Revista Fale Mais Sobre Isso

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Imagino que, ao longo da sua carreira, o Sr. Já tenha tratado e ouvido muitos médicos... Eu tenho, ainda, pacientes médicos. O Sr. consegue enxergar esse contraste entre a formação e a realidade que os médicos vivem, e que traz a angústia contrária à formação onipotente que recebem? Sim. A grande dificuldade é lidar com a perda dessa onipotência para se tornarem humanos. Por falar em médicos, nós sabemos que existem psicólogos e psicanalistas radicais contrários a qualquer medicação. E existem também aqueles mais flexíveis que pedem suporte à medicação. Qual é a sua posição? Eu peço suporte. A minha posição é essa. Se o discurso do sujeito se torna incoerente, ou ele está muito agitado, ou se não consegue dormir, ou muito agressivo, ele precisará, naturalmente, de um tranqüilizante. Eu recomendo que ele procure um clínico geral ou até um psiquiatra se for o caso, dependendo dos sintomas que ele apresenta. Se eu não posso medicar, encaminho o paciente a outro profissional. Eu respondo “olha, rapaz, o remédio eu não dou. Você deverá procurar um clínico geral, vai explicar para ele o seu caso, e ele vai ver se realmente é caso de medicação ou não”. O paciente pode dizer “mas o Sr. é Dr.!”. Eu digo: “Sim, mas eu não posso medicar. Eu sou psicólogo”, e fecho isso, não digo boicotando o paciente. Assim explico para ele que existem limites até para você atendê-lo e que não são aqueles que ele quer. Ontem mesmo me telefonou uma senhora dizendo que queria fazer uma consulta comigo, mas que queria também um atestado para ela ficar pelo menos uma semana afastada, pois não estava conseguindo dormir. Eu disse a ela: “eu nem conheço a senhora e a senhora já está me pedindo um atestado? Sinto muito, mas acho que a senhora deve procurar um médico, pois se for caso de insônia e precisar, ele vai atendê-la”. Existem esses pacientes que trazem o diagnóstico no bolso para te convencer a aceitar o jogo neurótico deles, uma maneira de monopolizar tudo para não se fazerem responsáveis. Agora, todas essas coisas acontecem pela experiência e pelo discurso. Se você não quer jogar, ele continua o trabalho terapêutico ou te abandona. Como foi o início da sua experiência profissional em Uberlândia? Eu estou aqui há 30 anos, com forma-

ção em São Paulo, e eu comecei fazendo um monte de coisas dentro da psicologia: acompanhando escolas, orientação vocacional, fiz também testes psicológicos, essa coiserada toda, orientação de professoras, palestras em instituições e coisas básicas de modificação de comportamento. Depois, eu mudei para o setor de clínica quando começaram a aparecer os casos “mais graves” e as neuroses estabelecidas. E isso foi a construção de uma identidade profissional dentro de Uberlândia quando não tinha quase ninguém trabalhando em Psicologia. Um ano mais tarde começaram a aparecer os novos formandos da UFU. Alguns vieram pra mim, muitos até, fizeram terapia comigo e com outros colegas profissionais que se mudaram para cá. Então nós somos referenciais de um início da psicologia em Uberlândia como atuação. E acho que foi uma coisa muito positiva, por que aprendemos o que podíamos fazer dentro dessa realidade.

O Senhor atendeu a muitos psicólogos e psicanalistas? Não escolhemos clientes. Muitos colegas psicólogos estiveram comigo e eu também já fiz terapia e análise. Todo terapeuta deve buscar ajuda quando suas dificuldades pessoais interferem no se u trabalho. O terapeuta deve ser uma pessoa despojada dessa onipotência de tudo resolver. É preciso haver essa permeabilidade entre o profissional e aquele que o dá suporte tanto quanto do profissional com o seu paciente que chega, naturalmente, em crise. Eu me lembro de história de uma pessoa que me colocou a seguinte coisa: nós estávamos fazendo especialização em psicanálise e uma menina conta que ela estava com uma paciente que achava muita dificuldade em cuidar da mãe doente, da mãe que precisava muito dela. Uma noite, com uma chuva danada, a moça ligou em prantos dizendo que a mãe estava muito mal e que ela não sabia o que fazer e que precisava muito que a terapeuta desse suporte para ela e se possível para mãe dela também. A terapeuta disse que não poderia ir e que no horário dela, no dia seguinte, conversariam. Aí ela vira e pergunta para o nosso analista supervisor se aquilo estava certo, se aquilo era o que ela deveria fazer já que não podia misturar amizade com trabalho. O supervisor

olhou para ela e perguntou: “Fulana, o que você gostaria de fazer? Qual era o seu desejo?”. Ela disse: “meu desejo era de correr lá e ajudá-la!”. O supervisor retrucou: “E por que não foi?? Olha, vocês são muito teoria, vocês precisam deixar as teorias no lugar que elas estão lá nos livros escritos, aprender o que é possível e o que não é possível, mas também trabalhar os seus sentimentos em uma situação como essa”. Ficamos em silêncio, envergonhados, mas aprendemos mais uma lição. Assumir nossos sentimentos sem nos sentirmos culpados. Em uma outra supervisão ele nos diz: “Falamos e tratamos tanto de neuroses, mas eu gostaria que vocês me respondessem o que é neurose para vocês?”. Começamos a responder “ah...neurose, segundo isso, segundo aquilo...”, arranjamos mil teóricos para falar de neurose, e o supervisor ironizou e tirou o maior sarro com a cara da gente, “que brilhantismo! Vocês são realmente intelectuais dos livros, da tecnologia, e tudo mais...mas, gente, o que é neurose? Como é possível tratar de uma coisa que não sabem o que é?”. Silêncio. Alguém se atreveu a perguntar “se tudo isso não é neurose que a gente aprendeu tanto aqui e em outras escolas, o que é neurose???”. E ele: “neurose é um presente que você ganha do seu pai e da sua mãe quando você nasce”. Acabou. Derrubou a gente. A gente nasce perfeito e fica neurótico. Neurótico por que recebe não, recebe sim, recebe pode, não pode, você começa a não saber qual é o lugar e pra onde você vai. A gente caiu na risada depois, mas na hora ficamos com cara de bobões. Mas é assim que a gente aprende. Para terminar, qual recado o Senhor deixaria aos estudantes recém formados em Psicologia? Que eles aprendam pela experiência e que eles tenham, verdadeiramente, um projeto de levar à sério a opção que fizeram e fazer as transformações advindas dessas mudanças que estão acontecendo no mundo, em favor do crescimento humano, da própria melhora na qualidade de vida das pessoas e, não digo, desmanchar a neurose, pois ela sempre existirá. Nosso objetivo é atenuar os processos das neuroses das pessoas diante da realidade de um mundo em constantes mudanças.

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