Uma pessoa asquerosa

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Uma pessoa Asquerosa ou de como sempre fomos aquilo que diziam

Roberta AR



Poderia deixar aqui aquele recado padrão que diz que isto se trata de uma ficção e que qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência. Mas direi mais que isso. O texto que segue pode causar um certo desconforto àqueles que prezam o que se chama socialmente de “moral e bons costumes”. A esses recomendo que façam outra coisa, que isto aqui não vale à pena. Digo mais: todo o incômodo, desprezo ou quaisquer desses sentimentos despertados pelas coisas insignificantes serão de sua inteira responsabilidade. A autora


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“Não bato nas crianças, não vou à pesca e não mato veados nem coelhos. Mas não atiro mal e gosto de acertar no alvo.” Wilhelm Reich, em Escuta, Zé Ninguém


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Eu consigo ver a sombra nas pessoas e isso me assusta. Antecipar o que há de sombrio nos outros deixou a mim mesma um tanto obscura. Ou ainda mais, não sei bem. Já não consigo mais separar a sombra que vejo nos outros da minha própria, matéria nebulosa que eu só consigo enxergar. Na verdade, isso não tem a menor importância, assim como não me importa nenhuma dessas pessoas em que eu vejo sombras. Não gosto de nenhuma delas. Esse ar detestável é o que me rodeia, é o que sou e justifica eu ser tratada como alguém desprezível. Hoje, estranho meu passado, quando fiz um grande esforço ao tentar me tornar amada e querida nos ambientes em que estive desde que nasci. Por sorte sempre fui lembrada da minha natureza vil, aquilo que alguns chamam de índole, mas que eu chamo de aquilo que me compõe. Não há como fugir do que somos na essência. Desde muito criança, sempre ressaltaram a pequeneza da minha existência. “Você pensa que você é gente?” (assim mesmo, com essa repetição enfática), ou então


“Você é uma bosta”. Frases ouvidas cotidianamente dos meus progenitores, que, afinal de contas, são as pessoas que melhor conhecem a natureza de seu rebento. Pouco mais tarde, na escola, minha insistente presunção, com um bom desempenho nas avaliações, fez com que os colegas me alertassem para meu caráter mesquinho e arrogante. Me chamavam de cu de ferro (caso alguém não soubesse de onde veio a sigla CDF), além de ressaltar aspectos odiosos do meu corpo em formação (ou deformação, se assim preferir). O nariz adunco, o cabelo ruim, a mão grossa de ajudar na construção da casa, a magreza, extrema para aquele tempo - eram realmente motivo para náusea. A sinceridade é uma maldade necessária e foi fundamental na minha autocompreensão. Minha fraqueza infantil não conseguia lidar com aquelas revelações. Uma estupidez que me faz pensar hoje no tempo que perdi angustiada e batendo a cabeça na parede para que a dor e os hematomas que surgissem fizessem a angústia daquilo que eu achava ser desprezo


passar. Não era disso que se tratava, claro, mas não é fácil para uma criança entender de que matéria é feita. Foi nesse tempo que comecei a ver nos outros, de maneira quase instantânea, o lado sombrio que tentam esconder.


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Pensava ser o rei do mundo, mas nem isso o tornava menos insignificante.


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No começo achei que esse talento tivesse o propósito de me defender da crueldade das pessoas. Um olhar, o tom de voz, o cheiro ou algum detalhe do tipo são suficientes para eu identificar alguém que acabará expondo o seu pior para mim. Percebo, hoje, que se trata apenas de empatia, ou de antipatia, o que não faz exatamente diferença nesse contexto. Ver o sombrio me alerta sobre os meus pares e o motivo é óbvio: não somos seres que possam conviver. Ai, o equívoco da imaturidade! Não foram poucas as vezes que me aproximei de pessoas ou insisti em certos grupos com a intenção de fazer amigos mesmo sabendo o que me esperava. Em todas as tentativas, rapidamente as desavenças já previstas iniciavam e minha proximidade era dificultada, o que sempre acabava num “ela não gosta de ninguém”. Mas claro! É essa a minha essência, apesar de eu ainda não entender, no tempo em que ouvia o que eu chamava de ataques, ou qualquer coisa melindrada do gênero.


Não. Não sou feita de matéria macia. Meus dedos são pontudos e incisivos e gosto de cutucar. Também aponto e falo de um jeito nervoso certezas de momento, que, boa parte das vezes, desminto em seguida. No passado, simulava a delicadeza e chegava a me desculpar pelo tom, que chamava de indignado. Não! Mil vezes não! Não mais. O que eu digo não importa. Não aos outros, porque eles não me interessam. Com uma não simulada pedância cito Nietzsche, que disse no prefácio de um de seus livros que “somente os dias vindouros me pertencem. Alguns homens nascem póstumos”. Eu nasci datada. O mundo está repleto de pessoas mesquinhas e eu sou supérflua. Este texto perecerá comigo.




O melhor de serVIP ĂŠ estar distante das pessoas, jĂĄ que se deixou de ser uma.


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Meu pai foi uma das piores pessoas que eu já conheci na vida. Não nego o sangue. Quem sai aos seus não degenera, não é assim o provérbio? Ele nunca me protegeu de nada, pelo contrário. Conhece aquela piada do judeu com seu filho? Pede para o filho para confiar e pular, o menino pula e se estabaca no chão. Pois esse foi nosso relacionamento até o fim de sua vida. “Se pelo menos você fosse homem”, ele dizia. Fui um trauma, eu sei. Mas me consola saber que nossa relação foi recíproca. Pareço até me importar, às vezes chego a pensar que me importo, mas isso não faz parte do que sou. Já a mãe gostava de ressaltar seus conhecimentos em beleza, uma longa vida de menina popular, que não largou até a velhice. Eu não, era a feia da casa. Tentava minimizar o desgosto dizendo que eu era inteligente, mas isso nunca foi um valor real para ela. É difícil, eu sei, lidar com um rebento que não atende sua mínima expectativa estética. Fora isso, ainda me faltavam as destrezas para o teatro social. Uma lástima completa.


Já os namorados... Tudo sempre encantador no início, mas, convenhamos, alguém como eu que chegou a imaginar que poderia ter um relacionamento sincero só se explica com muita negação. Negar a matéria escura que mora dentro. Sou mesmo gelada e isso queima a frio quem se aproxima. Quem nunca teve acolhida em família não tem destreza para lidar com o que isso pode significar, muito menos construir isso do zero. Apenas o que entende é abandono, desamparo, melancolia, frustação e solidão.




“Você só pode ser muito escrota para estar com alguém tão grosso”, disse ele para ela, se sentindo a pessoa mais gentil do mundo por ser sincero.


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Em minha insistência em me relacionar com pessoas de maneira fraterna (hoje me causa gargalhadas pensar uma coisa dessas), fui tratada como subordinada por parceiros, os que pretendia chamar de amigos. Uma reação que deveria ser esperada, porque seria ou eles ou eu, não é essa a lei dos iguais no desprezo? Eles apenas foram mais rápidos, entendo agora. E isso não aconteceu apenas no campo das “amizades”. A reação constante que causo por onde estou tinha que se repetir, obviamente, nos diversos empregos pelos quais passei. Incompetente, incapaz, burra foram alguns dos adjetivos recebidos de chefes. Quem gasta seu tempo querendo ser reconhecido pela competência só pode ser mesmo um estúpido. Essa espécie de síndrome de estocolmo que atinge as pessoas em seus ambientes de trabalho é a carência do novo milênio. Nem um milhão de livros de autoajuda serão capazes de harmonizar essas relações de mentira, ainda mais com uma pessoa como eu, intolerável de nascença.


É esta a minha jornada até eu sentar aqui e tentar descrevê-la. Tudo tão insignificante e vazio que se encerra em poucas páginas, irrelevantes e sem sentido. Depois de entender a falta de propósito de mim mesma, comecei a criar cascas do tipo “como fazer amigos e dominar pessoas”. Entendi o mecanismo que faz tudo girar. A minha essência permanece a mesma, mas, hoje, você não saberia me reconhecer entre centenas de pessoas com seus terninhos corporativos. Ou as outras tantas com suas roupas suadas nas academias cheias de espelho e com músculos estimulados por hormônios injetados. Ou, ainda, das tantas mulheres com suas caras inexpressivas de enzima butolínica, loucas de remédio para emagrecer ou de valium, tanto faz.


Sou uma dessas tantas iguais, com a roupa de marca que não cai bem, com a bolsa do free shop e maquiagem demais, que compro sem ter dinheiro para bancar. São tantas cascas em mim, que se minha máscara cair, eu mesma não saberei mais quem sou. Então, não me pergunte.


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Edições Facada 2012 facadaleitemoca.com ilustrações de Leonardo Da Vinci texto e diagramação: Roberta AR revisão: Milla de Paula


2012




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