Revista Prea 23

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e n c a n t o Homero Homem

“Eu fecho os olhos e sou capaz de reconstituir as ruas, as casas, as pessoas, os lugares,os sabores, os ventos, a paisagem marítima, os mangues, os perfumes daquele mundo, aquele universo de deslumbramento, de encanto, de impacto, que é o despertar da consciência e da sensibilidade da criança para a realidade que a rodeia. Guardo até certos registros físicos, como este dedo que tem um corte profundo, produto de um dos meus primeiros deslumbramentos poéticos. Eu sempre paguei um alto e sofrido pedágio à poesia. Era um animal lindo, azul, que caminhava pelo campo no período que se chamava ‘andada dos caranguejos’. Era um goiamum maravilhosamente azul, de olhos levantados como uma antena, e que entrou de casa adentro. Eu me fascinei por aquele bicho inusitado que eu não sabia o que era – me parecia uma coisa cordial e amiga; então, fui pegar e ele me pegou no dedo. Machado de Assis fala naquele cachorro do Rubião que guardou a memória das pancadas; eu guardei a memória de muitas pancadas, embora tenha perdoado e sublimado muito. Mas essa primeira pancada, como represália e resposta ao impulso ingênuo, puro e lírico – essa eu não esqueço, porque a marca dela está no meu dedo.” [Homero Homem, em entrevista gravada para a Fundação José Augusto, início da década de 1970, e publicada este ano em Conversas de poetas, FJA, 2011] Homero Homem (Canguaretama, 1921 – Rio de Janeiro, 1991) foi jornalista e professor universitário, radicado no Rio muito jovem. Estreou na poesia com A cidade, suíte de amor e secreta esperança, em 1954. Também escreveu contos, romances e novelas infanto-juvenis. Segundo Wilson Martins, “a sua poesia é, antes de mais nada, uma reafirmação da Poesia, em respostas implícitas aos que lhe proclamaram o desaparecimento ou procuraram renová-la por meios antipoéticos”.

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