Revista Subversa Volume 2 | n.º 4 | mar 2015

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SUBVERSA

EDIÇÃO ILUSTRADA JULIÊ CAROLINE & ISABELA JERÔNIMO SERIS MARQUES | AMANDA CIPULLO | FLÁVIA PRITSCH JORDANO SOUZA | ANDREA MASCARENHAS | LUISA FRESTA |JUAN TORO | SÁ NINGUÉM | J. CIPOLLA ESTEVAN KETZER | RAFAELA MANICKA | CABRAL PINTO SÉRGIO SANTOS 12ª Edição | Março/1 2015


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Subversa | literatura luso-brasileira | 12ª Edição © originalmente publicado em 02 de Março de 2015 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações: Juliê Caroline & Isabela Jerônimo Juliê: PORTFÓLIO | INSTAGRAM | julie_carolinejp@hotmail.com Isabela: jeronimoisabela@gmail.com

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.

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12ª Edição MARÇO DE 2015 AMANDA CIPULLO | © UM DOCUMENTO SEM NOME | 5 LUISA FRESTA | © A ESPERA|9 ANDREA MASCARENHAS | © ÁGUA FURTADA | 14 JUAN TORO | © CURTAS RAZÕES | 16 RAFAELA MANICKA | © NÁUFRAGO | 19 ESTEVAN KETZER | © APÓSTATA | 21 SÁ NINGUÉM |© MEMÓRIA QUE QUERIA SER AMNÉSIA| 24 J. CIPOLLA | © JÁ ESTOU MELHOR, OBRIGADA. | 27 SERIS MARQUES | © COTIDIANOS | 30 SÉRGIO SANTOS | © FAMÍLIA DE FORRETAS | 31 ESPECIAIS CABRAL PINTO | © DESPIEDADE | 37 FLÁVIA PRITSCH | © VIVO.MORTO.VIVO | 39 JORDANO SOUZA| © VIDA | 41

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EDITORIAL O trabalho de edição que temos desenvolvido aqui tem se mostrado cada vez mais interessante, a força motriz de todo o projeto da Subversa. É e sempre será o nosso carro chefe. Estudamos bastante, lemos bastante e escrevemos bastante. Primeiro, porque evidentemente é a nossa paixão e a nossa vocação, mas também para ter um conhecimento digno de resposta a um material tão complexo como um texto literário. E, mesmo estudando e lendo e escrevendo, a cada texto recebido e lido, aprendemos sempre e todos os dias, mais. Porque é justamente esta a questão, tal qual não cansam de afirmar os diversos teóricos da literatura. E é simples. O conhecimento teórico, as linhas de análise, tudo aquilo que aprendemos nos livros é incontestável, mas o que faz realmente uma boa leitura crítica é a capacidade de enxergar o que o texto provoca, enquanto um objeto artístico digno das mais diversas sensações, reflexões e perspectivas em seu leitor. E nos sentimos gratas pelo fato de bons autores nos confiarem esta leitura que nos ensina diariamente. Esta edição é cuidadosamente ilustrada por duas jovens artistas de João Pessoa, Juliê Caroline e Isabela Jerônimo. Temos procurado ressaltar sempre o nosso imenso prazer em divulgar estes trabalhos às redes de contato interessadas, pelo material em si, que é belíssimo e pelo trabalho experimental que estes artistas tem feito conosco, apostando também na literatura. O que estas imagens lhe provocam? Veja, leia e desfrute de mais uma Subversa. As editoras.

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© Isabela Jerônimo

UM DOCUMENTO SEM NOME Amanda Cipullo SÃO PAULO, SP Luzes azuis e vermelhas iluminam uma máquina caça níqueis, e outra de cigarros – por aqui, é assim que se compra palitos de câncer no pulmão. O lugar é pequeno, tabaco e maconha se misturam no ar, formando uma nuvem branca que cobre todas as cabeças e todas as histórias. Foi aqui que tudo começou? Um casal entra, falam mal inglês e carregam uma pequena mala. Perguntam se há vagas, o recepcionista responde, sonolento, que já está tudo completo. Eles vão embora e eu dou a primeira tragada no cigarro. De quem é essa história? Em frente à recepção, um cinzeiro acumula bitucas com marcas de

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batom vermelho. Três loiras dividem dois becks. Falam alto, em um idioma que não entendo. Dou mais umas tragadas no cigarro... De quem é essa história? Ele pede o terceiro whisky, com gelo, e uma vodka com coca-cola. Depois de dois tiros, ainda restam 3 camisinhas no bolso. Vira o whisky de uma vez, se levanta, dá um pequeno gole na vodka e caminha até a máquina de jogos – é o que resta para hoje. Perde naquela noite – talvez, como em tantas outras – mas a essa hora da madrugada, já não há diferença entre quem ganha e quem perde. Daqui a pouco, vai estar no conforto de algum banheiro, vomitando as tripas para se sentir vivo – e talvez esse seja o destino de todos nós. Não sei. De quem é essa história? Agora é a minha vez de pedir mais um whisky. Cowboy, sempre cowboy. O barman já sabe, então economizo palavras, apenas levanto o copo vazio e ele acena com a cabeça, trazendo a garrafa. Tudo parece simples. Depois da quarta dose, algumas coisas vão se organizando na cabeça, da mesma forma como as imagens iguais da máquina de caça níqueis definem o vencedor. Talvez, essa noite eu tenha sorte para colocar os pensamentos no lugar. Talvez. Então, me lembro que, no final, a máquina sempre ganha, essa é a regra do jogo. No final, a cabeça nos engole. Peço outra dose. Três ou quatro cidades. Oito ou nove dias de viagem. Uma quantidade indizível de camas pelas quais passei. Quartos sem calefação, aquecedores enormes e edredons que mantivessem o corpo aquecido. Ainda há mais pela frente. Quando penso em tudo isso, o tempo parece fora do tempo, os rostos se misturam... Minha mente tem sido traiçoeira. Talvez seja a maconha, o Jack Daniel's e o bacon em excesso... dizem que faz mal à saúde, tudo junto deve ser pior ainda. É, esse deve ser o problema. www.CANALSUBVERSA.com

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Já não me lembro se o colombiano se chamava Juan Carlos ou Juan P ablo, se tinha 23 ou 26 anos. Não me lembro quantas vezes trepamos. Mas acho que era ele que dizia “que rico” enquanto me comia. E o equatoriano? Como era o nome dele? Alex... acho que sim. Dois espanhóis, um sem nome – para mim pelo menos. Cara de palhaço, pinta de muchacho louco! Un chico com olhos de menino, que tirava lentamente as minhas roupas e olhava com tristeza quando eu as colocava de volta. Disso eu me lembro! Ainda consigo ver os olhos dele. E se nada disso for verdade? Eu nunca vou saber de quem são essas histórias, quais são as minhas e quais foram inventadas. Quantas falsas lembranças moram na nossa cabeça? O fato é que vim até aqui porque queria ver o abismo de perto. A loucura que há tanto eu temia que me devorasse e, logo na primeira noite, me lembro de ouvir a história de alguém que se debatia entre realidade e ficção. Ele ouvia vozes e dizia que talvez tivéssemos pouco tempo, que era provável que logo se perdesse de novo no abismo – a cabeça sempre nos engole. Me lembro de dizer a ele que não havia com que se preocupar: -

o mundo todo está louco e sanidade é algo que inventaram para

nos manter na linha, para que criássemos pontes que transpusessem o abismo, sem termos que olhar para ele, sem que desejássemos cair dentro dele. Alguns conseguem, outros não. E eu sempre tive curiosidade para saber o que existia embaixo, bem dentro, naquele lugar escuro que ninguém acessa. Por isso que eu vim até aqui. Por isso que cruzei oceano e cai no lugar mais estranho em que já estive – dentro e fora de mim. De qualquer forma, toda essa viagem deve servir para alguma coisa, para um conto ou algo do tipo, mesmo que eu ainda não saiba de quem é essa história. Se é minha ou deles... ou de todos nós. www.CANALSUBVERSA.com

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Ou se depende de quem conta. Enfim, a essa hora da madrugada, tanto faz. Na verdade, sempre tanto faz. Peço mais uma dose. Que as minhas memórias não me traiam, mas se traírem, nós nunca vamos saber.

AMANDA CIPULLO é formada em Publicidade e Propaganda, apaixonada por cinema e música; escritora entusiasta e aprendiz de atriz. Acredita que sem mistura não há repertório, tampouco, criatividade.

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© Juliê Caroline

A Espera LUISA FRESTA (Lisboa)

Todos os dias, consultava a sua caixa de correio. Porém, devido a um qualquer erro temporário de acesso, durante várias horas não pôde verificar as novas entradas. Quando finalmente o fez, mais por rotina do que por interesse real, quase não reparou naquele mail insólito, sem título, que lhe chegou de um remetente pouco frequente por aquela via.

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Isa era uma pessoa metódica e ordenada. Alguns colegas achavam-na obsessiva e diziam-lho com frequência, carinhosamente, mais para a embaraçar do que para criticá-la. Depois de descartar os numerosos spams e as mensagens reencaminhadas que apagava sempre sem ler, abriu finalmente aquela que viria a revelar-se a informação mais importante do dia. Embora não tivesse qualquer título, Isa acabou por descobrir um minúsculo texto que se resumia a duas breves e aterradoras palavras: «chego hoje». Por instantes chegou a duvidar da sua lucidez; com uma frieza que lhe era estranha, fechou a caixa de correio e voltou a abri-la: lá estavam as duas mesmas palavras lacónicas e um anexo com um cartão de embarque. Percebeu então que o seu “contacto” chegava nesse mesmo dia, às 10h55, em proveniência do aeroporto Charles de Gaulle, de Paris. «Terminal 1, voo AF 1024, companhia Air France», repetiu várias vezes antes de recuperar a sua pulsação habitual. Olhou para o relógio e verificou, apavorada, que eram 8h12 dispunha exactamente de duas horas e quarenta e três minutos para tratar da sua higiene, voar para as «Chegadas» e esperá-lo, mordendo-se de impaciência dissimulada, como tantas vezes haviam imaginado. Fingindo ler um livro sem entender uma única palavra, ajeitando o cabelo, cruzando e descruzando as pernas, olhando sem ver os transeuntes e as famílias que se reuniam com alarido. Quase se deixou tomar pelo pânico pensando na depilação que precisava já de um leve retoque, na pele que de repente lhe pareceu assustadoramente ressequida, nas olheiras profundas e numa teimosa borbulha que despontava,

vermelha

e

ameaçadora,

na

face

esquerda.

Os

abdominais não tinham ainda atingido o ponto desejado de hipertrofia, o cabelo não ostentava o brilho costumeiro e a sua insegurança prémenstrual não ajudava em nada! Depois de alinhar sobre a cama quatro indumentárias diferentes, (qual delas a mais inapropriada), decidiu-se finalmente por uma saia de ganga de corte muito feminino, algo rodada e com um folho discreto, moderna e confortável, à qual

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juntou uma blusa acetinada verde água que fazia sobressair o seu bronzeado incipiente. As outras roupas jaziam despeitadas pela cama: demasiado formais, apagadas ou pouco citadinas, por algum motivo teriam sido dispensadas daquele dia invulgar. Olhou de novo para o relógio: 8h31. Um pouco mais confiante, disse então para consigo que ainda sabia gerir o tempo sob stress, mesmo que isso resultasse numa maquilhagem mais imperfeita ou que se visse obrigada a deixar um ou outro frasco de creme aberto sobre a cómoda. Os cheiros femininos espalhavam-se ainda pelo quarto quando entrou no táxi em direcção ao

aeroporto

de

Lisboa.

O

taxista,

reservado

como

poucos,

proporcionou-lhe o recolhimento mental necessário para pôr em ordem todos os acontecimentos que tinham antecedido o inevitável encontro com o seu “contacto”, dentro de horas, que se transformavam em minutos a uma velocidade assustadora. Ismael era então um actor medianamente

conhecido

no

teatro

europeu

e

também

um

encenador e guionista muito respeitado no seu país. Reservado, fechado e volúvel, tinha-a conhecido durante uma entrevista on-line. Vinham mantendo contacto próximo e regular no universo virtual, pensado encontrar-se um dia, quando ambos sentissem esse apelo inadiável e consideravam-se carinhosamente o “contacto” um do outro. Ele dizia-lhe: «Quando a temperatura subir acima dos 35º em Paris, podes contar comigo em 48h!». Ela ria-se, contente com as brincadeiras inconsequentes, com as cenas que representavam juntos: a do encontro no aeroporto, a das peripécias no comboio para Évora, a dos passeios em Montmartre e a dos jantares no «13ème», situado na margem esquerda do Sena; pensou nas personagens e nas histórias que partilhavam madrugada adentro – A Bela e o Monstro, de Cocteau, encabeçando essa eclética lista - e nos guiões que escreviam a 4 mãos. E não o levava a sério, nunca, flirtando apenas com o destino. No entanto, essa ridícula profecia estava agora prestes a cumprirse, exactamente como ele tinha preconizado. Isa pagou a conta do

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táxi maquinalmente sem esperar pelo troco e entrou no espaço reservado à espera dos passageiros. O voo estava atrasado: «Que alívio!», pensou. Aqueles 10 minutos imprevistos permitiam-lhe reflectir sobre os vários cenários possíveis, num guião que ainda estava por escrever. Conhecia-o, até certo ponto: era um homem alto, confiante, de personalidade dominadora, com olhar incisivo, algo rude mas também excepcionalmente sedutor e envolvente, de onde em onde. Os seus passos eram seguros e amplos, as suas mãos esguias de uma beleza rara. Possuía o dom de dominar o espaço que o rodeava e a assistência rendia-se sem reservas ao timbre grave e invulgar da sua voz. Num segundo podia transformar-se na besta que às vezes parecia repousar, mal dominada, dentro da sua natureza selvática, o que só lhe conferia maior encanto e mistério. Estar perto dele significava viver em constante adrenalina, em permanente desassossego: recusava rotinas rígidas, frases feitas e comportamentos previsíveis. Tinha os seus próprios talismãs, ritmos e rituais, como o cachimbo de couro e cobre comprado num mercado da sua cidade natal, os cigarros enrolados, os vinhos escolhidos a dedo (millésimes) e a cozinha sofisticada e demorada; e impunha-os, mesmo involuntariamente, a quem com ele privasse ou se movesse nos seus círculos mais próximos. De repente o olhar de Isa parou num homem alto e atraente que descia a rampa com pouca bagagem, envergando um casaco de malha desportivo e um cap beige. O homem olhou-a com algum interesse, ela procurou os óculos na carteira, mas logo em seguida o seu olhar atravessou-a e foi poisar numa mulata vistosa que lhe acenava com os óculos de sol. «Falso alarme», pensou, sorrindo para dentro, e chegou a agradecer esse momento de paz, antes do decisivo encontro. Durante mais de meia hora viu desfilar diante de si toda a espécie de passageiros, muitos homens sós, alguns com o mesmo tipo físico daquele que esperava. Por fim, ao cabo de uma longa espera, desistiu de continuar a iludir-se: teria ele viajado sob disfarce, para poder ver sem ser visto? Teria perdido alguma mala? Com a cabeça

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confusa e sentindo uma tontura próxima do desmaio, julgou sentir um cheiro a um perfume conhecido. Dirigiu-se ao café mais próximo, a alguns metros apenas. - Faz favor…- o garçon empertigado impacientava-se com o seu olhar ausente. Finalmente conseguiu balbuciar: - Uma bica cheia, por favor. Entretanto já o empregado se dirigia ao cliente atrás de si, cuja sombra a incomodava pois não encontrava as moedas no seu pequeno porta-moedas de veludo negro. - E o senhor? - A mesma coisa que a senhora - respondeu a voz grave atrás dela, enquanto lhe colocava a mão sobre o ombro esquerdo e lhe afagava timidamente o braço.

LUISA FRESTA nasceu em Portugal e viveu a maior parte da infância e adolescência em Angola, país com o qual mantém laços de cidadania e envolvimento cultural e familiar. Dedica-se, sobretudo à escrita, escrevendo regularmente no Jornal Cultura - Jornal Angolano de Artes, no portal brasileiro O Gazzeta e na Metropolis, revista portuguesa especializada em cinema. Publicou em 2014 49 Passos/ Entre os Limites e o Infinito (poesia), pela Chiado Editora.

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© Juliê Caroline

[água furtada] Andréa Mascarenhas Salvador, BA

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< Na rua das albufeiras não há porto feliz >

teu desejo em linhas rasas formam ondas em meu ser pelas calles do coração há fremosas compulsões tem rostos assombrados epifanias de nós em asas de passarinho vão teus sorrisos e mais das abas de meus sentidos nascem nossos retratos e sós mares, desesperança outros dias, novos sais navego lembranças d’agora contigo digo adeus aos ais tuas noites, madrugadas nunca amanhecem como nós não há mais portos decadentes já nascem ruas em teus céu e sol brilham ruínas nesse instante reconstruídas todas por eco e voz

< Na rua das albufeiras não há porto só gente feliz >

ANDRÉA DO NASCIMENTO MASCARENHAS SILVA é docente da área de Literatura na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Ficou em 13º lugar no 'XII Festival de poesia, crônica e conto', organizado pela Fundação Cultural de Imperatriz – MA (2001) com o poema intitulado Procissão da espiritualidade.

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© Isabela Jerônimo

CURTAS RAZÕES Juan Toro São Carlos, SP

Corre muita coisa de tudo a uma velocidade estonteante nas madrugadas e nas tardes cobrindo o azul do dia com uma febre afastada da inocência do puro, indivíduo, iníquo solene

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Enrugado pelas coisas que correm nos lugares estáticos no corpo parado, estancado e encarando com a frente murcha escondendo os olhos do Sol do tempo que falta para a Lua para a noite que combina sábios e vazios, girando e correndo rapidamente pelas paredes intercalando os gostos e os princípios vitais da vida corrida e pouco vivida Curtas razões em ruas sem saída palavrões e correria pés quentes e ducha fria, curtas explicações abortam as missões com todas as amplas opiniões que se perdem e estreitam nas ruas ditas malditas avenidas, ofuscam o asfalto e entorpecem o andar plural curtas declarações batem à porta parece gente honesta, mas que pede porque a barriga ronca e a família cobra e a luxúria se torna se faz prazerosa Nada obriga nem a ganância da doce menina nada implica nem os palavrões do Estado que ganha em cima nada determina os dias e o respiro

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nem as atividades diárias nada consegue obrigar os atos nem o tempo climático nada impede tudo se faz riacho pedregulhos brumas

JUAN TORO é formado em Comunicação Social (2012) e mestrando em literatura (2014). Publicou Puxando a Rede (2014, Editora Multiofco), Estado de poesia e prosa (2014, Editora Buriti) e está trabalhando em seu terceiro livro,

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Nacadema, a sair pela Editora Kazuรก. Jรก participou em antologias literรกrias nacionais e internacionais. ร diretor e roteirista do curta metragem Silvano (2013).

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© Juliê Caroline

NÁUFRAGO Rafaela Manicka Curitiba, PR

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Lembro-me de me refugiar por uns dias naquela praia em que conheci você. Lembro-me de ter escrito várias vezes o seu nome na areia e de observar as ondas vindo na direção dele só para ter o prazer de apagálo naquele vai e vem infinito. Num misto de melancolia e sofreguidão, era como se o mar, com toda sua imensidão, viesse ao meu encontro apenas para me alertar de que tudo o que vivi teve um fim. Tudo o que um dia eu ousei em sonhar se estilhaçou ao chão com o baque da realidade. E não há motivo para tentar encaixar os caquinhos que o vento já levou. Aquelas cartas que escrevi estão todas inacabadas. São várias e, cada uma delas, traz um sentimento diferente. O envelope não está preenchido pois percebi que nem o seu endereço eu sei mais. Talvez seja por isso que essas cartas nunca chegaram ao seu destinatário final. E eu só não joguei todas no lixo por receio de algum dia precisar delas. O som da sua voz ainda me visita na calada da noite, a sua silhueta já está estampada nas sombras que inundam as paredes do meu quarto e o silêncio soa melhor do que qualquer música que tenha embalado o nosso amor. Os lugares já não são mais os mesmos e os livros que você deixou na estante já não me chamam mais atenção. Pudera eu ficar aqui estagnado nesse mar de desilusões, mas assim como um marujo abandona o seu posto quando avista uma tempestade mais a frente, é preferível naufragar em águas desconhecidas do que permanecer eternamente nessa solidão a dois.

RAFAELA MANICKA é formada em Publicidade e Propaganda pela Universidade Positivo e, desde 2010, possui o "Amanhã tanto faz", projeto literário onde posta textos que escreve sobre a vida em suas diversas formas.

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© Juliê Caroline

Apóstata ESTEVAN KETZER Porto Alegre, RS

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Relincho com tanta lassidão. São os cascos na terra seca o suficiente para despertar. No canto dos olhos está a tenebrosa elegância ereta daquelas patas. O campo imenso costumava chamar a família ao redor da figueira. Quanto tempo ficamos ali entre a casa e a árvore? Cuidarias de mim com prazerosa sombra para que a casa estivesse sempre ao abrigo do sol. E com a trovoada longa despertara a mãe dos monstros, mantida guardada e serena em meu coração ao longo de todos aqueles anos. Descobri o sagrado que há em um breve instante. Naquele dia jurei permanecer em pé apesar do medo de ver o horizonte nublado. Decidi ajoelhar e pedir perdão. Gesto tão ingrato esse, exigência estampada no rosto dos piedosos crentes. Porque a pergunta é espontânea, verdadeira, torpe dessa delinquência: por que reverenciar é um dever? Foi a velha noite que fechou minha mão com tanta força até chegar a coragem. Lembra aquele um e-mail recente cheio de orgulho e covardia. Linhas escritas para incitar a revolta nos vermes ao teu redor. Seria ousado entrar no baixio? Olhar a besta de frente para então desferir-lhe o primeiro golpe? Tu impedirias que o diabo me desse as tuas coisas mais profundas, pois ele se move sorrateiro. Bem perto se implantam ideias até explodirem minha cabeça impura, penetrando com sufoco o ânus, doendo na mudez, como as tuas palavras sem vontade, amarfalhadas e gastas, prontas a defender a consciência de tantos ataques. Ao menor dos pesadelos tu te obrigavas a engolir, restando ao final do dia este desejo contido de submeter aqueles que não estavam à altura de teus mais sublimes sentimentos. Isso foi tão lentamente até o ovo da serpente quebrar. E assim uma criança é sempre humilhada no outono. O silvo estridente indica que os alimentos saem das tripas como a merda indigesta do dia. Como é maravilhoso este matrimônio entre o céu e o inferno... É a chuva amarga da tarde, chega em monções delinquentes. Grande desfecho do teu filho sem olhos para ver ou mãos para tocar em todo o teu desejo. Aqui é tão escuro, pai! E já o teste inicia: calar em resignação. Fugir aqui nesta carta, feita às pressas, como um óbito sem a

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prova ou corpo estendido... Querias um filicídio para fazer o sacrifício que paralisa os pensamentos? Fim do jogo noturno. Vem, dê-me tua mão, teu sorriso, quero voltar para casa, cessar esse frio, te dar meus sentimentos, porque não fui capaz de te amar como tu és, nem amar essas mãos caprichosas e tão limpas, que nem sequer sabem o custo da intensidade do toque, ou nem mesmo podem te impedir desse crime delicado. É isso um ritual de iniciação? Posso morrer ao menos? Gritar? Lembrar ainda, para teus olhos decidirem como se observa a culpa bem distante? Não. Assim, manténs firme o segredo solitário como aqueles antes de nós o fizeram, com passos pobres e uma virtude escolar bem comportada, com teus dedos frágeis cheios de silêncio... Estar curado de um veneno, finalmente. A chuva parece mansa agora, enfim. Invade minhas têmporas, como se atendesse este antigo chamado de socorro. Abro os braços na grama alta para chegar ao solo. Será isso uma conversão? Estamos expulsos do paraíso? O que não devia ter começado, com o pulso aberto, goteja. É o preço da nossa herança.

ESTEVAN KETZER é psicólogo clínico. Doutorando em Letras pela PUCRS. Pesquisa a relação entre poesia, filosofia e psicanálise na obra do poeta Paul Celan. Além de ensaísta.

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© Juliê Caroline

Memória que queria ser amnésia Sá Ninguém LISBOA

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27 de Janeiro de 2015. Completam-se vinte e cinco mil e quinhentos e sessenta e oito dias desde a libertação do campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau. Há luzes e música e palmas e silêncio. Sentados em cadeiras de plástico, sobreviventes e gente-comum misturam-se de estômago constrito - como se partilhassem a mesma dor e memória. Mas a gente-comum não traz amarrado ao olfacto o cheiro fétido do fumo pesado. Na terceira fila, uma senhora treme. Treme há 48 horas. Não dorme há 3 noites. Ainda sente a fome dos 3 dias de viagem até àquele mesmo local, há 72 anos. De pé. Comprimida. Esgotada. Quando o comboio pára, a porta abre. A porta abre e ela é arrastada para a direita. A sua mãe, para a esquerda. Para um pavilhão. Uma barraca. Uma câmara. O escuro. Os gritos. O ar que asfixia. A morte. O fumo. O cheiro. São três da tarde de um verão quente. A piscina azul povoada de gente em fatos-de-banho. De fundo, uma pequena orquestra faz ouvir "It's now or never". Ainda hoje chora. Tamanha ignorância de não saber que o que viveria com a sua família nessa tarde de sol, seria somente então. E nunca mais. Rasgo sonoro nas colunas que transportam música. É Hitler que grita louco - devem morrer. Três dias se passaram desde a chegada a Auschwitz. Tem 15 anos e os sonhos aniquilados em vedações de arame farpado. Ao longe, alcança a figura do pai que marcha junto com outros homens. Um pelotão de gente perecível. Esconde-se. Não quer que o pai a veja assim. Assim. De cabelo rapado e pele suja, metida num pijama desajeitado que não se faz ao corpo. Mas os olhares voam e acorrentam-se um no outro. Choram e não percebem. Sentem somente o insustentável peso de algo terrível que vive naquele local. A morte. Correm três meses numa marcha lenta, até um oficial russo atravessar a terra gasta e respirar-lhe que a guerra terminou. Tem 17 anos e 35 quilos de ossos. Não sabe onde está a mãe. Não sabe onde está o pai. Não sabe

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para onde vai. Não sabe quem é. É uma sobrevivente. Acorda em Auschwitz. Adormece em Auschwitz. 27 de Janeiro de 2015. Há música e discursos e palmas. E gente de fato-e-gravata que nunca viu um pijama-às-riscas. Mas julga saber e conhecer e aplaudir a dor de quem perdeu a dignidade naquele chão. De quem perdeu nome e se fez número. De quem retorna àquele lugar sem sede de música e discursos e palmas. De quem se contorce na cadeira de plástico. De quem tem olhos e ouvidos cerrados para só estar ali em corpo. E o espírito noutro lado qualquer.

SÁ NINGUÉM é licenciado em Antropologia, tem sede de terras, de mares, e de gentes. E de solidão. Precisa de tempo fechado em si; e só então tem espaço para o mundo. Escreve. Porque as palavras são-lhe oxigénio. Publicou o seu primeiro livro, Terra, enquanto autor independente. Podem seguir textos e novidades em www.saninguem.com

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© Juliê Caroline

Já estou melhor, obrigada. J. CIPOLLA São Paulo, SP

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já estou melhor obrigada voltei a cortar as unhas no chuveiro (não passam no ralo, guardo jogo na terra úmidas o cálcio faz bem para a pele) (( a queratina é uma proteína fibrosa porque a sua estrutura tridimensional lhe confere características especiais (...) )) a queratina – é sua melhor amiga faz 15 graus no brooklyn e os gringos tomam café doce puro (doce orgânico e frutado favor não confundir com açúcar de cana) 30 graus onde deixei parte de mim na volta pra casa dizem que foi extravio mas eu sei onde escondi a mala sob o piso do apartamento (entre a geladeira e a máquina de fazer torradas mas não contei pra ninguém) não é segredo pois as coordenadas variam com o estado de ânimo hoje monitoro daqui – há anos já existe aquilo de CONTROLE UNIVERSAL a areia, na mesa, faz meus dentes rangerem com feijão (se escondeu no saleiro no lugar do sal e do arroz – pra umidade) para você ver, querida, que sal demais não faz bem. deixei a porta destrancada mas sempre que saio surto como se tudo fosse bem “ metrô / subway -> “ (à direita)

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e sinais de cuidado cigarro dá câncer”. e à noite no cinema a brigada de incêndio está a postos em caso de emergência. já estou melhor obrigada.

J. CIPOLLA estudou Gastronomia e Letras, mas sempre quis estudar Artes Plásticas. Gosta de plantas, de cozinhar. É artista e escritor.

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© Juliê Caroline

COTIDIANOS Seris Marques Fortaleza, CE Era um evento gastronômico qualquer... desses que só pode comer depois de tirar uma foto do “pratinho gourmet” (pensamento azedo esse, melhor guardar contigo, deixe que as modernidades falem por si) Famílias, casais de namorados, um cenário bem agradável de se ver, quase de novela... Fomos. Eu, vinte e nove,

ela três. Ambas com a cumplicidade

mútua e silenciosa que o andar de mãos dadas reserva à vida. A música era agradável, porém alta demais. Comemos um cachorro-quente sentadinhas, embaladas pelo ritmo e alvoroço ao nosso redor. Ela olha, mastiga, reflete... -Mamãe isso é uma festa?! Dou um beijo e penso cá comigo sobre toda essa inocência: Isso mesmo, minha pequena, uma festa sinto dentro de mim por que você está aqui ao meu lado.

SERIS MARQUES é mãe, estudante de enfermagem e escreve informalmente.

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© Juliê Caroline

Família de Forretas Sérgio Santos Barreiro, Portugal

Eles eram mesmo inacreditáveis, nunca vi ninguém assim. Culpa certamente do lado materno da família, três irmãs que educadas tentaram moldar a descendência e causaram estragos inimagináveis. Da província donde vieram, sofreram agruras, aprenderam a contar os poucos tostões que tinham com uma educação férrea a chicote, os progenitores rapavam o tacho com arranca-pregos. Todas elas eram temíveis, monstros da poupança com recursos inimagináveis, e das três a mais nova era a mais fanática, dir-se-ia que à medida que iam nascendo a forretice aumentava alucinadamente. A mais velha apesar de seriamente doente era a mais contida e a do meio tinha já sintomas agravados de fúria selvagem.

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Vamos analisar então a família Ribau, onde a irmã mais nova é a matriarca da família, indominável farol da poupança. Celestina Ribau, 62 anos - Trabalhou durante muito tempo como costureira e trata dos afazeres da casa, como o marido teve muito tempo embarcado como cozinheiro numa carreira marítima, raramente regressava ao lar. Infortunadamente teve um acidente quando os filhos ainda eram novos e faleceu, coube à mulher a missão de continuar a educá-los. De mentalidade espartana, era exigente, nada de brinquedos ou luxos, de nada serviam as gritarias da miudagem apelando a um qualquer doce, a resposta era invariavelmente "Não"! Visitas de estudo com comparticipação dos encarregados de educação só em fantasias, ficarem fechados no quarto fortalecia o carácter e afastava os perigos. A propaganda era constante, os maus exemplos eram citados, ser “esbanjão” perdulário não chega a ser um horror é mesmo o inferno! Com altos gritos, vilipendiava as vizinhas doidas e as suas famílias que gastavam o que não tinham, mas avisava, na queda o castigo seria temível, o que era muito bem feito. Nas compras o seu olho de falcão não perdoava, era capaz de andar quilómetros só para ir fazer compras no local que lhe oferecesse o melhor preço. Tudo em casa tinha que durar mais do que era suposto, um rolo de papel higiénico obrigatoriamente teria que ser usado apenas num mês, mesmo com algum esforço, com quatro pessoas a morar em casa ao fim de uma semana ele acabava. Todos teriam que usar material alternativo para colmatar a falha, imaginação não faltava e lá se encontravam soluções. Apesar de atualmente os filhos serem já crescidos, aprenderam bem a lição da "poupança" tendo inclusive superado a progenitora de forma notável. Foram de tal forma moldados que hoje florescem exibindo a sua admirável forretice de 1ª água. Mário Ribau, 38 anos - Tirou o curso de arquitetura, tem casa própria, mas mora a pouca distância da mãe, como habita sozinho o lar onde vive,

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todos os dias vai a casa da mãe comer o almoço e jantar, poupando uns preciosos trocos. Costuma armazenar um grande monte de roupa suja que traz para a casa da mãe onde será feita a lavagem, não comprou uma máquina de lavar roupa, tendo feito aí uma poupança engenhosa muito útil, além de evitar um esforço inútil e burocrático que lhe roubaria dinheiro e tempo para outras funções mais vitais. Adora ir passear a centros comerciais e lojas e munido de calculadora e com a sua agenda está sempre atento às flutuações dos preços. Escusado será dizer que está em alerta geral na altura dos saldos, faz uma marcação cerrada quando procura um determinado produto ou bem. Capaz de esperar algumas horas antes da loja abrir com a gula de ser o primeiro a saborear a conquista da preciosa pechincha. Arranja todas as desculpas inacreditáveis para se desculpar perante os seus amigos e colegas para não ter que comer em restaurantes, seria uma despesa incomportável que traria danos incalculáveis. Ir a bares e discotecas jamais, seria um dispêndio inútil, perdulário e devastador. Oferecer prendas, só mesmo por obrigação e de preferência adquiridas em lojas de conveniência e de baixo valor. Só de pensar que terá que oferecer a um colega um par de meias chinesas em 2ª mão, o coração até dói. Apesar de ter a carta de condução nunca comprou um veículo automóvel, prefere viver à custa da boleia dos outros. A maneira como arranja amigos é absolutamente cínica e calculista, existe uma ponderação muito cerebral na escolha das amizades em virtude da utilidade. Por exemplo o vizinho do lado está já aborrecido com o assédio constante e neste momento mantém uma distância incómoda o que traz alguns transtornos inevitáveis. Porque não tentar conhecer melhor o vizinho do andar de baixo, terá que existir um estudo exaustivo a respeito de horários e rotina de vida. A "sanguessuga" terá que estudar bem a vitima para a espoliar da maneira mais eficaz e duradoira. Existem também os transportes públicos e os documentos forjados para ter o desconto no fim do mês são um agradável alívio. Nada como

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chular o Estado e o dinheiro dos outros. Existam abusos e fracos recursos de proteção e nunca faltará vontade para o "Robin dos Bosques" praticar a sua justiça, roubando de todos para ele. Na verdade ele é um herói, a sociedade de consumo institui armadilhas de desejo para que os imbecis se suicidem com as suas parcas poupanças. Não ele, qual vietcongue rebelde, no seu esconderijo subterrâneo subverte as regras e tem uma vida de rei à sua maneira. Márcia Ribau, 36 anos - Bem, entramos agora num novo nível, esqueçam palavras como pão-duro, sovina, bola elástica surge um novo e mais potente termo, que é "Marcinar". Ela recusa-se a sair da casa dos pais, casar, praticar atividades tempos livres, enfim ter vida social ou mesmo vida própria, tudo isso custa dinheiro e traz muitos transtornos e trabalhos. A vida dela é simples: comer, dormir, trabalhar, necessidades mínimas e mais nada... O pequeno-almoço é sempre o mesmo, sopas de pão duro do dia anterior com leite barato quase no limite do prazo de validade. O emprego fica a dois passos de casa, poupança muito útil, evita pois gastar fortunas em deslocações. Apesar de ter habilitações literárias superiores para uma simples empregada doméstica, optou por esta profissão para ganhar mais dinheiro. Ruben Ribau, 23 anos - Benjamim da família, mas mostra já o seu potencial, sente horrores só de pensar que pode ter que pedir dinheiro à mãe ou gastar a sua mesada de cêntimos. Opta pelo roubo, poder-se-ia dizer que o faz pelo prazer da transgressão e rebeldia, mas não! Trata-se de uma opção cerebral e ponderada e dessa forma consegue fazer grandes poupanças. Roubar ourivesarias e bancos, meter-se em tráfico de droga... Ridículo! Demasiado perigoso... Gamar um Bollycao, sumos e mesmo pão é igualmente vantajoso e muito mais inteligente numa estratégia a longo prazo.

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Bilhetes de concertos, assistir a jogos de futebol, entrar em discotecas de consumo mínimo... Ele consegue fazer tudo isso sem gastar um vintém, ou contrário dos irmãos, a fama de forreta é bem dissimulada, na calada ele comete as ilegalidades que o salvam. Surripiando, engendrando esquemas contorna os obstáculos. Comprar um carro? Rouba-se um. Comprar gasolina para abastecer? Com uma bomba consegue surripiar o combustível dos carros dos vizinhos, arranjou cópias das chaves da tampa do depósito e pela calada da noite lá enche o material do saque num pequeno bidão. Tem tanto sucesso que nem precisa ter um emprego fixo. A forma como arranja pequenos trabalhos temporários tem sempre por trás uma necessidade, se precisa de fazer cópias de chaves vai trabalhar numa loja onde fazem esse serviço, aproveitará os recursos da loja para servir-se a ele próprio e aos seus interesses. Várias vezes pensa neste assunto, se um dia for apanhado e for para a cadeia o que poderia ser um problema, afinal até pode ter virtualidades. Nunca iria poupar tanto se não estivesse lá, alojamento e alimentação gratuitas, com o serviço de saúde prisional à sua disposição caso fosse necessário. Preocupa-o a vida agitada que ele tem, gostaria de ter mais tempo para desenvolver as suas necessidades intelectuais, ali num quarto só para ele, talvez pudesse transformar-se num escritor de sucesso, sem distrações a produtividade dele seria fabulosa. Era capaz de ganhar milhões e quando fosse posto em liberdade poderia gastar tudo numa reforma dourada e aproveitar os últimos dias em grande.

SÉRGIO SANTOS é designer, formador, autor de banda-desenhada e escritor, no tempo livre.

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ESPECIAIS

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© Luciana Belinazo

DESPIEDADE Cabral Pinto VILA NOVA DE CERVEIRA 38


Na cidade onde os muros fecham as portas e as valas da cegueira são profundas a iniquidade dos homens resvala lenta e silenciosamente nas vielas da tortura. Sozinhos, circunspectos, os senhores do mal caminham pelas ruas da mórbida crueldade. Que sonhos misteriosos têm os deuses da infinita desumanidade!

CABRAL PINTO é professor, artista plástico e poeta. Publicou o 1º livro de poesia, “Coisas de Nada” em 2014 e, actualmente, além de estar trabalhando no seu segundo livro de poesia, é Consultor Cultural na Fundação da Bienal Internacional de Vila Nova de Cerveira.

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© Luciana Belinazo

Vivo. Morto. Vivo Flávia Pritsch PORTO ALEGRE, RS

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Andei por aí, pelo mundo e depois nasci. Sem saber porquê, ia seguindo. Quando quis parar de andar, não me deixei. Até que nasci. O nascimento foi a introdução de um sentido; a invenção de um motivo. Enquanto era um semimorto-vivo (a alma estava adormecida, não morta) vaguei pelas ruas, parques, escadas, corredores, camas.

Não suguei o

tempo; antes, joguei-o fora, para longe. Disse palavras absurdas e adoeci, pois doentes eram os meus pensamentos. Cravei meus dentes em pescoços, machuquei, mas não me feri. Semimortos-vivos não sentem. São palhaços, mas não sabem; tem pressa, mas não sabem de quê. São tolos, ingênuos, tristes. Não sabem para onde ir, porque já estão meio enterrados. Sentem a terra sob seus pés, subindo em seus joelhos, grudando-se em seus pelos. Eu a sentia se aproximar de minhas coxas. Reagi. Quando nasci, dei um chute no ar, atirando a terra que me cercava para longe. Houve uma testemunha. Ela assistiu de longe, enquanto meu grito, sem som no começo, foi aumentando e se prolongando, afastando de mim todo ar podre que eu respirava. Ela sabia quem eu era até então, mas não sabia no que me tornaria. Eu já havia cravado meus dentes em seu pescoço, sugado seu tempo e tentado me adonar de sua vida, mas ela resistira a tudo. Agora, muda, me assistia de longe e, pacientemente, me aguardava. O tempo entrou em meus pulmões e eu passei a inspirá-lo com cuidado. Tive que aprender a esperar. A escolher com atenção a cama em que me deitaria. Minhas palavras não eram mais o vômito de antes. Aprendi a não procurar por pescoços para saciar minha sede por vida. Eu a saciei no mundo, na arte, no som, na cor. Mas, o mais difícil e que tirou de meus pés o único resquício de terra que ainda sobrava, foi habituar-me aos meus olhos totalmente abertos, vivos, por onde a alma, agora desperta, não cessava de pedir que eu não os fechasse, nunca mais.

FLÁVIA PRITSCH é estudante de Letras e atualmente procura nos livros o tempo perdido.

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ツゥ Banksy

Vida Jordano Souza Sテグ GOTARDO, MG

Um carro velho Casa simples Cテエmodos pequenos Cozinha com azulejos caテュdos Quintal com grama alta (mas verde)

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Cachorro cansado Ração barata Água corrente saciando a sede Cordas enferrujadas Violão enferrujado Relógio parado Tempo sem usar.

Precisa de mais? Temos condução Abrigo Lar Comoção Admiração Mais?

Essa imagem Amarela Preta Branca Essa imagem Real Bem vivida Viva

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No seu olho No meu É vida.

JORDANO JOÃO BATISTA DE SOUZA escreve desde a adolescência, já publicou vários poemas em blogs e revistas digitais, tendo alguns textos classificados em concursos. Atualmente o autor se dedica aos Haicais e poemas sobre o cotidiano. Depois de passar por Goiás e Brasília, voltou a morar em Minas Gerais, onde continua escrevendo.

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Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

Colaboração especial: Juliê Carolina e Isabela Jerônimo

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