm 10 dias para inscrevê-las em concurso

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a quinta feira da próxima semana, 4 de setembro, encerram-se as inscrições para o Concurso Ideias Inovadoras 2014, promovido pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) em parceria com a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (SecultBA). O concurso busca disseminar o empreendedorismo e incentivar o desenvolvimento de ideias inovadoras em múltiplos campos. Desta vez, as inscrições podem ser feitas em sete categorias: Estudantes de Ensino Médio ou Ensino Profissional Técnico de Nível Médio, Graduandos, Pós Graduandos Lato Sensu e Stricto Sensu, Pesquisadores, Graduados Independentes, Inventores Independentes e Inventores da Economia Criativa. A novidade neste ano é justamente a criação desta última categoria. “A inclusão da categoria Inventores da Economia Criativa é um passo importante”, porque o concurso passa a compreender, no âmbito das ideias inovadoras e do em-

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preendedorismo movido por elas, “a inventividade nos setores de patrimônio, expressões culturais, espetáculos artísticos, literatura, audiovisual, moda, design e publicidade”, diz a diretora de Economia da Cultura da SecultBA, Carmen Lima. Já Vivian Costa Alves, da Diretoria de Inovação da Fapesb e diretamente envolvida com a organização do concurso, destaca a importância dessa iniciativa para que “potenciais empreendedores tenham um espaço para expor e mostrar suas ideias, resultado de sua inventividade e educação”. Em sua visão, movimentos no sentido da exposição de ideias, principalmente de jovens estudantes, são fundamentais para quebrar fronteiras e fazer surgir o novo. A respeito da inclusão da categoria “Inventores da Economia Criativa” no concurso, Vivian comenta que nada é mais pertinente em relação à Bahia. “Teatro, dança, música, as várias expressões artísticas, estão completamente inseridas na identidade deste estado. Então, trata-se de incentivar o empreendedorismo movido por ideias inovadoras naquilo que é da nossa alma.” Três projetos, como de praxe, serão premiados em cada categoria: o 1º lugar receberá R$ 15 mil e consultoria da Vilage Marcas e Patentes, empresa que apoia o concurso; para o 2º, o valor será de R$ 10 mil; já o 3º lugar será premiado com R$ 5 mil. As propostas podem envolver aspectos técnicos (como o emprego de materiais alternativos ou formas mais baratas de produção), de gestão ou produção (ferramentas administrativas ou de apoio à produção),ou de distribuição (novas plataformas e estruturas de acesso à produção cultural), entre outros. Para a escolha dos melhores projetos, serão considerados critérios como originalidade, aplicação, impactos da inovação, mercado potencial, perfil do empreendedor ou da equipe. No concurso 2013, 12 candidatos foram premiados, o que significa que nem todos os lugares das seis categorias tiveram ganhadores e, além disso, houve quem ganhasse dois prêmios. A cerimônia de premiação no Hotel Fiesta, em 10 de junho passado, foi alto astral e bem prestigiada. Lá estiveram o governador Jacques Wagner, secretários de estado, reitores das universidades baianas, dirigentes de instituições empresariais e da Academia de Ciências da Bahia, o que dá, segundo Roberto Paulo Lopes, o anfitrião da festa e diretor-geral da Fapesb, uma medida do peso que o concurso vem conquistando como símbolo do esforço pela criação de um ambiente favorável na Bahia à inovação baseada em conhecimento e à capacidade de empreender. O edital completo está disponível no link: www.fapesb. ba.gov.br/?page_id=15942.


Os vencedores do Concurso Ideias Inovadoras 2013 Categoria

O equipamento, de uso residencial e hospitalar, utiliza comu-

Estudante de ensino médio ou ensino profissional técnico de nível médio

nicação por redes sem fio para monitorar o bebê enquanto está no berço e garantir que ele não corra riscos. Com sensores de umidade e temperatura, entre outros, o equipamento

1º lugar

fornece dados sobre o estado do bebê. Em caso de alguma

Lucas Oliveira Carvalho

anormalidade nos parâmetros esperados, o aparelho envia uma

Senai

comunicação por dispositivo Bluetooth e emite um sinal de

Projeto:

Sistema de sinalização

som ou luz num ponto da residência para avisar que há algo

e coleta de dados de ônibus

errado ocorrendo naquele momento. Os dados sobre o estado

O estudande do Senai propôs um sistema

do bebê também podem ser acompanhados em tempo real

automatizado de coleta de dados pa­ra

numa tela LCD instalada no equipamento. No caso de hos-

ajudar o usuário de transporte coletivo

pitais, o equipamento seria ligado a um sistema gerenciador.

a escolher o ônibus que vai tomar. O sistema é capaz de sinalizar ao passageiro, por meio de luzes com cores e significados distintos, como se encontra a lotação do ônibus

Categoria

– se há lugar para sentar ou se é possível ficar de pé com

Graduandos

um mínimo de conforto, por exemplo. Isso permite que o usuário saiba a distância as condições do ônibus e decida

1° lugar

se vai solicitar ou não a parada. Outra vocação do sistema é

Matheus Ladeia Coelho

formar um banco de dados com informações sobre o fluxo

Escola de Engenharia e Tecnologia

de passageiros transportados para ajudar a remanejar ônibus

da Informação

cujas linhas são pouco utilizadas em determinados horários

Projeto:

para trajetos mais requisitados.

A ferramenta desenvolvida pelo estudante

Dr. Farm

de engenharia mecatrônica busca auxiliar 2° lugar

agrônomos e engenheiros florestais no

João Marcelo Ramos da Rocha

monitoramento de propriedades rurais. O Dr. Farm coleta

Instituto Federal de Educação,

dados como temperatura, umidade do solo, índice de radia-

Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA)

ção solar, vento e fertilidade do solo. Com esse conjunto de

Planta didática de baixo custo

informações, detecta de forma rápida pragas e enfermidades

O estudante desenvolveu uma planta

e propicia uma resposta pronta para resolver os problemas,

didática – plataforma utilizada para de-

reduzindo custos e o impacto das medidas. O sistema pode

senvolver soluções para pro­ble­mas reais

receber informações georeferenciadas na forma de fotos,

da indústria em sala de aula – a fim de facilitar o trabalho de

vídeos e textos e ser acessado pelo dono da fazenda através

professores e estudantes em cursos técnicos e de engenharias.

de um aplicativo de telefone móvel. Matheus teve a ideia de

A planta permite o estudo de técnicas avançadas de controle e

criar o sistema para monitorar pragas na plantação de café

operação industrial e busca enfrentar dois entraves do ensino

de sua família no município baiano de Vitória da Conquista.

Projeto:

tecnológico do país, que são a falta de material didátido e os custos elevados desse tipo de plataforma. Utiliza o protocolo

2° lugar

de comunicação de dados Modbus, usado largamente em

Newton Araújo

sistemas de automação industrial. O processador de dados

Guimarães Filho

adotado, denominado Arduino, é reconhecido por permitir

UNIFACS

o desenvolvimento de controle de sistemas interativos, de

Projeto: Desenvolvimento

baixo custo e acessível a todos.

aplicativo móvel para otimização de

de um

sistema de delivery de pizzas – Pizzap

Fotos Fapesb

3° lugar

Um aplicativo desenvolvido pelo estudan-

João Marcelo Ramos da Rocha

te, denominado Pizzap, pode ser executado em dispositivos

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia

móveis, como smartphones e tablets. Por meio do programa,

da Bahia (IFBA)

o consumidor tem acesso a dados das pizzarias disponíveis,

Projeto: Monitorador

de berço

sem precisar entrar em contato com o call center de cada

bahiaciência | 37


estabelecimento. O dispositivo permite a visualização dos

2° lugar

cardápios e também a realização de pedidos. O usuário pode

Danilo Hansen Guimarães

selecionar a pizzaria segundo vários critérios. Um sistema

Universidade Federal da Bahia

de mapas, por exemplo, indica quais são as mais próximas.

Projeto: Utilização

Notas atribuídas pelos clientes ao final de cada pedido apon-

na preparação de compósito matriz

tam as de melhor reputação. Ao mesmo tempo que reduz o

polimérica feita a partir da glicerina

tráfego de pedidos por telefone e ajuda o cliente a escolher,

do biodiesel para a fabricação de componentes da construção

o aplicativo permite a inclusão do segmento de fast-food à tecnologia de dispositivos móveis.

da piaçava baiana

A inovação, desenvolvida no Grupo de Energia e Ciência dos Materiais do Instituto de Química da UFBA, utiliza rejeito da

3° lugar

fibra de piaçava como reforço estrutural de resinas (matrizes

Alan Ricardo dos Santos Costa

poliméricas), assim como aproveita a glicerina em excesso

Universidade Federal da Bahia

resultante da produção de biodiesel para a preparação de um

Projeto: Pacemaker de corridas de

novo material polimérico. O resultado é um material compó-

atletismo, para amadores e profissionais

sito, aquele que possui pelo menos dois componentes com

O pacemaker eletrônico, desenvolvido

propriedades físicas e químicas nitidamente distintas em sua

pelo estudante de educação física da

composição. O principal setor produtivo beneficiado é o de

UFBA e atleta de competições univer-

transformação de plásticos para fabricação de componentes

sitárias, é um marcador de ritmo de corrida que orienta

para construção civil, como ripas, divisórias, telhas e vasos

o corredor por sinais luminosos, sonoros e vibratórios. O

de baixo custo. A intenção é oferecer ao mercado produtos

aparelho é indicado para treinamentos específicos na pista

competitivos e com tecnologia e materiais regionais.

de atletismo. Propicia, por exemplo, o aperfeiçoamento estratégico da velocidade, a fim de melhorar o desempenho dos fundistas durante provas. Permite registrar de forma

Categoria

precisa a performance dos atletas durante os treinamentos

Pesquisadores

e ajuda a impor ritmos para facilitar o movimento uniforme, uniformemente variado ou com acelerações e desacelera-

1° lugar

ções, conforme o planejamento do professor de atletismo.

Jania Betania Alves da Silva UNIFACS, atual professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Categoria

Pós-Graduando Lato Sensu e Stricto Sensu

Projeto: Preparação

de blendas

poliméricas ambientalmente 1° lugar

degradáveis reforçadas com

Rafael Ferreira Lopes Universidade Federal da Bahia

nanocristais/nanowhiskers de celulose para produção de filmes flexíveis por extrusão

Sistema de baixo custo de

A professora e pesquisadora desenvolveu e avaliou a eficácia

visualização de vasos sanguíneos

de uma mistura de polímeros para preparação de materiais

superficiais

ambientalmente degradáveis. A mistura em questão é com-

O pesquisador desenvolveu um dispo-

posta por polímeros biodegradáveis (o amido da mandioca

sitivo capaz de encontrar vasos san-

ou amidos de outras fontes) e PBAT (Poli Butileno Adipato

guíneos não observados a olho nu com a ajuda da câmera

CoTereftalato), além de glicerina purificada ou glicerol, ácidos

de um celular. Uma lanterna dotada de luz infravermelha

esteárico e cítrico, e pelo menos um aditivo de reforço como

e a câmera do telefone móvel permitem captar e exibir os

nanocristais/nanowhiskers de celulose. A principal contri-

vasos internos, gerando uma fotografia de sua localização.

buição da pesquisadora se refere ao processo de obtenção

Os vasos sanguíneos se revelam porque a pele reflete o in-

dessa mistura, por meio de um aparelho de amassamento

fravermelho enquanto o sangue o absorve. O sistema faci-

chamado extrusora dupla-rosca, que permite a fabricação

lita a identificação da veia antes da retirada de sangue em

de produtos como filmes flexíveis a serem utilizados como

exames laboratoriais. Frequentemente, várias perfurações

embalagem de alimentos.

Projeto:

precisam ser feitas, principalmente em clínicas neonatais e em pacientes com câncer ou que realizam hemodiálise.

2° lugar

Com o dispositivo, a veia é localizada com mais facilidade

Antônio Carlos Barbosa Bacelar

e se evitam as tentativas e erros na perfuração.

Senai

38 | julho/agosto de 2014


Cursor removível universal de

seus itinerários ou por turistas que desejam poupar os esforços

zíper, com substituição simplificada e

de longas caminhadas. Também pode ser utilizado como com-

executada por qualquer indivíduo

plemento ao transporte coletivo, nos trajetos entre o ponto de

O pesquisador propôs a estrutura de um

partida e o ponto de ônibus ou estação de metrô, por exemplo.

cursor universal de zíper, que pode ser

Quando não está sendo utilizado, fica acondicionado dentro

substituído com rapidez e de forma ma-

de uma mochila, facilmente carregada nas costas do usuário

nual. O objetivo é atender variados mo-

ou pelo chão, com a ajuda de rodinhas. O desenvolvimento

delos e tamanhos existentes de cursores

do equipamento gerou um pedido de patente em tramitação

Projeto:

e suprir uma escala significativa de produtos incorporados

no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).

no mercado, além de atender novas demandas. Quando houver necessidade de substituição do cursor danificado, isso pode ocorrer em qualquer parte do país onde estiver

Categoria

incorporada esta tecnologia. Paralelamente, mantém baixo

Inventores Independentes

custo no processo de fabricação, permitindo que o cursor de zíper seja facilmente manufaturado conforme os requisitos

1° lugar

da Associação Brasileira de Normas Técnicas.

Antonio José Arruda da Fonseca Sem vínculo institucional

3° lugar

Projeto: Retroiluminador

Rozimar de Campos Pereira

ambiente movido a energia solar

Universidade Federal do Recôncavo

O equipamento criado pelo pesquisa-

da Bahia

dor movimenta automaticamente um

Projeto: Isca

biológica para controle

solar para

espelho (que pode ser plano, côncavo

de formigas cortadeiras

ou convexo). Dois motores corrigem os eixos vertical e

A invenção, objeto de um pedido de pa-

horizontal do aparelho e mantêm os raios solares refletidos

tente, consiste numa nova isca biológica

constantemente num determinado alvo, indepedentemen-

para controle de formigas. É produzida à base de resíduos ve-

te da posição em que o sol estiver. Pode ser utilizado, por

getais e utiliza como ingrediente ativo a toxina de um fungo. As

exemplo, para iluminar por reflexão ambientes escuros, co­

formigas cortadeiras estão entre as mais importantes pragas

mo túneis ou garagens subterrâneas. Outra aplicação seria

dos reflorestamentos e da agricultura nacional. Mas o uso de

gerar calor para diversos fins, como secagem de sementes

iscas formicidas tradicionais, com sulfluramida (classificada

em local coberto e desidratação de frutos. Se o espelho for

como poluente orgânico persistente), passou a ter restrições.

côncavo, a temperatura dos raios refletidos pode se elevar

O processo para formular a isca inseticida começa com a

muito, podendo ser usada, por exemplo, para destilação de

mistura do resíduo vegetal, alimento que atrai a formiga. A

água. Fonseca criou o equipamento para levar os raios de

fase seguinte é a de compactação, deixando o material na

sol à cama de sua esposa doente. Ela morreu em fevereiro.

forma de pequenos cilindros, que logo depois são triturados. Ganham o formato de pequenas lascas, para que as formigas

2° lugar

consigam carregá-los. Por fim, recebem uma certa quantidade

Antonio José Arruda da Fonseca

de toxina, em meio a um solvente orgânico vegetal.

Sem vínculo institucional Projeto: Rastreador

solar para placa fotovoltaica

autoalimentado Categoria:

O protótipo refere-se a um aparelho que movimenta automa-

Graduados Independentes

ticamente uma placa solar fotovoltaica ou conjunto de placas através de um motor e mantém os raios solares constantemente

1° lugar

incidindo sobre a placa independentemente da posição em que

Hugo Leonardo Dourado

o sol se encontrar. Após a correção feita pelo circuito eletrônico,

Sem vínculo institucional

a incidência solar é constante em 90 graus, aumentando assim,

Projeto:

Transback: transporte

consideravelmente, o rendimento na geração de eletricidade

motorizado portátil

quando se compara com o sistema tradicional de placa estáti-

O inventor criou um equipamento de trans-

ca. O equipamento é autossuficiente: todo o sistema fun­ciona

porte motorizado e portátil, semelhante a

sem a utilização de fonte externa de energia e dispensa o uso

uma patinete, que é acondicionado dentro

de bateria. A eletricidade produzida pela placa fotovoltaica

de uma mochila. Pode ser usado por estudantes em seus des-

pode ser utilizada em iluminação, bombeamento de água,

locamentos dentro de campus universitário, por carteiros em

eletrificação de cercas, sistemas de segurança, entre outros.

bahiaciência | 39


reconhecimento

Do picadeiro ao teatro Luana Serrat, coordenadora da Escola Picolino, recebe o Prêmio Fundação Bunge por contribuição às artes circenses fabrício marques

L

uana Tamaoki Serrat tem 32 anos – e dedicou todos eles ao circo. Conta a lenda que mesmo antes de nascer esteve em apresentações dentro da barriga da mãe, malabarista e equilibrista. A estreia involuntária no picadeiro se deu aos 2 meses de idade, nos braços de um palhaço chamado Pinguim. Aprendeu a engatinhar nos tapetes da Academia Piolin de Artes Circenses, em São Paulo, e deu cambalhotas antes de arriscar os primeiros passos. Aos 4 anos, em 1985, deixou a capital paulista e se mudou com a família para Salvador – seus pais, Anselmo Serrat e Verônica Tamaoki, fundaram a Escola Picolino, hoje uma referência em artes circenses, que funciona numa lona no bairro de Pituaçu e já formou mais de 2 mil crianças e adolescentes em cursos de acrobacia, dança, iluminação, teatro e trapézio, entre outros. Aos 5 anos, Luana estreou como contorcionista e, dois anos depois, fez a primeira apresentação internacional, num encontro de crianças de circo na França. O tempo passou, Luana formou-se instrutora circense na Escola Picolino (da qual, hoje, além de herdeira, é coor-

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denadora artística) e se graduou em interpretação teatral pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Nos últimos tempos, ela fundou duas companhias circenses, dirigiu vários espetáculos e teve um filho, Otto, que aos 3 anos de idade já segue seus passos. A trajetória da atriz circense e diretora teve um reconhecimento de peso no dia 25 de julho. Luana foi um dos ganhadores do 59º Prêmio Fundação Bunge, categoria Juventude, que neste ano agraciou profissionais de destaque nas artes circenses – na outra categoria, denominada Vida e Obra, o vencedor foi o palhaço e diretor Hugo Possolo, 52 anos, criador do grupo Parlapatões. O anúncio foi feito logo após a reunião do júri do prêmio, formado por reitores de universidades e presidentes de entidades científicas e culturais. Luana receberá um prêmio de R$ 50 mil e uma medalha de prata numa cerimônia que vai acontecer no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo do estado de São Paulo, no dia 22 de setembro. Criado em 1955 com o nome de prêmio Moinho Santista, o Prêmio Fundação Bunge é um dos mais importantes do país, por


Maíra Amaral

Luana (à frente) no espetáculo de circo, teatro em dança Delirios Refletidos (2014), baseado em conto de Guimarães Rosa

Luana afirma que o prêmio da Fundação Bunge vem num momento especial. “Este ano tem sido muito especial em termos de trabalho. Conseguimos sair em turnê com dois espetáculos”, diz. Um dos grupos que lidera, a Cia Luana Serrat, foi contemplado no edital Artes em todas as Partes, da Fundação Gregório de Mattos, da prefeitura de Salvador, e levou o espetáculo Moças Aéreas ao Festival Internacional de Circo, no Rio de Janeiro. Encenado desde 2011 na Bahia com alunas da Escola Picolino, o Moças Aéreas reúne num picadeiro mulheres de várias idades para representar o universo das aeromoças e das acrobatas de circo que, em comum, vivem nas alturas. A criação é resultado de uma experiência como instrutora de tecido acrobático, técnica em que Luana é uma das pioneiras na Bahia, na qual o acrobata faz seus movimentos deslizando num tecido preso no alto a uma barra de ferro.

T

reconhecer a importância de profissionais que contribuem para o desenvolvimento da cultura e da ciência. Entre os ganhadores estão nomes como a escritora Ligia Fagundes Telles, a arqueóloga Niède Guidon e o bioquímico Isaias Raw. Considerada uma das mais completas artistas circenses da atualidade, Luana Serrat foi indicada pela Escola de Teatro da UFBA e pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo em reconhecimento a uma atuação que aproxima elementos do teatro e do circo. Segundo o júri do prêmio Fundação Bunge, a escolha se deveu pelo seu trabalho inovador, que integra o circo tradicional e o contemporâneo e mantém referências ao Nordeste brasileiro. Em 2008, o talento de Luana pôde ser conferido na televisão aberta, num quadro do programa Domingão do Faustão. Ela foi a professora e parceira do ator Cássio Reis em cinco apresentações de um quadro em que artistas e celebridades eram desafiados a se exibir em performances circenses. A dupla Reis e Luana venceu o desafio que reuniu outros seis artistas competidores, graças a números que envolveram mágica, acrobacia, tecido aéreo, equilibrismo e trapézio.

ambém levou o espetáculo circense A Rádio do seu Coração à Virada Cultural Paulista e a apresentações no Teatro Oficina, em São Paulo, e agora segue para uma turnê em cidades do interior paulista. Montado pela grupo Fulanas Cia. de Circo, fundado por Luana e a trapezista Nana Porto, retrata a história da época de ouro do rádio narrada por duas mulheres que sofrem de amor e fazem peripécias aéreas no trapézio duplo e fazendo contorcionismo. Contemplada no Edital Setorial de Circo, promovido pela Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb), a montagem estreou em 2008, quando a Fulanas Cia. de Circo ganhou o Prêmio Carequinha de Estímulo ao Circo, da Funarte. O grupo também levou aos palcos neste ano o espetáculo Delírios Refletidos, inspirado no conto O Espelho, de Guimarães Rosa. Com Luana e Bia Simões no elenco, conta a história de duas mulheres que realizam um encontro lúdico com a luz e a sombra de si mesmas, ao perceberem suas imagens refletidas no espelho. “O reconhecimento da Fundação Bunge mostra que estamos no caminho certo”, diz Luana. Mas ela também destaca a importância do prêmio em dinheiro. “Estamos sempre fazendo milagres para produzir espetáculos. Continuo na equipe de coordenação da Escola Picolino, que vive um momento difícil. Estamos em campanha para comprar uma lona nova, porque a lona principal estragou”, diz Luana. w bahiaciência | 41


produção do conhecimento

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saúde

Uma proteção inesperada parasitas de cães e gatos atenuam a eclosão da asma alérgica, constatam estudiosos da doença

Raíza tourinho

foto  léo ramos

U

ma série de estudos elaborados nos últimos anos por pesquisadores baianos, sob a liderança do pneumologista Álvaro Cruz e do epidemiologista Maurício Barreto, ambos professores da Universidade Federal da Bahia (UFBA), vem demonstrando que é frágil a hipótese que associa a expansão da asma no mundo contemporâneo ao excesso de limpeza dos ambientes em que vivem as crianças nos países mais desenvolvidos. Em outras palavras, a prevalência da asma mostra-se alta também em ambientes marcados por padrões de higiene precários. Mas, ao mesmo tempo, esses estudos, baseados em levantamentos em regiões carentes de Salvador, têm demonstrado que crianças infectadas por alguns vermes são menos propensas às manifestações de asma alérgica do que aquelas não infectadas. O aparente paradoxo entre essas conclusões só explicita o grau de complexidade dessa doença – síndrome, talvez –, para cujo conhecimento os pesquisadores baianos que bahiaciência | 43


atuam neste campo internacionalmente competitivo vêm dando contribuições decisivas. É desse porte, certamente, o achado de que a proteção em crianças contra o surgimento da asma alérgica oferecida por três diferentes parasitas do organismo humano – o Toxocara spp, o Trichuris trichiura e o Schistosoma mansoni – deve-se ao estímulo dado por qualquer um deles à liberação da Interleucina-10 (IL-10), uma molécula que atenua a resposta alérgica justamente ao ser liberada no organismo.

É

um passo no mar de indagações que continua cercando uma condição ainda cheia de mistérios que afeta 234 milhões de pessoas no mundo, 20 milhões das quais no Brasil, onde provoca inaceitáveis 2 mil mortes anuais. O país, aliás, figura entre os oito países com maior prevalência da doença respiratória no planeta. “Essas mortes são, em sua maioria, prematuras e passíveis de prevenção. Não se morre por asma na Finlândia ou na Suíça”, comenta, inconformado, Álvaro Cruz, coordenador do Núcleo de Excelência em Asma da Universidade Federal da Bahia (Pronex/UFBA) e criador do Programa para o Controle da Asma (Proar), em 2002. Se no Proar sua prioridade é o tratamento destinado a manter sob controle a forma mais grave da asma, que acomete cerca de 10% do total de afetados pelo problema – e o programa na Bahia contabiliza até aqui 4 mil pessoas

tratadas –, no Pronex o alvo do grupo que Cruz lidera é a investigação, entre outras coisas, dos mecanismos desencadeadores da doença, da influência dos fatores ambientais no comportamento dos genes associados à asma, de novos fitoterápicos e outras vias de tratamento. E um dos pressupostos nesse percurso é o de que a hipótese concebida em 1989 pelo epidemiologista David Strachan – de que crianças vivendo em ambientes assépticos têm mais propensão a desenvolver alergias, dada a falta de contato com microrganismos que promoveriam um sistema imunológico equilibrado – não consegue explicar tudo que se observa na asma. E até porque há formas alérgicas e não alérgicas da doença, cujos fatores de risco são diferentes, às vezes opostos. Levantamentos na comunidade

Esse raciocínio já estava presente no artigo “Asma na América Latina: um desafio de saúde pública e uma oportunidade de pesquisa” (Asthma in Latin America: a public heath challenge and research opportunity), publicado em 2009 na revista Allergy por Cruz, Barreto, Philip Cooper, do Centro de Infecções da Universidade de Londres, e Laura Rodrigues, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres. “A asma na América Latina está associada com a população urbana desprivilegiada e é menos comum em ambientes rurais. As causas da asma na região estão associadas à ur-

Uma doença (ou síndrome?) inflamatória crônica Doença respiratória crônica mais frequente, especialmente

transportam o ar para os pulmões, mas as reações químicas e

recorrente entre crianças e jovens, a asma é uma das

biológicas que desencadeiam o fenômeno foram identificadas

principais causas de hospitalizações no Brasil. Ela afeta a

apenas nas últimas décadas. E os pesquisadores até hoje tentam

produtividade e a sociabilidade dos portadores e ainda gera

compreender como diversos fatores são capazes de acionar um

custos elevados para as famílias e o sistema de saúde –

mesmo padrão de resposta inflamatória.

podendo levar à morte por asfixia. Descrita pela primeira vez nos Papiros de Ebers, uma

Vista até pouco tempo atrás como uma doença alérgica esporádica, achava-se que o “sistema de sufocamento” era ativado

coleção de textos médicos escritos pelos egípcios há 3.500

apenas quando um composto estranho, como ácaros existentes

anos, a asma não tem ainda sequer uma classificação

na poeira ou proteínas de polens, entrava no organismo – e assim,

consensual. Álvaro Cruz, por exemplo, considerado uma das

acionava os anticorpos que, por sua vez, liberavam histamina e

maiores autoridades internacionais em asma, com mais de 200

outros mediadores bioquímicos, responsáveis pelos sintomas da

artigos publicados em periódicos científicos de abrangência

asma, em consequência da contração dos músculos dos

nacional e internacional, membro do Grupo de Planejamento

brônquios, inchaço e geração de muco.

da Aliança Global contra Doenças Respiratórias Crônicas

No entanto, nos últimos 20 anos, um equipamento moderno,

(GARD/OMS), dos conselhos diretores da Iniciativa Global

o broncoscópio, capaz de coletar e observar os brônquios de um

contra a Asma (GINA) e da Iniciativa ARIA (Allergic Rhinitis and

portador vivo – antes, a maior parte das poucas constatações era

its Impact on Asthma), adere ao conceito de síndrome para

resultante de autópsias –, permitiu uma mudança de conceito.

qualificá-la, uma vez que múltiplos fatores desencadeiam

O dispositivo detectou que os brônquios dos portadores da asma

diferentes manifestações com algumas características básicas

permaneciam inflamados, mesmo quando não havia reação

semelhantes, que podem ter origem alérgica ou não.

alérgica causada por um fator externo. A partir de então, a doença

Sabe-se há séculos que a sufocação provocada pela asma é causada pelo estreitamento dos brônquios, os canais que

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deixou para trás o título de “esporádica” e passou a ser considerada uma doença inflamatória “crônica”.


banização, migração e adoção do estilo de vida ocidental, que inclui mudanças na dieta, atividade física e higiene, além de exposição a poluentes e substâncias alérgicas”, concluía o paper. O trabalho fazia parte do projeto Social Changes, Asthma and Allergy in Latin America (SCAALA), financiado pela Fundação Wellcome, da Inglaterra.

condição essa com causas ainda desconhecidas e que não é protegida por exposição a microrganismos como postulado na hipótese da higiene”. Um novo achado do grupo baiano, considerado um marco na pesquisa sobre a associação entre asma e Toxocara spp (T. canis e T. cati), parasitas encontrados em cães e gatos que infestam o organismo humano na forma larvar, m 2011, uma releitura da hipótese da higiene apareceu seria publicado em novembro de 2012 na PLOS Neglected no artigo “O efeito de únicas e múltiplas infecções Tropical Diseases. Sua base foi um levantamento realizado sobre atopia e chiado em crianças” ( The effect of single com 1.445 crianças na faixa de 4 a 11 anos, moradoras de and multiple infections on atopy and wheezing in children), bairros habitados por populações carentes de Salvador, publicado no Journal of Allergy and Clinical Immunology. no qual se constatou a infecção de 47% delas por Toxocara Segundo o estudo, há evidências de que exposições a inspp. E, diferentemente da associação proposta por vários estudos anteriores entre Toxocara spp e desenvolvimento fecções na infância reduzem o risco de alergia, “muito embora não evite a ocorrência da asma – possivelmente da asma, a pesquisa conduzida por Neuza Alcântara Neporque em nosso meio ela pode ter origem não alérgica, ves constatou que a prevalência da predisposição a reações alérgicas a antígenos ambientais, ou seja, a atopia, era menor justamente no um levantamento realizado com 1.445 crianças grupo infectado. A pesquisadora ressalta que a na faixa de 4 a 11 anos, moradoras de bairros maior parte desses trabalhos prévios baseouhabitados por populações carentes de Salvador, -se em levantamentos constatou a infecção de 47% delas por T. spp em grupos de 100 a 200 pessoas. Esse efeito de proteção à asma via estímulo à liberação da molécula imunomoduladora Interleucina-10 observado na Toxocara spp foi similar ao que se constatara com o Trichuris trichiura, parasita encontrado no intestino grosso, e com o Schistosoma mansoni, o causador da Da compreensão dos mecanismos da asma ao esquistossomose, pesquisado pelo grupo liderado por desenvolvimento de uma vacina inovadora, mais eficiente e Edgar de Carvalho e Maria Ilma de Araújo, professores prática no controle da doença, grupos de pesquisadores da Faculdade de Medicina da UFBA. baianos se destacam mundialmente na pesquisa sobre a Isso propôs aos pesquisadores envolvidos a dificuldade enfermidade, um campo altamente competitivo. “Existem e o desafio de trabalhar com estes parasitas para auxiliar centenas de grupos de pesquisa sobre a asma no mundo. no controle da asma, sem que eles, entretanto, desencaNinguém sabe bem ainda o que é a doença. Mas nossa deiem os efeitos associados às infecções. “Não podemos contribuição já é reconhecida”, assinala o epidemiologista considerar ainda esta opção terapêutica nem uma possiMaurício Barreto, pesquisador do Instituto de Saúde bilidade concreta de vacina para prevenção da asma”, diz Coletiva (ISC/UFBA). Neuza. Mas há uma perspectiva de desenvolvimento de O prestígio dos pesquisadores baianos foi decisivo para produtos com potencial de uso clínico em médio prazo a escolha de Salvador como sede da 9ª. Reunião Anual da com base nesses estudos. Gard, evento até aqui inédito na América Latina, promovido Álvaro Cruz observa que em alguns casos a IL-10 só é pela OMS entre os dias 14 e 16 de agosto último. Além de liberada no organismo num segundo momento da infecautoridades da OMS e do Ministério da Saúde, a reunião da ção, o que explicaria os resultados conflitantes de duas Gard contou com a presença de dezenas de experts em asma pesquisas de seu grupo, feitas com uma mesma população, e doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) de todos os em momentos diferentes: em crianças de zero a 4 anos, a continentes. O objetivo principal da reunião foi debater a presença do T. trichiura aumentou o risco de asma, mas, capacitação de profissionais da atenção básica para o tratamento quando essas mesmas crianças tinham de 7 a 11 anos, aquedas enfermidades mais comuns, incluindo a asma e a DPOC, las que já tinham apresentado infecção do parasita mosdentro do Plano de Ação da OMS para as Doenças Crônicas travam menos predisposição à asma alérgica. A hipótese Não Transmissíveis 2013 – 2020. desenvolvida para esse curioso resultado foi que, como o verme não se aloja no pulmão, ele agiria como um estímulo

E

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ao menos três bactérias, um inseto – a barata – e a junk food já foram identificados Pelos pesquisadores baianos como fatores de risco para a doença respiratória

externo que inicialmente provocaria reações semelhantes à alergia, mas, em médio e longo prazos, induziria a regulação do processo alérgico. Esse estudo pode ajudar a entender por que mais da metade da asma encontrada em estudos com crianças no Brasil é de origem não atópica (não desencadeada por reação a alérgenos) que tem sido associada à frequência de infecções variadas e a condições de pouco saneamento e higiene. De todo modo, as causas dessa forma de asma permanecem um mistério para os pesquisadores. Os desafios do controle

Ainda assim, ao menos três bactérias, um inseto – a barata – e a junk food, alimentação baseada em refrigerantes, salgadinhos e fast-food, já foram identificados como fatores de risco para a doença respiratória pelos pesquisadores baianos. Uma das hipóteses preferidas com que eles trabalham para explicar o surgimento da asma não alérgica em adultos relaciona-se à alimentação na infância. Um levantamento realizado com crianças de Salvador em 2009, pelo grupo do Projeto SCAALA, e cujos resultados estão sendo preparados para publicação, revelou menores índices da doença entre os que consumiam mais hortaliças, frutas, verduras e legumes. A dieta balanceada com esses alimentos tem propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias que defendem o organismo. E uma vantagem adicional do investimento em uma alimentação saudável é a prevenção da obesidade, identificada por Cruz e equipe do ProAR como um dos fatores de risco para a falta de controle da asma. Em um universo de 1.129 crianças entre 4 e 12 anos, os resultados apontaram que, nas crianças acima do peso, as taxas de asma são até 36% mais elevadas. A equipe de Cruz também tem levantado o problema do subdiagnóstico como um dos mais graves para o controle da asma no país, especialmente entre crianças e adolescentes, faixa etária especialmente suscetível a asma. A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar de 2012, realizada pelo IBGE e pelo Ministério da Saúde, com uma amostra de mais de 100 mil estudantes de todo o Brasil, identificou sintomas de asma em 23,2% dos adolescentes, mas relato de diagnóstico em apenas 12,4%. Esse mesmo gap de cerca 46 | julho/agosto de 2014

de 10% entre adultos com sintomas sugestivos de asma e aqueles com diagnóstico da doença foi encontrado em 2012 pelo grupo do Proar, em colaboração com especialistas internacionais: numa amostra de quase 5 mil pessoas de todo o país avaliadas por inquérito da Organização Mundial da Saúde (OMS), 12,4% tinham diagnóstico de asma e 22,6% apresentavam sintomas da doença. Frequentemente esse problema, segundo Álvaro Cruz, é destacado pelas lideranças de organizações profissionais e da Iniciativa Global contra a Asma (Gina). A falta de diagnóstico da doença e de tratamento adequado pode resultar no agravamento da asma, com risco de morte e de perda irreversível da capacidade pulmonar. “Para cada morte por asma há centenas de crises de sufocação e internações. É surpreendente a cultura de passividade e negligência para com esta enfermidade. A asma não é uma doença aguda banal. É uma doença crônica, pode sufocar e pode incapacitar”, diz ele. O sonho da vacina

A busca pelo melhor tratamento para atenuar a doença inclui as vacinas preventivas, injetáveis e ministradas por até cinco anos. Mas, dada a possibilidade que embutem de desencadear uma crise alérgica, elas não são amplamente adotadas. Os estudiosos veem também como problema o tempo prolongado de tratamento e a impossibilidade de receber as doses durante as crises alérgicas. Nesse cenário, a possibilidade de desenvolver uma vacina hipoalergênica, que possa ser aplicada pelo próprio paciente por via sublingual, faz os olhos da imunologista Neuza Alcântara brilharem. Ela lidera o projeto em parceria com a pró-reitora de pesquisa da Universidade de Salzburg, Áustria, a austro-brasileira Fátima Ferreira Brisa, detentora de três patentes relativas a tratamentos para a asma desencadeada pelo pólen. Em busca da vacina prometida, três doutorandos brasileiros e três pós-doutorandos austríacos, apoiados pela Capes, irão trocar de laboratório até 2016. O produto está sendo desenvolvido com o intuito de não haver necessidade de interrupção do tratamento nos períodos em que haja sintomas de asma. A ideia principal é que eles consigam produzir alérgenos recombinantes hipoalergênicos. Ou seja, transformar as


proteínas dos ácaros alergizantes em proteínas hipoalergênicas, de forma que elas percam a capacidade de desencadear as crises alérgicas, quando aplicadas, mas sejam capazes de induzir tolerância. Para produzir a vacina, eles devem isolar o RNA dos ácaros Blomia tropicalis e Dermatophagoides pteronyssinus e clonar os genes que codificam as suas principais proteínas, para então retirar suas propriedades alergênicas. A previsão é de que em 2016 essa nova opção tenha sido testada em colaboração com a equipe do Proar e esteja disponível para ser comercializada. A vacina, que só será indicada de forma profilática se o paciente já apresentar sintomas alérgicas e histórico familiar de asma, pode ainda reduzir o tempo do tratamento, que hoje dura, em média, quatro anos.

foto  léo ramos

A construção do Proar

Quando o Proar foi criado, em 2002, não existia nenhum acesso ao tratamento da asma nos períodos entre crises no Sistema Único de Saúde (SUS). A efetividade que o projeto demonstrou, desde o primeiro ano de funcionamento, estimulou os investimentos no programa instalado em cinco centros de referência para os casos mais graves: Centro de Saúde Carlos Gomes (Centro); Hospital Pediátrico Hosannah de Oliveira (UFBA, Canela), Hospital Santa Izabel (Nazaré) e Octávio Mangabeira (Pau Miúdo), além de uma unidade em Feira de Santana. Em todos, há assistência multidisciplinar especializada e distribuição gratuita de medicamentos. Salvador obteve uma redução de 74% das internações por asma nos primeiros três anos de funcionamento do Proar, com economia considerável para o SUS. A redução de mortalidade na capital baiana foi de 29%, entre 2000 e 2009. A estimativa é de que a atuação do Proar tenha evitado 200 mortes no período. O programa foi adotado como “projeto de demonstração” pela Aliança Global contra Doenças Respiratórias Crônicas (GARD) da OMS (www.who.int/gard), e recebeu prêmios nacionais em 2007 (Saúde, Editora Abril) e 2008 (Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia). Em um artigo publicado em 2007 na revista BioMed Central, uma das pesquisadoras do programa, Rosana Franco,

comprovou que o custo com tratamento regular dos pacientes com asma grave no Proar é inferior ao valor gasto durante as crises nos serviços de emergência e hospitais.

R

osana verificou ainda que os pacientes antes de serem acompanhados no programa consumiam 29% de toda a sua renda com a tentativa de controle da doença, sem obter sucesso. Além de melhorarem em 74% a qualidade de vida, a amostra de 64 pacientes estudados detalhadamente durante um ano de tratamento, apresentou um incremento na renda próximo aos 50%, porque puderam voltar a trabalhar normalmente e deixaram de gastar com medicamentos. “Eu não conheço um programa de transferência de renda para famílias de baixa renda mais eficiente. O SUS economiza, os pacientes melhoram, deixam de gastar e voltam ao trabalho. Só quem perde é a doença”, destaca Cruz. Com tantos resultados positivos, o Proar tem recebido financiamento de diversas entidades, principalmente a Fapesb e o CNPq, que viabilizam os trabalhos do Pronex e a criação de um núcleo emergente. Além disso, recebeu doação da empresa multinacional GSK para dar apoio ao projeto de pesquisa do Núcleo de Excelência em Asma. As obras e equipamentos têm sido financiados com recursos de pesquisa. Em 2006, a Secretaria Municipal de Saúde cedeu um andar do Centro de Saúde Carlos Gomes e cinco funcionários para o programa. A secretária estadual colaborava com mais três médicos, mas Cruz reclama que não há nenhum enfermeiro contratado para o Proar e que o número de profissionais disponibilizados tem se reduzido. Ele não esconde a decepção pelo programa ainda não ter sido apoiado de forma mais ampla pela gestão de saúde pública e replicado em grande escala em outros municípios baianos. A atuação do Proar, contudo, não se restringe aos avanços sociais. O acompanhamento de um grupo grande de pacientes em um período prolongado deixa em posição privilegiada os pesquisadores do programa. Somente em 2012, mais de 30 artigos do grupo de pesquisadores vinculado ao Proar, foram publicados em periódicos nacionais e internacionais. O resultado não é só quantitativo: a ciência produzida na Bahia candidata-se a um bom lugar na produção científica global. w bahiaciência | 47


química

Tesouros do Abaeté Fungos de plantas coletadas em área de proteção ambiental em Salvador servem de molde para sensores microscópicos de ouro Ricardo Zorzetto

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léo ramos

A

lagoa do Abaeté, em Salvador, é cercada de mistérios. Dizem que é habitada por sereias que atraem os homens para suas águas, de onde eles jamais voltam. Mas os segredos não se limitam ao que está oculto pelas águas cor de café. A vegetação que cresce nas dunas próximas à lagoa também guarda surpresas, às vezes boas. De plantas coletadas no Abaeté pesquisadores da Bahia conseguiram extrair organismos microscópicos que agora estão ajudando na produção, ainda experimental, de dispositivos ultrassensíveis, capazes de detectar com mais precisão compostos altamente diluídos como umas poucas moléculas de açúcar (glicose) em um volume mínimo de sangue ou de contaminantes em gotículas de água. bahiaciência | 49


Invisíveis a olho nu, esses microrganismos Molde vivo: vegetação Malta decidiu testar a possibilidade de usar do entorno da lagoa são fungos com prolongamentos muito finos fungos filamentosos para produzir microtubos abriga fungos como que lembram as raízes de um tufo de grama e metálicos há apenas quatro anos, depois que um o Penicillium sp, usado para produzir servem como moldes vivos para a produção de incidente o obrigou a reorientar sua carreira. microtubos de ouro, tubos metálicos microscópicos. Na Universidade Formado em química pela Universidade Estadual (página ao lado) Federal da Bahia (UFBA), a equipe do químico de Londrina, ele se especializou na Universidade Marcos Malta identificou quatro espécies de de São Paulo no uso de materiais organizados fungos filamentosos coletados na região do Abaeté que, em em escala nano e microscópica para a produção de outro laboratório, foram capazes de crescer sob condições especiais tipo de eletrodo, usado como armazenador de carga, útil e agregar nanopartículas de ouro em sua parede celular, para a produção de baterias mais leves e potentes para formando uma espécie de carapaça metálica. Usando uma celulares. Foi com esse objetivo que se mudou para Salsérie de procedimentos descritos em março deste ano na vador em 2009 após ser admitido em um concurso para revista científica Biomaterials Science, Malta e seus colegas professor na UFBA. Mas um incêndio ocorrido em março conseguiram usar esses fungos para produzir tubos ocos e daquele ano destruiu boa parte do Instituto de Química porosos de ouro com uns poucos micrômetros (milésimos da universidade e seus planos de trabalho. de milímetro) de comprimento. Em testes iniciais, esses microtubos de ouro, com algumas modificações, funcioem equipamento nem local para prosseguir com sua naram como eletrodos altamente sensíveis à presença de linha original de pesquisa, aceitou a sugestão de sua moléculas específicas, como a glicose. “O fato de os tubos mulher, a farmacêutica Regina Geris, também professerem ocos e porosos aumenta muito a superfície de consora da UFBA, de tentar usar algumas espécies de fungos tato, algo importante em reações eletroquímicas em que filamentosos como molde para a produção de eletrodos. o ouro funciona como a interface em que ocorre a troca Regina estuda fungos que vivem no interior de plantas, de elétrons”, explica Malta. “Essa estratégia pode tornar os chamados fungos endofíticos, dos quais tenta extrair possível reduzir a quantidade de ouro necessária para compostos com o potencial de eliminar larvas e indivíduos produção desse tipo de eletrodo, o que é muito desejável, adultos do mosquito Aedes aegypti, transmissor da dengue uma vez que se trata de elemento químico nobre e caro.” e da febre amarela.

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Ocos e porosos, os microtubos têm maior superfície de contato, algo importante em reações eletroquímicas em que o ouro funciona como interface de troca de cargas elétricas

fotos  •léo ramos  •marcos malta / ufba

Em 2006 e 2007 ela havia conduzido a coleta de folhas, caules e raízes de plantas na região da lagoa do Abaeté, área de proteção ambiental no bairro de Itapoã, região de Salvador ameaçada pela expansão urbana, em busca de fungos endofíticos. Com o que encontrou no Abaeté, Regina montou uma biblioteca biológica com dezenas de espécies de fungos filamentosos que apresentou ao marido. Com a ajuda de Adriana Machado Fontes, na época sua aluna de mestrado, Malta identificou quatro espécies capazes de crescer em laboratório em um meio pobre em nutrientes e rico em nanopartículas de ouro. Ao longo de dois meses, Malta e Adriana cultivaram exemplares de Phialomyces macrosporus, Trichoderma sp, Penicillium sp e Aspergillus niger em soluções contendo diferentes concentrações de um sal – o citrato de sódio, usado como fonte de nutrientes para os fungos – e nanopartículas de ouro. Diluído em água, o íon citrato, de carga elétrica

negativa, se liga ao ouro. Como cargas elétricas de mesma polaridade se repelem, o citrato limita o crescimento das partículas de ouro, impedindo que se agreguem e formem o chamado ouro maciço, usado na confecção de joias. À medida que o citrato é absorvido, as nanopartículas de ouro, por mecanismos ainda não totalmente compreendidos, aderem à superfície externa da parede celular do fungo, que serve como alicerce para a estrutura dos tubos. “Das quatro espécies testadas, o fungo Phialomyces macrosporus foi o que mais cresceu no meio de cultura contendo citrato e apresentou mais afinidade pelas partículas de ouro”, conta Malta, que teve a ajuda do físico Antonio Ferreira da Silva para planejar os experimentos.

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desafio seguinte foi eliminar o molde dos tubos sem alterar seu formato. Alguns anos antes, pesquisadores do Paquistão haviam conseguido gerar microtubos de ouro usando fungos como molde, mas ao eliminar o microrganismo os tubos se enrugavam e colapsavam. Malta e sua equipe conseguiram contornar este problema ao substituir a água do meio de cultura por etanol e depois injetar gás carbônico na fase supercrítica para extrair o álcool do interior dos tubos. Na sequência, o material foi aquecido a uma temperatura muito elevada (até 800 graus), de modo que a matéria orgânica fosse eliminada na forma de gás carbônio e vapor d’água. Com essa estratégia, os pesquisadores obtiveram tubos ocos que imitam a morfologia do fungo. “A vantagem de produzirem tubos ocos e porosos é que há um aumento na área de superfície”, conta o pesquisador. Como as reações químicas envolvendo troca de elétrons – as chamadas reações de óxido-redução – ocorrem na superfície do tubo, quanto maior a área superficial, maior a sensibilidade do dispositivo. Atualmente os pesquisadores da UFBA trabalham para padronizar o processo de produção de microtubos de ouro, ao mesmo tempo que tentam construí-los usando outros metais preciosos e raros, como a platina e o paládio. O grupo de Malta também vem avaliando a sensibilidade dos sensores feitos com os microtubos em testes com soluções-padrão contendo diferentes concentrações de ácido ascórbico, a popular vitamina C. w bahiaciência | 51


pesquisa e desenvolvimento

O minitúnel de diluição, que estuda o comportamento de partículas lançadas por automóveis (detalhe, no alto à dir.), e alguns dos laboratórios do Senai Cimatec, em Salvador (ao lado), como o de microeletrônica, de emissões veiculares, de dinamômetro de motores e de polímeros

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parceria

Do laboratório para o mercado Protótipo para inspeção veicular do Senai Cimatec é um exemplo da aproximação da pesquisa acadêmica com a indústria fabrício marques

fotos  léo ramos

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criação e desenvolvimento de um equipamento portátil, que permite a coleta de partículas emitidas na atmosfera por motores a combustão para realizar a identificação do seu impacto potencial na saúde e no ambiente, é um exemplo de um movimento que começa a aproximar a pesquisa de caráter acadêmico e as demandas das empresas na Bahia. O protótipo em questão é um minitúnel de diluição de 1,5 metro de comprimento por 20 centímetros de diâmetro, que torna possível o estudo da distribuição do tamanho e do número de partículas nanométricas geradas pela queima de diferentes misturas de combustíveis oriunda da exaustão veicular. “Conseguimos mapear partículas até os tamanhos nanométricos. Quanto menor a partícula, maior o seu potencial tóxico, uma vez que as partículas nanométricas podem ultrapassar as barreiras do nosso trato respiratório, chegando até nossos alvéolos e até mesmo na nossa corrente sanguínea”, diz a química Lílian Lefol Nani Guarieiro, doutora pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisadora do Centro

Integrado de Manufatura e Tecnologia (Cimatec), vinculado ao Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), em Salvador. O túnel de diluição simula o processo de crescimento que ocorre com o material particulado assim que este é emitido pelo escapamento do motor. Quando as partículas se diluem no ar, algumas crescem de tamanho, outras se acumulam formando grandes aglomerados. Dessa forma, para estudar as partículas, não basta recolher amostras na saída do cano escapamento, como se faz, por exemplo, na análise de gases emitidos. É preciso realizar a coleta favorecendo o processo de crescimento das partículas, para que possam ser analisadas posteriormente. O trabalho com o protótipo já rendeu artigos científicos. Um deles, publicado em junho pela revista Microchemical Journal, avaliou, por exemplo, o impacto de adicionar ao diesel combustíveis oxigenados como o etanol e o biodiesel. A eficiência energética das misturas foi considerada equivalente à do combustível puro. “Mas observamos, por exemplo, que a adição de biodiesel ao diesel pode reduzir o tamanho bahiaciência | 53


“Quisemos começar com instituições capazes de atender demandas industriais, como o senai cimatec, com seu histórico de trabalhar com projetos de empresas”, diz oliveira, da embrapii

das partículas e aumentar a concentração da emissão destas partículas menores, que são mais danosas à saúde”, afirma a pesquisadora. Em 2013, o equipamento foi reconhecido com o prêmio Inova Senai na categoria Graduação – o projeto foi apresentado por Keize Amparo, estudante do curso tecnólogo de sistema automotivo, sob orientação da professora Lílian. A busca da mistura ideal de combustíveis, tanto em relação ao seu desempenho quanto ao impacto produzido na saúde e no ambiente, norteia a curiosidade dos pesquisadores. Um novo foco de pesquisa é verificar o impacto da exposição de motoristas e passageiros ao material particulado que penetra dentro da cabine do veículo. “A intenção é fazer um mapeamento das partículas em diversas situações, com as janelas do veículo completamente abertas e em seguida com elas fechadas, com o ar-condicionado ligado, ou apenas com o sistema de ventilação. Ou ainda em pontos de ônibus e locais de grande circulação de veículos para estimar o impacto que estas partículas podem trazer para nossa saúde. As coletas estão sendo feitas em cinco diferentes pontos da cidade de Salvador, verificando a influência do fluxo de dispersão de poluentes e intensidade do fluxo de veículos pesados”, afirma Lílian.

A

lém de municiar os testes feitos no laboratório de emissões do Senai Cimatec, a intenção é transformar o minitúnel num produto comercial, que possa ser utilizado por empresas no controle de emissões veiculares. “Algumas empresas já dispõem de equipamentos desse tipo, mas o preço ainda é muito elevado”, diz Lílian. A trajetória acadêmica e profissional da pesquisadora ajuda a entender como o túnel de diluição evoluiu de um estudo científico para alcançar a bancada portátil desenvolvida no Senai Cimatec. Entre 2006 e 2010, Lílian fez seu doutorado no Instituto de Química da UFBA, num projeto de pesquisa que buscou avaliar gases emitidos de motores a diesel utilizando diesel puro e misturas combustíveis contendo diesel, biodiesel e etanol, sob orientação do professor Jailson Bittencout de Andrade. Em 2008, o Centro Interdisciplinar de Energia e Ambiente (Cienam) da UFBA, coordenado por Andrade, construiu o primeiro protótipo do túnel de diluição para estudar material particulado. Com mais de 6 metros de comprimento, foi desenvolvido e instalado no Laboratório

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de Motores da Escola Politécnica da UFBA e utilizado em estudos eminentemente científicos. Em 2011, logo depois de concluir um pós-doutorado, também na UFBA, em que trabalhou com material particulado em vez de gases, Lílian foi contratada como pesquisadora da área automotiva do Senai Cimatec. À frente de uma linha de pesquisa tecnológica envolvendo motores e emissões veiculares, deu prosseguimento à pesquisa com o túnel, que foi miniaturizado. O exemplo do túnel de diluição, de protótipo acadêmico a produto com potencial para chegar ao mercado, é fruto de uma iniciativa que não nasceu do acaso e amadureceu de forma natural. O Senai Cimatec, um complexo de laboratórios que combina ensino (recebe 30 mil alunos de graduação e pós-graduação por ano) e prestação de serviços de alta tecnologia a empresas, procurava parcerias capazes de levar ao mercado projetos com bom potencial tecnológico e vislumbrou boas oportunidades no Cienam da UFBA. “Uma das preocupações do Cimatec é fazer com que pesquisas com potencial tecnológico sejam transferidas para empresas”, diz o engenheiro mecânico Alex Álisson Bandeira Santos, gestor da Faculdade Senai Cimatec. “Identificamos uma forte possibilidade de parceria com o Centro de Energia e Ambiente da UFBA”, diz Santos, ele próprio um egresso da universidade, onde se graduou e, entre 2006 e 2020, fez doutorado no programa Interdisciplinar de Energia e Ambiente, do Cienam, investigando o uso da combustão enriquecida com oxigênio em chamas de gás natural. O objetivo agora, observa ele, é intensificar parcerias com foco em energia e ambiente. “Foi um primeiro passo, mas queremos que novas ideias e projetos surjam. Queremos criar um círculo virtuoso, em que o Cimatec contribua com uma pegada mais tecnológica, por meio de nossos alunos e pesquisadores, e o Cienam entre com uma pegada mais acadêmica”, afirma. “Somos um Centro Integrado de Manufatura que se transformou num campus. Nossa ambição é trazer projetos em que a gente consiga desenvolver um produto em toda a sua cadeia, da área de design ao desenvolvimento e à gestão da produção, de forma que um produto seja iniciado e concluído aqui dentro”, explica. Já na UFBA, a pesquisa que resultou no túnel de diluição remonta a 2008, quando a universidade passou a sediar dois novos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia


A sede do Senai Cimatec (dir.) e objetos desenvolvidos no laboratório de polímeros (à esq.): complexo que combina ensino e prestação de serviços de alta tecnologia a empresas

(INCTs), um na área de energia e ambiente, coordenado pelo professor Jailson Bittencourt de Andrade, outro na área de geofísica do petróleo, sob a liderança de Milton Porsani. Os dois institutos, financiados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), reúnem pesquisadores de 16 instituições e nove estados. “Criamos o Cienam há dez anos e vimos a oportunidade de ampliar o escopo de nossa pesquisa com a chance de ingressar no programa dos INCTs”, diz Jailson Bittencourt, professor titular do Instituto de Química da UFBA, reconhecido por ter interesses científicos variados – além de coordenar o INCT de Energia e Ambiente, lidera um projeto de mapeamento das fontes de poluentes e correntes marinhas na baía de Todos os Santos e atua como um ativo formulador de políticas cientificas e tecnológica.

E

m conjunto com os professores Roberto Mendonça Faria, Jacobus Willibrordus Swart e João Batista Calixto, Andrade participou de um grupo de trabalho vinculado à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) que propôs uma série de sugestões para ampliar a competitividade do Brasil. O resultado desse trabalho, reunido num livro de mais de 200 páginas intitulado Ciência, Tecnologia e Inovação para um Brasil Competi­tivo, foi lançado em 2011 – e um de seus capítulos sugeria a criação de uma empresa voltada para a inovação no campo industrial em moldes semelhantes ao que a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) representa para agricultura: um polo capaz de produzir conhecimento aplicado de interesse do setor privado, fortalecendo a capacidade de inovação das empresas. “O então ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Aloizio Mercadante, apaixonou-se pela ideia e levou-a adiante”, diz Andrade. Em setembro de 2013, foi criada a Associação Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), organização social ligada aos ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação e da Educação. Ela tem como foco demandas empresariais e atua por meio da cooperação com instituições de pesquisa científica e tecnológica, públicas ou privadas, financiando projetos na fase pré-competitiva da inovação. A ideia é compartilhar riscos, com a Embrapii contribuindo com um terço do investimento nos projetos, enquanto

a empresa cliente e a instituição de pesquisa envolvida se responsabilizam por um terço cada uma. “Universidades sabem produzir conhecimento. Empresas sabem fazer produto. A Emprapii busca atuar nas etapas intermediárias do processo de inovação, aquelas em que o risco e o alto custo formam obstáculos no caminho da inovação”, diz João Fernandes de Oliveira, presidente da Embrapii. Segundo ele, a Embrapii estudou em profundidade os entraves para a inovação no Brasil e concluiu que a relação entre instituições de pesquisa e empresas tem de ser contínua. “Não adianta investir em problemas com princípio, meio e fim, pois os problemas se desdobram e dão origem a novos desafios.” Em sua etapa-piloto, a Embrapii credenciou três instituições para realizar projetos: o centenário Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), de São Paulo, o Instituto Nacional de Tecnologia (INT), do Rio de Janeiro, e o Senai Cimatec, em Salvador. “Quisemos começar com instituições que fossem reconhecidamente capazes de atender demandas industriais, cada qual, contudo, com uma vocação peculiar: o IPT com materiais de alto desempenho, o INT com processos químicos e industriais e o Senai Cimatec com seu histórico de trabalhar com projetos de empresas”, diz Oliveira. A aposta, afirma o presidente da Embrapii, deu certo. Em 2012, antes de se credenciar junto à Embrapii, o Senai Cimatec executou cerca de R$ 4 milhões em projetos. Este valor, hoje, está na casa de R$ 107 milhões. Dos nove projetos contratados, um já foi concluído: o desenvolvimento de um sistema de queima de combustíveis renováveis, criado para reduzir o consumo de óleos à base de petróleo. Encomendado pela Votorantim Metais, o sistema passa por fase de testes industriais. A meta é reduzir as emissões de gases causadores do efeito estufa e reduzir custos operacionais. O objetivo é que, até o início de 2015, a Embrapii tenha credenciado cerca de 23 unidades, que contarão com recursos de R$ 260 milhões para desenvolvimentos de projetos inovadores. “A ideia é que as novas instituições credenciadas tenham competências complementares às das unidades atuais. Queremos resgatar a essência desses grupos, fazendo com que eles atuem naquilo que sabem fazer melhor e estabeleçam cooperação com centros do conhecimento, principalmente quando os projetos tenham alto conteúdo tecnológico”, diz Oliveira. w bahiaciência | 55


cultura e humanidades

Na galeria 3 do 1º piso do Mosteiro de São Bento: Homem-tubo, de Juarez Paraíso; Gélédé Muquirana, de Pedro Marighella; O fim do homem cordial (projetado sobre piso de madeira), de Daniel Lisboa e Cristo de Roca do século XVIII

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artes plásticas

TERRITÓRIO REOCUPADO Interrompida há 46 anos, Bienal da Bahia volta a existir, tateando relações entre o Nordeste, o Brasil e o Mundo

GUSTAVO FIORATTI | fotos Léo ramos

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ais de vinte mostras poderiam ter sido realizadas neste hiato de 46 anos. Mas, interrompida em sua segunda edição (1968) pela censura, e também depois, no contexto político desfavorável herdado dos militares, a Bienal da Bahia minguou. Retomada neste ano, a megamostra, que começou no dia 29 de maio e prossegue até o dia 7 de setembro, quer compreender uma imensa lacuna. A palavra compreender, aqui (em interpretação amalgamada a partir de uma entrevista realizada com o curador-chefe da mostra, Marcelo Rezende, também diretor do MAM-BA), pode ser lida em dois sentidos principais: no sentido de abarcar, uma vez que a mostra agrupa e reexibe trabalhos apreendidos pelos órgãos censores em um episódio que também levou ao fechamento da edição de 1968 por dez dias; e também no sentido de investigar e revelar o significado deste episódio, bem como seu reflexo nos dias de hoje. “O estado da Bahia só voltou a se interessar por um sistema de artes nos anos 1990. E mesmo assim, para os políticos que governaram o estado até 2007, a Bienal nunca foi vista

Máscaras mortuárias de integrantes do bando de Lampião (Maria Bonita, Lampião, Corisco, Canjica, Maria de Azulão, Azulão, Zabelê)

como possibilidade interessante”, diz Rezende. A mostra foi promovida com cerca de R$ 7 milhões, provenientes do estado. Dentro da terceira edição, realizada em várias cidades baianas e que em Salvador ocupa quase vinte diferentes lugares com 200 obras, a retomada é simbolizada principalmente pelo conjunto A Reencenação, que revê os conceitos e exibe obras das mostras de 1966 e 1968. Sozinha, A Reencenação ocupa cinco espaços expositivos e conta com obras dos artistas veteranos Juarez Paraíso, Arthur Scovino, Pierre Verger, Tuti Minervino e Sante Scaldaferri, entre outros. Simbolicamente, há lápides instaladas no Mosteiro São Bento que registram os títulos das obras que desapareceram após o confisco da censura em 1968. Entre os artistas que foram prejudicados pela situação, o português radicado no Rio de Janeiro Antonio Manuel não topou integrar a mostra sem a retratação do governo baiano e acabou se ausentando. Esta não é a primeira tentativa de resgate da Bienal. Nos anos 1990, diz Rezende, houve um esforço, “por meio de um projeto que circulou entre artistas e intelecbahiaciência | 57


a Bienal procurou valorizar justamente os encontros, o contato presencial, seguindo a avaliação de que as camadas de história da Bahia foram e ainda são trabalhadas oralmente

tuais da Bahia em 1987, mas que nunca avançou”, conta. O olhar desta edição, de qualquer forma, não tem como foco apenas o passado triste. Em seu subtítulo, “É tudo Nordeste?”, parte de um ponto específico (o Nordeste), mas abre-se para o contexto geral (o Brasil e o mundo). Seria, assim, uma revisão do conceito de regionalismo, ou de um posicionamento “que traduz a possibilidade de olhar a cultura brasileira ou os acontecimentos do mundo pela perspectiva de uma região”, explica Rezende. A vontade de abertura também tem reflexo nas escolhas estruturais, com a mostra transbordando dos espaços expositivos tradicionais. No início de julho, houve, por exemplo, uma oficina de cerâmica realizada no Terminal Rodoviário de Salvador. Os trabalhos produzidos pelos alunos compõem um painel coletivo que será instalado nos dias próximos ao fim do evento. Ainda segundo Rezende, o título “É tudo Nordeste?” amplia-se para outras impressões e deslocações da realidade nordestina: “Como o Brasil se relaciona com o Nordeste? Que imagens do Nordeste foram construídas pelo Nordeste? Quais foram construídas sobre o Nordeste? E o que foi imposto como imagem ao Nordeste e acabou assimilado pelo Nordeste?”. Em um dos diversos encontros que já a Bienal realizou entre artistas e o público, o pintor Sante Scaldaferri exemplificou, trivialmente, uma situação em que há imposição de leituras dos estados do Sul. As previsões do clima, nos noticiários de TV, disse Scaldaferri, quando classificam o dia ensolarado e a temperatura de 36º com a expressão “tempo bom no Nordeste”, não apontam que no sertão, por exemplo, tempo bom é quando as temperaturas são amenas e com chuva.

Esse poderia ser um diálogo corriqueiro. Mas a Bienal, segundo sua curadoria, procurou valorizar justamente os encontros, o contato presencial, seguindo a avaliação de que as camadas de história da Bahia foram e ainda são trabalhadas oralmente. Já houve encontros com José Rufino, criador da Comissão da Verdade Paralela, que tem registrado depoimentos de vítimas da ditadura, e com o artista Paulo Bruscky e o curador-adjunto Fernando Oliva, sobre pesquisa desenvolvida em torno das obras censuradas sob alegação de subversão na segunda edição. O registro de como o Nordeste se relaciona com o mundo reflete-se ainda no trabalho do artista libanês Charbel-Joseph H. Boutros. Por dois meses, ele morou na pequena cidade de Itaparica para, a convite da Bienal, expor sua visão sobre diferenças e similaridades entre o sertão nordestino e o Líbano. “Essa experiência trouxe observações sobre comportamentos em comum com o Oriente; desordem não é exatamente bagunça, mas pode ser uma outra maneira de operar, onde pode ser organizado um território menos ocidental.” A Bienal não determinou que a experiência do libanês resultasse em um trabalho, mas ela rendeu mais de uma obra, e uma delas é composta por duas lágrimas do próprio artista coletadas e exibidas dentro de tubos de vidro. Uma lágrima está no Mosteiro de São Bento e a outra, na Igreja do Pilar. Também dentro do espectro da valorização das tradições orais está o programa que retoma a exposição Cadastro, realizada pela primeira vez por Chico Liberato no MAM em 1986. A exposição consiste em oficinas ministradas pelo próprio público. Qualquer pessoa com um conhecimento específico, mesmo que seja algo não relacionado a sua profissão, pode participar. Um exemplo, conta Rezende, foi um sujeito que se inscreveu para ensinar a simples tarefa de desatar nós. Pode não ter tido utilidade para muito gente. Mas foi simbólico dentro de uma edição que pretende desenlaçar velhos problemas de um passado ainda a ser compreendido, rumo a um presente promissor. w

Lágrimas separadas (gota de lágrima do olho esquerdo), de Charbel-joseph Boutros

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Arte extemporânea Conexões entre a arte e o imaginário tornam visível a experiência histórica e dão voz aos que foram silenciados josé bento ferreira*

quizerão no matar os paulistas legenda de ex-voto do milagre de nossa senhora dos remédios a agostinho pereira da silva (1745), do acervo do mosteiro de são bento (salvador, ba).

A

complexidade da 3ª Bienal da Bahia não está apenas em se estender por cinco cidades e pelo menos 16 espaços de exposição somente em Salvador. Pensado no contexto da própria idéia de Bienal de Arte, o evento traça uma “constelação” formada pelas primeiras bienais da história (Veneza, 1895, e São Paulo, 1951), a experiência baiana (iniciada em 1966 e reprimida em 1968) e a reflexão provocada por Ivo Mesquita à frente da 28ª Bienal de São Paulo (2008). Complexidade não é uma característica das obras de arte expostas na 3ª Bienal, muitas delas são simples e singelas. Tampouco diz respeito a discussões que só fazem sentido para os iniciados no mundo da arte. A Bienal é complexa por causa da complexidade da sociedade que ela espelha, por se fazer a expressão de uma “sociedade complexa”, como certos sociólogos chamam as sociedades modernas, urbanizadas, marcadas pela heterogeneidade. Em 1951, o crítico e professor Lourival Gomes Machado, então diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo, atribuiu à Bienal a meta de estabelecer um “vivo contato com a arte do mundo”. Para Mesquita, embora essa tare* José Bento Ferreira é crítico de arte e professor de filosofia

fa já estivesse cumprida mais de cinqüenta anos depois, o mundo da arte não era tão vivo quanto parecera aos modernistas. O andar vazio do Pavilhão da 28ª Bienal demonstrava que a forma do evento paulistano reproduz a pretensão à universalidade típica das grandes exposições e museus do século XIX, que exaltavam a sofisticação artística da Europa e tratavam os outros povos como se estivessem aquém da história da arte. A Bienal Nacional de Artes Plásticas de Salvador denunciava essa instrumentalização da modernidade enquanto, em São Paulo, ela era incorporada e reproduzida pelo próprio meio de arte. Assim, não só pela repressão política a segunda edição foi fechada três dias depois da abertura, em dezembro 1968, mas também por causa da pressão exercida pelos paulistas, segundo o depoimento em vídeo do artista Leonardo Alencar, um dos organizadores da edição de 1966. A reconstituição histórica da Bienal da Bahia é impossível, uma vez que obras de arte confiscadas desapareceram, os registros são exíguos e testemunhos se contradizem. Mas a 3ª Bienal não se contenta em rememorar um momento do passado, prefere trazer à tona o combate travado pelos artistas em busca de contato com uma “arte do mundo” que está fora do mundo da arte, nas ruas, costumes, crenças e imagens de que o mundo está repleto. Cada espaço que faz parte do evento tem algo a dizer, tanto quanto as obras de arte expostas nele. O caminho percorrido entre os espaços também é significativo porque os choques entre o espectador e a cidade aprofundam o bahiaciência | 59


a 3ª Bienal seria uma reflexão que resulta da pesquisa sobre as anteriores, reunindo artistas de vários países e gerações, diversas formas de arte e objetos não artísticos

Na galeria 2 do 2º piso do Mosteiro de São Bento: à frente, Luxúria e Usura, de Sante Scaldaferri; ao fundo, vestígio de obra pública de Juarez Paraíso, imagem de São Sebastião (1580) e urna cinerária indígena de cerâmica; sobre o móvel, carta de Mário Cravo, carta-resposta redigida por Renato Silveira, ensaio de Lina Bo Bardi e reprodução de debate em redes sociais

contato com as obras e estas, por sua vez, complementam-se pelo contato com o mundo ao redor. O ponto de partida da 3ª Bienal foi o Museu de Arte Moderna da Bahia, localizado no Solar do Unhão e dirigido por Marcelo Rezende desde janeiro de 2013. Rezende propõe fazer do museu um “dispositivo de pesquisa”, em lugar de uma instituição voltada exclusivamente para exibição e guarda de obras de arte. Além disso, amparado por um acervo inédito de manuscritos de Lina Bo Bardi, afirma que essa foi também a intenção da arquiteta italiana, criadora do MAM-BA. Para ela, moderno seria um “procedimento de condensação” que ao mesmo tempo “realiza a crítica” da condensação. Nesses termos, a 3ª Bienal seria um procedimento de condensação crítica, uma reflexão que resulta da pesquisa sobre as anteriores. Essa reflexão reúne artistas de vários países e gerações, diversas formas de arte e objetos que não seriam considerados artísticos. Eles se entreolham 60 | julho/agosto de 2014

com encanto, como a imagem de Santa Rita em meio aos trabalhos de Yves Klein e Charbel-joseph Boutros na Igreja do Pilar, mas por vezes com violência, como o Cristo flagelado, diante do vídeo de Daniel Lisboa, projetado sobre um chão de madeira no Mosteiro de São Bento. Uma vez que a Bienal da Bahia foi realizada em espaços cedidos pela Igreja, nos conventos do Carmo (1966) e da Lapa (1968), optou-se pelo Mosteiro de São Bento para a exposição mais diretamente ligada à sua história, A Reencenação. Com isso, desdobra-se a “constelação” desenhada no projeto de Rezende. A primeira peça da exposição é uma inscrição que lembra o massacre dos soldados luso-brasileiros aquartelados durante a invasão holandesa, em 1625. Dom Timóteo Amoroso Anastácio, abade do Mosteiro de São Bento de 1965 a 1981, denunciou a violência do sistema repressivo da ditadura brasileira e abrigou pessoas perseguidas. Por um nicho do primeiro piso, reproduz-se a leitura de uma homilia de Dom Timóteo, feita pelo artista e professor


Placas de mĂĄrmore que se referem a obras desaparecidas em 1968 durante a 2ÂŞ Bienal da Bahia

bahiaciĂŞncia | 61


Juarez Paraíso, um dos principais idealizadores da Bienal nos anos de 1960. Momentos históricos se alinham para ressoar “ecos dos que emudeceram”, como quis o filósofo alemão Walter Benjamin em Sobre o conceito de história (1940) com a idéia de “constelação.” Na escada pela qual se chega à exposição, a fotografia Vaudou, feita por Pierre Verger no Haiti, confirma que, para os organizadores da 3ª Bienal, reencenar é realizar o potencial reprimido no passado. O contato com os mortos é um dos traços da religião de origem africana documentada pelo fotógrafo e antropólogo francês, que viveu na Bahia. Os sinais do culto aos mortos fotografados por Verger são mais do que uma metáfora, comprovam que a busca pela redenção pensada por Benjamin era uma realidade para os descendentes de escravos haitianos.

A

o acompanhar as ramificações da 3ª Bienal por Salvador, verifica-se inscrita pela cidade essa mesma realidade. A cada passo, nos lugares e nas pessoas, memórias das lutas de que é feita a história estão à espera de expressão. As obras de arte são os registros desses choques, como se os artistas não fossem criadores nem narradores, mas sismógrafos, como curiosamente formulou o filósofo francês Georges Didi-Huberman. Nem todas as imagens costumam ser vistas como obras de arte, embora possam transmitir esses registros. Encapsuladas nas redomas dos ritos, nos arquivos e museus, elas permanecem caladas. Imagens exigem um lugar em que realizem seu potencial expressivo. À entrada da exposição do Mosteiro, imagens de Santa Escolástica e São Bento trocam olhares com o espectador. As estatuetas de madeira policromada, datadas do século XVII, relativamente grandes, hospitaleiras, seguram cetros de braços abertos, mas deixam claro que se está de visita. Diante das imagens está A curra (1967), pintura a óleo sobre madeira de Lênio Braga, que, assim como Cavalo de troia (1968), integrou a 2ª Bienal Nacional de Artes Plásticas. As mulheres violentadas na pintura de Braga são uma citação da pintura de Rubens, O rapto das filhas de Leucipo (1617). Em lugar dos Dióscuros, sequestradores das filhas de Leucipo na mitologia grega, o artista paranaense pôs soldados. Em lugar dos cavalos, tanques de guerra. Siron Franco, por sua vez, faz do cavalo uma espécie de máquina operada por pessoas, como se fossem operários na indústria. O cavalo devora o que parece ser uma pomba em sangue. Pelas engrenagens vê-se como a máquina de guerra se alimenta do símbolo da paz. Para o filósofo inglês Thomas Hobbes, o Estado é criado “pela arte” com “maior força e estatura” para proteger as pessoas do estado de guerra a que são levadas pelos interesses que elas naturalmente perseguem. Se a ausência do Estado fosse necessariamente um estado de guerra, então a violência teria a finalidade prática de cessar a guerra e garantir a paz. As duas pinturas que sobreviveram à proibição da segunda Bienal são estilisticamente diferentes, mas se assemelham

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tanto na denúncia do autoritarismo político quanto na crítica da tradição que projeta a Grécia como exemplo de civilização e cultura. Siron Franco e Lênio Braga perceberam que, para politizar a arte, precisariam atacar o eurocentrismo da própria história da arte. O confronto com as imagens religiosas em busca de “vivo contato” com o mundo, para além do mundo da arte, não faz senão ampliar essa postura antropológica. As galerias que abrigam a exposição ladeiam a nave da Basílica Arquiabacial de São Sebastião, visível por grandes janelas e pelo coro. A basílica destoa das igrejas barrocas de Salvador pela enorme cúpula, imagens de mármore branco e altares neoclássicos. Em meio a trabalhos de arte, espreitam pelas janelas as máscaras mortuárias do bando de Lampião, produzidas por cientistas que tentavam determinar a fisiologia do crime. Quando se libertam das molduras ou enquadramentos que os confinam a uma história oficial, imagens religiosas, objetos históricos e obras de arte partilham o mesmo espaço e contam uma outra história. Na primeira galeria, mistura-se a música de Walter Smetak, que vem do vídeo de Rex Schindler, com a voz emitida de dentro de um “mobiliário contador” do século XVII. Em meio à documentação sobre as primeiras edições, Bahia, por exemplo (1970) poderia ter integrado uma terceira Bienal que não aconteceu (assim como as esculturas de Almandrade integrariam edições seguintes). No vídeo, entre outras tomadas, três mulheres dançam à beira-mar sobre o promontório rochoso do Solar do Unhão, ao som da música do compositor suíço radicado na Bahia. A música de Smetak confunde-se com a voz que vem do contador de talha tremida. “Mediadores” formados pelo setor educativo do MAM-BA informam que os proprietários desse tipo de móvel costumavam mutilar ou executar os escravos que os construíam para que ninguém mais


Cavalo de Troia (1968), de Siron Franco, na outra página, prêmio-aquisição na 2ª Bienal da Bahia. Na galeria 1 do 1º piso do Mosteiro de São Bento, ao lado, documentação das Bienais da Bahia de 1966 e 1968, áudios em mobiliário contador do século XVII e Cada dia sob seu próprio sol, de Charbel-joseph Boutros. No coro do Mosteiro de São Bento, abaixo, ambão do século XVII, instalação sem título de Rodrigo Matheus, diversos trabalhos de Almandrade, Fábricas e Mercadinhos, de Gaio.

soubesse abri-los. Por isso, como Sherazade nas Mil e uma noites, os artífices entalhavam uma profusão de detalhes, adiando a conclusão do trabalho.

E

sse belíssimo objeto, portador de história terrível, emite leituras feitas por artistas jovens de textos relativos à Bienal de 1968. Em carta ao governador da Bahia, o já então consagrado artista plástico Mário Cravo pede demissão do conselho encarregado de organizar a 2ª Bienal por considerar “maneirismos alienígenas e alienatórios” incompatíveis com um “verdadeiro sentido pedagógico”. Em resposta assinada por 22 artistas, lamenta-se que “artistas que tenham lutado por longos anos” se posicionassem “contra os jovens que repetem a mesma luta”. Os textos foram publicados em outubro de 1968 pelo jornal A Tarde. Em 21 de dezembro, pouco mais de uma semana depois da edição do Ato Institucional nº 5, que intensificou o autoritarismo do regime militar, a Bienal foi

fechada durante um mês e teve dez obras confiscadas, que se perderam. O artista plástico Juarez Paraíso, secretário-geral do evento, foi preso, assim como o historiador Luis Henrique Dias Tavares, então diretor do Departamento de Ensino Superior e Cultura. No segundo piso do mosteiro, dez lápides documentam a apreensão das obras de arte: Curva e prisma, escultura de Gastão M. Henrique; Repressão outra vez – eis o saldo, gravura de Antônio Manuel; Retrato, tinta plástica sobre tela de Tereza Simões; Fita de cine I-IV, pintura de Antônio Dias; Brasiliana, óleo sobre tela de Antônio H. Amaral; Série erótica, bico de pena de Farnese de Andrade; Os fósseis e A liberdade, vinil e acrílico sobre madeira de Lênio Braga; Revolta, pintura (técnica industrial), e Queda dos anjos, acrílico sobre tela, de Siron Franco. Uma décima primeira lápide registra o assassinato de um monitor da Bienal, anos depois, sob custódia do estado: Sérgio L. Furtado, (1951-1972), desaparecido político. A última galeria se mantém com baixa luminosidade, como se não houvesse luz elétrica, o que se soma às pedras aparentes das paredes no piso superior para intensificar a sensação de se estar em outro tempo. Duas grandes estruturas de objetos pertencentes ao acervo do mosteiro cobertos com tecidos escuros aprofundam a penumbra. Ao fundo, uma espécie de altar foi montado ao redor da antiquíssima imagem de São Sebastião (1580). Na tradicional posição do martírio sob flechas, é notável no corpo e na fisionomia a diferença em relação às imagens mais conhecidas, que são posteriores. À esquerda do santo, repousa sobre um suporte para objetos litúrgicos um recipiente com fragmentos do mural de Juarez Paraíso para a Secretaria de Agricultura do Centro Administrativo, uma obra pública em “avançado estado de deterioração”, segundo o material impresso da Bienal. À direita, uma urna cinerária indígena. Abaixo deles, luzes de bahiaciência | 63


Altar para Santa Rita de Cássia na Igreja do Santíssimo Sacramento do Pilar e Santa Luzia: Lágrimas separadas (gota de lágrima do olho direito), de Charbeljoseph Boutros; frasco com pigmento IKB preparado por Juraci Dórea; edição original de A superação da problemática da arte, de Yves Klein, e Santa Rita, de Mestre Ambrósio Córdula.

leitura iluminam impressões da carta de Mário Cravo, da resposta dos artistas, do texto Cinco anos entre os “Brancos” (1967) em que Lina Bo Bardi relata a experiência no MAM-BA e uma série de mensagens polêmicas sobre a organização da 3ª Bienal, que foram trocadas em redes sociais. Imagens religiosas foram importantes instrumentos de colonização, dirigiram-se contra as imagens dos povos americanos, como explica o historiador Serge Gruzinski. A bela e rara imagem do século XVI tem um corpo viçoso, os olhos fechados e expressão serena. A urna ao seu lado comprova a existência de rituais religiosos sofisticados entre os povos indígenas, embora o fato de pertencer ao Museu de Arqueologia e Etnologia da UFBA assinale a debelação dessas culturas. O descaso do estado com uma obra pública demonstra que os efeitos da colonização prosseguem. Ainda é preciso lutar para produzir imagens sem a chancela do poder, sobretudo quando o poder se exerce de várias formas e em toda parte. Por um lado, imagens foram criadas contra outras imagens, por outro, a destruição de imagens pode funcionar como um sinal da luta por imagens mais livres. Assim se embaralham as categorias convencionais de iconoclastia e idolatria. Por isso o antropólogo Bruno Latour e o artista Peter Weibel criaram em 2002 o neologismo “iconoclash”: “podemos definir um iconoclash como aquilo que ocorre quando há incerteza a respeito do papel exato da mão que trabalha na produção de um mediador. É a mão com um martelo pronto para expor, denunciar, desbancar, desmascarar, mostrar, desapontar, desencantar, dissipar as ilusões de alguém, para deixar o ar correr? Ou é, ao contrário, uma mão cautelosa e cuidadosa, com a palma virada como se fosse pegar, extrair, trazer à luz, saudar, gerar, entreter, manter, colher verdade e santidade?”.

Essa mesma dúvida reaparece em todos os setores da 3ª Bienal da Bahia, mas se explica, uma vez que toda imagem nega o mundo material sem deixar de fazer parte dele. Os artistas selecionados fazem as duas coisas ao mesmo tempo com trabalhos que resultam do choque entre arte e espiritualidade. A própria ideia de obra de arte é um “iconoclash”, uma vez que é abertamente artificial e fictícia, 64 | julho/agosto de 2014

ao contrário de imagens auráticas, que se acreditava não terem sido feitas por mãos humanas. Também o são os ataques a essa ideia, perpetrados pelas vanguardas a fim de fundir arte e vida. Yves Klein, por exemplo, é um artista de iconoclashes, com as pinturas chamuscadas, o tom de azul obtido como uma passagem para a imaterialidade e a lendária fotomontagem do Salto para o vazio (1960).

J

ovens artistas da 3ª Bienal experimentam outras formas de arte, depois do fim das vanguardas. No pátio em frente à Igreja de Nossa Senhora dos Aflitos, o artista carioca Arthur Scovino realizou seu próprio salto performático, com uma capa colorida à maneira dos Parangolés de Hélio Oiticica. Para expor a imagem do salto, Scovino realizou uma série de intervenções por todo o piso superior da igreja, que se soma ao conjunto de espaços de exposição da 3ª Bienal, identificados por bandeiras com a identidade visual criada pelo artista baiano Juraci Dórea, como se fossem territórios conquistados ou libertados. Scovino distribuiu pelo espaço samambaias, espadas-de-são-jorge e crisálidas como referências aos Caboclos, entidades do Candomblé e da Umbanda que se apresentam como indígenas. A proposta de “trabalhar com a vida” para produzir uma “obra viva” não o impede de cultivar a imagem desse “espírito ancestral”. Um toca-discos portátil e o álbum Índia (1973), de Gal Costa, indicam a série de performances recentes LP’s de Gal, nas quais Scovino surpreendeu pessoas em lugares públicos com a música da cantora baiana ao som dos velhos discos de vinil. O artista conta que não acredita em “performance com hora marcada e público”, ela deve ser espontânea e inesperada “como a aparição do Caboclo”. No centro da sala, Scovino estendeu uma esteira de taboa e convida o espectador a se sentar para conversar. A prática lembra trabalhos dos anos de 1990 de artistas como o argentino Rirkrit Tiravanija, que sugeriram ao crítico francês Nicolas Bourriaud a idéia de “estética relacional”. Todas as obras de arte seriam relacionais, porque ocorrem na “esfera das interações humanas”, mas arte relacional seria propor, como obras de arte, “momentos de socialidade” e “objetos produtores de socialidade”. A 3ª Bienal da Bahia generaliza a idéia de arte relacional ao promover “vivo contato” entre a arte e o mundo, ou entre a


escrito por Klein em 1959. Sobre o altar, diante do nicho, à direita, foi posicionada uma imagem de Santa Rita de Cássia produzida pelo santeiro potiguar Ambrósio Córdula. À esquerda, está o recipiente com uma lágrima do olho direito do artista libanês Charbel-joseph Boutros, parte de Lágrimas separadas. A lágrima do olho esquerdo fica no coro da Basílica do Mosteiro em meio a trabalhos de outros artistas e objetos litúrgicos. As lágrimas vieram do que sentia o artista quando viajava de Salvador à ilha de Itaparica durante o período de residência artística junto ao Instituto Sacatar.

U

arte e as pessoas. Os devaneios dos artistas tidos por intuições de formas puras e as crenças populares tratadas como ideologia estão reunidos na “esfera das interações humanas” de que fala Bourriaud. Relações humanas não são coisas materiais, mas a imaterialidade não torna a sociabilidade menos real. A principal referência de Marcelo Rezende é anterior ao trabalho do crítico francês. Em 1984, o crítico e curador cubano Gerardo Mosquera propôs à Bienal de Havana o formato descentralizado como um contraponto à hegemonia do Primeiro Mundo. Para Rezende, Havana demonstra que o Terceiro Mundo está presente no Primeiro Mundo e que ambos resultam das mesmas circunstâncias históricas. Analogamente, ao retomar o tema de 1968, “É tudo nordeste?”, a Bienal da Bahia mostra costumes populares e produções artísticas como resultados de processos históricos que dizem respeito às sociedades humanas como um todo. Essas conexões se cristalizam na Igreja do Pilar. Sob uma das imagens de Santa Luzia, um nicho abriga um recipiente com tinta preparada por Juraci Dórea a partir dos ingredientes do IKB, sigla de International Klein Blue, como foi patenteado por Yves Klein em 1960. Junto ao recipiente há uma edição original do livro A superação da problemática da arte,

ma gravação da oração a Santa Rita de Cássia escrita por Klein em 1961 e oferecida como ex-voto na Úmbria ressoa pela igreja ao amanhecer e ao entardecer. Klein deposita “sob a guarda” da santa toda a sua obra. No interior do nicho, a tinta azul e o livro abrem as portas do universo imaterial que pode ser interpretado como “esfera das interações humanas”. A cor, assim como a luz, não pode ser vista sem que se associe a coisas materiais. No interior do pequeno frasco, a lágrima é quase tão imaterial quanto cor e luz. Talvez nem esteja lá. Por meio dela, porém, toda a melancolia das viagens marítimas se manifesta. Da mesma forma, pelas pequenas estatuetas dos santos se manifestam os sentimentos dos que interagem com elas, ainda que originalmente essas imagens tenham sido uma imposição colonialista. Por causa da história sobre o seu martírio, Santa Luzia é a padroeira da visão. Por todas as paredes da Igreja do Pilar, nichos vazios indicam a ausência do acervo de pinturas, removido para restauração. Ao lado da igreja, um cemitério desativado abriga uma pequena coleção de imagens avariadas. Embora decididos a se desfazer delas, seus proprietários tiveram pudor de destruí-las! Ao fundo da igreja, brota uma fonte que teria o poder de curar os olhos. A mística do catolicismo popular e a subjetividade da arte moderna se encontram nesta delicada exposição sobre a visibilidade das relações humanas que as obras de arte proporcionam quando não são tratadas como meras coisas materiais. A intervenção na Igreja do Pilar condensa os aspectos mais importantes da 3ª Bienal da Bahia. Eles se desdobram numa profusão de exposições e ações educativas em Salvador e outras cidades. Apesar de toda a heterogeneidade, fica claro que o denominador comum está na sensibilidade para captar e transmitir os ecos desse universo de relações humanas, que reverberam pelas ruas da cidade e na imaginação das pessoas. w

Textos de referência Projeto curatorial (MAM-BA, 3ª Bienal da Bahia). Benjamin, Iluminationen, Suhrkamp. Didi-Huberman, A imagem sobrevivente, Contraponto. Hobbes, Leviatã, Martins Fontes. Gruzinski, A guerra das imagens, Companhia das Letras. Latour, “O que é iconoclash?”, in Horizontes antropológicos nº 29 (2008). Bourriaud, Estética relacional, Martins Fontes. bahiaciência | 65


perfil

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uma grande teoria sobre o brasil joão ubaldo ribeiro traçou o mais profundo retrato da cultura e da psicologia nacionais

Rodrigo Lacerda*

D

gentil

os quatro primeiros livros de João Ubaldo Ribeiro, apenas Sargento Getúlio, de 1971, realmente causou impacto. Mas foi um belo impacto. Quando saiu, em 1971, recebeu críticas excelentes. No ano seguinte, levou o prêmio Jabuti de Melhor Romance. Em 1978, com tradução do próprio João Ubaldo, ganhou uma edição americana (ser publicado nos EUA é um feito raro para o escritor brasileiro até hoje, que dirá na época). O livro serviu ainda como cartão de visita do escritor para a prestigiada oficina literária de Iowa e para uma bolsa da fundação Gulbenkian, em Lisboa. Entre 1980 e 1981, então com 40 anos de idade, João Ubaldo trocou de editora, assinando contrato com a Nova Fronteira, do Rio de Janeiro. O primeiro título que publicou depois disso foi Livro de histórias, de 1981. E assim, com míseros 12 anos de idade, ouvi pela primeira vez falar do seu nome. Não acontece que eu seja baiano – infelizmente –, mas aconteceu que meu pai e meu tio vinham a ser os donos * Rodrigo Lacerda é escritor, autor do prefácio da nova edição de Viva o povo brasileiro (no prelo). É tradutor e editor. Seus últimos livros são A república das abelhas (Companhia das Letras, 2013) e Outra vida (Alfaguara, 2008)

da Nova Fronteira. Assisti o impacto do livro crescendo à minha volta, arrebatando, um a um, todos os adultos com quem eu me relacionava – pais, amigos dos pais, tios etc. Além de elogiarem as virtudes literárias de Livro de histórias, os adultos pareciam arrebatados com o escritor em si. Recontavam as piadas que ele fizera na última festa e descreviam-no sempre como uma das pessoas mais divertidas que já tinham conhecido; depois louvavam-no por ser cultíssimo e comentavam admirados como o sotaque de baiano era menor quando ele falava inglês e francês do que quando falava português (nunca entendi o espanto, para mim faz sentido que fosse assim). Fui ler o livro, curioso e admirado com o retrato que me pintavam do autor. Afinal, ser inteligente e ser engraçado são até hoje, para mim, duas das maiores virtudes que um ser humano pode ter. Mas até aquele momento da vida eu achava que eram virtudes mutuamente excludentes! Meus resultados escolares da época provam o quanto era forte minha crença nessa oposição. Ao entrar em contato com a prosa de João Ubaldo, confesso que nem sempre consegui acompanhá-la. Em alguns bahiaciência | 67


contos eu me perdia no meio das frases, com frequência bastante longas e com uma riqueza vocabular estonteante; em outros era o encadeamento dos assuntos, que emendavam uns nos outros, cruzando referências e mobilizando um repertório que eu não tinha. Então eu lia parágrafos, pedaços, mas não conseguia ler as histórias do começo ao fim. O que estava evidente no texto, mesmo para um adolescente como eu, era a combinação de humor e inteligência que os adultos me descreviam: “Entretanto, Beremoalbo está longe de ser o único da raça do Cão a frequentar por aqui, aliás, é exatamente de um caso desses que eu quero tratar, mais tarde lhe falo, logo, logo. Tem gente que nega, mas, quando o senhor virar as costas, vão se benzer e espalhar alho pelos cantos da casa, só que Beremoalbo come alho, com ele o negócio é difícil. Tem gente que nega, mas só de fingimento, pois a verdade é que esse pessoal todo vai se lembrar se o senhor chegar para eles e mencionar alguns dos seguintes cães: Balganoel, o espalha-merda; Virifinário, o que conseguiu fazer aparecer mais cornos nesta terra do que se pode contar; o diabão Jugurta, que convencia todo mundo a dizer a verdade e assim causou toda apresentação de fatos maus que a gente seria feliz se não soubesse; Harpagelão, que meteu na cabeça diversos padres de ir na terra de uns índios mais do que degenerados, os quais comeram Roquiféler (....)”.

A

o ler parágrafos como este, estava confirmado o perfil que eu recebia do escritor. Além disso, Livro de histórias me fez sentir, pela primeira vez, o quanto é forte a ligação entre a alma do criador (na falta de melhor palavra) e sua obra (quando a obra é verdadeira, claro). Esta lição fundamental eu aprendi lendo João Ubaldo. Alguns anos se passaram até que, em 1984, saiu Viva o povo brasileiro. Eu li o livro no segundo semestre de 1985, quando estava fazendo intercâmbio em Michigan (EUA). O frio, as saudades da família e do Brasil, a solidão inescapável da adolescência, me deixaram completamente vulnerável a uma leitura que determinaria muito do que eu sou hoje. Em Viva o povo, o Brasil está inteiro. Intuitivamente, sem saber dar nome às coisas, eu senti o imaginário barroco – com seus demônios e rituais – organicamente combinado a uma atitude literária moderna. A erudição das frases, enroscadas nelas mesmas, típicas da melhor prosa barroca, e a riqueza vocabular do passado, alimentavam a dicção humorística e coloquial numa simbiose perfeita. Em contrapartida, as raízes da língua brasileira saíam atualizadas. Os heróis e anti-heróis do livro nascem tanto nas classes dominantes quanto no meio popular e, à medida que todos sofrem, amam e morrem, o leitor, talvez pelo reinício emocional constante a que é submetido, sente a força do conjunto, aparentemente disperso, de trajetórias individuais. Com Viva o povo, João Ubaldo se firmou na cena literária brasileira como um mestre no domínio sintático, na música

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do texto e em obter um arranjo belo e fluente a partir de uma imensa carga de elementos. Suas frases transmitem com vivacidade a emoção dos personagens, porém são artesanalmente esculpidas; a sintaxe ora recria a fala oral, ora possui elegância clássica; o vocabulário é excepcionalmente rico, casando termos científicos e elementos do português arcaico a neologismos criados com base na fala popular. Viva o povo é o grande entroncamento literário de sua carreira, o mostruário completo de seus talentos, o grande manancial e, simultaneamente, o escoadouro de todos os outros livros. Gosto de pensar nele como uma espécie de nave-mãe, que perde em velocidade para os deslocamentos das naves menores, mas paira majestosamente sobre elas.

S

ua leitura oferece ainda um outro paradoxo, outra combinação perfeita de virtudes excludentes. “A verdade é que não existem fatos, só histórias”, diz a epígrafe escolhida por João Ubaldo, propondo, antes mesmo de o livro começar, uma revolução epistemológica. Homem ou mulher, velho ou jovem, alto ou baixo, gordo ou magro, qualquer um, se incorporar realmente trazida pela epígrafe, ganha um novo entendimento, muito mais caótico, da história, das sociedades e dos homens. Contudo, no dia a dia, nas crônicas que fazia para o jornal O Globo (colaboração que começara havia poucos anos e apenas foi interrompida com sua morte), João Ubaldo estava longe de ser uma pessoa sem convicções, dada a relativismos absolutos, muito menos era um niilista. Nas crônicas, e também em suas entrevistas, que eu lia religiosamente, sua consciência crítica era atuante, avaliando e refletindo com independência, para ao final se posicionar com clareza, às vezes até com ênfase, sobre os mais diversos assuntos – culturais, políticos, sociais, linguísticos etc. A tensão entre aceitação e enfrentamento da realidade do país; a generosidade profunda e compreensiva, porém não cega, pela natureza humana; a combinação da linguagem arcaica e moderna, resultam, para mim, no mais profundo retrato da cultura e da psicologia brasileiras já feito, literária e sociologicamente falando. Foi a primeira grande teoria sobre o Brasil a me atingir, e é impossível superar os impactos vividos na adolescência. Que me perdoem Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Machado de Assis e outros grandes. João Ubaldo criou uma lente própria para enxergar o país, o barroquismo modernista. E o que é o Brasil, se não uma imensa esperança no futuro, que no entanto é construído de maneira fragmentada, contraditória, cheia de idas e vindas, às vezes até dilacerada? Confirmei então que havia escolhido bem o meu ídolo. Só os espíritos largos conseguem abarcar essa oposição entre a compreensão generosa para com os personagens – façam eles o que fizerem, para que ganhem vida o escritor precisa sempre enxergar o mundo por seus olhos –, sem perder, na vida prática, de cidadão, a força da crítica e da observação aguda. Apesar de Viva o povo possuir tantas qualidades difíceis de serem atingidas, minha identificação com ele foi


Eu era um garoto, e simplesmente congelava diante do escritor consagrado, mesmo ele sendo uma pessoa destituída de qualquer pose

tão forte que mexeu dentro de mim a sensação de querer fazer igual, o impulso de também tentar, o delírio de me achar capaz, a idéia de ser escritor. Já de volta ao Brasil, devo tê-lo encontrado pessoalmente em algum evento da editora, ou mesmo em festas e almoços na casa de meu pai ou de meu tio. Estranho eu não lembrar exatamente quando foi, tendo em vista a importância que Viva o povo tivera para mim. Mas posso explicar essa amnésia: eu simplesmente paralisava ao vê-lo. Eu era um garoto, e simplesmente congelava diante do escritor consagrado, mesmo ele sendo uma pessoa destituída de qualquer pose, e apesar dos ambientes serem às vezes até íntimos. Tudo que dizia me soava de uma inteligência suprema, qualquer piada, por mais corriqueira, me fazia estourar em gargalhadas. Em contrapartida, nada do que eu falava parecia guardar o menor interesse, e contar piadas para ele, sinceramente, jamais me atreveria a fazer isso na época. Muitos anos se passaram depois disso. Eu vim morar em São Paulo, dei o salto mortal que Viva o povo me inspirou a dar e, em 1995, publiquei meu primeiro livro, O mistério do leão rampante. Para mim, é uma novela de evidente inspiração ubaldiana (embora nunca nenhum dos nossos brilhantes críticos tenha feito essa constatação óbvia). Por manobras do editor, em conluio com meu pai, João Ubaldo escreveu um prefácio, na verdade dois curtos parágrafos. Para meu supremo orgulho, não precisava mais. Em 1997, quando eu tinha 28 anos e ele 56, foi a vez do João lançar O feitiço da ilha do pavão. Treze anos haviam se passado desde Viva o povo e sua carreira não estava no mesmo momento áureo. O público nunca se afastou dele, mas os críticos haviam começado a torcer o nariz para seus novos livros, acusando-os de não estarem à altura do que produzira antes. Pior que isso, pelo meu pai eu sabia que a bebida vinha mesmo atrapalhando sua vida. Decidi entrevistá-lo. Eu na época fazia frilas para a revista Cult, aqui de São Paulo. Fui ao Rio de Janeiro especialmente. Toquei a campainha de sua casa na hora marcada. A mulher, Berenice, abriu a porta. João Ubaldo havia saído, sem falar de entrevista alguma. Ele tinha esquecido de mim, obviamente. Fiquei um pouco humilhado, admito. Berenice sugeriu que o procurasse nos botecos da vizinhança

(Tio Sam, Flor do Leblon etc.). Fiz a ronda, mas não o encontrei, e achei aquilo tudo muito estranho. Voltei para a casa deles e passei uma meia hora esperando no sofá. Finalmente João Ubaldo apareceu. Estava completamente bêbado, às 11h da manhã. Cambaleando, ele me levou para o escritório, no segundo andar, e o que encontrei lá foi um ambiente de caos. Além da mesa de trabalho bagunçada, havia um sofá cheio de livros jogados, papéis amassados, jornais velhos espalhados pelo chão e estantes vazias. Ele abriu uma lata de guaraná e bebeu de um gole só, com uma sofreguidão de molhar a camisa. Evidentemente não estava em condições e nem um pouco disposto a dar entrevista alguma. Como eu voltaria naquele mesmo dia, ele fez um esforço e começou a responder monossilabicamente a minhas perguntas. No meio da conversa, ou do meu monólogo, Berenice entrou pelo escritório furiosa, brandindo o “Segundo Caderno” de O Globo, que dera a capa para o livro novo. Ela falou, ríspida mesmo, passando um sabão naquele homem nitidamente entontecido: “João, como você se deixa fotografar desse jeito?”.

A

foto era ele de short, com uma camisa xadrez de manga curta, largado no chão, de braços e pernas abertos, e com as costas apoiadas no mesmo sofá à minha frente, também na foto mais parecido com um ninho de ratos. Depois que a mulher foi embora, João olhou para mim, muito sério, embora grogue, e disse: “Quero que você diga aí que eu sou alcólatra. Quero que todo mundo saiba disso”. Voltei para casa muito impressionado. Meu ídolo, o escritor do meu coração, o homem cujas virtudes intelectuais e morais eu mais prezava, aquele cuja simples proximidade me deixava paralisado de admiração, estava literalmente caindo pelas tabelas. Como podia ser isso? Eu nem tive chance de dizer o quanto ele havia sido importante para mim. Como a vida de alguém tão talentoso, tão bem-sucedido numa profissão tão difícil, casado com uma mulher linda, com filhos bem-criados, podia chegar àquele ponto? Aprendi com João Ubaldo, naquele dia, uma segunda lição: a consagração literária, na época meu maior objeto de desejo, não era garantia de felicidade coisa nenhuma, pois a vida é muito mais complicada do que isso. bahiaciência | 69


A moça, uma jovem professora baiana, de tão emocionada com o encontro e com a simpatia do escritor, desatou num choro convulso, incontido, que foi a coisa mais tocante da noite

E restava ainda o dilema: eu deveria ou não fazer o que ele pediu? Na época, os problemas do escritor com o alcoolismo não eram públicos. Só a família e os amigos sabiam. Se eu fizesse, ele lembraria que me pediu? Eu, com certeza, lembrava da fúria de Berenice reclamando da fotografia no jornal, e pensava como ela ficaria se eu tornasse a coisa pública. Decidi não atender àquele triste pedido. Na semana seguinte, na capa da revista Isto é, ele próprio, com a maior coragem e dignidade do mundo, anunciava o problema. E assim perdi o maior furo da minha vida como jornalista cultural e descobri que definitivamente eu não tinha estômago para a coisa. Além disso, vi que neguei a ele um socorro que ele estava precisando, o apoio do seu público e a torcida de todos para que superasse o problema. Muitos anos se passaram, comigo acompanhando de longe sua carreira, sua entrada na Academia Brasileira de Letras, seu merecidíssimo prêmio Camões, e tendo notícias esporádicas dele e de sua recuperação do alcoolismo através do meu pai, que continuava sendo amigo, embora já não fosse o editor. Em 2011, João Ubaldo lançou um último livro, O albatroz azul. O curador da Flip, a feira literária de Paraty (RJ), sabendo de minha admiração por sua obra, convidou-me para entrevistá-lo em sua tão aguardada ida ao evento. Aceitei, mas eu havia ficado um pouco traumatizado com a experiência anterior, e fui cheio de medos. Nossa participação seria às 19h. Nos encontramos no almoço, depois fomos ao Instituto Moreira Salles de Paraty, onde ele falou sobre a Odisseia de Homero, um de seus livros mais queridos, e em seguida dirigimo-nos ao palco principal do evento. Durante todo o tempo eu tremia de medo, assombrado pelas respostas monossilábicas da entrevista anterior, pelo medo de ele ter uma recaída e pela minha própria timidez diante do ídolo. Nenhum dos meus pesadelos se confirmou. Ele estava numa noite ótima, bem-humorado, inteligente e afiado. Facilitou muito o meu trabalho, contando histórias e dizendo coisas tão inteligentes que, em determinado momento, vi o quanto algumas respostas melhoravam as perguntas. Eu preparara um arsenal delas, capaz de nos sustentar ali por semanas, mas não usei nem metade. A plateia o aplaudiu de pé. Eu o vi feliz outra vez, vi sua obra sendo prestigiada pela crítica novamente. 70 | julho/agosto de 2014

Eu me reconciliei com meu ídolo e com tudo o que ele significava para mim, estética e humanamente falando. Mas não tivemos nenhum momento mais íntimo em Paraty, o assédio sobre ele era imenso. Tempos depois, fizemos uma conversa parecida num Sesc aqui de São Paulo e, no ano passado, na Feira do Livro de Salvador, entrevistei-o de novo. Ao final da sessão, novamente muito aplaudida e terminando com ele muito assediado, uma mulher o abordou para entregar pessoalmente a tese de doutorado que escrevera sobre sua obra. A moça, uma jovem professora baiana, de tão emocionada com o encontro e com a simpatia do escritor, desatou num choro convulso, incontido, que foi a coisa mais tocante da noite. João Ubaldo ficou tímido, sem graça, mas eu achei lindo e me recriminei por nunca na vida ter demonstrado minha admiração com tanta ênfase.

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o local do evento fomos jantar, com nossas esposas e alguns amigos. Naquela noite, além da conversa deliciosa, fiquei impressionado com seu controle sobre a bebida. Ele não havia deixado inteiramente de beber, conseguira o mais difícil, isto é, beber e se controlar. Todos nós bebemos mais que ele, e ficamos em pior estado. Isso eu nunca tinha visto antes, é a maior vitória sobre o alcoolismo que conheço. Para mim, foi importantíssimo vê-lo inteiro de novo. O escritor e o homem. O modelo de primeira hora para mim, reencontrado. Foi a última vez que nos vimos. Numa hora, discretamente, no canto de uma mesa redonda, abri meu coração para ele, falei tudo – sua importância na minha adolescência, a paralisia cerebral que sua proximidade me causava, a história da entrevista regada a guaraná e afogada nas páginas da Isto é etc. etc. Ele, sinceramente surpreso, respondeu: “Eu nunca soube de nada disso!”. Incrível que nunca tenha percebido. Eu dava as maiores bandeiras... Me tranquiliza um pouco, agora que ele morreu, pensar que tive a chance e a coragem de falar. Ainda poderia ter falado mais, contado outros episódios de uma relação que, para mim, começou muito antes do que para ele, por meio dos livros. Mas falei o que deu, e agora, como a doutora literária de Salvador, já posso chorar à vontade. w


amigos que se vão, saudades que ficam H

Tarde na várzea com chuva A João Ubaldo Ribeiro (“Não existe poesia sem infância”, ele disse)

A chuva há de passar... De quando em quando, um alarido vem pelo ar, fugidio. Na tarde bruxuleante, além do rio, Teles e Caboclinho estão jogando. Não posso ver; a chuva me atrapalha. Vestindo sedas, clamo aos ares, rogo. Avanço a rua. Minha tia ralha (Nada me ajuda): “Pare aí, é só um jogo!” Raiva. Bato três vezes na madeira. Será que vai chover a tarde inteira? Digam como lá estão os litigantes. É agosto, sim, e chove sem parar. Dentro, o menino quer comemorar logo. Atlanta e Palestra, dois gigantes. Salvador, Bahia, dezembro de 2012

Sante Scaldaferri / arquivo pessoal

florisvaldo mattos*

Integrantes da Geração Mapa: João Ubaldo; Glauber Rocha; Calasans Neto (artista plástico, no centro); Sante Scaldaferri (artista plástico) e Paulo Gil Soares (cineasta e jornalista)

oje estou triste. Logo cedo, fui acordado com um telefonema de Luiz Antonio Cajazeira Ramos anunciando súbita morte de um amigo de grandes recordações, o escritor e membro da Academia Brasileira de Letras (e da baiana), João Ubaldo Ribeiro, um dos maiores prosadores e romancistas brasileiros, com quem convivi intensamente, quando ele vivia em Salvador, nos anos 1960 e parte dos 1970. Tenho a honra de, estando uma noite na sala de trabalho e leitura de seu apartamento na rua Oito de Dezembro (Graça), ouvir, narrado por ele, o primeiro capítulo de seu primeiro romance, Sargento Getúlio, para que eu dissesse o que pensava do que escrevera, que seria, logo que publicado, a sua primeira reconhecida obra-prima. Lá, na sala, de silêncio e pouca luz, conversávamos bastante, em papos levados a uísque nacional, sobre literatura e assuntos vários, ouvindo jazz, ou então uma gravação com o saudoso capoeirista Canjiquinha, da então Sutursa, cantando clássicos do folclore da capoeira baiana. Era um dos integrantes da Geração Mapa, aderente ao movimento artístico e literário, por ser um dos bem mais jovens, mais jovem até do que Glauber Rocha, nosso líder. Ano passado, mandei-lhe um poema inédito, a ele dedicado, onde está: “A João Ubaldo Ribeiro”. “Não existe poesia sem infância”, ele disse. Recordava uma frase que ele dissera certa vez numa entrevista à revista Playboy, que ele não mais lembrava... Grande escritor, grande saudade, de inesquecível amigo e de excelente “causeur”, em papos infindáveis. Ano passado fez um bonito discurso, ao tomar posse na Academia de Letras da Bahia, descrevendo o que era a Bahia e o sentir-se baiano. Neste ano, em janeiro, houve festa na comemoração de seus 73 anos de idade, na sua amada Itaparica, seu ícone existencial. Que as luzes e a paz sejam o seu eterno emblema. w

Texto publicado no Facebook em 18 de julho de 2014 * Florisvaldo Mattos é poeta, jornalista e foi professor da Facom-UFBA bahiaciência | 71


resenhas

O gigante nunca dormiu Juliana Serzedello Crespim Lopes

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urante as manifestações de junho de 2013, muitos levantaram o slogan “o gigante acordou”. Referiam-se a uma força popular rebelde e política talvez inédita, já que paira na identidade brasileira o estigma apontado na letra do Hino Nacional de que estaríamos todos deitados eternamente diante da passagem da história. Essa suposta letargia ou falta de interesse em interferir nas questões de ordem social foi, muitas vezes, erroneamente apontada como característica inata dos brasileiros. Contudo, na história do Brasil e da Bahia, há fartos exemplos de agitações, revoltas e motins que tiveram as ruas como cenário, desde o período da dominação portuguesa, passando pelo período imperial, até a República. Um desses movimentos ocorreu na cidade de Salvador, no ano de 1798, e pode ser apresentado com diferentes denominações: Revolução dos Búzios, Conjuração dos Alfaiates, entre outros. Definido pelo historiador István Jancsó como “ensaio de sedição”, já que seus articuladores foram denunciados e presos antes da ação rebelde propriamente dita, este evento tem hoje grande importância, sobretudo por evidenciar a luta de setores negros (livres e escravos) em torno de pautas antirracistas e republicanas. Uma excelente e original abordagem desse movimento está em Bahia, 1798, de Luís Henrique Dias Tavares. Reeditado pela Edufba em 2012 como obra paradidática, o livro é de grande interesse não só para estudantes do nível fundamental, mas também para todos os brasileiros e baianos interessados em melhor conhecer a trajetória de lutas do nosso povo. Amplamente reconhecido no meio historiográfico, o autor transita com naturalidade nessa narrativa ficcional baseada em fatos históricos: lastreia suas descrições de personagens e cenários na vasta documentação pesquisada, e narra os desdobramentos da rebelião com a familiaridade de quem dedicou anos ao estudo das fontes do período. Junto ao texto estão as ilustrações de Cau Gomez, que reforçam a dramaticidade da narrativa e dialogam com força com o leitor. Texto e imagens se complementam, cumprindo o importante papel de informar, sem deixar de lado a fluidez da leitura e o interesse do leitor. Por ser ficcional, o livro evita a aridez dos textos históricos convencionais, sem deixar de lado o rigor que a historiografia exige. Indica, ao final, obras de referência

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para aqueles que desejam se aprofundar sobre o assunto. Entre os elementos que ganham destaque na narrativa de Dias Tavares, estão alguns pontos já levantados pelo debate Bahia, 1798 historiográfico: o cotidiano de Luis Henrique Dias negros livres, libertos e escraTavares vos na cidade de Salvador, que Editora Edufba 41 páginas - R$ 15,00 permitia a construção de uma rede de sociabilidades e a articulação não apenas de atividades lúdicas ou religiosas, mas também de insatisfações e projetos políticos contundentes. O dinamismo das relações comerciais e humanas na antiga capital colonial fica evidente no vai e vem dos personagens do livro. As demandas políticas antiescravistas e antirracistas das camadas mais oprimidas da população, em consonância com o discurso iluminista da Revolução Francesa que atravessara o Atlântico e chegava às colônias das Américas – redundando em diversos movimentos populares – estão ali, nos panfletos distribuídos pelos rebeldes dispostos a eliminar o domínio português da Bahia e as restrições de ordem racial e escravista que atingiam a maior parte da população. Vale apontar que, além de influenciar o movimento baiano de 1798, as ideias da revolução europeia ajudaram a construir, poucos anos depois, a impressionante vitória dos negros contra a escravidão e a dominação colonial de Saint Domingue, no Caribe francês. Não seria, portanto, em vão a luta dos baianos presos e executados em Salvador. A força de suas ideias continuaria a circular e faria parte de um amplo movimento histórico no Brasil e no mundo. Ao conhecermos a trajetória de tais movimentos, sabermos os nomes de suas lideranças, celebrarmos a memória dessas lutas, podemos afirmar, sem receio: o gigante jamais esteve dormindo. O povo brasileiro muitas vezes apontou caminhos diferentes dos que os poderosos previam. Algumas vezes obteve vitórias, em outras, sucumbiu frente aos poderes mais bem estabelecidos. Assim, lutadores e lutadoras das classes populares, não nos faltam razões para celebrar. w Juliana Serzedello Crespim Lopes é professora de história na Faculdade Cásper Líbero


Tensões éticas do progresso científico Silvana de Souza Ramos

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m Ética e Ciência, livro organizado por Eliane S. Azevedo e por João Carlos Salles, o leitor encontra uma série de artigos dedicados à investigação das tensões entre progresso científico e responsabilidade ética. A coletânea comporta diferentes abordagens do problema, desde a elucidação da gênese histórica da ética – e de sua ligação com os desafios impostos pelo ideal de emancipação humana – até a reflexão sobre o papel da universidade enquanto instituição produtora de conhecimentos e de valores. Pautado pela pesquisa interdisciplinar, o livro avança na contracorrente da especialização acadêmica, buscando abarcar contribuições provenientes da filosofia, das ciências naturais e biológicas, da pedagogia, da estética e da arquitetura no intuito de vencer a separação entre a pesquisa científica e a reflexão acerca do escopo ético do saber. No início da modernidade, Descartes propôs que a totalidade do conhecimento fosse compreendida por um sistema único, cuja raiz seria a metafísica e o tronco principal, a física. Da última brotariam os ramos pertinentes à prática humana, isto é, a mecânica, a medicina e a moral. Essa sistematização defende que a razão opera em todas as esferas do conhecimento, o que permite a construção de um sistema harmônico do saber, em que a teoria pode se desdobrar em conhecimentos práticos, não havendo entraves para a convivência entre o conhecimento puro e as suas aplicações úteis. No decorrer da história da modernidade, porém, o progresso da ciência e o consequente aprimoramento das técnicas fizeram prevalecer o caráter instrumental da razão e do conhecimento. Essa reviravolta foi ocasionada pelo próprio domínio da realidade proporcionado pelo progresso científico. Eis que se delineia historicamente o problema abordado por Ética e Ciência, pois a consideração da prática segundo termos meramente instrumentais tornou cada vez mais difícil manter a delimitação tradicional do lugar da ética. Além disso, o fato de a racionalidade ter se tornado exclusivamente técnica acabou por incidir sobre a nossa capacidade de produzir conhecimentos e tecnologias comprometidos com valores que extrapolem o mero desejo de dominar a natureza ou a necessidade premente de produzir mercadorias. A partir de então, corremos o risco de transformar a conduta humana num objeto de administração técnica a partir de parâmetros

científicos unilaterais, alheios ao compromisso com a dignidade da vida ou com o respeito ao meio ambiente e às diferentes culturas existentes. É inegável que a ampliação Ética e Ciência do conhecimento científico e o Eliane S. Azevêdo e decorrente poder de dominaJoão Carlos Salles (orgs.) ção das engrenagens da natureAcademia de Ciências da Bahia 232 páginas za trouxeram enormes contribuições para a vida humana. O crescimento da produtividade agrícola, o controle ou a erradicação de diversas doenças e o aumento da expectativa de vida são exemplos de melhorias trazidas pelo investimento em ciência e tecnologia. Analisado em seus aspectos positivos, o progresso científico e tecnológico parece não necessitar de qualquer controle. Porém, de acordo com as discussões alavancadas por Ética e Ciência, notamos que tal progresso trouxe como consequência o predomínio do caráter instrumental da razão e do conhecimento. Ora, esse modelo de racionalidade expulsa do campo do desenvolvimento científico e tecnológico uma série de valores que tradicionalmente ligavam a conquista do conhecimento à responsabilidade ética. Ao explorar a história dessa separação entre ciência e ética, e os perigos que ela representa, o livro busca novos caminhos para superar a dicotomia entre conhecimento e valores comprometidos com a democracia, a liberdade e a emancipação. Visando explorar esse desafio, o livro traz à tona perspectivas diversas, capazes de alimentar um novo modo de encarar a produção de conhecimento. Assim, centrado na imagem do índio brasileiro ou empenhado na visão inovadora de uma arquitetura ciente dos atuais problemas sociais e urbanos –, Ética e Ciência procura afrontar o predomínio do paradigma instrumental em proveito de experiências desenvolvidas no interior de uma estética multifacetada. Trata-se de provocar a ciência, mostrando que uma abordagem expressiva dos impasses que enfrentamos pode ativar um potencial criativo adormecido e abrir no horizonte a possibilidade de novas práticas. w Silvana de Souza Ramos é professora do Departamento de Filosofia da USP bahiaciência | 73


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A obra de Gregório de Mattos e Guerra (16361695), o “Boca do Inferno”, poeta baiano, filho de portugueses, tornou-se conhecida graças, em grande parte, ao trabalho de copistas anônimos que os perenizaram em códices apócrifos, no século XVIII. Enquanto ele viveu, no século XVII, seus poemas satíricos circularam pregados às escondidas por anônimos nas paredes de prédios públicos em Salvador. A partir dos anos 1970, há um notável recrudescimento do interesse por sua poesia, e entre os principais estudiosos que vão lhe conferir uma nova e inesgotável visibilidade está, sem dúvida, Fernando da Rocha Peres, ele mesmo poeta, além de respeitado historiador. Entre outros trabalhos de sua lavra que exploram a contribuição de Gregório para a literatura e a cultura brasileiras, é dele, junto com Silvia La Regina, o excelente livro, editado pela Edufba em 2000, Um códice setecentista inédito de Gregório de Mattos. Poucos anos antes, em entrevista ao jornal A Tarde a propósito dos 300 anos de nascimento do poeta (disponível em www.jornaldepoesia. jor.br/peres01.html), Peres observava que “ele é um barroco brasileiro, nativo”, ou, como ele chegou a dizer, “um barroco gentio”. Acrescentava que, “ao se expressar, na sua poesia, com esses falares ele revelou urna realidade local. Há uma poesia de Gregório de Mattos feita em Portugal, anterior a 1682, e uma poesia na Bahia depois daquele ano”. Para ele, o poeta seiscentista “é mestiço na poesia que fez. Sua poesia tem muita mestiçagem, até mesmo agressiva, na medida em que ele assume um papel preconceituoso contra o negro, o mulato. De modo algum ele pode ser considerado etnicamente um mestiço, um mulato. Era descendente de galegos que vieram da cidade de Guimarães e se instalaram na Bahia no início do século XVI”. No mesmo material de A Tarde, outro estudioso da obra de Gregório de Mattos, o jornalista e poeta João Carlos Teixeira Gomes, o Joca, comentava que “Gregório de Mattos era uma personalidade eminentemente satírica. Tendo vivido em Portugal grande parte de sua vida, ele tomou conhecimento da obra do grande poeta satírico espanhol Quevedo, que foi fundamental na sua concepção de poesia”. Observava que há estudiosos que dividem a poesia de Gregório em vários seguimentos tematico, “mas, o essencial para a literatura brasileira é o satírico”.

A hum Frade, que tratava com huã mulata chamada Vicencia

1 Reverendo Frei Sovella, saiba vossa reverencia, que a carissima vicencia poem cornos de cabedella; tam varia gente sobre ella vai, que nam entra em disputa, que a ditta hè mui dissoluta, sendo que em todos os Povos a galinha poem os ovos, e poem os cornos a puta.

3 Lá do alto verá vossê a puta sem intervalos tangida de mais badalos que tem a torre da Sé: verà andar a cabra mé berrando atraz dos cabroens, os ricos pelos tostoens, os pobres por piedade, os Leigos por amizade, os Frades pelos pismoens.

2 Se està vossa reverencia sempre a janella do coro, como nam vê o dezaforo dos Vicencios com a Vicencia? como nam vê a concurrencia de tanto membro, e tam vario, que ali entra de ordinario; mas se hé Frade caracol, bote esses cornos ao Sol por cima do campanario.

4 Verá na realidade aquillo, que já se entende de huma Mulher, que se rende às porcarias de hum Frade; mas se nam vê de verdade tanto lascivo exercicio, hé porque cego do vicio nam lhe entra no oculorum o Saecula saeculorum de huma puta de ab initio.

rino marconi

Gregório de Mattos (Emanuel Cavalcanti) declama no pátio do Solar do Unhão: cena do curta metragem A volta do Boca do Inferno, 1980, de Agnaldo Siri Azevedo; direção de fotografia de Rino Marconi


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