Relatorias em Direitos Humanos: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil

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RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil Plataforma Dhesca Brasil l Curitiba 2012


RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil

PUBLICAÇÃO:

Plataforma Dhesca Brasil COORDENAÇÃO:

Alexandre Ciconello, Andressa Caldas, Darci Frigo e Maria Luísa Pereira de Oliveira ORGANIZAÇÃO E REDAÇÃO:

Laura Bregenski Schühli e Jackeline Danielly Freire Florêncio COLABORAÇÃO:

Anderson Luiz Moreira PROJETO GRÁFICO:

Saulo Kozel Teixeira DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO:

SK Editora Ltda. REVISÃO:

Silmara Krainer Vitta APOIO INSTITUCIONAL:

EED, ICCO, Fundação Ford e HBS IMPRESSÃO:

Maxigráfica TIRAGEM:

1.000 exemplares Agradecemos a todos(as) os(as) relatores(as) e assessores(as) que, com muito afinco, nesses últimos dois anos, lutaram para investigar, denunciar e propor soluções para diversas violações de direitos humanos identificadas em todo o país nesse período.

É permitida a reprodução deste material, desde que citada a fonte e que não seja utilizada para fins comerciais.

Relatorias em Direitos Humanos: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil ISBN: 978-85-62884-07-8 1. Direitos Humanos; 2. Relatores Nacionais.

CONTATO:

Plataforma Dhesca Brasil Rua Des. Ermelino de Leão, 15, cj. 72, Centro 80410 230 l Curitiba – PR www.dhescbrasil.org.br l secretaria@dhescbrasil.org.br


RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil

Plataforma Dhesca Brasil Curitiba l 2012


Índice Apresentação

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Sobre a Plataforma Dhesca

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10 anos das Relatorias em Direitos Humanos

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Entrevista com Jean Pierre Leroy ...................................................................

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Composição das Relatorias em Direitos Humanos – 2009/2011

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Mapa e quadro das missões realizadas

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Relatoria do Direito Humano à Cidade

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Grandes empreendimentos urbanos e megaeventos esportivos no Brasil: dilemas e desafios do direito à cidade ...........................................................

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As missões da Relatoria do Direito à Cidade – 2009 a 2011 .........................

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Entrevista com Marcelo Braga Edmundo: O direito à moradia e as consequências trazidas pelos megaeventos esportivos ................................

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Relatoria do Direito Humano à Educação A garantia do direito à educação de qualidade: o desafio persistente das iniquidades ............................................................

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Relatoria contribui com informe sobre gênero e educação do Cladem ........

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As muitas faces do racismo ...........................................................................

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Intolerância religiosa e a atuação da Relatoria de Educação ........................

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Entrevista com Antonio Bispo dos Santos: Os desafios das comunidades quilombolas na luta pela terra .................................................

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Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente Modelo de desenvolvimento e matriz energética ...............................................

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O trabalho da Relatoria frente às violações de direitos humanos ......................

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Flexibilidades em licenciamento ambiental reforçam violações de direitos humanos ...........................................................................

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Missão em Belo Monte, no Pará .........................................................................

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Missão nas usinas de Santo Antonio e Jirau, em Rondônia ...............................

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Relatório denuncia violações de direitos humanos no ciclo de produção de urânio ..........................................................................

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Entrevista com Antonia Melo: A Amazônia continua sendo espaço de usurpação pelo capital ............................................

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Relatoria do Direito Humano à Saúde Sexual e Reprodutiva Relatoria estuda mortes maternas e situação de mulheres privadas de liberdade ..........................................................................................

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Mortes maternas: evitáveis, porém existentes ...................................................

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Mulheres em privação de liberdade e o direito à saúde sexual e reprodutiva ....

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Como as missões foram feitas? ..........................................................................

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Mulheres em situação de privação de liberdade ................................................

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Morte materna .....................................................................................................

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Entrevista com Beatriz Galli: Aborto e morte materna .......................................

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Relatoria do Direito Humano à Terra, Território e Alimentação A luta pela terra e território em um contexto de mercado de commodities .......

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Missão ao território indígena de Maró, oeste do Pará ........................................

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Missão à região do sertão do Rio São Francisco, Pernambuco ........................

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Entrevista com Cleber Folgado: O uso de agrotóxicos e a agroecologia como modelo viável .................................................................

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Relatorias Nacionais em Direitos Humanos e as dimensões de gênero e raça na sociedade brasileira

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Apresentação

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onhecido por ser o maior país megadiverso do mundo e, atualmente, também a sexta maior economia, o Brasil é marcado por desigualdades estruturantes que fazem com que parte de sua população viva em situação de pobreza, violência ou discriminação. O Brasil ocupa a 84ª posição de um total de 187 países, quando se trata de distribuição de renda. Além disso, o crescimento econômico observado nos últimos anos é pautado por um modelo de desenvolvimento insustentável e que concentra a renda e o poder na mão de poucos. Ou seja, apesar da melhora dos indicadores sociais dos últimos anos, o Brasil preserva traços de profundas desigualdades sociais, raciais, de gênero e de renda, e demonstra que as políticas públicas não estão sendo capazes de universalizar direitos, reduzir a violência e garantir a preservação ambiental. Esta publicação, que conta com uma síntese do trabalho desenvolvido pelas Relatorias Nacionais em Direitos Humanos no mandato de 2009 a 2011, tem o intento de trazer à baila questões prementes para a realização de direitos no Brasil atualmente. Demonstra as contradições do discurso e prática governamentais, que afirma promover políticas públicas de erradicação da pobreza e ao mesmo tempo implementa um modelo de desenvolvimento excludente e violador de direitos. Porém, mais do que apresentar um resumo das realizações e dos desafios do período, esta revista constata o longo trajeto que o país precisa ainda percorrer a fim de melhorar a qualidade de vida e o acesso a direitos por parte de sua população. Além disso, em 2012 completam-se dez anos desde que a Plataforma Dhesca Brasil iniciou o projeto das Relatorias Nacionais em Direitos Humanos, o que traz para esta revista um significado ainda mais especial. Na primeira parte da revista, Relatorias em Direitos Humanos: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil, encontra-se um panorama das atividades desenvolvidas pelas Relatorias nos últimos dois anos e um quadro das missões por elas realizadas. Apresentamos, também, uma entrevista com Jean Pierre Leroy, reconhecido militante das causas ambientais, que foi o primeiro relator para a área do Direito Humano ao Meio Ambiente, nos anos de 2003 e 2004. Na segunda parte, cada uma das cinco Relatorias (Cidade, Educação, Meio Ambiente, Saúde Sexual e Reprodutiva e Terra, Território e Alimentação) sistematiza, num conjunto de textos, sua atuação desenvolvida desde 2009, as missões realizadas, os resultados do trabalho e os desafios a serem enfrentados nos próximos anos. A terceira e última parte traz artigos produzidos pela coordenação da Plataforma, que abordam questões relacionadas à política e direitos humanos e a redução das desigualdades de gênero e raça, apontando para um horizonte dos direitos humanos no brasil. Neste momento, de encerramento de mandato e de uma década de formação das Relatorias em Direitos Humanos, é fundamental reconhecer e agradecer todo o trabalho e esforço dos(as) seis Relatores(as) e Assessores(as) que atuaram no último período, bem como

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todos(as) os(as) Relatores(as) e Assessores(as) que já passaram por esse lugar, cuja dedicação foi fruto da crença na importância que essa iniciativa adquiriu ao longo dos seus dez anos de criação e por compreender a necessidade de criação de instrumentos que garantam a promoção, o monitoramento e a exigibilidade dos direitos humanos no Brasil. Queremos agradecer também a colaboração das agências internacionais Evangelischer Entwicklungsdienst (EED), Organização Intereclesiástica de Cooperação para o Desenvolvimento (ICCO), Fundação Ford e Fundação Heinrich Böll (HBS). O apoio dessas organizações tem auxiliado e permitido, ao longo dos últimos anos, a realização das ações da Plataforma Dhesca e das Relatorias. Além desses parceiros, também têm sido fundamentais para o trabalho das Relatorias os organismos que compõem o Conselho de Seleção e Acompanhamento: Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), o Programa de Voluntários da ONU (UNV), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres), o Fundo da ONU para a Infância (Unicef), o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), a Secretaria de Direitos Humanos (SDH), o Ministério das Relações Exteriores (MRE), a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado e a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Por fim, agradecemos enormemente aos movimentos sociais e organizações locais, regionais ou nacionais, que estiveram presentes em todos os momentos da atuação das Relatorias, seja no envio de denúncias e informações sobre violações de direitos humanos, seja no apoio às missões, acompanhamento das Audiências Públicas e difusão dos Relatórios finais das visitas. A continuada parceria com todos(as) foi imprescindível para a realização do trabalho das Relatorias Nacionais em Direitos Humanos, que são uma iniciativa inovadora da sociedade civil brasileira e constituem instrumento de grande valia para impulsionar as mudanças sociais a que todos(as) almejamos.

Curitiba, junho de 2012 A Coordenação

Apresentação

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Sobre a Plataforma Dhesca

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Plataforma dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais – Plataforma Dhesca Brasil – é uma rede nacional formada por 34 entidades da sociedade civil, que desenvolve ações de promoção, defesa e reparação de direitos humanos, visando ao fortalecimento da cidadania e à radicalização da democracia. A Plataforma Dhesca foi criada em 2001 como Capítulo Brasileiro da Plataforma Interamericana de Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento (PIDHDD) e se articula desde os anos 1990 para promover a troca de experiências e a soma de esforços na luta pela implementação dos direitos humanos, integrando organizações da sociedade civil de diversos países, em especial do Peru, Equador, Argentina, Chile, Bolívia, Colômbia, Paraguai e Venezuela. O objetivo geral da Plataforma Dhesca Brasil é contribuir para a construção e fortalecimento de uma cultura de direitos, desenvolvendo estratégias de exigibilidade e justiciabilidade dos direitos humanos, bem como incidindo na formulação, efetivação e controle de políticas públicas sociais. Juntamente com o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), o Processo de Articulação e Diálogo (PAD) e Parceiros de Misereor no Brasil, a Plataforma Dhesca compõe a Coordenação do Projeto Monitoramento de Direitos Humanos no Brasil. Esse Projeto articula os Contrainformes ao cumprimento do Pidesc, os Relatórios Periódicos da situação dos direitos humanos no Brasil e a pressão para que o Estado brasileiro ratifique o Protocolo Facultativo ao Pidesc. Além disso, a Plataforma também atua para o fortalecimento de iniciativas nos campos da formação e difusão das experiências em Dhesca, o monitoramento do cumprimento dos compromissos assumidos pelo Estado brasileiro para a garantia de direitos, a incidência na formulação e monitoramento das políticas públicas de direitos humanos, como o Programa Nacional de Direitos Humanos III (PNDH3) e a contribuição para que o Brasil adote um padrão de respeito aos direitos humanos, por meio da implementação e fortalecimento das Relatorias Nacionais em Direitos Humanos.

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10 anos de Relatorias em Direitos Humanos Relatorias em Direitos Humanos: 10 anos de construção e fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil Em 2012, as Relatorias Nacionais em Direitos Humanos completam uma década. Foram criadas em 2002, inspiradas na atuação dos Relatores Especiais das Nações Unidas, e surgiram como experiência extremamente inovadora e ferramenta com grande potencial de exigência e monitoramento de direitos humanos no Brasil. Iniciativa original e exitosa, as Relatorias Nacionais surgiram no Brasil com o objetivo de contribuir para que o país adote um padrão de respeito aos direitos humanos, com base na Constituição Federal de 1988, no Programa Nacional de Direitos Humanos e nos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil, por meio da implementação de mecanismos de controle da sua exigibilidade. Ao todo, o projeto contou até abril de 2012 com 22 Relatores(as) Nacionais1 e 24 Assessores(as) para seis áreas específicas: Direito Humano ao Meio Ambiente, ao Trabalho, à Educação, à Saúde, à Moradia e à Terra Urbana e Direito Humano à Alimentação, Água e Terra Rural. A partir de 2009, as áreas passaram a ser cinco: Direito Humano à Cidade, à Educação, ao Meio Ambiente, à Saúde Sexual e Reprodutiva e à Terra, Território e Alimentação. De outubro de 2002 a março de 2012, as Relatorias realizaram 124 missões para verificação de denúncias de direitos humanos em mais de 100 municípios brasileiros. Foram dez anos de transformações sociais, econômicas e políticas no Brasil. Enquanto o Projeto Relatores era criado, o país vivia o período eleitoral que culminaria com a vitória do Partido dos Trabalhadores, historicamente aliado dos movimentos sociais na luta por direitos no Brasil. Havia, portanto, por parte dos movimentos e organizações sociais, uma grande expectativa. No início do mandato, em 2003, o governo federal criou três secretarias especiais, ligadas à Presidência da República, com status de ministério: Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM), ligadas às demandas da política de direitos humanos, e criou também o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS).

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Neste período três Relatores(as) foram reconduzidos(as) para mais um mandato e uma Relatoria teve substituição durante o primeiro mandato (Direito Humano ao Trabalho).

10 anos de Relatorias em Direitos Humanos

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A despeito disso, a análise dos Planos Plurianuais do período demonstra que o investimento do governo em programas de transferência de renda, sob a gestão basicamente do MDS (como o Bolsa Família), foi muito maior que os recursos destinados para políticas promotoras da igualdade, como a igualdade racial, de gênero e para as populações vulneráveis ou com histórico de discriminação,2 muito mais interligadas às recém-criadas Secretarias Especiais. Reduziu-se, sim, a pobreza, mas não se alterou estruturas políticas e econômicas que alimentam a desigualdade e a exclusão: não se alterou a injusta estrutura tributária que faz com que as pessoas com menor renda paguem proporcionalmente mais impostos no país; não foi realizada uma reforma política que permita uma verdadeira democratização dos espaços de poder e nada se avançou na democratização dos meios de comunicação e do Poder Judiciário. Nos últimos dez anos, o governo e o mercado financeiro exultaram o “crescimento econômico” brasileiro, que colocou o país entre as seis maiores potências do mundo, mas não foi suficiente para diminuir substancialmente a desigualdade social no país, o que se percebe pela análise dos dados do último Censo (2010) e pela atuação das Relatorias em Direitos Humanos no período. Ainda que nos últimos anos tenha havido esforços por parte do Estado brasileiro para a redução de tal desigualdade, o contingenciamento de recursos das áreas sociais, em benefício da consecução de uma política macroeconômica ainda ortodoxa e conservadora, chamada por alguns inclusive de “reedição” do Consenso de Washington, contribui para agravar tal cenário. A opção por um modelo de desenvolvimento que propugna o crescimento econômico sem diminuir a desigualdade aumenta o fosso entre as classes e, tal qual rolo compressor, viola direitos de milhares de pessoas. Apesar disso, é possível considerar avanços no cenário dos direitos humanos no Brasil. A realização de conferências estaduais e nacionais, que culminaram, em 2009, com a publicação do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, incorporando o pleito da sociedade civil brasileira e os princípios da universalidade, transversalidade e interdependência dos direitos humanos é sem dúvida uma grande vitória. Alvo de fortes críticas dos setores conservadores da sociedade, o PNDH3 trouxe à tona o debate sobre direitos humanos, cujas discussões influenciaram sobremaneira as eleições de 2010, tendo sido inclusive modificado posteriormente pelo governo federal. Cedendo às pressões conservadoras, ações programáticas como o apoio ao projeto de lei que descriminaliza o aborto, a supressão de símbolos religiosos em repartições públicas e a regulação dos meios de comunicação foram suprimidas. Apesar disso, o PNDH-3 preservou deliberações importantes das conferências que o originaram e continua sendo diretriz política fundamental a ser seguida pelo Estado brasileiro e exigida pela sociedade e pelas próprias Relatorias. Durante todo esse período, as Relatorias em Direitos Humanos pautaram situações emblemáticas de violação aos direitos humanos e, muitas vezes, anteciparam grandes confrontos. Missões realizadas em quilombos, territórios indígenas, comunidades urbanas despejadas ou prestes a sê-lo, escolas, hospitais, presídios, assentamentos de Reforma Agrária, locais impactados pelo Programa de Aceleração do Crescimento, grandes obras de

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CICONELLO, Alexandre. Os avanços e contradições das políticas de direitos humanos no governo Lula. In: PAULA, Marilene de. Nunca antes na história desse país...?: um balanço das políticas públicas do Governo Lula. Rio de Janeiro, RJ: Fundação Heinrich Böll, 2011.

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infraestrutura e megaeventos, etc., além de diversas reuniões em órgãos públicos, promoção e participação de Audiências Públicas por todo o Brasil fazem das Relatorias Nacionais importante sujeito político para efetivação dos direitos humanos.

As Relatorias em Direitos Humanos As Relatorias em Direitos Humanos possuem centralidade na atuação da Plataforma Dhesca Brasil e têm sua razão de ser na exigibilidade e justiciabilidade dos Dhesca no Brasil. Configuram-se em importante instrumento de ampliação da exigibilidade dos direitos humanos em território nacional, atualmente, mediante o diagnóstico e visibilização dos processos de violações de direitos no âmbito local. Por meio das missões (visitas in loco), audiências públicas, reuniões e pronunciamentos, contando o envolvimento de centenas de organizações e movimentos sociais, assim como representantes do Poder Executivo, Legislativo e do Sistema de Justiça, as Relatorias pautam a agenda pública, ao mesmo tempo em que propõem recomendações e medidas que devem ser tomadas pelo poder público para garantir a dignidade e proteção das pessoas em situação de violação de direitos e de vulnerabilidade. A intervenção dos relatores é o que, muitas vezes, permite que comunidades, organizações e movimentos sociais identifiquem seus problemas dentro de um contexto maior de violações, o que amplia também a capacidade de mobilização. Não são poucos os relatos de pessoas e grupos que, a partir da intervenção dos(as) Relatores(as), conseguem pela primeira vez dialogar com os poderes públicos – o que demonstra a imaturidade da nossa democracia e a importância de projetos como as Relatorias para a superação de tal problema. Dessa forma, as Relatorias almejam também contribuir para o fortalecimento da capacidade organizativa da sociedade civil, no que tange ao controle social das políticas públicas e ao monitoramento social dos direitos humanos, fortalecendo a sociedade civil como sujeito político autônomo e fortalecido.

Quem são os(as) relatores(as)? As relatoras e os relatores são especialistas em direitos humanos, escolhidos por um Conselho de Seleção composto por órgãos do Poder Legislativo (Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara e Comissão de Direitos Humanos do Senado), Poder Executivo (Secretaria de Direitos Humanos e Ministério das Relações Exteriores), Sistema de Justiça (Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos – PFDC) e Agências da ONU (FAO, PNUD, Unesco, ONU Mulheres, UNV, Unicef, UNFPA) para o mandato de dois anos. Para a escolha, são tomados como base critérios de conhecimento e experiência profissional no campo dos direitos humanos; reconhecimento público do compromisso com a promoção de tais direitos; legitimidade perante fóruns, redes e organizações da sociedade civil e autonomia e independência perante os órgãos governamentais. As(os) relatoras(es) exercem sua função de forma voluntária, sem remuneração profissional. Em geral, são ligados a redes de referência, que lhes dão suporte e sugestões de demandas.

10 anos de Relatorias em Direitos Humanos

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Entrevista Jean Pierre Leroy

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o fazermos uma reflexão sobre os 10 anos das Relatorias em Direitos Humanos, não se poderia deixar de fora Jean Pierre Leroy. Vastamente conhecido pelos militantes da área ambiental, Jean Pierre participou da construção do projeto, de suas bases metodológicas e de seu formato de atuação. Foi o primeiro relator para o Direito Humano ao Meio Ambiente da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais, nos anos de 2003 e 2004, período em que levantou violações de direitos humanos que, infelizmente, se perpetuam pelo país. Jean Pierre Leroy é filósofo e mestre em Educação, nascido na França, mas acolhido pelo Brasil desde 1971, quando desembarcou no Pará, onde conviveu com pescadores do Salgado e moradores do subúrbio de Belém. Quatro anos mais tarde, iniciou o seu trabalho na Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), coordenando programas para pequenos agricultores e agroextrativistas – primeiro, em Santarém, e, em seguida, em Santa Luzia, no Maranhão. Em 1977, passou a fazer parte da equipe nacional da Fase, na qual chegou a assumir o cargo de coordenador nacional. Foi coorganizador dos relatórios do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais (FBOMS) para as Conferências Internacionais da Rio-92 e Rio+5. Membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, é autor de Uma chama na Amazônia e territórios do futuro: educação, meio ambiente e educação coletiva – este último publicado em 2010 pela editora Lamparina. Confira abaixo sua reflexão sobre direitos humanos, o papel das Relatorias e os desafios para o tema ambiental.

Quais potencialidades do Projeto Relatores você destacaria frente à necessária apropriação dos direitos humanos pela sociedade, tanto quanto de meios para a exigibilidade? O Projeto Relatores, a condição que ele esteja sustentado e apoiado por um leque amplo e diversificado de entidades e consiga localmente mobilização e visibilidade, é um poderoso instrumento de conscientização sobre os direitos e de visibilidade dos grupos sociais que apresentam denúncias. Pode também constranger o poder local, inclusive o aparelho judiciário. Entre todos os instrumentos usados pelos Relatores, como as missões, denúncias, relatório, audiências públicas, o que você avalia possuir maior efetividade frente ao desafio da implementação dos direitos humanos no Brasil? As missões são um elemento central no Projeto Relatores. São elas que dão consistência e força às denúncias e fazem com que os relatórios não sejam burocráticos. É nelas que se tem o contato com as pessoas e grupos atingidos e se interage com eles.

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Você foi relator do mandato de 2003. À época, o que te motivou a apresentar a candidatura, e como viu o desafio de ser um relator nacional em direitos humanos? Eu fui o primeiro relator para o direito humano ao meio ambiente. À diferença das outras Relatorias, parece que não havia candidato consistente para essa Relatoria e fui sondado. Acabávamos de criar a Rede Brasileira de Justiça Ambiental e me senti motivado, pois encontrava ou ouvia falar de muitas comunidades atingidas por questões ambientais e percebia que não se fazia ou se fazia pouco a conexão entre as questões ambientais e os direitos humanos. Enquanto você foi relator, alguma situação foi mais significativa que você recorda até hoje? Todas as missões que fizemos continuam extremamente presentes na minha memória e me parecem até hoje significativas. Como esquecer a ansiedade dos Cinta-largas e o misto de esperança e de desamparo dos Xavantes da terra Marawatsede? Os quilombolas despertando para resgatar seus direitos e sua dignidade? A Irmã Dorothy e os lavradores de Anapú acuados pelos grileiros? E os moradores de Porto de Moz criando coragem para denunciar o então prefeito? As marisqueiras e pescadores do litoral cearense enfrentando a carcinicultura e os resorts? O povo das veredas mineiras frente ao eucalipto? A energia dita renovável e as empresas públicas de energia comportando-se frente aos atingidos como modernos senhores de escravos? Em seu relatório de 2003, o primeiro caso apresentado como atuação da Relatoria naquele ano incluiu o complexo hidrelétrico de Belo Monte, que foi também um dos temas de trabalho da Relatoria de Meio Ambiente em 2010 e 2011. Como você avalia essa permanência de determinadas pautas no horizonte da sociedade civil? O ambiente político, econômico e ideológico coloca o desenvolvimento como a prioridade absoluta e faz acreditar que todos vão se aproveitar deles, e que é inevitável que haja algumas pessoas e comunidades que sejam afetadas. Além disso, a mentalidade predatória e de ocupação de terras pela força, que vem desde os tempos do Brasil Colônia, continua até hoje, combinandose agora com a “modernidade”. Do outro lado, a permanência de certas pautas mostra que há comunidades e grupos sociais que não desistem das suas lutas pelo reconhecimento dos seus direitos. Existe algum tema que você trabalhou quando relator e que considera já ter sido “resolvido”? O que mais se aproximou de uma solução? Os agroextrativistas de Porto de Moz conquistaram a sua Resex Verde para sempre e os pequenos produtores de Anapú a sua Reserva de Produção Sustentável, mas a violência, as ameaças e a falta de políticas públicas continuam. No geral, no que diz respeito ao direito humano ao meio ambiente, estimo que estamos conhecendo uma grave regressão. Talvez possamos vislumbrar algum progresso na agenda marrom nas cidades. O Brasil recebe em 2012 a Rio+20, num importante momento de debate sobre modelo de desenvolvimento e de grandes acordos internacionais. Quais desafios você enxerga para a sociedade civil neste momento? Para a sociedade civil organizada, construir um pensamento e propostas que não sejam atreladas e subordinadas às propostas oriundas do meio empresarial mundialmente dominante. Conseguir se comunicar e se fazer entender de boa parcela da sociedade. Enfim, influenciar o poder público.

Entrevista Jean Pierre Leroy

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Composição das Relatorias em Direitos Humanos – 2009/2011 Relatoria Nacional do Direito Humano à Cidade E-mail: cidade@dhescbrasil.org.br n

Relator: Orlando Alves dos Santos Junior Professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Possui mestrado e doutorado em Planejamento Urbano e Regional pela UFRJ, com experiência na área de Sociologia Urbana e atuação nos seguintes temas: planejamento urbano, política urbana, cidadania, democracia e cultura política e participação social. Atualmente coordena o projeto Metropolização e megaeeventos: impactos dos Jogos Olímpicos/2016 e Copa do Mundo/2014, no âmbito da Rede Observatório das Metrópoles, da qual integra a coordenação nacional.

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Assessor: Cristiano Muller Possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1996) e doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidad Pablo de Olavide (2007) de Sevilha, Espanha. Atuou como consultor jurídico do Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos (COHRE) (2007-2010) e como conselheiro das cidades (2008-2010). Atualmente é coordenador jurídico do Centro de Direitos Econômicos e Sociais. Tem experiência na área do Direito, com ênfase em Direito Constitucional, atuando principalmente nos seguintes temas: direitos humanos, direitos fundamentais, direito urbanístico e direito à cidade.

Relatoria do Direito Humano à Educação E-mail: educacao@dhescbrasil.org.br n

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Relatora: Denise Carreira Jornalista e educadora social, feminista, doutoranda e mestre pela Faculdade de Educação da USP. Exerceu a coordenação da Campanha Nacional pelo Direito à Educação entre 2003 e 2006. Coordenou o Centro de Direitos Humanos e Educação Popular do Acre e a articulação Aquiri/Unicef. Foi presidente do Conselho dos Direitos da Mulher de Rio Branco (AC), integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e educadora da

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Rede Mulher de Educação. Coordenou a Assessoria de Comunicação e Multimeios da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e o Núcleo de Comunicação do Cenpec. Foi repórter da Folha de S. Paulo, editora da revista Debates Socioambientais e consultora do WWF, da Fundação Abrinq e do Fundo de Igualdade de Gênero da Embaixada do Canadá. Relatora do Direito Humano à Educação no período 2007-2011. Atualmente coordena a área de educação da ONG Ação Educativa. n

Assessora: Suelaine Carneiro Socióloga, educadora social, feminista, integrante do Curso de Extensão Equidade no Acesso à Pós-Graduação da UFSCar. Atualmente é coordenadora do Programa de Educação da ONG Geledés Instituto da Mulher Negra. É ativista da Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), da Campanha Nacional pelo Direito à Educação; integrante do Fórum de Educação e Diversidade Étnico-Racial do Estado de São Paulo.

Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente E-mail: meioambiente@dhescbrasil.org.br n

Relator: José Guilherme Carvalho Zagallo Advogado e integrante da Rede Brasileira de Justiça Ambiental e do Conselho Diretor da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (2009). Zagallo representa a OAB Maranhão no Conselho Estadual de Direitos Humanos e em 2009 foi eleito para a Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente da Plataforma Dhesca.

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Relatora: Marijane Vieira Lisboa Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP, é socióloga e ministra cursos nas áreas de Meio Ambiente, Direitos Humanos e Relações Internacionais na PUC-SP. Marijane foi uma das fundadoras do Greenpeace Brasil e integrou o secretariado do Ministério do Meio Ambiente durante a gestão da senadora Marina Silva. Atua como consultora de entidades e organizações não governamentais no Brasil e no exterior e é integrante da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Em 2009, foi reeleita para a Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente da Plataforma Dhesca.

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Assessora: Cecília Campello de A. Mello Doutora em Antropologia e professora-adjunta do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ. Cecília atuou como colaboradora da Fase e integrou a secretaria da Rede Brasileira de Justiça Ambiental.

Composição das Relatorias em Direitos Humanos – 2009/2011

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Relatoria do Direito Humano à Saúde E-mail: saúde@dhescbrasil.org.br n

Relatora: Maria José de Oliveira Araujo Ativista dos direitos das mulheres, médica, foi gestora pública, coordenando Políticas de Saúde para as Mulheres durante 13 anos, na Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo e no Ministério da Saúde, em Brasília. Foi uma das mulheres indicadas para o Prêmio Nobel da Paz em 2005, fundadora da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos e atual coordenadora da sua regional, na Bahia. Pertence ao Conselho Consultivo da Red de Salud de las Mujeres Latinoamericanas y del Caribe. Relatora do Direito à Saúde Sexual e Reprodutiva da Plataforma Dhesca no mandato 2009 a 2011. Diretora honorária do curso de especialização em Direitos Humanos e Gênero da Fundação Henry Dunnant, Chile/França.

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Assessora: Maria Cecília Moraes Simonetti Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA). Atualmente é pesquisadora do MUSA – Programa Integrado de Pesquisa e Cooperação Técnica em Gênero e Saúde do ISC/UFBA. De 1995 a 2002, foi conselheira regional do Fundo das Nações Unidas para a População em advocacy e comunicação para a implantação do Programa de Ação do Cairo (CIPD) em 15 países da África Austral, nas temáticas de Gênero, Adolescência e HIV/Aids. De 2002 a 2005 foi consultora da Pathfinder do Brasil em advocacy e comunicação na área da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos. É ativista da Rede Nacional Feminista de Saúde, pertencendo à diretoria do IMAIS (Instituto Mulheres pela Atenção Integral à Saúde), e do ELO (Escritório de Ligação e Organização).

Relatoria do Direito Humano à Terra, Território e Alimentação E-mail: dtta@dhescbrasil.org.br

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Relator: Sérgio Sauer Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Filosofia da Religião pela Universidade de Bergen/Stavanger (Noruega). É professor da Faculdade de Planaltina (FUP – Universidade de Brasília) e dos Programas de Pós-Graduação em Agronegócios (Propaga – FAV/UnB) e de PósGraduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural (PPGMADER – FUP/UnB).

n

Assessor: Gladstone Leonel da Silva Junior Advogado, graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Viçosa, trabalhou com assessoria jurídica popular em comunidades atingidas por barragem e de luta pela terra. Especializou-se em Sociologia Política na Universidade Federal do Paraná e atuou entre 2007 e 2008 na Terra de Direitos. É mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista e doutorando em Direito pela Universidade de Brasília.

RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil


Mapas das missões realizadas Data

Nome da missão

Municípios visitados

UF

Relatoria

Tipo

PA, PE, RS, SP e DF

DHE

Investigação

Outubro/2008 a abril/2009

Educação nas prisões brasileiras

Recife, Itamaracá, Diadema, São Paulo, Tremembé, Porto Alegre, Santa Izabel do Pará, Belém

Setembro/2009 a novembro/2009

Missão Xingu: Violações de direitos humanos no licenciamento da Usina Hidrelétrica de Belo Monte

Altamira, Belém, Senador José Porfírio

PA

DHMA

Investigação

Novembro/2009 Missão Santarém: Violações de direitos humanos a comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas no Rio Arapiuns

Santarém

PA

DHTTA

Investigação

Dezembro/2009 Despejos e remoções de comunidades de baixa renda em São Paulo (SP)

São Paulo

SP

DHC

Investigação

Missão ao Conjunto Penal Feminino em Salvador

Salvador

BA

DHS

Investigação

Maio/2010

Educação e racismo no Brasil

Rio de Janeiro

RJ

DHE

Investigação

Julho/2010

Missão à Cadeia Feminina de Verdejante

Verdejante

PE

DHS

Investigação

Julho/2010

Despejos e remoções de comunidades de baixa renda em Teresina e Nazária

Teresina, Nazária

PI

DHC

Investigação

Julho/2010

Vazamentos de urânio na Bahia

Caetité

BA

DHMA

Investigação

Julho/2010

Missão à Penitenciária Madre Pelletier

Porto Alegre

RS

DHS

Investigação

Março/2010

Mapa das missões realizadas

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UF

Relatoria

Tipo

Belém

PA

DHS

Investigação

Violações de direitos humanos de comunidades quilombolas e ribeirinhas, povos indígenas e famílias assentadas de Reforma Agrária às margens do Rio São Francisco

Petrolina, Santa Maria da Boa Vista, Cabrobó

PE

DHTTA

Investigação

Abril/2011

Missão Caetité: Violações de direitos humanos no Ciclo do Nuclear

Caetité e Salvador

BA

DHMA

Seguimento

Abril/2011

Violações de direitos humanos nas hidrelétricas do Rio Madeira

Porto Velho

RO

DHMA

Seguimento

Maio/2011

Copa do Mundo – políticas públicas e direito à cidade

Rio de Janeiro

RJ

DHC

Investigação

Violações de direitos humanos aos povos da terra indígena Maró no oeste do estado do Pará

Santarém

PA

DHTTA

Seguimento

Missão educação quilombola

Paulistana, Paquetá, Amarante

PI

DHE

Investigação

Despejos e remoções de comunidades de baixa renda em São Luís do Maranhão

São Luís

MA

DHC

Investigação

Data

Nome da missão

Outubro/2010

Morte materna evitável e direitos humanos e visita ao Centro de Reeducação Feminina

Outubro/2010

Agosto/2011

Setembro/2011

Outubro/2011

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Municípios visitados

RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil


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RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil


Relatoria do Direito Humano à Cidade Grandes empreendimentos urbanos e megaeventos esportivos no Brasil:

dilemas e desafios do direito à cidade

N

os últimos anos, são evidentes os avanços ocorridos no Brasil na adoção de diretrizes, políticas e instrumentos de afirmação do direito à cidade, envolvendo o direito à moradia, ao saneamento ambiental, à mobilidade e à participação na gestão urbana. Avanços esses que se expressam, entre outras coisas, na aprovação do Estatuto da Cidade, na criação do Ministério das Cidades e do Conselho das Cidades e na instituição do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social. No entanto, o processo de produção capitalista das cidades no contexto da globalização contemporânea, aliado ao legado histórico de fortes desigualdades sociais, revela-se como um forte obstáculo para a efetivação do direito à cidade para todos e todas, ao mesmo tempo em que tem sido promotor de graves situações de violação a esse direito humano coletivo. Além disso, não se pode ignorar a sobrevivência e reprodução da tradicional e cultural manipulação do Estado como coisa privada e pessoal no Brasil, que comumente envolve a arbitrariedade, o clientelismo e a defesa de privilégios decorrentes da privatização da esfera pública e do controle das administrações locais, entre outras. Percebe-se que as cidades brasileiras De fato, há fortes indícios de que existem altepassam a constituir rações no padrão clássico conservador de acumulação atrativas fronteiras para o urbana. Nesse contexto, as cidades brasileiras estariam capital financeiro e a ser vivendo um momento crucial de transformações que incluídas nos circuitos coloca a necessidade de atualizar a questão urbana e mundiais de acumulação formular novas propostas de ação, envolvendo novos do capital... modelos de planejamento e gestão das cidades. Percebe-se

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que as cidades brasileiras passam a constituir atrativas fronteiras para o capital financeiro e a ser incluídas nos circuitos mundiais de acumulação do capital, exatamente em razão do ciclo de prosperidade e estabilidade que o país atravessa, combinado com a existência de ativos urbanos (imóveis e infraestrutura) passíveis de serem espoliados, ou seja, comprados a preços desvalorizados, e integrados aos circuitos internacionalizados de valorização financeira. Pode-se observar nas cidades brasileiras, com efeito, a emergência de uma governança empreendedorista, que mantém as antigas práticas patrimonialistas de acumulação urbana e de representação baseadas no clientelismo, ao mesmo tempo em que promove novas práticas orientadas pela A crescente hegemonia transformação das cidades em commodities, gerando um da governança novo processo de mercantilização das cidades. Tal empreendedorista combinação resulta em um padrão de governança fundada na lógica do bastante peculiar, fundado no empresariamento urempresariamento urbano, bano, em que o planejamento e a regulação são ao tratar a cidade como substituídos por um padrão de intervenção por commodity, desencadeia exceção, com os órgãos da administração pública e dinâmicas econômicas, canais institucionais de participação democráticos sociais, políticas e crescentemente fragilizados. A crescente hegemonia da espaciais frontalmente governança empreendedorista fundada na lógica do contrárias aos princípios empresariamento urbano, ao tratar a cidade como do direito de cidade e commodity, desencadeia dinâmicas econômicas, sociais, do direito à cidade. políticas e espaciais frontalmente contrárias aos princípios do direito de cidade e do direito à cidade. O Estatuto da Cidade, após dez anos de sua promulgação, parece viver os efeitos dos conflitos entre essas duas visões, o que explica os dilemas para a efetivação dos instrumentos nele previstos. Reconhecendo a diversidade das causas encadeadoras de processos de violação do direito à cidade, percebeu-se a importância de acompanhar os casos de violação vinculados: n aos grandes empreendimentos urbanos, em geral relacionados à reestruturação das áreas centrais e/ou a criação de infraestrutura visando a dinamização econômica das cidades e n a realização dos megaventos esportivos, tendo em vista o fato do Brasil sediar a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e as Olimpíadas em 2016. Para a seleção dos casos, foi fundamental a relação com o Fórum Nacional de Reforma Urbana, coalizão social integrada por movimentos populares urbanos, organizações não governamentais, entidades profissionais e acadêmicas, responsável pela indicação. Em todos os casos visitados, percebe-se que o poder público tem tido um papel central na criação de um ambiente propício aos investimentos, principalmente aqueles vinculados aos setores do capital imobiliário, das empreiteiras de obras públicas, das construtoras, do setor hoteleiro, de transportes, de entretenimento e de comunicações. Nessa perspectiva, o poder público tem adotado diversas medidas vinculadas aos investimentos desses setores, tais como: isenção de impostos e financiamento com taxas de juros

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RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil


reduzidas; transferência de patrimônio imobiliário, sobretudo pelas parcerias público-privadas (PPPs) e operações urbanas consorciadas; e remoção de comunidades de baixa renda das áreas a serem revitalizadas. De fato, a existência das classes populares em áreas de interesse desses agentes econômicos se torna um obstáculo ao processo de apropriação desses espaços aos circuitos de valorização do capital vinculados à produção e à gestão da cidade. Efetivamente, tal obstáculo tem sido enfrentado pelo poder público por meio de processos de remoção, envolvendo reassentamentos das famílias para áreas periféricas, compra assistida de novos imóveis, indenizações ou simplesmente despejos. Na prática, a tendência é que esse processo se constitua numa verdadeira transferência de patrimônio sob a posse das classes populares para alguns setores do capital. Dessa forma, pode-se dizer que essas remoções são processos de espoliação urbana, em que as terras utilizadas como valor de uso pelos seus moradores são espoliadas e apropriadas como valor de troca e integradas ao circuito de valorização imobiliária pelo capital, através da aquisição desses ativos por baixo preço e de sua transformação em ativos valorizados, seja pelos investimentos públicos em urbanização, seja pelos efeitos da expulsão da população pobre dessas áreas. As indenizações, quando oferecidas pelo poder público, são incapazes de garantir o acesso a outro imóvel situado na vizinhança próxima, tendo em vista o não reconhecimento do seu valor de mercado, o que é justificado pela situação de irregularidade fundiária desses imóveis. Ou seja, é preciso identificar nesses processos os novos agentes que se apropriam dessas áreas revitalizadas e/ou reurbanizadas. Os casos visitados pela Relatoria do Direito à Cidade – em São Paulo (SP), em Teresina (PI), no Rio de Janeiro (RJ) e em São Luís (MA) – são bastante ilustrativos desse processo, não só pelo número de famílias despejadas, mas pelos mecanismos de despossessão e privação adotados, assim como pelos lugares reservados para as famílias de baixa renda nessas cidades. Na maioria das vezes, os processos de remoção têm impossibilitado a permanência das famílias na mesma localidade ou no mesmo bairro, seja pela distância da maioria dos empreendimentos habitacionais oferecidos para reassentamento das comunidades afetadas, seja pelos valores oferecidos de indenização ou compra assistida, que tem por base o valor das benfeitorias e não seu valor de mercado. Percebe-se que se está diante de intervenções urbanas de grande intensidade, vinculadas à preparação da cidade para novos empreendimentos econômicos, em geral, ou para sediar a Copa do Mundo de Futebol e as Olimpíadas – no caso específico do Rio de Janeiro –, que vem provocando, ou tem o potencial de provocar, intensos processos de valorização imobiliária. Em geral essas intervenções não abarcam o conjunto da cidade, pois são intervenções seletivas em algumas áreas da cidade, em especial sua área central ou de expansão urbana. O problema é que essas intervenções afetam diversas áreas, em geral consolidadas, ocupadas por populações de baixa renda, que apresentam como característica o fato de terem sido relativamente desvalorizadas e desprezadas pelo setor imobiliário ao longo dos últimos anos, o que era reforçado exatamente pelo fato de serem ocupadas por populações de baixa renda. Tais áreas passam a ser do interesse do setor imobiliário exatamente devido às intervenções urbanísticas previstas ou em curso. Ao mesmo tempo, cabe registrar algumas contradições. Esses processos de remoções vinham ocorrendo em um contexto nacional de afirmação do direito à moradia, seja na forma

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de unidades habitacionais oferecidas para a população de baixa renda reassentada em conjuntos construídos na esfera do programa Minha Casa Minha Vida (promovido pelo governo federal, no âmbito da política nacional de interesse social), seja como princípio orientador da política de habitação de interesse social em curso em muitas dessas cidades. No entanto, tais princípios não pareciam balizar a atuação das prefeituras municipais e dos governos estaduais como um todo, sobretudo quando estavam em jogo os interesses econômicos vinculados aos projetos de revitalização urbana em curso. Os casos visitados também permitem levantar alguns pontos de reflexão sobre o padrão de intervenção do poder público nas cidades brasileiras no contexto da governança empreendedora empresarial. Em primeiro lugar, as políticas públicas urbanas vinculadas a esses grandes empreendimentos urbanos ou aos megaeventos esportivos, sobretudo aquelas vinculadas aos programas federais, parecem estar associadas a investimentos em políticas, equipamentos e serviços urbanos – habitação, saneamento, saúde e educação – destinados às classes populares. Aqui é preciso considerar que o grau em que tais políticas são desenvolvidas é variável em cada localidade e parece estar fortemente ligado à natureza da coalizão empreendedorista empresarial que emerge em cada cidade brasileira. No quadro das grandes desigualdades sociais que marcam o país, pode-se colocar como hipótese a necessidade desses investimentos em políticas urbanas para as classes populares como requisito para a legitimação do Estado e da coalizão que sustenta essa nova governança urbana empreendedorista empresarial. De fato, não é raro observar nas grandes cidades brasileiras, ao lado do intenso processo de remoção de comunidades compostas por famílias de baixa renda nas áreas revitalizadas, a existência de investimentos em urbanização e regularização de favelas e assentamentos precários, sobretudo pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Também se observam importantes investimentos voltados à população de baixa renda, como a regularização fundiária de ocupações de imóveis públicos e o financiamento de empreendimentos habitacionais geridos pelos movimentos sociais de moradia (Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV-Entidades). No entanto, seja qual for o caráter redistributivo dos investimentos, o projeto de cidade que está em curso parece aprofundar o padrão de urbanização excludente que caracteriza a ordem urbana brasileira, marcado pelo isolamento (autossegregação, pela ordem urbana negadora da alteridade) e por uma nova rodada de mercantilização (valorização) de grandes áreas das cidades. Essa nova rodada de mercantilização da cidade seria fundamentalmente caracterizada pela transformação de espaços, equipamentos e serviços urbanos desvalorizados – e, portanto, parcialmente ou totalmente desmercantilizados – em mercadoria, ou seja, em ativos inseridos nos circuitos de valorização do capital. Esse processo ocorre pela transferência forçada de ativos sob o controle das classes populares para setores do capital imobiliário ou de serviços urbanos e pela criação de novos serviços e equipamentos urbanos que serão geridos pela iniciativa privada (por exemplo, na área do transporte, esporte e lazer). Assim, cabe levantar algumas questões relativas ao conflito contemporâneo entre os processos de mercantilização e desmercantilização da cidade. Seria ingênuo pensar que a difusão

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da governança empreendedorista empresarial é alcançada apenas com base na negação dos direitos e na promoção da desigualdade e da exclusão social. Ao contrário, percebe-se que a promoção da mercantilização da cidade ocorre, em geral, acionando alguma modalidade de defesa dos direitos individuais, no caso, fundamentalmente o direito à propriedade e à liberdade, ao mesmo tempo em que representa um ataque aos processos de desmercantilização e aos direitos sociais e coletivos de parcelas significativas da população, que têm negado o seu direito de permanecer nas áreas em que habitavam, agora de interesse de grandes agentes econômicos, e de participar da discussão em torno dos projetos urbanos em curso.

...o direito à moradia pode estar ao mesmo tempo sendo negado e promovido, desde que permita e não ameace o processo de mercantilização da cidade, em um contexto de clara violação do direito à cidade como direito coletivo.

Considerando-se as configurações sociais das diferentes comunidades afetadas pelas intervenções urbanas, poder-se-ia constatar remoções, ou seja, processos de transferência de ativos sob o controle das classes populares para outros agentes econômicos e sociais, no qual parcela da população (por exemplo, em situação de vulnerabilidade social e vivendo em habitações precárias) poderia estar sendo beneficiada com a aquisição de um imóvel regularizado e em bom estado, mesmo em uma área distante; enquanto que outra parcela da mesma comunidade (com sua inserção social mais ou menos estabilizada em razão de vínculos estabelecidos com redes sociais e de trabalho formais ou informais) poderia estar sendo vulnerabilizada pela sua exclusão da área na qual organiza sua reprodução social. Dito de outra forma, o direito à moradia pode estar ao mesmo tempo sendo negado e promovido, desde que permita e não ameace o processo de mercantilização da cidade, em um contexto de clara violação do direito à cidade como direito coletivo. Nesse plano, é preciso levar em consideração que os despejos e as remoções ocorrem sob a legitimidade conferida pelo Poder Judiciário (que permite e determina as remoções) e da ordem pública, que operam no conflito entre, de um lado, o discurso em torno dos direitos individuais, da liberdade e dos processos de mercantilização da cidade – encarnado pelo poder público e pela coalizão de forças que sustenta a nova governança empreendedorista empresarial, sob o discurso do interesse público em torno do desenvolvimento econômico e social – e de outro, o discurso em torno dos direitos sociais e coletivos e os processos de desmercantilização da cidade, encarnado pelos movimentos sociais organizados em torno da reforma urbana e do direito à cidade. Mas ambos os discursos se expressam em políticas públicas e aparatos institucionais no interior do aparelho de Estado, apesar da lógica mercantil ser a dominante e hegemônica. Daí resulta a dificuldade de enfrentamento desse projeto. A reprodução social na cidade depende de condições concretas. Nessa perspectiva, o direito à cidade significa o direito de todos e de todas ao acesso à habitação e a todos os serviços relacionados à vida urbana e necessários ao bem-estar coletivo, conforme os valores e as categorias de representação da sociedade em questão. Mas a cidade em sua forma material e simbólica se traduz em um estilo de vida, uma forma de organização social. Portanto, o direito

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à cidade também inclui, talvez principalmente, o direito de dizer em que cidade se quer viver, ou seja, inclui o direito de recriar a cidade. Isso pode significar ter de destruir algumas formas físicas (estradas, prédios, barreiras físicas), instituições e formas jurídicas da cidade capitalista para recriar uma outra cidade (com sua nova forma física, novas instituições e novas regras jurídicas) que seja a expressão de outros valores, um cidade desmercantilizada, que seja valor de uso para seus cidadãos. Em síntese, o direito à cidade também diz respeito ao direito de recriar a cidade, ao direito de ter uma cidade radicalmente democrática, onde todos e todas possam participar das decisões relativas à forma como a cidade deve funcionar e ao modo de organizar a vida coletiva na cidade. A partir dessa concepção, podemos dizer que os conflitos urbanos que acontecem cotidianamente em torno da mercantilização ou da desmercantilização da moradia, da terra e dos equipamentos coletivos estão relacionados ao direito à cidade. Mas o desafio é avançar na construção de novos projetos de cidades, novos projetos de sociedade. Nesse sentido, o direito à cidade deve ser concebido como um programa anticapitalista e em uma nova utopia capaz de se traduzir em uma agenda unificadora dos movimentos sociais em torno de uma cidade justa e democrática para todos e para todas.

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As missões da

Relatoria do Direito à Cidade - 2009 a 2011

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ntre dezembro de 2009 e outubro de 2011, a Relatoria do Direito à Cidade realizou quatro missões de acompanhamento de denúncias de violação do direito à cidade e à moradia. Tais missões foram realizadas nas seguintes cidades: São Paulo e Região Metropolitana (SP), em 18 e 19 de dezembro de 2009; Teresina e Nazária (PI), em 14 e 15 de julho de 2010; Rio de Janeiro (RJ), entre 18 e 20 de maio de 2011; Paço do Lumiar e Região Metropolitana de São Luís (MA), em 13 e 14 de outubro de 2011, esta em conjunto com a Relatoria Estadual do Direito à Cidade e à Terra. As missões envolveram visitas realizadas em comunidades nas quais havia conflitos urbanos e denúncias de situações de violação do direito humano à cidade decorrentes dos seguintes processos: intervenções relacionadas à reestruturação urbana de áreas específicas da cidade (revitalização da área central); realização de obras viárias vinculadas à reestruturação urbana das cidades; expansão urbana das cidades; e realização de obras decorrentes da preparação da cidade para a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Em todos os casos, ficaram claros processos de desrespeito ao direito humano à cidade, em especial ao direito à moradia, e também a outros direitos humanos sociais e individuais, tais como os direitos à educação, segurança, proteção à criança e ao adolescente, assistência aos desamparados, saúde, água, saneamento e ao meio ambiente e outros. A situação das comunidades visitadas era grave e precária: famílias vivendo em moradias sem dignidade, muito próximas de córregos poluídos; ameaças de despejo e reintegração de posse; indenizações negociadas individualmente sem qualquer critério transparente; crianças tendo sua reprodução social ameaçada pelas situações de insalubridade extrema e insegurança física geradas pelas obras; incerteza sobre o futuro. Na cidade de Nazária e em Terezina, no Piauí, e em Paço do Lumiar e São Luís, no Maranhão, a missão da Relatoria (realizada, respectivamente, em julho de 2010 e em outubro de 2011) pôde constatar que o tema da moradia é um problema central ainda a ser resolvido nas cidades brasileiras e nas suas regiões metropolitanas. O déficit habitacional existente nessas cidades, aliado com a existência de inúmeros vazios urbanos e áreas particulares em estado de abandono e sem cumprimento de sua função social, gera brutais contradições e a ocorrência de inúmeras situações de conflitos pela terra. Isso se reflete nas ocupações realizadas por comunidades inteiras que vão para esses locais sem infraestrutura e sem condições dignas de moradia. No caso primeiro caso, da comunidade Vila Amazônia, em Teresina, tratava-se de uma

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ocupação de área particular por 65 famílias, que estava abandonada já fazia mais de 20 anos, sem qualquer tipo de manifestação de posse sobre a área. As famílias residiam há dois anos no local, em precárias condições de habitabilidade, sem água, sem coleta de lixo, sem esgoto, sem prestação de qualquer serviço mínimo pelo poder público. Tendo ocorrido a contestação por parte do proprietário, o conflito foi judicializado, o processo tinha sido sentenciado e aguardava somente seu cumprimento para efetivar o despejo de toda comunidade. Por solicitação da missão da Relatoria, houve intervenção do governo do estado do Piauí no caso, no sentido de se evitar o despejo das famílias, tendo sido suspensa a ordem de despejo pelo juiz. A intermediação da Agência de Desenvolvimento Habitacional (ADH), do governo estadual, garantiu a incorporação das 65 famílias ao projeto de habitação em outra comunidade, denominada Alto da Felicidade. O segundo caso foi o da comunidade de Terra Sol, no município de Paço do Lumiar, no Maranhão. Essa ocupação em terreno particular, realizada há quatro anos, reunia cerca de 450 famílias e estava com mandado judicial de desocupação marcado para dia 14 de outubro de 2011. A visita da Relatoria teve como efeito a abertura de um processo de negociação de conflito envolvendo a Prefeitura Municipal de Paço do Lumiar, a Vice-Governadoria do estado, o proprietário do terreno e a Relatoria Estadual do Direito à Cidade e à Terra, que resultou na suspensão do despejo por três meses, registrado na forma de um acordo entre a Prefeitura e o proprietário, no qual a prefeitura municipal também se compromete a resolver o problema fundiário dessa comunidade, garantindo o reassentamento das famílias num local próximo. Em São Paulo e em sua Região Metropolitana, a missão da Relatoria (realizada em dezembro de 2009), pôde constatar abundância de recursos para grandes obras de infraestrutura, mas ausência de prioridade e descuido por parte do poder público e das empresas contratadas para com o direito à moradia dos cidadãos situados nas áreas de intervenção desses projetos. A situação das comunidades visitadas era grave e precária: famílias vivendo em moradias sem dignidade, muito próximas de córregos poluídos; ameaças de despejo e reintegração de posse; indenizações negociadas individualmente sem qualquer critério transparente; crianças tendo sua reprodução social ameaçada pelas situações de insalubridade extrema e insegurança física geradas pelas obras; incerteza sobre o futuro. A forma como as remoções estavam sendo promovidas não deixava dúvidas: sem a garantia do direito à moradia, as famílias removidas não teriam outra alternativa a não ser reproduzir o quadro atual, construindo um barraco perto de outro A missão chegou a córrego ainda não ocupado; adensando as favelas já presenciar um caminhão existentes ou morando na rua. da Prefeitura jogando água em alguns Aliás, a visita noturna às ruas do Centro de São moradores que dormiam Paulo, realizada durante essa missão, permitiu verificar nas calçadas. que a população de rua vem crescendo, como escutamos em diversos depoimentos, em grande parte decorrente das remoções e despejos que vinham ocorrendo. A situação da população de rua – invisível para grande parte das instituições e mesmo para a população – era grave em razão do desrespeito e do desmonte da política de assistência que,

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segundo a lei municipal aprovada, deveria estar sendo implementada. A missão chegou a presenciar um caminhão da Prefeitura jogando água em alguns moradores que dormiam nas calçadas. A situação encontrada em São Paulo era reveladora de problemas relacionados diretamente com a construção de megaempreendimentos, como a ampliação da Marginal do Tietê, a implantação do Parque das Várzeas do Tietê (conhecido como parque linear) e a construção do Rodoanel. São Paulo parecia ser um exemplo da mercantilização das cidades, com a entrega de seus espaços mais rentáveis e valorizados à iniciativa privada e transferência da população pobre para regiões cada vez mais afastadas do centro, muitas vezes situadas em áreas de risco. No entanto, tomando como referência o Estatuto da Cidade e os pactos internacionais dos quais o Brasil é signatário, antes de atender a interesses econômicos, a cidade precisaria cumprir a sua função social, o que exige que o poder público garanta a todos e a todas, cidadãos e cidadãs, o direito à cidade. No Rio de Janeiro, a missão da Relatoria (realizada em maio de 2011) envolveu visitas a comunidades nas quais havia denúncias de situações de violação do direito humano à cidade decorrentes dos seguintes processos: a) realização de obras viárias para implantação dos BRTs (Bus Rapid Transit) Transcarioca e Transoeste; b) realização de reforma do estádio do Maracanã; c) construção dos equipamentos esportivos (Vila Olímpica) e d) intervenções relacionadas à reestruturação urbana de áreas específicas da cidade (revitalização da Zona Portuária – Projeto Porto Maravilha). Chama a atenção a forma como os despejos ocorrem. De fato, a maior parte das remoções previstas estava relacionada às obras dos BRTs. Em geral, as comunidades afetadas não tinham acesso às informações oficiais sobre as intervenções urbanas, e estavam privadas de participar das discussões relativas aos projetos. Efetivamente, em todas as comunidades visitadas não foi registrada a ocorrência de reuniões entre os moradores e os representantes da prefeitura, contrariando o que determina o Estatuto da Cidade. A importância da missão do Rio de Janeiro pode ser ilustrada pelo caso da comunidade de Campinhos. No Largo do Campinho, 61 famílias foram notificadas de remoção promovida pela prefeitura para a construção do corredor Transcarioca de BRT (Bus Rapid Transit), que terá 39 km de extensão, ligando o Aeroporto Internacional Tom Jobim com a região da Barra da Tijuca, onde está prevista a maioria dos equipamentos olímpicos. Inicialmente as opções oferecidas aos moradores dessas áreas foram indenizações ou moradias do programa Minha Casa Minha Vida, no âmbito do qual estavam sendo construídos diversos conjuntos habitacionais na Zona Oeste, a cerca de 45 km do centro da cidade. O processo de remoção dessas famílias foi bastante traumático, com diversos depoimentos destacando a violência do episódio, que envolveu muita pressão e ameaças, o que evidentemente visava coagir os moradores a aceitar uma negociação. Mas a violência foi apenas uma das faces da agressão ao direito fundamental à moradia. Conforme denúncia dos moradores, as indenizações só foram pagas após a derrubada das casas e as negociações promovidas pela Prefeitura, comandadas pelo subprefeito, foram sempre individuais. Cerca de 35 famílias ainda resistiam às remoções no momento de realização das visitas da missão da Relatoria, seguras por uma liminar impetrada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, que posteriormente seria derrubada, permitindo a retirada total das famílias.

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Durante a missão da Relatoria foi emitida nova ordem de despejo, mas a intervenção da Relatoria do Direito à Cidade na Procuradoria e a Secretaria Municipal de Habitação conseguiu evitar sua efetivação. Como resultado desse processo de negociação, a Prefeitura Municipal, através da Secretaria Municipal de Habitação, acabou se comprometendo com os seguintes pontos: a) suspensão das remoções e demolições até que todo o processo de negociação estivesse concluído; b) garantia do valor mínimo de R$ 37.500 para a indenização das moradias, podendo-se aumentar esse valor caso as moradias fossem maiores e estivessem em melhores condições; c) reassentamento das famílias que desejassem para uma unidade habitacional no conjunto do Programa Minha Casa Minha Vida (na ex-colônia Juliano Moreira, situado relativamente próximo da comunidade), previsto para estar concluído em cerca de 18 meses, garantindo o pagamento do aluguel social nesse período, até que a mudança para as novas habitações fosse concluída. Além disso, para o comércio local, do qual algumas famílias dependiam para viver, a Prefeitura se comprometia com a indenização de R$ 20.000,00. Uma semana depois, ainda no curso das negociações e compromissos assumidos pelo poder público municipal, no dia 27 de maio de 2011, ocorreu uma nova ordem de despejo e demolição das habitações determinada pela Procuradoria do Município. Após ... chama a atenção a muita mobilização, incluindo a intervenção da forma como os despejos Secretaria de Habitação, somente os moradores que já ocorrem. Em geral, tinham assinado o acordo com a Prefeitura tiveram mediante ordens suas casas demolidas, apesar de, naquele momento, judiciais sem ainda não terem recebido a indenização, paga cerca de cumprimento do dez dias depois da remoção ter sido efetivada. princípio do devido processo legal, sem que Em todos os casos visitados nessas missões da haja direito de ampla Relatoria do Direito à Cidade, chama a atenção a forma defesa e contraditório como os despejos ocorrem. Em geral, mediante ordens por essas pessoas. judiciais sem cumprimento do princípio do devido processo legal, sem que haja direito de ampla defesa e contraditório por essas pessoas. Chama a atenção ainda um certo padrão de intervenção do poder público que se repete nas diferentes cidades, e que poderia ser caracterizado pelos seguintes aspectos:

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Completa ausência, ou precariedade, de informação por parte das comunidades, acompanhada de procedimentos de pressão e coação, forçando os moradores a aceitar as ofertas realizadas pelo poder público, quando estas existem. Cabe frisar que as comunidades visitadas, sem exceção, não tiveram qualquer acesso aos projetos de urbanização envolvendo suas áreas de moradia.

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Completa ausência, ou precariedade, de envolvimento das comunidades na discussão dos projetos de reurbanização promovidos pelo poder público, bem como das possíveis alternativas para os casos nos quais são indicadas remoções.

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Deslegitimação das organizações comunitárias e processos de negociação sempre individualizados com as famílias, nitidamente buscando enfraquecer sua capacidade de negociação com o Poder Público. Nessa mesma perspectiva, cabe

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registrar que as negociações, em geral, são arbitrárias e sem critérios claros de negociação, inclusive no que se refere aos valores das indenizações. n

A utilização da justiça como um instrumento contra o cidadão. Tendo como principal instrumento as ações judiciais, o poder público e o Poder Judiciário atuam como uma máquina irresponsável de despejos, sem qualquer compromisso com a saúde e a vida das pessoas. A prática parece ser a de penalizar todos os cidadãos que recorrem à justiça para proteger os seus direitos de permanecer na ocupação, tendo em vista que, em geral, as liminares derrubadas na justiça são acompanhadas da imediata remoção, sistematicamente realizadas em situações de terror e violação dos direitos humanos. Os seres humanos – homens, mulheres, idosos e crianças – são gravemente desrespeitados por práticas tais como a remoção em 24 horas ou da sujeição das famílias a condições de vida degradantes, obrigando-as a viver entre os escombros das demolições.

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Desrespeito à cidadania. O padrão de relacionamento dos agentes públicos, em geral, é desrespeitoso com a população de baixa renda, tratada como cidadãos de segunda classe, como se os moradores não fossem portadores de direitos, lembrando o fim do século XIX, em que a propriedade era base de todos os demais direitos. Ou seja, como são moradores sem propriedades, não são considerados portadores de direitos de cidadania.

Fica evidente, para a Relatoria, que é urgente efetuar uma aproximação com o Poder Judiciário local no sentido de que este esteja atento ao cumprimento das normas internacionais de direitos humanos. Além disso, é necessário o aprofundamento e implementação dos instrumentos do Estatuto da Cidade no que se refere a impedir a existência de inúmeros vazios urbanos em detrimento do grande déficit habitacional ainda existente, bem como promoção de políticas públicas e efetivas de produção de habitação de interesse social. Da mesma forma, tendo em vista o cenário da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas 2016, acredita-se que é de fundamental importância manter na agenda da Relatoria do Direito à Cidade o tema dos grandes empreendimentos e dos megaeventos esportivos, de modo a denunciar as violações de direitos humanos associados a essas intervenções, buscando reverter sua lógica, para que possam ser gerados processos de promoção do direito à cidade.

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Entrevista Marcelo Braga Edmundo

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arcelo Braga Edmundo é ativista político e milita na luta pela reforma urbana e pelo direito à cidade. Atua na Central dos Movimentos Populares (CMP), como membro da direção nacional e no Conselho das Cidades. Atualmente participa da articulação dos Comitês Populares da Copa, no Rio de Janeiro, e por todo país na resistência contra as violações dos direitos humanos em decorrência dos megaeventos esportivos. Como está o contexto do direito à cidade no Brasil após os investimentos do Programa Minha Casa Minha Vida do governo federal? Infelizmente, mais de dois anos depois do lançamento do programa MCMV, não temos muito ou quase nada para comemorar, no sentido da consolidação e do avanço efetivo do direito à cidade. Logo de cara, existe um problema de concepção inconciliável, o MCMV é cada vez mais apenas um programa de construção de moradia, notadamente para aquecer o mercado da construção civil, sem nenhum vínculo com o modelo de cidade que defendemos e que de certa maneira resultou na criação do Ministério das Cidades. O direito à cidade é muito mais do que isso, muito mais do que colocar quatro paredes de pé, é garantir o respeito aos aspectos fundamentais da reforma urbana que tanto lutamos, no sentido de construir cidades justas, com qualidade e, sobretudo, com o acesso universal da população à moradia adequada. Quando vejo nos conjuntos populares o desrespeito e o descaso com a população, cheia de esperança em ter finalmente seu lar, não dá para segurar. São centenas e até milhares de minúsculas casas, sem as mínimas condições de habitabilidade, geralmente nas periferias e com uma qualidade tão ruim que não resiste ao tempo, e ao invés de ser um bem duradouro, em pouco tempo já está completamente deteriorado. Mas essa situação não foi nenhuma surpresa para quem acompanhou o lançamento do programa. Foi no momento em que festejávamos algum avanço, com a aprovação do Estatuto da Cidade, do SNHIS e do FNHIs, o primeiro projeto de lei de iniciativa popular no país, veio o MCMV, que passou por cima de tudo, ignorando todo nosso esforço e nossa luta. Como o Programa Minha Casa Minha Vida pode melhorar no sentido de efetiva garantia do direito à cidade das pessoas? O que observamos é que o MCMV, em muitas ocasiões, vem sendo utilizado não para resolver o problema do déficit ou da moradia, mas para criar condições e justificar remoções e despejos forçados. Em muitas cidades, o MCMV está sendo usado, para “limpar” a cidade, da população mais pobre, empurrando tudo para bem longe. Para mudar esse quadro é fundamental que ele deixe de ser um programa financeiro, que visa apenas a construção de casas para aquecer o mercado da construção civil e incorpore em sua concepção o conceito do

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direito à cidade, que tanto lutamos para garantir e sabemos que muitos deles estão contidos no Estatuto, que completa 10 anos. No fundo não existe mistério e nem é preciso inventar nada, nem ser revolucionário. Sabemos como e o que fazer. Sobre o Rio de Janeiro, quais são as consequências a curto prazo e a médio prazo das intervenções urbanas ocasionadas pelos megaeventos esportivos? Com certeza, a primeira grande e traumática consequência são as remoções e os despejos, feitos em nome dos megaeventos. Isso provoca uma brutal transformação na vida das pessoas e sua relação com a cidade. Além disso, toda especulação imobiliária decorrente dessas intervenções e violações. Se a população mais pobre é quem primeiro sofre os impactos em nome dos jogos, hoje a classe média é diretamente atingida, com o aumento absurdo dos aluguéis e preço dos imóveis. Afinal, fazemos parte de uma mesma cidade, por mais que os governantes insistam em governar para uma minoria, que só visa o lucro e o ganho, transformando a cidade num grande balcão de negócios. Para garantir esses lucros e negócios, hoje, tudo é possível: desrespeito às leis, ao direito da população de usufruir da cidade e do espaço urbano com liberdade, incluindo o direito ao trabalho e o direito de conviver na cidade. Em nome dos jogos, o Estado está cada vez mais presente não para proteger e equilibrar a relação entre o privado e público, mas para criar condições para que o privado aumente mais e mais o seu lucro, sem ser importunado. Para isso, recolhem-se mendigos, crianças viciadas, alcoólicos, ocupam-se os morros e favelas como um grande espetáculo midiático, que não levará a nada e só atende, mais uma vez, aos interesses da especulação e do mercado. Enfim, recolhe-se como lixo o povo mais sofrido, resultado do modelo de cidade que construímos e fracassado. Com os megaeventos, até poderíamos ter uma oportunidade para repensar e reconstruir a cidade, com novos parâmetros e tendo como referências todo o histórico de lutas e discussão dos movimentos, ONGs, entidades acadêmicas e dos trabalhadores, parlamentares da reforma urbana, enfim todos que levantaram a luta pelo direito à cidade como fundamental para construção de uma nova realidade social, em que primeiro e o mais importante é o ser humano e sua relação saudável com a cidade e na qual o espaço urbano pertence a todos que nele vivem e convivem. Quais as medidas que os poderes públicos podem tomar imediatamente para que cessem essas violações? Primeiro: que parem imediatamente com toda ação e intervenção que possa provocar qualquer tipo de despejo e remoção, para que seja feito um levantamento dos impactos sociais que elas acarretam. Que a população atingida seja diretamente ouvida e respeitada durante todo o processo, do início ao fim. Que todas as intervenções sejam negociadas e se respeitem a realidade de cada local, procurando se adequar a ela. Que a transparência em relação às intervenções seja permanente, para que a população tenha conhecimento das intervenções que serão feitas e quem será atingido direta e indiretamente, para que possam ser construídos projetos e propostas alternativas, que preservem o direito à moradia e que provoquem menos impacto social. Que seja respeitado o direito básico e constitucional à moradia adequada. Que todas as leis, tratados e acordos internacionais sejam obedecidos, nos casos em que se comprove efetivamente a necessidade de remoção ou despejo. Enfim, que o direito à cidade seja efetivamente respeitado e orientador dessas intervenções. Relatoria do Direito Humano à Cidade

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Relatoria do Direito Humano à Educação A garantia do direito à educação de qualidade:

o desafio persistente das iniquidades

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educação é um direito que está garantido na legislação nacional e em diversos instrumentos internacionais. Também é um direito social, que compreende um processo formativo que ocorre ao longo de toda a vida do ser humano, de forma individual e coletiva, formal e informalmente. É um instrumento que possibilita a expansão da autonomia e possibilita a reivindicação por outros direitos sociais e políticos. A educação é um direito humano que consiste no desenvolvimento de todas as habilidades e potencialidades humanas. Isso implica estar disponível para todas as pessoas com igualdade de oportunidades, de acessar, permanecer e concluir a educação. Uma educação com direitos humanos compreende que ela seja de qualidade, independentemente da condição étnico-racial, social, religiosa, cultural, geracional, territorial, físico-individual, de gênero, de orientação sexual, de nacionalidade, de opção política, entre outros. Mas, apesar de ser um direito, a educação está marcada por iniquidades: A diferença conceitual entre desigualdade e iniquidade está justamente no reconhecimento de que a desigualdade não implica necessariamente julgamento moral sobre as diferenças encontradas na realidade social, enquanto as iniquidades, desde sua definição, apontam um juízo de valor sobre desigualdades que não deveriam existir, pois são injustas, desnecessárias e evitáveis. (CONSELHO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL). As iniquidades educacionais se reproduzem de forma sistemática e estão relacionadas com o pertencimento étnico/racial, a classe social, ao gênero, sexualidade e a localização territorial. Apesar dos avanços permitidos pelo processo de universalização do ensino público, a educação ainda reproduz as relações sociais brasileiras e perpetua processos de exclusão.

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São diversos os estudos, avaliações e análises realizadas por órgãos governamentais visando à formulação de políticas voltadas à eficácia dos sistemas de ensino. No entanto, os dados revelam a persistência das desigualdades na educação brasileira (da educação infantil ao ensino superior), revelando que as políticas educacionais têm falhado em sua função de assegurar que as habilidades essenciais para a vida sejam apreendidas adequadamente por todas e todos. A educação é fator fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade com justiça social, qualidade de vida e sustentabilidade. A garantia do direito humano à educação é decisiva no acesso a outros direitos. Porém, para se alcançar uma transformação mais estrutural de nossa sociedade, é necessário articular as políticas educacionais a um conjunto de outras políticas que promovam efetivamente a distribuição de recursos, poderes e conhecimentos. “A educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”, lembrava o educador Paulo Freire.

A superação da herança racista A história da educação brasileira é marcada profundamente pelo racismo, entendido de forma ampla, pela negação do outro, pelo não reconhecimento da condição humana àqueles e àquelas considerados diferentes, em decorrência de determinadas características físicas. Tal visão está na base da justificativa para que a elite branca do começo do século XIX, pósindependência do Brasil em 1822, não investisse em uma política universal de educação pública como parte de um projeto de nação, pois a gigantesca maioria da população do recémcriado país era constituída por negras e negros escravizados, sujeitos de vários movimentos de resistência. Temia-se que a educação desse mais poder a essa população negra, ainda mais ao considerar que na época todas as elites locais da América Latina tinham em mente a revolução haitiana, quando o povo negro escravizado expulsou a elite branca do país e fundou em 1804 o primeiro país latino-americano governado por negros, que sofreu todos os boicotes do mundo. Apesar das diferenças, além do Haiti, é necessário considerar a tentativa paraguaia de construir um projeto de nação diferenciado e o que ocorreu com o país posteriormente. Diferentemente de outros países do Cone Sul, como Argentina e Uruguai, que já apresentavam na primeira metade do século XIX uma política universal de educação com cobertura próxima aos 80% da população, no Brasil esse número não chegava nem aos 20%. Alguns críticos apontam que isso ocorreu, sobretudo na Argentina, em decorrência das políticas de eliminação física da população negra e indígena. Talvez possa se afirmar que a emergência de políticas de educação pública universal para uma população menos diversificada do ponto de vista étnico e racial foi possível porque o diferente não era tão diferente assim. No final do século XIX, no Brasil, a abolição da escravatura e a república vieram, e o investimento em uma política de educação universal também não vingou. Somente a partir da década de 1930, após o forte investimento na imigração europeia como forma de branquear a população brasileira, que a proposta de uma política de educação pública avança, no conflito entre grupos progressistas e conservadores, expressos na Constituição de 1934. E aí vieram os

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golpes políticos e nova tentativa de construir um projeto republicano de política de educação ancorada na Constituição de 1961, que também foi sabotada pelo golpe militar de 1964. A construção de uma política educacional nacional é assumida pelo governo militar brasileiro durante a ditadura como parte de seu projeto desenvolvimentista, mas baseado em um modelo de expansão com baixo investimento por aluno e forte arrocho salarial dos profissionais de educação que veem seu poder de compra e de voz despencar, assim como os outros sujeitos políticos da época submetidos à profunda repressão que assolou o país. O processo de democratização e a Constituição de 1988 trouxeram novas esperanças, conquistas na legislação, avanços em muitas políticas locais e estaduais, que foram em grande parte sabotadas pela onda das reformas neoliberais dos anos de 1990 na América Latina que pregavam o enxugamento do Estado, questionavam a importância de políticas universais e defendiam a diminuição dos gastos públicos já insuficientes diante ... passamos por políticas da gigantesca e histórica dívida social brasileira. O que na prática acesso à educação cresce, chegou-se quase à reconhecem ao conjunto universalização com a então etapa obrigatória do da população o direito ao acesso à educação, mas ensino fundamental na década de 1990. garantido ainda com De modo geral, podemos dizer que da negação base em uma educação do outro como ser humano, como detentor de direitos, de baixa qualidade, uma que caracterizou o século XIX e grande parte do século educação para uma XX, passamos por políticas que na prática reconhecem sociedade hierarquizada, ao conjunto da população o direito ao acesso à fortemente desigual, uma educação pública para educação, mas garantido ainda com base em uma “inferiores” educação de baixa qualidade, uma educação para uma sociedade hierarquizada, fortemente desigual, uma educação pública para “inferiores”, uma educação pobre para pobres, uma educação para uma inserção precária no mundo da aprendizagem.

Educação e desenvolvimento O governo Lula (2003-2010) trouxe novas esperanças, ampliaram-se a participação e o diálogo com a sociedade civil, programas e políticas importantes foram criados, mas o salto mais estrutural, a mudança na lógica no investimento financeiro, não acontece, apesar da criação do Fundo da Educação Básica (Fundeb) e do lançamento do Programa de Desenvolvimento da Educação (PDE). No governo Lula, sobretudo no segundo mandato (20072010), fortaleceu-se a capacidade de indução de políticas do governo federal por meio da combinação de políticas de avaliação educacional de larga escala (que tem o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica como principal referencial) combinada com financiamento a municípios e estados. No centro da roda, está o lugar da educação e das políticas sociais em um modelo de desenvolvimento que se diversifica, mas que ainda mantém a marca da concentração de renda.

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Apesar de avanços nos indicadores da última década, o país segue com uma educação de baixa qualidade, marcada por profundas desigualdades de renda, raça, etnia, região, deficiência, orientação sexual, campo/cidade, como os números dos diversos institutos de pesquisa apontam. Do ponto de vista da atuação de movimentos, fóruns e organizações da sociedade civil brasileira, podemos identificar duas grandes linhas de ação, duas grandes frentes: n

A luta pela estruturação de políticas universais de educação como políticas de Estado, que quebrem a lógica da descontinuidade, com metas de médio e longo prazo, com financiamento adequado por meio do Custo Aluno Qualidade (CAQ). O que é o Custo Aluno Qualidade? Previsto na nossa legislação e até agora não cumprido, o CAQ representa a inversão da lógica do financiamento educacional ao partir da questão: qual o valor por aluno necessário para a garantia do padrão de qualidade previsto em nossas leis. O CAQ se constituiu na principal bandeira de luta da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, assumida posteriormente por diversas organizações e movimentos do campo educacional.

Vinculada ao desafio da política de Estado, está a valorização efetiva dos profissionais de educação, envolvendo melhoria das condições salariais, das condições de trabalho e das condições de vida de uma categoria constituída em mais de 80% por mulheres. A implementação da lei do Piso Nacional Salarial dos Profissionais de Educação, conquistada em 2009 com apoio do governo federal, representa o principal embate entre, por um lado, movimentos sindicais e sociais e, por outro, gestores educacionais e das áreas econômicas dos governos. Como parte dos desafios colocados para a construção de políticas de Estado, está a conquista – de fato – de um regime de colaboração entre os entes federados (municípios, estados e União), que supere a disputa e a falta de coordenação na oferta do atendimento educacional para a população. Além disso, está também um investimento mais estrutural e revitalizante na gestão democrática (da escola às políticas) para que as vozes sejam ouvidas, para que a participação em seu sentido plural seja exercida. Em um país marcado pela descontinuidade, falta de controle social das políticas sociais, pelas desigualdades estruturais, avançar rumo à política de Estado de educação significa um grande passo. n

A segunda linha de atuação dos movimentos está pautada na diversidade na educação. Tal agenda ascende com mais força no debate educacional a partir dos anos de 2000 e vem sendo desenvolvida por vários movimentos identitários (mulheres, negros, indígenas, LGBT, de deficiências), ambientalistas e outros vinculados a temas de fronteira do direito à educação. Esses movimentos revelam as insuficiências das políticas universais no enfrentamento das desigualdades e discriminações e questionam o modelo ou os modelos hegemônicos de escola ainda referenciados em padrões patriarcais, brancos, europeus, norte-americanos, heteronormativos, etc. Questionam também as políticas de inclusão escolar como aquelas que preveem a inclusão dos diferentes em um modelo de escola que não reconhece e não valoriza a diversidade existente em um país multirracial, multiétnico, multicultural. Denunciam que tanto as políticas públicas como as escolas são espaços de reprodução, de acirramento, de resistência à mudança, mas também de transformação e de

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enfrentamento das desigualdades e das discriminações exercidas no ambiente escolar. Do ponto de vista das ações, buscam chamar a atenção para questões “invisíveis” da agenda educacional, alargar e pluralizar o conceito de qualidade expresso nos currículos, nas avaliações, nos materiais didáticos, defendem ações afirmativas articuladas às políticas universais, além de metas de equalização visando a diminuição das desigualdades entre grupos da população. Esses questionamentos vão além da ideia de criação de programas “específicos” para grupos discriminados e exigem uma abordagem transversal que mexa nas concepções do que se entende por função social da escola, do que se entende por aprendizagens, por políticas destinadas à melhoria do desempenho escolar, por diagnóstico das causas dos diversos problemas e desafios educacionais, por políticas de formação e avaliação dos profissionais de educação e, entre outros, na forma como as políticas educacionais entendem as desigualdades e a diversidade na escola. Todas essas agendas estão em um momento estratégico com a elaboração do novo Plano Nacional de Educação, em tramitação no Congresso Nacional. O novo plano vai definir as metas educacionais para os próximos dez anos. Uma das grandes e acirradas polêmicas é se o Brasil ampliará o investimento em educação dos atuais 5% para 7% ou 10% do PIB, garantindo ou não condições mais adequadas para o enfrentamento da gigantesca e histórica dívida educacional que marca o país.

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Relatoria contribui com informe sobre gênero e educação do Cladem

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Relatoria do Direito Humano à Educação também contribuiu com o informe gênero e educação no Brasil, produzido pela ONG Ação Educativa a pedido do Comitê LatinoAmericano dos Direitos das Mulheres (Cladem), com colaboração da organização Comunicação e Sexualidade (Ecos), do Centro de Referência às Vítimas de Violência do Instituto Sedes Sapientiae (CNRVV-SP). O documento é organizado por Denise Carreira, relatora do direito humano à educação, que aborda, entre outros desafios da igualdade de gênero na educação brasileira, a situação educacional dos meninos negros, a valorização das profissionais de educação, os desafios da laicidade no Brasil, as ações afirmativas e as desigualdades entre mulheres na educação. No segundo mandato, destaca-se também a exposição realizada pela relatora na audiência pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal sobre as ações afirmativas no ensino superior brasileiro. A relatora esteve em Washington no dia 25 de outubro de 2011 para apresentar o informe perante a Comissão Interamericana da OEA. Todos os documentos produzidos pela Relatoria encontram-se disponíveis nos sites da Plataforma Dhesca e da Ação Educativa.

O racismo na educação brasileira Uma menina negra leva o caderno à professora para tirar dúvidas. A professora olha o caderno e explica rapidamente. A menina lança um olhar de quem não compreendeu a explicação. A professora suspira e rapidamente encerra a conversa em tom carinhoso: tudo bem, querida, criança negra não consegue entender direito as coisas. Pode sentar. Tá bom o que você fez. Em casa, a menina conta para a mãe a história, que vai tirar satisfação com a professora no dia seguinte.

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O professor está na frente da sala explicando a escravidão no Brasil. Mostra imagens do pintor Jean Baptiste Debret, com pessoas negras no tronco, sendo chicoteadas, realizando trabalhos pesados, sob mando de pessoas brancas. Alguns meninos fazem piadinhas no fundo da sala. Uma menina branca fala alto: coitados! O professor se empenha em explicar com detalhes os castigos físicos sofridos pelas

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pessoas negras. Para muitas crianças negras da sala, parece mais uma aula interminável. O professor fala da princesa Isabel e de seu importante papel na libertação dos escravos. Nas aulas sobre a “escravidão” não existem quilombos, resistências, capoeira, heróis e heroínas negras, anônimos ou não. O sinal toca, é hora do recreio. Um menino negro é chamado de macaco e começa uma briga. Uma menina negra grita que não quer mais que falem mal do seu cabelo crespo. A inspetora chega e dispersa a confusão da criançada: “vocês estão impossíveis!”. “Vamos começar a fazer um trabalho diferente, vamos discutir que no Brasil existem muitos tipos de religiões, vamos conhecer um pouco de cada uma delas”, convida a professora, que se dedicou a preparar com carinho as aulas. A turma de adolescentes se interessa pelos conteúdos e a professora fica bastante animada. A partir das aulas, os alunos e alunas começam a falar dos seus vínculos religiosos, de como é pertencer a cada uma delas. O destaque vai para os evangélicos e católicos que são a gigantesca maioria da turma. Na aula sobre as religiões de matriz africana, uma adolescente tímida, que se dizia espírita, fala de sua ligação com o candomblé. Os colegas a ouvem com respeito e fazem várias perguntas para a menina. A professora vai para a casa feliz com o resultado. Semana seguinte, o clima é outro. A menina reclama que depois daquele dia, que foi “tão bom”, muitos colegas passaram a não falar mais com ela, se negam a incluí-la nos trabalhos em grupo e alguns dizem até que ela é “a macumbeira, filha do demônio”. A professora se desespera, tenta retomar a conversa com a turma, fala com a diretora, que diz não saber o que fazer, mas que recebeu reclamações de vários pais sobre as tais aulas. A menina vai sendo excluída, cai em depressão e pede para não ir mais à escola. Agora, não são somente os colegas da turma, mas parece que a escola inteira sabe que ela é do candomblé. As acusações, as piadas e o distanciamento aumentam. A família decide tirar a menina da escola.

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A escola é de uma comunidade quilombola no interior do Brasil, “terras dos pretos”, hostilizados por séculos por muitos moradores da cidadezinha próxima como um “povo que não era gente”. Terras que, antigamente, eram tão distantes e ruins de plantar que ninguém se interessava, mas que hoje atraem a atenção de muita gente, que se diz dona daqueles lugares. O prédio da escola, que antes ficava na casa de um morador, foi conquistado pela luta da comunidade. Para chegar na escola, as crianças andam no sol escaldante até 7 km. Muitas comem somente umas bolachas e um pouco de café antes de sair de casa. E na escola, a merenda se repete, arroz, mandioca, sardinha e outros enlatados. Os professores têm contratos precários e levam uma vida nada fácil. Nas aulas, não se fala sobre o que significa ser quilombola ou a história e cultura negra, quando muito, realizase alguma atividade no 20 de novembro, dia da Consciência Negra. Nas paredes não existe nada que remeta a ideia de que a escola é quilombola. “A coisa que mais


quero para a nossa escola? Uma bola de verdade para poder brincar”, responde um menino de olhos grandes e vivos. A casinha é pequena e muito úmida, o cheiro é forte, pouca luz consegue entrar, são três cômodos, sem área externa. Fica no extremo da periferia de Salvador, uma região muito adensada, com vielas estreitas e sem atendimento de creches. É lá que um terreiro, com apoio de vários filhos e filhas de santo da comunidade, faz funcionar há sete anos uma creche que atende 100 crianças em dois turnos, 45 delas permanecem o dia inteiro. O esforço é gigantesco, levado a maior parte por educadoras jovens voluntárias, que investem em sua própria formação e sonham ser professoras. É difícil imaginar como é possível tantas crianças permanecerem em espaço tão pequeno. A fila de mães e pais não para de crescer. Não é fácil dizer não, mas não cabe mais. Há anos, a comunidade pede apoio do poder público, que não vem. “Mas a gente vai ser virando e atendendo famílias de todas as religiões, aqui não tem discriminação”, observa a coordenadora.

Cenas como essas, foram ouvidas ou presenciadas pela equipe da Relatoria de Educação, ao longo das missões que tiveram como foco a problemática do racismo na educação brasileira, que se constituiu no grande tema do mandato 2009-2011. Abordando questões como a intolerância religiosa nas escolas públicas contra adeptos(as) de religiões de matriz africana, a educação em territórios quilombolas e as manifestações do racismo no cotidiano escolar, a Relatoria realizou entrevistas com educadores, crianças, adolescentes, famílias, comunidades, gestores, ativistas, lideranças religiosas e operadores de direito sobre questões pouco “visíveis” no debate público e ainda não tratadas de forma adequada pelas políticas educacionais.

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As muitas faces do racismo

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escola é o lugar em que as diferenças se explicitam e, muitas vezes, do primeiro contato das crianças com o preconceito, a discriminação e o racismo. O racismo se manifesta de diferentes formas nos espaços educativos e se concretiza por meio de atitudes ativas (agressões e humilhações, como piadas, xingamentos, apelidos, violência física, Associado ao sexismo, o etc.) ou de forma mais “sutil” por meio da distância racismo leva muitas social, da falta de reconhecimento e de estímulo meninas, adolescentes e (refletida nos livros didáticos e propostas pedagógicas), mulheres negras a da negação, da desatenção e da baixa expectativa enfrentar um cotidiano positiva com relação ao desempenho de pessoas negras. marcado pela desqualificação cotidiana Associado ao sexismo, o racismo leva muitas da beleza negra, a meninas, adolescentes e mulheres negras a enfrentar erotização precoce, a um cotidiano marcado pela desqualificação cotidiana falta de imagens e de da beleza negra, a erotização precoce, a falta de referências positivas e imagens e de referências positivas e empoderadas, empoderadas além das dificuldades enfrentadas por grande parte delas nas famílias e comunidades Na articulação das desigualdades entre gênero e raça, é importante também destacar a situação dos meninos e adolescentes negros, que constituem o grupo social com os piores indicadores educacionais. Como diversas pesquisas apontam, o racismo tem um impacto terrível na aprendizagem e no desenvolvimento da autoestima de crianças, jovens e adultos negros e pode alimentar o sentimento perverso de superioridade de crianças, adolescentes e jovens brancos com relação a pessoas de outras origens étnico-raciais (negras, indígenas, ciganas, hispano-americanas, etc.). O racismo é um obstáculo à conquista de uma sociedade justa e democrática e exige uma atuação precisa do Estado brasileiro para sua superação efetiva.

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Intolerância religiosa e a atuação da Relatoria de Educação

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ntre as denúncias de intolerância religiosa que chegaram à Relatoria, de diversas regiões do país, encontram-se casos de violência física (socos e até apedrejamento) contra estudantes; a demissão ou o afastamento de profissionais de educação adeptos de religiões de matriz africana ou que abordaram conteúdos dessas religiões em classe; a proibição de uso de livros e do ensino da capoeira em espaço escolar; as desigualdades no acesso a dependências escolares por parte de lideranças religiosas, em prejuízo das vinculadas à matriz africana; a omissão diante da discriminação ou abuso de atribuições por parte de professores e diretores que fazem da escola espaço para o proselitismo religioso, etc. Essas situações, muitas vezes, levam estudantes à repetência, evasão ou solicitação de transferência para outras unidades educacionais, comprometem a autoestima e contribuem para o baixo desempenho escolar. Alguns entrevistados e entrevistadas denunciaram que a intolerância religiosa vem aumentando em decorrência do crescimento de determinados grupos religiosos fundamentalistas nas periferias das cidades e de seu poder midiático; da ambiguidade das políticas educacionais com relação à defesa explícita da laicidade do Estado e do insuficiente investimento na implementação da lei 10.639/2003 que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e tornou obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afrobrasileira em toda a educação básica. Em uma sociedade tão desigual, discriminadora e diversa como a brasileira, a Relatoria também chama a atenção para a importância de que seja estimulado um debate público qualificado sobre o significado do ensino religioso e de seus efeitos com relação ao princípio constitucional da laicidade. Ensino religioso que é atualmente custeado pelo poder público, em detrimento de investimentos nas inúmeras demandas da educação pública ou na implantação de disciplinas como “educação, cidadania e direitos humanos”. É necessário também que se explicite que a intolerância contra religiões de matriz africana, as mais vitimadas no país, constitui uma das faces perversas do racismo brasileiro, que humilha, condena e destrói a cada dia a autoestima e as perspectivas de milhões de meninos, meninas, jovens, mulheres e homens negros do país. No informe preliminar sobre as missões de intolerância religiosa, divulgado em setembro de 2010, durante a Marcha Nacional pela Liberdade Religiosa, realizada no Rio de Janeiro, a Relatoria apresentou um conjunto de treze recomendações ao Estado brasileiro, visando a superação da intolerância religiosa nas escolas públicas e do racismo no ambiente escolar. Entre elas, a criação do Plano Nacional para o Enfrentamento da Intolerância Religiosa

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e de comissões de intolerância religiosa em todos estados brasileiros; a implementação efetiva do plano nacional da lei 10.639/2003; a criação de protocolo escolar para apresentação de denúncias relativas à intolerância religiosa, racismo, homofobia/lesbofobia, de gênero, contra deficientes e demais discriminações e violências ocorridas em creches, escolas e universidades; a formação dos(das) profissionais e gestores de educação e conselheiros tutelares; o fim do ensino religioso confessional em redes públicas de ensino de todo o país e a revogação do acordo Brasil e Santa Sé, que prevê ensino religioso católico e de outras confissões cristãs nas redes públicas; a fiscalização e controle social da política de conveniamento dos órgãos públicos com organizações sociais confessionais.

“Entendemos ser obrigação do Estado brasileiro combater efetivamente todas as formas de impunidade de crimes cometidos contra a sociedade e contra o Estado. A Relatoria vem se somar às vozes que questionam o modelo de punição centrado predominantemente na ampliação do confinamento de seres humanos em unidades prisionais como resposta não somente ao alegado crescimento do crime organizado no Brasil e no mundo, mas ao aumento dos conflitos sociais e interpessoais decorrentes das desigualdades (econômicas, étnico-raciais, regionais, de gênero, de orientação sexual, etárias, etc.) e da falta de acesso a direitos básicos”. Heidi Ann Cerneka, Integrante da Coordenação Nacional da Pastoral Carcerária. Conheceu o trabalho da Relatoria no trabalho sobre educação nos presídios, realizado em 2009.

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Meta de equalização no novo PNE Uma das propostas inovadoras apresentadas pela Relatoria, por meio da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, para o processo de tramitação do novo Plano Nacional de Educação (2012-2021) no Congresso Nacional, foi a necessidade de estabelecimento de uma meta de equalização, que diminua em 60% a desigualdade entre grupos da população considerando as desigualdades de renda, raça/etnia, gênero, campo/cidade, deficiências, orientação sexual, região e origem nacional ao longo da próxima década. Equalizar significa igualar, buscar um maior equilíbrio, diminuir desigualdades entre diferentes. A proposta de meta de equalização no PNE vem contribuir para a explicitação e o enfrentamento de desigualdades estruturais que marcam a educação brasileira, ao induzir políticas públicas que visem a diminuição de tais desigualdades nos próximos dez anos. As metas de equalização nascem da constatação de que as políticas universalistas, como vêm sendo formuladas e implementadas, têm sido insuficientes para diminuir muitas das desigualdades presentes na realidade brasileira. Vários estudos e relatórios elaborados por institutos governamentais, universidades e organizações da sociedade civil brasileiros apontam que – apesar da melhoria de diversos indicadores sociais e educacionais na última década – as brechas educativas entre grupos da população persistem ou até se ampliam. Estabelecer metas de equalização em planos de Estado constitui mecanismo adotado em diferentes países e blocos regionais, como a União Europeia e o próprio Mercosul, com fins econômicos, políticos ou sociais. As metas de equalização em um Plano Nacional de Educação estão comprometidas com o avanço da equidade, entendidas como eixo estruturante e condição fundamental para o acesso e o exercício pleno do direito humano à educação. Há casos em que as metas da equalização são usadas por determinados gestores públicos como justificativa para o rebaixamento da qualidade do atendimento dos grupos mais favorecidos e não para a elevação da qualidade do atendimento dos grupos mais discriminados. Em decorrência disso, a proposta da meta de equalização da Relatoria fixa a equalização por meio da elevação dos indicadores educacionais dos grupos vulneráveis. Além disso, é fundamental afirmar que as metas de equalização somente fazem sentido se combinadas – em um mesmo plano de Estado – com metas universais de ampliação e melhoria do atendimento educacional para todos e todas, ou seja, pressupõem o fortalecimento de políticas universalistas aliado ao

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Entrevista Antonio Bispo dos Santos

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luta das comunidades tradicionais quilombolas e indígenas pela garantia de seus direitos acompanha a própria história do Brasil. Vem desde o período das graves violações dos direitos humanos do Brasil Colônia e continua no Brasil do século XXI. Nesta entrevista, Antonio Bispo dos Santos, o Nego Bispo, fala sobre os desafios vividos pelas comunidades quilombolas, especialmente na luta pelo direito à terra. Nego Bispo nasceu no Vale do Rio Berlengas, antigo povoado Papagaio, hoje município de Francinópolis. É lavrador tradicional, formado por mestres e mestras de ofícios e morador do quilombo Saco do Curtume, localizado no município de São João do Piauí, semiárido piauiense, distante cerca de 500 km de Teresina. Ativista político e militante de grande expressão no movimento social quilombola e nos movimentos de luta pela terra, Nego Bispo é, atualmente, um dos representantes do estado do Piauí na Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). Foi presidente do Sindicato Rural de Francinópolis (PI) e diretor da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Estado do Piauí (FETAG/PI). Poeta, escritor e intelectual, que prefere ser chamado de “relator de conhecimentos”, é autor de inúmeros artigos e poemas, já foi locutor de programa radiofônico e no ano de 2007 publicou, com apoio do governo do estado do Piauí, o seu primeiro livro. Colonização, quilombos: modos e significações é o segundo, organizado, editado e publicado pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa, em parceria com a Fundação Cultural Palmares, Ministério da Cultura (FCP/MinC). Entre tantos problemas enfrentados pelas comunidades quilombolas, haveria algum deles que você destacaria como um problema estruturante? A questão fundiária brasileira, o caráter expropriatório do desenvolvimentismo transcolonizador e a subserviência dos políticos ao capital especulativo são sim problemas estruturantes tanto para as comunidades quilombolas como para os demais povos e comunidades tradicionais. Os setores mais conservadores da sociedade apontam as comunidades tradicionais, como quilombolas e indígenas, como um entrave para o desenvolvimento do país. Mas esse modelo de desenvolvimento é muitas vezes um entrave também para as comunidades. Que tipo de situações existem hoje no Piauí que podem demonstrar o impacto do modelo de desenvolvimento brasileiro? O estado do Piauí articula através de seus governantes um plano integrado de expropriação das reservas naturais de nosso povo no qual as mineradoras se articulam para atacar a maior reserva de caatinga do Nordeste brasileiro, situada no sul do Piauí, de onde

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extrairão ferro, níquel, manganês, ouro e outros minerais, que se utilizarão da eletricidade como matriz energética gerada por grandes barragens, que também fornecerão água para beneficiamento desses minérios. Esse é um pretenso projeto conjugado com a produção de biodiesel a partir da soja e das mais variadas oleaginosas que podem ser produzidas no cerrado piauiense. Além de tudo isso, usar como transporte os trilhos da Transnordestina S/A e ainda poderá ficar registrado “nos papéis produzidos pela Suzana Celulose”. E qual desenvolvimento as comunidades quilombolas vislumbram para o Brasil? A biointeração, ou seja, o que as comunidades quilombolas e povos indígenas sempre fizeram, que é explorar subjetivamente a energia orgânica nas relações de produção e usar solidariamente a relação subjetiva de produção em prol da relação solidária de distribuição. O STF ainda julgará uma ADIn que questiona a legalidade da titulação de territórios quilombolas. Sob qual argumento de defesa vocês têm trabalhado? Qual é a expectativa para essa votação? Toda e qualquer argumentação tem como eficácia a fundamentação no poder, então, nesse caso, como em todas as outras questões que enfrentamos, nossas expectativas devem ser medidas pela nossa capacidade de mobilização social. O Estado deveria ser o responsável pelo estudo, regulamentação e titulação dos territórios quilombolas. Mas muitos estudiosos apontam o Estado como um grande violador de direitos. Como vocês veem o papel desempenhado pelo Estado, frente as comunidades tradicionais, em especial a quilombola? O Estado é produto de um permanente processo de colonização, logo, é possível adivinhar como ele se comporta perante os povos indígenas, as comunidades quilombolas e as comunidades tradicionais. Você poderia falar mais sobre quilombos urbanos, o que os define, onde e como existem? Quilombo é um modo de vida, desenvolvido num processo de contra colonização, assim sendo, nem é rural nem é urbano, é um espaço de luta pela liberdade. A Relatoria de Educação buscou trabalhar com o tema da educação quilombola e se deparou com um vazio na área de políticas públicas. De que forma a missão da Relatoria pode auxiliar o trabalho de vocês? Publicisando para o poder público o que ele ignora e publicisando para a sociedade o que o poder público omite.

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Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente Modelo de desenvolvimento e matriz energética

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ivemos um contexto político em que é hegemônico o discurso triunfalista de que a economia brasileira nunca teria estado tão sólida e o Brasil nunca teria crescido a taxas tão expressivas, conjugando aumento do PIB e a geração de empregos com a sacrossanta estabilidade econômica. Esse discurso propaga a ideia de que o modelo de “desenvolvimento” brasileiro seria uma espécie de exemplo bem-sucedido de desenvolvimento com base na exportação de recursos naturais. O quadro político econômico do Brasil e dos países do continente sul-americano atualmente aponta para um processo de reprimarização de suas economias, que se voltam, direta e indiretamente, cada vez mais, para a exportação de matériasprimas e insumos de baixo valor agregado e intensivos em recursos naturais. O avanço da fronteira de exploração de recursos – como água, energia, minério e commodities agrícolas – é acompanhado da implementação de redes de infraestrutura, alterações nas formas de ocupação e uso do território e reconversão de atividades tradicionais. Há, no entanto, uma face menos gloriosa da expansão das fronteiras do capitalismo brasileiro, uma espécie de negativo do retrato de prosperidade que se divulga da economia brasileira Brasil adentro e mundo afora. Trata-se das implicações políticas, sociais e ambientais daquilo que Roberto Malvezzi (2009) denominou “crescentismo”, neologismo que busca dar conta da lógica que animou o Programa de Aceleração do Crescimento do governo Lula e continua animando o projeto econômico do governo Dilma. O crescimento econômico ressurge como valor em si: trata-se de crescer a qualquer custo ou, mais precisamente, sem que sejam contabilizados os custos dessa opção e seus impactos sobre o meio ambiente, sobre os diversos modos de vida existentes em nossa sociedade e sobre grupos sociais historicamente vulnerabilizados. Esse é o caso dos grupos indígenas e das populações tradicionais, que vivem um processo acelerado de despossessão de seus territórios e dos trabalhadores dos diferentes setores da indústria e do agronegócio: ao mesmo tempo em que obtêm um emprego

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terceirizado ou temporário, estão a cada dia mais expostos à precariedade geral das condições de trabalho: o “crescimento” da economia se faz à custa de baixos salários, altas taxas de exploração, contaminação química e aumento das doenças do trabalho. Podemos afirmar, seguindo os estudos seminais de Francisco de Oliveira (1972 e 2001), que os mecanismos que regem as transformações e continuidades do processo de criação e concentração de riquezas no Brasil possuem um caráter “ornitorríntico” (Cf. Francisco de Oliveira, 2001). Em outras palavras: a tão celebrada acumulação intensiva do capitalismo brasileiro – setor industrial e de serviços de ponta, alta renda do capital e ganhos de produtividade – não é desvinculável dos processos de acumulação extensiva via expansão das fronteiras pela expropriação de recursos comunais, expansionismo territorial predatório, despossessão sociocultural e violação de direitos humanos elementares. Talvez os conceitos que mais dão conta do caráter do desenvolvimentismo brasileiro das últimas décadas sejam o de acumulação extensiva ou de acumulação por despossessão/espoliação (HARVEY, 2003 e BRANDÃO 2010), que revelam a atualidade do conceito marxiano de “acumulação primitiva” e seu caráter de estratégia permanente e não apenas “originária” do capitalismo. Essas noções evidenciam, ... vigora de fato a de forma aguda, o modo próprio de funcionamento do injustiça ambiental, isto capitalismo enquanto sistema imanente que não para é, um tipo de divisão de expandir seus próprios limites, reencontrando-os socioespacial da degradação ambiental sempre numa escala ampliada: o capital como espiral que destina riscos de acumulação/despossessão em avidez permanente ambientais e sociais por novos territórios-recursos e populações-mercado. ampliados a Esse modelo de acumulação se faz às custas da não determinados grupos implementação ou da pura e simples usurpação de sociais vulnerabilizados. direitos adquiridos, bem como da flexibilização da normativa ambiental e trabalhista. Nesse quadro de expansão das fronteiras do capital tanto via incorporação de territórios antes não explorados quanto via aumento da exploração do trabalho, o direito humano ambiental – meio ambiente sendo entendido, a um só tempo, como meio de trabalho e meio de vida – encontra-se profundamente afetado. Como demonstram Henri Acselrad e Gustavo Bezerra (2010), apesar do discurso ambiental, especificamente aquele relativo à “modernização ecológica” ter sido incorporado e divulgado por parte das instituições correntes, mudanças efetivas nos padrões técnico-espaciais do capitalismo brasileiro não ocorreram até o presente. Isso porque vigora de fato a injustiça ambiental, isto é, um tipo de divisão socioespacial da degradação ambiental que destina riscos ambientais e sociais ampliados a determinados grupos sociais vulnerabilizados. Segundo esses autores, enquanto for possível para os processos produtivos danosos ao meio ambiente e à saúde transferirem-se para áreas onde vivem os menos capazes de influir nas decisões sobre localização espacial e os menos dotados de acesso à justiça e de mobilidade espacial, nenhuma mudança haverá nos padrões de produção capitalista no sentido da preservação da saúde das populações e do meio ambiente.

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Com o objetivo de atrair investimentos diretos e acelerar o crescimento econômico, os governos (em suas várias instâncias: nacional, estadual ou municipal) tendem a oferecer uma série de benefícios e incentivos, tais como isenção de tributos, facilidades na remessa de seus lucros e fartos recursos públicos sob a forma de financiamento direto. Adicionalmente, o avanço da fronteira sobre territórios não totalmente incorporados às lógicas de mercado tem ampliado conflitos ambientais e reforçado processos históricos de discriminação social e despossessão econômica. Essa dinâmica contribui, por exemplo, para que os povos e populações tradicionais sejam vistos como obstáculos ao progresso, o que vem dificultando enormemente que suas demandas sejam ouvidas e consideradas durante os processos legais de avaliação de empreendimento que os atingem. Nesse contexto, ganha importância o trabalho das Relatorias Nacionais e especificamente da Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente: ao realizar missões nas localidades que sofrem com um processo de decisão local do qual não participaram, as Relatorias projetam publicamente as vozes dissonantes dos grupos sociais vulnerabilizados pelo modelo de crescimento adotado pelo país nas últimas décadas e chamam atenção dos operadores de justiça em nível nacional – e por vezes internacional – sobre as dinâmicas conflitivas e impactos potencial ou efetivamente vivenciados por esses grupos.

O trabalho da Relatoria frente às violações de direitos humanos A Conferência Mundial de Viena de 1993 reafirmou o compromisso internacional pelos direitos humanos e os declarou indivisíveis e interdependentes. As características que definem tais direitos exigem uma integralidade de visão: são universais (valem para todos), interdependentes (um depende do outro para se realizar plenamente), indivisíveis (os direitos humanos têm que ser considerados como um todo, sem serem divididos, isto é, os direitos econômicos, sociais e culturais são condição para a observância dos direitos civis e políticos, e vice-versa) e inalienáveis (um direito não pode ser trocado ou compensado por outro). Assim, saiu fortalecido da conferência o postulado de que o conjunto dos direitos humanos perfaz uma unidade indivisível e inter-relacionada: sempre que um direito é violado, rompe-se a unidade e todos os demais direitos são comprometidos (VANUCCHI, 2009). A experiência de trabalho da Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente aponta para a concomitância e, em muitos casos, o entrelaçamento de violações aos direitos humanos relativos ao meio ambiente com violações à chamada “primeira geração de direitos humanos”, isto é, aos direitos civis e políticos. Como foi indicado em relatórios sobre as violações observadas no licenciamento de Belo Monte, no caso de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, e da mineração de urânio em Caetité, na maior parte dos casos as violações estão conjugadas: onde há violações ao direito à saúde, a um trabalho digno e ao meio ambiente, há também ameaças aos direitos civis e políticos das comunidades afetadas e suas lideranças. Esse é o caso do processo e ameaças sofridos pelo padre Osvaldino, de Caetité (BA), e das ameaças e precariedade no ambiente do trabalho a que são submetidos os trabalhadores de Jirau e da mina e usina de processamento de urânio da INB em Caetité.

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A criminalização daqueles que lutam por seus direitos tem sido recorrente nos últimos anos, constituindo uma das faces mais perversas das violações de direitos humanos observadas pelas Relatorias. Nas palavras de Francisco Carneiro De Filippo (Le Monde Diplomatique Brasil, outubro de 2011, p. 15): “A agilidade do Executivo em cumprir a agenda do capital, modificando leis para criar um Estado de exceção e repressão, contrasta com a não execução das políticas públicas capazes de promover direitos e a ausência de ações e recursos para a proteção de pessoas ameaçadas”. O trabalho das Relatorias tem sido o de chamar a atenção pública e oferecer subsídios políticos e jurídicos para que os protagonistas locais lutem pela integralidade de seus direitos face à integralidade das violações que vivenciam. Afinal, essa é a inovação central trazida pelos Dhesca: a de que as violações aos direitos humanos econômicos, sociais e culturais são tão graves quanto as violações de direitos civis e políticos, na medida em que tais violações afetam diretamente e matam todos os dias milhões de pessoas em todo o mundo, embora não sejam inexoráveis, podendo e devendo ser combatidas e revertidas por ações políticas consequentes e bem-estruturadas. O trabalho da Relatoria do DHMA considera a evidenciação dos conflitos e das injustiças ambientais como um meio eficaz para favorecer, por um lado, a elaboração de políticas de combate à desigualdade ambiental e, por outro, a busca da igual proteção dos diferentes grupos sociais ao direito humano a um meio ambiente saudável e seguro. Ao evidenciar a concentração dos riscos sobre os despossuídos, se estará criando resistência à degradação ambiental em geral, posto que os impactos negativos não mais poderão ser transferidos, como de praxe, para os mais pobres. A propensão de todos os atores sociais a localizar e eliminar as fontes do dano ambiental tenderá, consequentemente, a se intensificar. Mais do que isso, ao se dar visibilidade às injustiças ambientais através das missões, se estará favorecendo o envolvimento das populações mais pobres na defesa de seus ambientes, desfazendo o preconceito segundo o qual a causa ambiental é exclusiva das classes médias urbanas desejosas de efeitos estéticos ou de idealização da natureza. A tarefa de evidenciação dos conflitos a que se propõem as Relatorias serve, portanto, para municiar tanto a prática de governos democráticos como as dinâmicas de organização da sociedade no combate às desigualdades sociais e ambientais.

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Flexibilidades em licenciamento ambiental reforçam

violações de direitos humanos

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esde o lançamento do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), em janeiro de 2007 e do PAC 2, em março de 2010, os governos Lula e o atual governo Dilma atuaram para criar o que se chama um “ambiente favorável aos investimentos” nas obras e projetos definidos como prioritários. Duas frentes de atuação do governo se distinguem nesse sentido: a disponibilização de recursos públicos à iniciativa privada por meio de financiamento direto, subsídios, isenções e créditos – em que se destaca o papel do BNDES – e o enfraquecimento dos dispositivos de regulação ambiental e social – especificamente do licenciamento ambiental. Esse processo de flexibilização da legislação ambiental, indigenista e relativa às populações tradicionais está acompanhado de outras estratégicas, como a desqualificação do aparato técnico estatal responsável pela gestão socioambiental (Ibama, Conama, Funai, entre outros) e do cerceamento por parte da Advocacia Geral da União (AGU), da atuação do Ministério Público enquanto instância que procura preservar a integridade da legislação e dos direitos. Em diferentes ocasiões, o governo Lula expressou que a legislação ambiental é um “entrave para o desenvolvimento” e a solução seria a desregulação dos aparatos administrativo e legal responsáveis pela gestão da questão ambiental. Além do governo federal, instituições financeiras internacionais, como o Banco Mundial, vêm produzindo análises sobre o “ambiente de financiamento” e as “oportunidades para atrair investidores”, nas quais o licenciamento ambiental é apontado como fonte de incertezas prejudiciais à atração de investimentos. Documento do escritório brasileiro do Banco Mundial3 afirma que “as incertezas geradas pelo processo de licenciamento ambiental” (p. 6) se traduziriam num aumento do “risco de natureza ambiental e social”: “O não aproveitamento da oportunidade para atrair investidores, em decorrência das deficiências gerenciais associadas às decisões políticas e burocráticas envolvidas no licenciamento ambiental, é prejudicial a todos os brasileiros (os quais têm que pagar as contas de eletricidade). Os riscos de natureza ambiental e social – seja para obtenção das três licenças exigidas, a incertezas nos custos de mitigação – geram riscos para os investidores, os quais levam a tarifas mais altas para os consumidores. Um aumento de risco, independente de sua origem, se traduz em maiores expectativas de retorno. As incertezas regulatórias se traduzem em custos mais altos para os consumidores de energia e para a sociedade brasileira em geral.” (Banco Mundial, 2008, p. 13).

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Licenciamento ambiental de empreendimentos hidrelétricos no Brasil: uma contribuição para o debate, divulgado em lº de março de 2008.

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Ora, qual a incerteza gerada pelo processo de licenciamento ambiental tão temida e esconjurada pelos investidores, pelo governo brasileiro e pelo Banco Mundial? A incerteza inerente a um processo de tomada de decisão democrático e cientificamente correto. O licenciamento ambiental, tal como atualmente regulamentado, é um dos poucos processos de decisão política em que há previsão de participação popular, por limitadas que sejam as audiências públicas. Esse processo de consulta e de levantamento das objeções trazidas pela sociedade civil deve, segundo consta na lei, ser levado em conta pelo órgão responsável pela emissão das licenças. O documento do Banco Mundial, ao falar em risco, refere-se também ao “risco democrático” de permitir que a sociedade decida – amparada pela legislação pertinente – não se submeter a um tipo de investimento econômico que ela entende como danoso. Desse modo, pode-se afirmar que o atual processo de flexibilização da normativa ambiental, de desqualificação do corpo técnico e os atentados à autonomia do aparato de regulação ambiental vêm transformando o licenciamento numa espécie de linha de produção da aceitação pública e de fabricação do consenso político em torno das grandes obras.

Missão em Belo Monte, no Pará O projeto Belo Monte é a terceira tentativa do governo brasileiro de construção de barragens para geração de energia elétrica no Rio Xingu. O atual projeto inclui o desvio da maior parte do fluxo de água do Rio Xingu, em um trecho de aproximadamente cem quilômetros conhecido como Volta Grande do Xingu, para um trecho que atualmente é ocupado por florestas e assentamentos de pequenos agricultores. O Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental entregues pela EPE ao Ibama para a obtenção de licença prévia apresentou deficiências de tal ordem que motivou a formação de um grupo independente de especialistas para avaliá-lo. O grupo, composto por 40 pesquisadores, realizou um meticuloso exame do EIA-Rima e apontou lacunas e falhas metodológicas que permitiram subestimar os graves impactos ambientais e sociais do empreendimento. Um desses impactos é a diminuição significativa do volume de água para a região, devido à variação de vazão do rio ao longo do ano, o que afetaria diretamente a biodiversidade local. A Licença Prévia da UHE Belo Monte foi emitida pela presidência do Ibama – à revelia do parecer dos próprios técnicos do órgão. Alguns técnicos pediram demissão, outros se afastaram do licenciamento do projeto e outros ainda assinaram pareceres contrários à liberação das licenças para a construção da usina, nos quais afirmam que o EIA não conseguiu ser conclusivo sobre os impactos da obra. Dois dias antes da liberação da licença prévia, técnicos da área de licenciamento lançaram nota técnica afirmando que “não há elementos suficientes para atestar a viabilidade ambiental do empreendimento”. Durante o processo, mudanças no projeto foram realizadas, com a promessa de resguardar a população local. Uma delas foi evitar a inundação de Terras Indígenas (TIs), que na prática conduz a outra forma impacto, tão ou mais grave: ao invés de alagar, o projeto atual

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... ao invés de alagar, o projeto atual prevê o desvio do curso do rio e a diminuição da vazão do rio, onde há duas terras indígenas e uma série de comunidades ribeirinhas.

prevê o desvio do curso do rio e a diminuição da vazão do rio, onde há duas terras indígenas e uma série de comunidades ribeirinhas. Segundo os próprios relatórios técnicos do Ibama sobre o EIA,4 não há garantias de manutenção da biodiversidade, da navegabilidade do rio, da reprodução de espécies, da qualidade da água e da viabilidade da pesca, impedindo, na prática, a existência física e social desses grupos.

Missão nas usinas de Santo Antonio e Jirau, em Rondônia O relator José Guilherme Zagallo investigou, em março de 2011, o motivo do levante dos operários que trabalham na construção das usinas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau. À época, os trabalhadores incendiaram 54 ônibus e 70% dos alojamentos. Apenas na usina de Jirau eram 21 mil trabalhadores compartilhando alojamentos, denunciando surtos de viroses, jornada excessiva de trabalho e outras más condições que a magnitude e a pressa em acabar a obra ocasionaram. Os consórcios responsáveis pelas obras Apenas na usina de pretendiam adiantar a conclusão dos empreendiJirau eram 21 mil mentos, para maximizar seus lucros com a venda trabalhadores antecipada da energia. compartilhando alojamentos, O processo de licenciamento ambiental das denunciando surtos usinas do Rio Madeira ocorreu em franca violação das de viroses, jornada normas que regem os procedimentos de licenciamento excessiva de trabalho e ambiental, como relatado na missão dessa Relatoria de outras más condições 2007, feito pela relatora Marijane Lisboa. Por contarem que a magnitude e com apoio governamental, inclusive com participação a pressa em acabar a acionária, já desde a concessão da licença prévia houve obra ocasionaram. pressão sobre o Ibama, que concedeu licença ambiental contra parecer técnico do próprio órgão. Na sequência, foi concedida uma licença parcial de instalação, inexistente no direito brasileiro, de modo a autorizar a instalação de canteiros de obras ainda antes da concessão de licença de instalação propriamente dita. Mas o pior ainda estava por vir. Após a concessão da licença prévia, o Ibama admitiu a mudança do eixo da hidrelétrica de Jirau em nove quilômetros e a elevação da cota da barragem da hidrelétrica de Santo Antonio, sem a realização de novos Estudos de Impacto Ambiental e de audiências públicas para apresentação dessas alterações. A alteração do local da Usina de Jirau está sendo contestada pelo Ministério Público Federal perante o Poder Judiciário.

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Cf. Ibama. Parecer 114/09. Análise Técnica do Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte, processo n° 02001.001848/2006-75. COHID/CGENE/DILIC/IBAMA, 23 de novembro de 2009.

RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil


Nas entrevistas realizadas foi relatado: n

Que as obras das hidrelétricas de Santo Antonio e Jirau já causaram a morte de seis trabalhadores em acidentes de trabalho;

n

Cada uma das obras já recebeu 1.000 autuações da Superintendência Regional do Trabalho por violação à legislação trabalhista;

n

A existência de um “cartão fidelidade” (que inclui visitas aos prostíbulos da região) para o pagamento de vantagens fora da folha de pagamento “para empregados que não faltam, não tiram férias, não adoecem e não visitam a família”.

n

Pelos dados analisados pela Relatoria, constatou-se:

n

A migração para o município de Porto Velho foi 22% superior ao previsto no Estudo de Impacto Ambiental;

n

O número de homicídios dolosos cresceu 44% em Porto Velho, entre 2008 e 2010, e a quantidade de crianças e adolescentes vítimas de abuso ou exploração sexual subiu 18%;

n

O número de estupros cresceu 208% em Porto Velho entre 2007 e 2010.

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Relatório denuncia violações de direitos humanos no ciclo de produção

de urânio Por Helena Martins

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omar água contaminada; produzir alimentos e não ter como vendê-los; conviver com a iminência de cânceres; sofrer perseguições e, ainda por cima, deparar-se com o silêncio das autoridades como resposta a cada questionamento. Esse é o cenário enfrentado pelos moradores de Caetité, cidade localizada a 750 km de Salvador (BA), na qual está em operação, desde 2000, a Unidade de Concentrado de Urânio das Indústrias Nucleares do Brasil (URAINB), responsável pela atividade de mineração e transformação do urânio mineral em uma das matérias-primas do combustível nuclear. Desde a instalação da usina, os problemas já enfrentados em uma cidade uranífera, com parco abastecimento de água e até então sem energia elétrica, só aumentaram. Há crescente falta de água, inviabilizando diversas atividades, da agricultura à lavagem de roupa. Em 2008, vários poços de água foram fechados, após um estudo solicitado pelo Greenpeace detectar alto índice de radioatividade da água, acusação comprovada pelo Instituto de Gestão das Águas e Clima (Ingá). Pouco tempo depois, sem que fosse demonstrado o contrário, os poços foram reabertos. Todos temem a contaminação que pode vir de Caetité. Diante da ameaça à vida de padre Osvaldino, um dos defensores das comunidades da região, hoje incluído no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, a Associação Movimento Paulo Jackson – Ética, Justiça, Cidadania e a Comissão Paroquial de Meio Ambiente de Caetité encaminharam denúncia sobre os fatos, através da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, que solicitou uma missão à Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente. A Relatoria pesquisou a situação entre 2009 e 2011, visitando a localidade e recolhendo evidências e depoimentos de movimentos e autoridades locais. Com isso, conseguiu demonstrar que a população carece de informações confiáveis sobre a atividade mineradora e seus impactos, especialmente na saúde. “Ali, tudo parece conspirar para proteger a INB e evitar o conhecimento profundo de suas atividades”, declarou a socióloga Marijane Lisboa, relatora da Plataforma Dhesca. Em outubro de 2011, durante a audiência que tornou público o Relatório da Missão Caetité: Violações de direitos humanos no Ciclo do Nuclear, o integrante da Comissão Paroquial de Meio Ambiente de Caetité, padre Osvaldino, questionou: “A quem interessa continuar sem um l 58 l

RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil


estudo profundo para comprovar a causa das mortes?”. O pároco relatou o alto índice de leucemia e neoplasia nas comunidades próximas da mina, que sequer dispõe de um médico oncologista, o que reforça a suspeita acerca da contaminação da bacia hidrográfica que banha a região. A moradia da população está ameaçada. Em Caetité viviam comunidades quilombolas, que usavam coletivamente a terra. Com a chegada da empresa, foram feitas desapropriações que modificaram a cultura local. Por outro lado, 26 famílias que vivem nas proximidades da mina, recebendo o gás radônio diretamente em suas casas, querem ser reassentadas, algo que até hoje não foi feito. A população reclama ainda a ausência de uma discussão coletiva em torno dos reparos necessários às casas que sofrem rachaduras a cada explosão.

“Chegou-se a despejar urânio no chão e pegar de pá” Se muitas dúvidas e desconfianças rondam os moradores das comunidades próximas à mina, os trabalhadores da INB revelam os graves riscos a que estão sujeitos. De acordo com o integrante da diretoria do Sindicato dos Mineradores de Brumado e Microrregião, Lucas Mendonça, não existe segurança necessária para se trabalhar com material radioativo. Trabalhadores, inclusive, já entraram em contato direto com o urânio para evitar acidentes. Em maio, Lucas participou de uma dessas situações. Como a mina havia sido paralisada por dois meses, a INB recebeu carga de urânio da Marinha do Brasil para complementar a produção de quatrocentas toneladas anuais e operou, mesmo sem licença, a colocação em tambores do material radioativo. “A segurança dos trabalhadores foi totalmente neglicenciada. (...) Chegou-se a despejar urânio no chão e pegar de pá para colocar dentro dos tambores. Portões foram abertos para tirar a poeira do local e jogar para fora, expondo os trabalhadores que estavam em outras áreas”, denunciou o sindicalista. Nos primeiros dias, trabalhadores desmaiaram: “Colocaram os trabalhadores terceirizados com equipamento de proteção individual aquém do que poderia ser. Com marretas, tentaram descompactar o material dos tambores e derramava-se o material de um tambor para o outro”. Vindos de outras cidades, terceirizados utilizaram macacões descartáveis dos trabalhadores da empresa, após estes serem usados e lavados, conforme denunciou Mendonça. A ação desastrosa legou à empresa multas de R$ 600 mil e, posteriormente, R$ 2 milhões dadas pelo Ibama. Os impactos sobre a saúde desses trabalhadores, no entanto, não podem ser quantificados, ao menos por eles. Embora o presidente da INB, Alfredo Tranjan Filho, tenha afirmado, durante a audiência na Câmara, que a empresa acompanha a saúde dos seus trabalhadores, Lucas Mendonça assevera o contrário: “Nenhum trabalhador recebeu resultado de exames. Todos os trabalhadores que participam dessa área [setor 170, no qual se deu a operação de reentamboramento] têm coletado urina e feito exames, mas embora tenham requisitado seus resultados, nunca os receberam. O clima lá dentro é de medo”, desabafa. A auditora fiscal do Ministério do Trabalho, Fernanda Giannasi, que há mais de vinte

Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente

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anos acompanha a situação das empresas ligadas ao setor nuclear, confirmou essas denúncias depois de ir ao local. Durante visita, encontrou vazamentos em paredes, marcas de urânio no piso e no portão do setor 170, além de um sistema de exaustão absolutamente precário. Diante da situação, Giannasi solicitou a interdição do setor para que a empresa realizasse o tratamento da área. Assim como a interdição, logo suspensa pelo Ministério do Trabalho, outra recomendação da auditora não foi efetivada: a eliminação dos contratos terceirizados, que hoje já somam 330, diante de 180 orgânicos.

Exploração de urânio: “Um entulho da ditadura” A análise dessas e de outras denúncias apontadas pelo relatório, como o transbordamento de cinco milhões de litros de licor de urânio, em 2005, e a possível existência de mais de duas centenas de furos nas mantas que deveriam impedir o contato do líquido radioativo com o solo, atualmente é de responsabilidade da Comissão Nacional de Energia Nuclear, a CNEN, autarquia federal vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Ocorre que a CNEN é proprietária de 99,9% das ações das Indústrias Nucleares do Brasil. Conforme denuncia o relatório, “observa-se por este desenho institucional que a INB é uma empresa controlada pela CNEN e, portanto, que o Brasil não cumpre o artigo 8º da Convenção Internacional de Segurança Nuclear, o qual prevê que órgãos encarregados do fomento à energia nuclear sejam separados daqueles que realizam atividades de regulação e fiscalização”. Para Marijane Lisboa, “a CNEN é um entulho da ditadura. A ela não se pode perguntar, ou quando se pergunta tem-se como resposta a mesma frase: ‘está tudo bem’”. A relatora avalia que a junção de funções da CNEN configura-se como “uma anomalia jurídica, estrutural, que não é à toa, é para continuar mantendo esse setor todo em segredo, inacessível para a população”. O próprio presidente da INB, Alfredo Tranjan Filho, afirmou ser “absolutamente favorável” à separação das atribuições de fiscalizar e produzir a energia nuclear em distintos órgãos, o que ainda não foi efetivado. Outra recomendação do relatório da Plataforma Dhesca, entretanto, não foi recebida de forma consensual: a suspensão das licenças de mineração da INB, pois, para Tranjan, “o Programa Nuclear Brasileiro é eficiente e seguro”. O relatório recomendou uma auditoria independente para apurar denúncias e condições de funcionamento da empresa e formular recomendações para seu funcionamento seguro; a formação de uma comissão mista com especialistas de vários ministérios e com representação da sociedade civil para verificar a qualidade da água consumida na região; a realização de um plano de monitoramento da saúde da população, entre outras. Para a relatora da Plataforma Dhesca, o não atendimento às recomendações só reafirmará a inexistência de condições políticas, técnicas e mesmo morais para se abrir outra mina. Essa é também a opinião do coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Ceará, Thiago Valentim, que acompanha a movimentação em torno da instalação de uma mineradora em Itatira (CE), onde a falta de transparência da INB já é vivenciada. No processo de licenciamento ambiental, de acordo com Valentim, o consórcio formado entre a INB e a empresa Galvani tentou burlar a lei, buscando autorização da Secretaria do Meio Ambiente do

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Ceará apenas para explorar o fosfato, mineral naturalmente associado ao urânio. Agora, novo projeto de licenciamento, desta vez com a intenção de exploração de urânio explícita, está sendo submetido ao Ibama. Prossegue, todavia, o silêncio e a exclusão dos afetados: “Não constam dados sobre a população no EIA-Rima, mas as comunidades querem participar do processo de decisão, porque nós defendemos um outro projeto de desenvolvimento para a região”, afirma o integrante da CPT. O projeto de exploração dessa mina de urânio está inserido nos planos de expansão do Programa Nuclear Brasileiro, iniciado oficialmente em 1965, quando o Brasil assinou acordo com a empresa Westinghouse, dos EUA, para construir o seu primeiro reator, em Angra dos Reis. Paralisado em 1990, após denúncias de construção de poços para testes nucleares e da existência de contas bancárias secretas destinadas a financiar o programa militar, o programa foi retomado em 2007, sob a égide do governo Lula, tendo à frente a atual presidenta da república, Dilma Roussef. Os esforços governamentais para viabilizar esses empreendimentos, contudo, contrastam com o cenário de temor que acomete boa parte população brasileira, bem como de abandono daqueles que vivenciam os impactos da produção de uma energia cara e perigosa.

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Entrevista Antonia Melo “A Amazônia continua sendo um espaço de usurpação pelo capital e pelas empresas nacionais e transnacionais”

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esta entrevista, Antônia Melo, da coordenação do Movimento Xingu Vivo para Sempre, fala das estratégias utilizadas pelos governos para viabilizar a construção da Usina de Belo Monte, das ameaças sofridas pelos povos indígenas e da mobilização popular que ganha força no Brasil e no mundo, e pela qual se tem conseguido resistir à apropriação do meio ambiente pelo capital.

Por Helena Martins

Quando teve início a ameaça da construção de usinas sobre o Xingu e quais os impactos que podem ser gerados pelo complexo de usinas de Belo Monte? Desde 1975, a Eletronorte pretendia transformar os rios Xingu e Iriri para produzir eletricidade. Em 1989, esta proposta de barrar o Xingu, o projeto de Kararaó, foi cancelado no I Encontro dos Povos Indígenas em Altamira, quando a índia Tuira, num gesto firme de indignação, roçou a lâmina de seu facão no rosto mentiroso de Antonio Lopes Muniz, engenheiro da Eletronorte. De 1989 até 2002, os governos não esqueceram e remendaram o projeto por Belo Monte, tentando dizer aos índios e ao povo que a área alagada seria menor e não alagaria terra indígena. O complexo hidrelétrico Belo Monte, um pesadelo, desgraçadamente rouba o sono, a paz, a tranquilidade, e traz a insegurança de perspectivas de futuro do Povo Xinguara há três décadas. Hoje, dentro do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal, a maior obra proposta é a construção da Hidrelétrica de Belo Monte (AHE Belo Monte) na bacia do Rio Xingu, com uma previsão de investimentos de cerca de R$ 30 bilhões, o deslocamento compulsório de mais de 45.000 habitantes e a migração de mais de 100.000 pessoas para a região de Altamira. Lançado em 2002, o projeto atual prevê a construção de duas barragens (Pimental, Belo Monte), um canal de derivação, dois reservatórios e um sistema extensivo de dezenas de diques, alguns do tamanho de uma barragem média. Por meio da barragem de Pimental e o canal de derivação, seriam desviados mais de 80% da vazão do Rio Xingu para alimentar a casa

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de força no sítio Belo Monte. Assim, o Complexo Belo Monte inundaria uma área de 668 km2 e provocaria uma redução drástica e permanente da vazão em 100 km do Rio Xingu na região conhecida como Volta Grande, tornando inviável a vida de milhares de indígenas e ribeirinhos que ali vivem e causando o desaparecimento de espécies endêmicas e ameaçadas de extinção. Além dos enormes riscos sociais e ambientais do projeto, o desenho atual de Belo Monte é caro e ineficiente. Em função da alta sazonalidade do Rio Xingu, que deve se agravar no contexto de mudanças climáticas, o Complexo Belo Monte só vai utilizar em torno de 39% (4.420 MW) de sua capacidade instalada de 11.233 MW. Em função da baixa eficiência da usina, pesquisadores e críticos do projeto acreditam que outros barramentos serão construídos posteriormente à montante de Belo Monte, regularizando o fluxo do rio e aumentando o armazenamento de água, para aumentar a produção energética e compensar os elevados investimentos no empreendimento. A comunidade foi chamada pelo poder público para opinar sobre o projeto? Apesar da grandeza da obra e de seus impactos, o processo de licenciamento ambiental foi marcado pela falta de transparência e participação da sociedade civil, associada a graves atropelos da legislação brasileira e de normas internacionais sobre os direitos humanos e a proteção do meio ambiente. Nesse sentido, cabe destacar: o subdimensionamento dos impactos sociais e ambientais no Estudo de Impacto Ambiental (EIA); a falta de realização pelo Congresso Nacional das consultas livres, prévias e informadas com as comunidades indígenas que seriam atingidas pelo projeto, conforme determina o artigo 231 da Constituição Federal, a Resolução 169 da Organização Internacional do Trabalho e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos Indígenas, das quais o Brasil é signatário. Já as audiências públicas foram realizadas de forma absolutamente irregular, em número insuficiente e em locais nos quais a maioria da população mais ameaçada pelo empreendimento não teve oportunidade de participar e sob um forte aparato policial repressivo. Como se pode notar, o processo todo se deu à margem de qualquer participação da sociedade. Os defensores de Belo Monte advogam que o Brasil precisa produzir mais energia para manter a atual taxa de crescimento do país. No entanto, sabemos que muitas comunidades, inclusive ao longo do Xingu, sequer recebem energia elétrica em suas casas. Como o Movimento Xingu Vivo percebe essa contradição?

É claramente um problema político, já que a inviabilidade técnica de Belo Monte na produção energética já foi demonstrada por vários especialistas. Já sabemos também que

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A Amazônia continua sendo um espaço de usurpação pelo capital e pelas empresas nacionais e transnacionais de recursos naturais e de mão de obra barata. E o Estado, mais uma vez, disponibiliza toda sua estrutura para viabilizar esse modelo, através de financiamento público pelo BNDES e dos fundos de pensão da Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e Petrobras; da pressão política exercida sobre o órgão licenciador, o Ibama, e sobre os demais órgãos federais que participam do licenciamento ambiental, como Funai, IPHAM, ICMBIO, etc., para aprovar as licenças; da AGU que processa procuradores, promotores e até juízes pelo empenho na defesa dos direitos dos povos do Xingu e também da politização do Judiciário, que não tem desempenhado com celeridade e eficiência seu papel de cumpridor das leis do país.

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somente 2,3% da energia produzida por Belo Monte ficaria com a Celpa, todo o resto sendo distribuído para o Centro-Sudeste-Sul do país e as grandes mineradoras. Altamira e região ficarão apenas com os impactos negativos de Belo Monte e continuarão com os apagões comuns na região e as tarifas energéticas mais caras do país. Esse é nosso modelo energético. Em 2012, o Brasil recebe a Rio+20, conferência da ONU que tem como um dos principais temas a questão energética. Qual o significado deste momento para as lutas dos povos indígenas e a denúncia do atual modelo de desenvolvimento no contexto da Rio+20? O Brasil não tem condições de sediar um evento internacional sobre meio ambiente em um momento em que está flexibilizando, dilapidando toda a legislação ambiental e de proteção aos povos tradicionais para facilitar o licenciamento ambiental das obras do PAC; quando se recusa a participar de audiência convocada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos sobre Belo Monte e chantageia a comissão retirando a candidatura do representante do país ao cargo na comissão, numa clara demonstração de desrespeito a um órgão multilateral e as negociações internacionais. O “viés” verde e defensor dos direitos humanos do governo brasileiro deve ser fortemente desmascarado. Como tem se dado a articulação da resistência que, hoje, já adquiriu grande repercussão, inclusive internacional? Quais estratégias de comunicação ou outras estão sendo utilizadas? Ações de conscientização e mobilização de base e das organizações locais, e o fortalecimento das organizações populares são realizadas através do Movimento Xingu Vivo para Sempre (MXVPS), coletivo de organizações que tem como objetivo comum a luta em defesa do Rio Xingu e do reconhecimento dos direitos fundamentais dos povos do Xingu, como também as denúncias e frentes de pressão ao Judiciário e ao governo. Há o fortalecimento de vários grupos de ativistas em defesa da Amazônia e contra Belo Monte no país, frente aos planos do governo federal de construir o Complexo Hidrelétrico de Belo Monte a qualquer custo. Sobre estratégia de comunicação, temos usado a imprensa independente e as redes sociais como Facebook, Orkut, Twitter, além de nosso site (www.xinguvivo.org.br) para mobilizar a opinião pública e os defensores do meio ambiente e dos direitos humanos, e para denunciar todas as irregularidades e ilegalidades do processo e as violações de direitos humanos. Um resultado interessante dessa estratégia são as manifestações espontâneas contra Belo Monte desenvolvidas por outros grupos em diversas cidades brasileiras e até fora do país, colocando Belo Monte no centro de uma grande polêmica envolvendo o governo brasileiro.

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Relatoria do Direito Humano à Saúde Sexual e Reprodutiva Relatoria estuda mortes maternas e situação de

mulheres privadas de liberdade

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morte materna é uma importante causa de morte de mulheres em idade reprodutiva na maior parte dos países em desenvolvimento, estando relacionada às condições de pobreza e de descaso dos poderes públicos com a vida das mulheres, incluindo o acesso aos serviços de saúde no momento oportuno. Apesar da criação pelo Ministério da Saúde do Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal, são frequentes as mortes de mulheres por essa causa, considerada como uma grave violação dos direitos humanos. Mortes maternas por aborto inseguro acontecem em todo o território nacional e indicam o não cumprimento do governo brasileiro dos acordos internacionais, sobretudo das Metas do Milênio, de redução em 75% dessas mortes até 2015. A partir dessa análise, a Relatoria do Direito à Saúde Sexual e Reprodutiva da Plataforma Dhesca priorizou, para o mandato de 2009 a 2011, dois eixos de trabalho: violações dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres através dos casos de morte materna por abortos inseguros e a situação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres em situação de privação de liberdade.

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Mortes maternas:

evitáveis, porém existentes

A

morte materna é a morte de uma mulher em idade reprodutiva por problemas relacionados à gravidez, ao parto e ao puerpério, incluindo o aborto. Quase a totalidade dessas mortes é evitável com uma atenção de qualidade durante o pré-natal e o parto, período em que se dá parte importante dessas mortes, e com a prevenção dos abortos realizados em condições inseguras. A morte materna, pela sua evitabilidade, é considerada um indicador importante do status das mulheres na sociedade e uma grave violação dos seus direitos sexuais e reprodutivos. Segundo o Ministério da Saúde, a razão de morte materna para o país foi de 74 mortes por cem mil crianças nascidas vivas em 2005. Em 2009, o Manual dos comitês de mortalidade materna (Ministério da Saúde, Brasília, 2009) afirma que a taxa situa-se ao redor de 50 mortes por 100.000 nascidos vivos, ainda considerada alta pela Organização Mundial da Saúde (OMS), colocando o Brasil entre os países que continuam violando os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Os dados de morte materna por abortos inseguros nem sempre são confiáveis, devido à situação de ilegalidade e de clandestinidade em que a prática é frequentemente realizada. Mesmo assim é possível afirmar (LAURENTI et al., 2002) que o aborto inseguro representa a quarta causa de morte materna no Brasil, existindo cidades como Salvador, na qual o aborto tem sido a primeira causa desse tipo de morte na última década. Essa pesquisa analisa também as principais causas de morte materna por regiões brasileiras. A região Nordeste é a ...o aborto inseguro segunda em número de mortes por aborto inseguro, com representa a quarta 14,9% dos casos, ficando atrás apenas da região Sul, que causa de morte materna tem 18,2% dos casos registrados. no Brasil, existindo cidades como Salvador, A pesquisa de Laurenti (2002) corrobora outras na qual o aborto tem sido pesquisas nacionais sobre o perfil socioeconômico das a primeira causa desse mulheres que falecem de morte materna. Elas são na tipo de morte na última sua grande maioria pobres, negras e com baixa década. escolaridade, consequentemente excluídas do usufruto dos bens sociais. Uma grande parte dessas mulheres encontra-se abaixo da linha de pobreza e a taxa de analfabetismo é quase o dobro, quando comparada à das mulheres brancas. Por essas razões elas têm menor acesso aos serviços de saúde e maior vulnerabilidade, resultando que as mulheres negras possuem maior risco de contrair e morrer por determinadas doenças da pobreza do que as mulheres brancas. Esses dados impõem para os serviços de saúde a necessidade de um olhar diferenciado e mais cuidadoso na atenção às mulheres negras, para que possam ter as suas demandas de saúde resolvidas e seus direitos garantidos.

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RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil


As mortes maternas estão relacionadas a diversos fatores, desde problemas relativos ao sistema de saúde no Brasil até as questões legais que determinam a clandestinidade do abortamento, importante causa de morte materna, como já referido. Sobre o sistema de saúde, o acesso e a qualidade dos serviços são questões ainda não resolvidas. O acesso aos serviços ainda é um problema para a maioria da população feminina no Brasil e está condicionado a fatores tais como situação de pobreza em que vive a maioria das mulheres, a discriminação de raça/etnia, as relações desiguais entre homens e mulheres, tudo isso determinando desigualdades e iniquidades sociais, que influenciam o acesso aos serviços. Na cidade de Salvador, segundo Araújo, Simonetti e Souza (2008), nove de cada dez mulheres que morrem de morte materna são negras e habitantes da periferia da cidade. O aborto realizado em condições inseguras continua sendo, de acordo com as autoras, a primeira causa de morte materna nesse município, desde o final dos anos 1990. Os dados relativos à situação da morte materna das mulheres negras ainda são de difícil acesso nos sistemas de informação da área da saúde, seja pela ausência da variável cor ou mesmo pela pouca importância que lhe é dada pelos profissionais de saúde, dificultando análises mais consistentes sobre a realidade da saúde desse segmento populacional. A situação de ilegalidade do aborto no Brasil contribui enormemente para o aumento das mortes maternas por esta causa. Na atual conjuntura assiste-se ao recrudescimento das forças políticas conservadoras, tanto no parlamento como em lugares de decisão das políticas públicas, levando a retrocessos na concepção das políticas, por pressão desses setores. Exemplo marcante dessa realidade foi a forma como o aborto foi tratado nas últimas eleições presidenciais, como moeda de troca de votos e apoios políticos, assim como o tratamento dado ao III Programa Nacional de Direitos Humanos, que teve que ser modificado exatamente nas questões relativas ao direito ao aborto, pelas mesmas forças conservadores. O Estado brasileiro é um Estado laico constitucionalmente e nenhuma religião deve interferir na vida e nas decisões das suas cidadãs e nas políticas públicas, que devem ter como princípio a laicidade dos poderes. A Relatoria Nacional do Direito à Saúde Sexual e Reprodutiva da Plataforma Dhesca, considerando a morte materna como uma grave violação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e dos seus direitos humanos, definiu realizar a análise dos casos de morte materna por meio dos instrumentos internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. A análise desses casos não pretende substituir o papel fundamental dos comitês de estudo das mortes maternas dos estados e municípios, mas sim desenvolver e aplicar uma metodologia que faça a relação entre morte materna e violação dos direitos humanos das mulheres, recorrendo aos instrumentos internacionais, ainda pouco conhecidos e aplicados na análise dos casos estudados pelos comitês.

Relatoria do Direito Humano à Saúde Sexual e Reprodutiva

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Mulheres em privação de liberdade e o direito à

saúde sexual e reprodutiva

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segundo eixo de trabalho da Relatoria do Direito à Saúde Sexual e Reprodutiva foi a verificação da situação da saúde sexual e reprodutiva das mulheres privadas de liberdade em alguns presídios brasileiros. O acompanhamento da situação desses direitos das mulheres no sistema prisional é uma necessidade premente, pelas frequentes violações a que essa população vem sendo submetida. A existência de uma política ministerial de Saúde no Sistema Penitenciário é um avanço em termos de direitos, mas as condições em que vive a população na maioria das prisões brasileiras expõem as mulheres institucionalizadas a situações de vulnerabilidade e de riscos e agravos à saúde. A Relatoria trabalhou a partir de denúncias recebidas de movimentos sociais e também de análise de casos de situações de violação. Para isso usou os instrumentos nacionais – leis e resoluções – e internacionais que protegem a vida e os direitos das mulheres encarceradas. Buscou realizar um diagnóstico mínimo da situação de saúde dessas mulheres, utilizando para tal os dados do Ministério da Saúde e do Ministério da Justiça, sobretudo o relatório sobre os presídios femininos no Brasil, elaborado em 2008. As análises sobre a violação de direitos tiveram também como sustentação o Plano de Saúde no Sistema Penitenciário, de responsabilidade dos Ministérios da Saúde e da Justiça e o Sistema Nacional Socioeducativo (Sinase) contemplando os direitos sexuais e reprodutivos de adolescentes cumprindo medidas socioeducativas de internação e internação provisória.

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RELATORIAS EM DIREITOS HUMANOS: fortalecimento de uma cultura de direitos no Brasil


Como as

missões foram feitas

A

Relatoria realizou missões em Salvador (BA), Porto Alegre (RS), Verdejante (PE) e Belém/Ananindeua (PA) em resposta a denúncias de violação de direitos sexuais e direitos reprodutivos em penitenciárias estaduais, cadeias municipais e centros de acolhimento de adolescentes cumprindo medida socioeducativa de internação. Para a concretização das missões um dos critérios foi a existência, nas cidades visitadas, de movimentos sociais organizados, seja de mulheres/feministas e/ou de direitos humanos. Esse critério foi crucial para o resultado positivo das missões, pela inserção social e conhecimento da realidade local dessas instituições. Nas visitas às instituições de privação de liberdade, a Relatoria se fez acompanhar de comitivas com representantes de organismos de defesa dos direitos humanos nos níveis local, regional e nacional. Além de entrevista com a direção e corpo técnico dessas instituições, foram feitas entrevistas com mulheres e adolescentes que tiveram oportunidade de relatar situações de violação de direitos. A Relatoria estabeleceu uma parceria com a Ecos (Estudos e Comunicação em Sexualidade) para realizar missões de identificação e denúncia de violação dos direitos sexuais e reprodutivos e adolescentes mulheres. Essa ONG realiza, com o apoio da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, o Projeto Promovendo os direitos sexuais e reprodutivos de adolescentes em conflito com a lei e participou da visita feita à Comunidade de Atendimento Socioeducativo (Case) da Fundação da Criança e do Adolescente (Fundac), em Salvador, Bahia. Com apoio das pessoas que participaram das comitivas, ao final de cada visita a Relatoria elaborou relatórios de análise das violações encontradas, tomando como referência os direitos das pessoas privadas de liberdade contidos na Constituição Federal de 1988, na Lei de Execução Penal, no Sistema Nacional Socioeducativo (Sinase), no Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, além de Convenções e Tratados ratificados pelo Brasil, incluindo as Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros aprovadas em 1984 pelo Ecosoc. Esses relatórios foram apresentados e/ou encaminhados para as Procuradorias Regionais e Federal do Direito do Cidadão, para o Ministério Público dos estados, as Promotorias e Juizados da Vara da Infância e da Juventude, os Tribunais de Justiça dos estados visitados e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. A Relatoria contou com o apoio da Associação de Juízes pela Democracia e das ONGs que fazem parte da Rede Feminista de Saúde. É importante ressaltar que a Relatoria não obteve resposta às solicitações de realização de missões a instituições privativas de liberdade de mulheres e adolescentes em São Paulo, como previsto no Plano de Trabalho. Foram feitos contatos – por telefone, email, carta e inclusive pessoalmente – mas a Direção de Ações de Saúde da Coordenadoria de Saúde do Sistema Prisional do Estado de São Paulo não forneceu liberação para as visitas.

Relatoria do Direito Humano à Saúde Sexual e Reprodutiva

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Mulheres em situação de

privação de liberdade

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Relatoria investigou a situação de mulheres em privação de liberdade em quatro estados brasileiros. A partir dessas entrevistas, a Relatoria identificou graves violações dos direitos humanos das mulheres, sobretudo nas áreas da saúde e de acesso à justiça. Na primeira, situações aberrantes que podem ser consideradas como tortura e outras como descaso. Entre os casos encontrados pela Relatoria, destacamos: n

Mulheres sem acesso à saúde em situações de vulnerabilidade, como nas portadoras de HIV/Aids e mulheres gestantes;

n

Ausência de profissionais de saúde, médicos, psicólogas, enfermeiras;

n

Ausência de referência formal para partos e casos de abortamentos inseguros, levando as mulheres a peregrinarem em busca de um leito de hospital, situação que aumenta sua vulnerabilidade, podendo levar à morte materna, segundo estudos sobre o tema.

Mesmo nos presídios localizados em estados que aderiram ao Plano de Saúde no Sistema Penitenciário encontramos mulheres sem atenção pré-natal com gravidez avançada, outras com problemas de pressão alta sem tratamento, algumas portadoras do vírus HIV também sem tratamento. Queixas de suspensão de medicamentos psiquiátricos são frequentes em todos os presídios visitados. Superlotação foi um achado comum a todas as instituições visitadas, havendo celas com capacidade para seis mulheres, mas comportando o triplo disso. As condições de higiene e de estrutura em geral são ruins e o direito à visita íntima para as mulheres e adolescentes ainda é um problema que mal começa a ser pensado.

A maioria não tem advogado ou defensor público, um número importante não tem pena definida e encontra-se sem julgamento.

O acesso à justiça é outro problema grave encontrado para grande parte da população privada de liberdade. A maioria não tem advogado ou defensor público, um número importante não tem pena definida e encontra-se sem julgamento. Muitas são abandonadas pelos advogados e também pela família, sobretudo se são residentes em outros estados ou municípios.

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Morte materna

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urante o mandato da Relatoria foram produzidos vários textos e análises sobre os direitos sexuais e reprodutivos. Entre eles o documento Análise de casos de morte materna sob a ótica dos direitos humanos, que pretendeu contribuir para a redução das taxas de mortalidade materna entre as mulheres discriminadas por raça/etnia e condição social. Seu propósito é fortalecer a visão dos direitos humanos na análise da evitabilidade de casos de morte materna, levando em consideração os direitos consagrados nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Pretende ainda contribuir para criar uma cultura de utilização dos instrumentos de direitos humanos aplicados à morte materna, nas análises dos comitês de estudo e prevenção desse tipo de mortalidade. Dentre todos os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, aquele que se encontra mais distante da meta estabelecida é o de redução das taxas de mortalidade materna. No Brasil, as taxas mais elevadas estão nas regiões Nordeste e Norte, particularmente nos estados e municípios onde é forte a discriminação de mulheres negras, indígenas, pobres e sem escolaridade. Parte da dificuldade para reduzir a morte materna no Brasil advém da fragilidade dos casos de morte materna (CMM) em tecer argumentos baseados em indicadores objetivamente verificáveis vinculados aos marcos legais nacionais e internacionais existentes. Nesse sentido, os CMM raramente retroalimentam os conselhos de saúde (locais, municipais, estaduais e federal) com dados e informações que viabilizem a participação ativa da sociedade civil na implementação das políticas existentes, na área da saúde reprodutiva de mulheres e adolescentes e outros campos e setores correlatos. Para a elaboração desse documento, a Relatoria se reuniu inicialmente com os Comitês de Estudo e Prevenção da Morte Materna (CMM), municipais e estaduais, de Salvador (BH), Recife (PE), Porto Alegre (RS), Fortaleza (CE) e Belém (PA), para discutir a importância de que esses Comitês ultrapassem a perspectiva técnico-biomédica, hegemônica no estudo de casos de morte materna, e agreguem às suas análises a aplicação dos direitos humanos consagrados em tratados internacionais ratificados pelo Brasil. O documento foi submetido à apreciação de instituições e especialistas nos campos da justiça e da saúde, das quais recebeu parecer positivo e sugestões de valor que foram incorporadas. Nesse sentido, pode-se afirmar que o documento foi escrito a várias mãos, como as da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, do IPASBrasil, da THEMIS, do IMAIS, do Cladem, da UFPE e do MUSA/Instituto de Saúde Coletiva/Universidade Federal da Bahia.5

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Respectivamente Télia Negrão, Beatriz Galli, Rubia Cruz, Greice Menezes e Liliam Marinho, Carmen Campos, Sandra Valongueiro e Greice Menezes e Estela Aquino.

Relatoria do Direito Humano à Saúde Sexual e Reprodutiva

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Leia mais no site: Sobre o tema da morte materna, do aborto inseguro e da violência contra a mulher com uma perspectiva de direitos humanos, leia o documento Os direitos sexuais e reprodutivos são direitos humanos, alusivo ao Dia Internacional dos Direitos Humanos (10 de dezembro) e o documento sobre o combate à violência contra a mulher, divulgado por ocasião do dia 25 de novembro. A Relatoria elaborou também as Contribuições à resolução 11/8 – mortalidade e morbidade maternas e direitos humanos para o Conselho de Direitos Humanos da ONU, além do documento Análise de casos de morte materna sob a ótica dos direitos humanos, para o qual damos um destaque especial.

n DEPOIMENTOS Mulheres em situação de privação de liberdade Relato de presidiárias do Centro de Reabilitação Feminino de Ananindeua, Pará Nesta cela somos seis mulheres, todas com HIV. Estamos sem medicamento. Todo mundo aqui na prisão sabe que temos HIV porque puseram a gente junto, as próprias detentas pediram pra nos separarem. Quando temos consulta marcada não temos carro. Também perdemos muitas audiências por falta de carro. Não recebemos material de limpeza. Estou aqui há 1 ano e 6 meses e nunca consegui ir a uma audiência. Nós aqui nunca fizemos exame de CD4. Estamos aqui em condições de discriminação, todo mundo nos aponta. Se gritamos pedindo remédio, vamos pro cativo, ficamos lá 30 dias, comendo mal, fazendo cocô no buraco.

Relato de uma mulher detida na Penitenciária Madre Pelletier de Porto Alegre, Rio Grande do Sul Aqui o serviço médico é muito difícil, a gente coloca o nome na lista para a consulta de ginecologia e psicologia, mas não somos atendidas. No último ano morreram 12 mulheres, por falta de cuidados médicos. Aqui a gente não tem direito a nada, somos tratadas como bichos. Várias de nós já foram para o “castigo”. No “castigo” as celas são escuras, geladas, não têm vasos sanitários, apenas um esgoto no chão, onde as mulheres fazem suas necessidades. Eu nunca recebi a visita de juízes. Nas celas passam ratos, baratas, tem umidade e muitas estão com a pia entupida. A

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conferência das celas é às 5 horas da manhã e é proibido sair de pijama. Quando isso acontece somos castigadas com 10 dias de solitária. Relato de uma mulher presa na Cadeia Pública de Verdejante, Pernambuco Tenho 30 anos, sou de Garanhuns, fui presa por tráfico de drogas. Tenho quatro filhos. Trabalhava numa lanchonete e fui demitida do trabalho com um mês de gravidez. Aceitei a demissão porque os patrões eram legais e já tinham me ajudado muito em outras ocasiões. Como estava desempregada, aceitei o convite de uma mulher para ir buscar maconha em Salgueiro. Fui presa na volta e a mulher que me aliciou desapareceu. Tinha audiência marcada para 8 de junho em Cabrobó, mas ninguém veio me buscar e nem explicaram porque não me levaram. A audiência não aconteceu e até agora não sei quando acontecerá. Fui abandonada pelo meu companheiro. Preciso tratar dos dentes e fazer uma ultrassonografia. Desde que cheguei aqui, grávida, não fiz nenhuma consulta. Teve uma fiscalização e proibiram que mulheres grávidas e bebês ficassem na cadeia. Mas eu ainda estou aqui, a gente está sem advogado para dar orientação e esclarecer as dúvidas de todas nós.

Morte materna Depoimento da mãe de L.I., adolescente que teve morte materna, de Belém do Pará Minha filha tinha 14 anos quando faleceu no dia 24 de janeiro de 2009, na UTI da Santa Casa de Misericórdia do Pará, por causa de uma infecção após o parto. Ela se chamava L.I. Ela tinha feito todas as consultas de pré-natal, com o Dr. Sérgio e a enfermeira Sra. Luiza. Também fez a maioria dos exames, não fez todos porque a unidade de saúde não faz ultrassonografia. Nós tivemos que pagar R$ 20,00 num laboratório particular para fazer esse exame. Ela foi internada na Santa Casa de Misericórdia no dia 25 de dezembro de 2008 e no dia seguinte, dia 26, fizeram o parto. Ainda no hospital, nós duas ficamos preocupadas porque sua recuperação estava demorando, ela dizia que sentia uma dor muito forte na barriga. Na manhã do dia 28 de dezembro, eu falei para o médico que ela não estava passando bem, que ela não tinha fome, estava triste e deprimida, não conseguia ficar em pé e ficava na cama todo o tempo, além de ter o corpo quente. O médico passou um remédio para a febre e deu alta, dizendo que o hospital necessitava do leito. Aqui em casa fizemos tudo o que ele recomendou. Mesmo assim, com todo nosso cuidado, ela passou três dias com febre e dores intensas no local da cirurgia, até que começou a vomitar um líquido esverdeado. No dia 1º de janeiro de 2009 ela piorou, os pontos da cirurgia se romperam e começou a sair mais secreção esverdeada, com mau cheiro. Decidi levá-la à Unidade Municipal de Saúde de Tapanã e lá ela ficou numa cadeira. O médico que nos atendeu disse que eu mesma tinha que providenciar o transporte dela para a Santa Casa, mas de tanto eu insistir ele liberou a ambulância da unidade. Só que o motorista

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nos deixou na esquina da Santa Casa. Eu tive que carregá-la no colo, sozinha, por um quarteirão. Cheguei a cair duas vezes com ela, ela não tinha condições de caminhar. Então foi assim, minha filha foi internada pela segunda vez na Santa Casa na noite do dia 1º de janeiro. Eles a colocaram na unidade de isolamento do hospital. No dia seguinte fizeram uma cirurgia para retirar o útero que estava necrosado por causa da infecção. Depois de 22 dias ela faleceu na UTI da Santa Casa. Antes dela falecer, a médica da UTI disse que eu e a madrinha dela não cuidamos direito dela nos dias em que ela ficou em casa. Mas isso não é verdade, a senhora pode ver que a casa é simples, mas limpa, e enquanto ela ficou aqui, naqueles três dias, fizemos tudo o que o médico tinha recomendado. A missa de 7º dia da minha filha foi celebrada no dia 1º de fevereiro, quando ela completaria 15 anos. Depois, a madrinha dela disse que a gente tinha que procurar o apoio de alguma ONG para denunciar o descaso que levou-a a morrer.

A morte de L.I. se configura como um caso típico de morte materna evitável, como tantos outros que ainda acontecem no Brasil, causado por negligência dos serviços de saúde e agravado pela sua condição social de pobreza. A família de L.I. vive na periferia da cidade de Belém, sua mãe é analfabeta, desempregada, possui outra filha adolescente e mais duas crianças, uma que nasceu depois da morte de L.I. Os estudos sobre mortalidade materna são unânimes em afirmar que as mulheres que morrem de morte materna evitável são aquelas excluídas dos bens sociais, como as mulheres e adolescentes pobres, negras, indígenas, analfabetas e as adolescentes sem apoio familiar e social. L.I. se enquadra em todos esses critérios. A vulnerabilidade de L.I. a levou a ter uma gravidez precoce, mas que contou com o apoio familiar, no caso a mãe, na medida das possibilidades dessa família. L.I. fez todas as consultas de pré-natal, realizou alguns exames, foi levada ao hospital para o parto no momento adequado e depois, quando já em estado grave, foi levada à Unidade de Saúde do bairro e transportada pela própria mãe, nos braços, para a Santa Casa. Não é demais afirmar que gravidez em adolescente com vulnerabilidade social implica em maior atenção e cuidados dos serviços de saúde e deve ser considerada gravidez de risco, necessitando de acompanhamento permanente. Pelo relato da família e da madrinha de L.I. e pelos dados constantes no prontuário e no relatório da denúncia que tivemos acesso, o sistema de saúde falhou seriamente na proteção da saúde e da vida de L.I.

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Entrevista Beatriz Galli

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pesar de ser uma das principais causas de morte materna evitável, o assunto aborto continua um tabu no Brasil. Setores conservadores se negam a discutir a questão enquanto saúde pública e direito à saúde sexual e reprodutiva, deixando assim milhares de brasileiras na fronteira dos direitos humanos. A invisibilidade do tema é uma agenda política forte para muitos setores, bastando relembrar dos debates em torno da eleição presidencial de Dilma Roussef e no retrocesso no PNDH-3 quanto a políticas públicas relacionados ao aborto. O cenário político é evidentemente desfavorável: no Congresso Nacional existem dois projetos de lei tramitando para regulamentar o aborto, e outros 30 contrários à prática. As informações são de Beatriz Galli, advogada, assessora do Ipas, membro do Cladem e da Comissão de Bioética e Biodireito da OEAB/RJ.

Qual é a realidade do aborto no Brasil? Ele é causa de muitas mortes maternas? De acordo com o Ministério da Saúde,6 o aborto é a quarta causa de mortes maternas no país devido a hemorragias e infecções. A realidade do aborto no Brasil é ainda subdimensionada pela sua situação de ilegalidade. O que temos são estimativas a partir dos dados sobre internação no SUS por complicações derivadas do abortamento e pesquisas com uma amostragem de mulheres que realizaram abortos. Sabe-se que o aborto está entre as principais causas de morte materna no Brasil, algo entre a quarta e a quinta causa, considerada como causa evitável. Criminalizar o aborto não impede a prática do aborto entre as mulheres, mas tem um impacto nas mortes e sequelas derivadas do aborto inseguro, e esse impacto é desigual entre grupos de mulheres. As que correm mais risco são as jovens, negras, que vivem nas áreas rurais e nas periferias urbanas, com menor grau de escolaridade e piores condições econômicas. Existe um perfil traçado das mulheres que fazem aborto no Brasil?

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(BRASIL, 2007).

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Sim, houve uma pesquisa chamada Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) conduzida pela Universidade de Brasília e a organização ANIS que teve como objetivo conhecer o perfil da mulher que aborta no Brasil e revela a face da mulher que interrompe a gravidez. Ela é casada, tem filhos, religião e pertence a todas as classes sociais. De acordo com os resultados, uma em cada sete brasileiras, entre dezoito e 39 anos, já realizou ao menos um aborto na vida, o equivalente a uma multidão de cinco milhões de mulheres. De acordo com o estudo, na faixa etária entre 35 e 39 anos, a proporção é ainda maior: uma em cada cinco mulheres já fez um aborto. A pesquisa mostra a magnitude do aborto no Brasil. Revela que há um problema de saúde pública a enfrentar.

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Você acredita que a legalização da prática do aborto levaria a um aumento do número de abortos praticados? Eu acho que a legalização do aborto levaria a que as mulheres tivessem acesso ao aborto seguro. Em um primeiro momento teríamos uma dimensão realista do número de abortos praticados, pois estariam sendo realizados nos serviços públicos de saúde e por isso seriam registrados, mas a tendência mundial nos países em que o aborto foi legalizado mostra que depois da legalização existe um declínio do número de abortos pois as mulheres terão acesso a informação para prevenção de gravidezes indesejadas, acesso a métodos contraceptivos e acompanhamento médico. Tais fatores levam a um melhor controle da vida sexual e reprodutiva pelas mulheres, exercendo os seus direitos humanos à autodeterminação sexual e reprodutiva e previnem gravidezes indesejadas. A composição do congresso nacional e da política brasileira é favorável para discussão de projetos de legalização do aborto? Atualmente a composição é bastante desfavorável. Segundo dados do Cfemea, temos atualmente tramitando dois projetos de lei bons: PL 20/91 (obriga o SUS a realizar os abortos permitidos em lei – hoje, nos casos de estupro e risco de morte para a mãe) e o PL 4403/2004 (Isenta de pena a prática de “aborto terapêutico” em caso de anomalia do feto, incluindo o feto anencéfalo, que implique em impossibilidade de vida extrauterina). Ou seja, não há nenhum PL pela legalização do aborto e mais de 30 PLs contrários. O aborto foi um dos temas de debate durante o PNDH, e o tema acabou sendo retirado do plano discutido pela sociedade civil. Como você avalia essa retirada? Como um retrocesso político por parte do governo. O governo não quis assumir o seu compromisso de revisar a legislação sobre o aborto no Brasil, que foi resultado de Conferências Internacionais e também recomendado por órgãos de monitoramento das Nações Unidas. O governo assumiu que era um problema de saúde pública, mas não se responsabilizou por diminuir as mortes e sequelas derivadas do aborto, o que poderia ser feito com a sua descriminalização/legalização, além de outras medidas necessárias. Com isso, o governo não levou adiante uma proposta legislativa para alterar a legislação. Ao mesmo tempo, o Congresso Nacional se tornou o palco de frentes legislativas organizadas antilegalização do aborto, com parlamentares de vários partidos diferentes. O governo não vem se posicionando favoravelmente à revisão legal desde então e com o governo Dilma ficou claro que só irá trabalhar para ampliar o acesso ao aborto nos casos previstos em lei. Infelizmente, a opção do governo, naquele momento do PNDH III, foi de recuar em relação aos direitos reprodutivos. Optou-se por uma nova redação, que reconheceu que o aborto inseguro é uma questão de saúde pública e que o Estado garantiria o acesso das mulheres que recorressem à prática a serviços de saúde, mas silenciando sobre a mudança da lei penal em relação ao tema. Tal posicionamento, embora importante por reconhecer a realidade que afeta milhares de mulheres que buscam os serviços de saúde para tratamento das complicações derivadas de aborto, não resolve o problema da sua criminalização, que se mantém como a única resposta do Estado para tal problema. Vale destacar, como forma de contribuir para a reflexão, que, de fato, a descriminalização do aborto seria uma medida necessária para a proteção dos direitos reprodutivos das mulheres, tendo-se em vista os dados estimados sobre aborto inseguro.

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Relatoria do Direito Humano à Terra, Território e Alimentação A luta pela terra e território em um contexto de

mercado de commodities

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Relatoria do Direito Humano à Terra, ao Território e à Alimentação atua apoiando e procurando dar visibilidade a lutas e resistências de populações do campo, denunciando violações de direitos. Em incidências nacionais e locais, procurou contribuir na efetivação de direitos territoriais e na soberania alimentar de populações do campo, através do apoio às lutas por terra e por territórios, acompanhando atividades em Brasília, especialmente a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do MST, em 2010, e realizando missões para verificar in loco violação de direitos e audiências com órgãos responsáveis, exigindo ações concretas para interromper tais violações. A atuação em temáticas relacionadas à luta pela terra e por territórios requer contínua reflexão sobre significados do campo, especialmente em consequência da prevalência e expansão de um modelo produtivo agroexportador que prioriza o mercado de commodities. Na Região Amazônica, a commodity da madeira é priorizada, atingindo diretamente as comunidades e os povos que ali estão submetidos à pressão dos grupos econômicos interessados no desenvolvimento desses empreendimentos. Não é por acaso que há uma visibilidade crescente para a Amazônia, não só em uma perspectiva preservacionista, mas também como uma possibilidade de concentrar riquezas a partir do avanço da extração de bens naturais. Em oposição a esse modelo e aos conflitos dele decorrentes, há resistências e lutas de comunidades e grupos sociais que, ao se oporem à expansão, reivindicam direitos, reconstroem identidades, expressam modos de vida e de apropriações da terra, diferentes do modelo

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hegemônico, com diversificação agrícola e valorização da floresta e da natureza, insistindo no direito de reprodução social e cultural. Esse processo recria e ressignifica históricas lutas por terra e territórios, apesar de ser interpretado por muitos como uma expressão de atraso e resistência à modernização e ao desenvolvimento. Tratar da persistente concentração fundiária e das novas investidas para apropriação de mais terras via expansão de fronteiras significa enfrentar setores que têm a propriedade da terra não apenas como meio de produção, mas especialmente como exercício de poder. A realidade fundiária e os persistentes conflitos por terra mantêm um desenvolvimento nacional predatório, excludente e concentrador de renda e riquezas, baseado na aliança entre capital e latifúndio, voltado para a exportação de commodities, precarização do trabalho e exclusão política de camponeses e agricultores familiares, ribeirinhos, povos indígenas, comunidades quilombolas, geraizeiros, faxinalenses, e tantos outros grupos sociais do campo. Nos últimos anos, vem ocorrendo uma nova expansão do grande agronegócio no campo, expandindo ainda as fronteiras agrícolas, atraindo investimentos pesados para o setor. O campo está vivenciando um novo ciclo de expansão do capital, inclusive com investimentos nacionais e estrangeiros na compra de terras, resultado da demanda e incentivos na produção de commodities agrícolas (grãos, carne, matéria-prima para agrocombustível) e não agrícolas (madeira, minérios, entre outras), com preços em alta no mercado internacional. Segundo estudo do Banco Mundial (2010), a demanda mundial por terras tem sido enorme, especialmente a partir de 2008, tornando a “disputa territorial”, histórica no Brasil e na América Latina, um fenômeno global. Esse interesse internacional pelas terras (relativamente abundantes) da América Latina (especial destaque ao Brasil, Além de acirrar as Argentina e Uruguai) e da África subsaariana tem disputas territoriais, essa provocado um aumento dos seus preços. Além de demanda por terras afeta acirrar as disputas territoriais, essa demanda por terras políticas fundiárias, afeta políticas fundiárias, porque, por exemplo, fica porque, por exemplo, fica mais caro desapropriar e indenizar terras para fins de mais caro desapropriar e Reforma Agrária. indenizar terras para fins de Reforma Agrária. Esse processo de expansão é contraditório, pois se, de um lado, reafirma a lógica de apropriação de vastos territórios – reeditando lógicas colonialistas ou a mantendo a “acumulação por expropriação” (HARVEY, 2004) –, por outro, conta com apoios governamentais. Parte significativa dos investimentos estrangeiros no Brasil, inclusive na compra de terras, é financiada com recursos públicos, especialmente com recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e dos Fundos Constitucionais do Centro-Oeste (FCO) e do Norte (FNO). Esses empréstimos e os incentivos fiscais estão sendo alocados principalmente na expansão do cultivo de cana para produção de etanol (no Cerrado de Goiás, Mato Grosso do Sul e Triângulo Mineiro), no cultivo da soja (região conhecida como “Mapitoba”, mas também em partes da Região Amazônica) e na extração de minério e de madeira (especialmente na Região Amazônica).

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As ações de movimentos sociais e resistências de comunidades tradicionais são vistas como ameaça, porque conflitos geram instabilidade e “afugentam os negócios”, mas também porque explicitam a disputa pela terra, limitando os espaços de expansão das monoculturas. Nessa lógica, movimentos sociais agrários, povos e comunidades tradicionais (quilombolas, faxinalenses, quebradeiras de coco, vazanteiros, pescadores artesanais, etc.), povos indígenas e muitos outros que questionam esse modelo são criminalizados. É recorrente uma atitude autoritária do Estado e da sociedade brasileira no trato e na solução de conflitos, especialmente quando envolve conflito de interesses resultados de mobilizações sociais e de ações de movimentos populares organizados. Os movimentos sociais agrários sempre conviveram com formas diferenciadas de repressão e perseguição. Setores do Estado, defendendo interesses patrimonialistas (especialmente a propriedade da terra como um instrumento e lugar de exercício do poder), têm sido os principais repressores. Essa repressão assumiu, em diferentes momentos históricos, formas e intensidades diferenciadas de violência física ou simbólica. Em linhas gerais, pode-se dizer que as estratégias de repressão adotadas, usadas de forma simultânea ou complementar, foram: isolamento político (não dando voz nem conferindo legitimidade às demandas, visando à desintegração e à desmobilização), cooptação (tanto de grupos de base como de lideranças importantes, concedendo pequenos privilégios, buscando o definhamento do movimento social) e repressão, sobretudo com o uso de aparelhos policiais. Recentemente, a criminalização dá novas características à repressão, inclusive porque introduz novos atores institucionais. Não são novidades ações condenatórias da grande mídia, inclusive respaldando ideologicamente ações violentas e a perseguição política da bancada ruralista no Congresso. A novidade é a crescente participação de setores de Estado, constituídos democraticamente para defender a população, mas que acabam sendo instrumentos de criminalização de ações e reivindicações populares, como foi o caso do Ministério Público, envolvendo uma perseguição ao MST no estado do Rio Grande do Sul, ou os interesses (bens) públicos, como é o caso das investigações do Tribunal de Contas da União (TCU) que, claramente, utiliza “dois pesos e duas medidas” em seu trabalho de fiscalização. No Congresso Nacional, as ações parlamentares passam a ser mais proativas. Parlamentares vêm utilizando mecanismos como, por exemplo, Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI), Propostas de Fiscalização e Controle (PFC), Projeto de Decreto Legislativo (PDC) (projetos para cancelar decisões do Executivo que atendem reivindicações de grupos sociais), requerimentos de fiscalização pelo TCU, entre outros. Exemplos disso foram a CPMI do MST, em 2010, e a tramitação do PDC 44/07, que suspende todos os atos praticados pelo Poder Executivo com base no Decreto nº. 4887/2003, que regulamenta os procedimentos relacionados à regularização dos territórios das comunidades quilombolas. No último exemplo, ainda há uma atuação no Judiciário, decorrente de uma ADIn (Ação Direta de Inconstitucionalidade), proposta em 2004 pelo antigo partido da Frente Liberal (PFL), atualmente denominado Democratas (DEM). Esta ADIn questiona o conteúdo do Decreto nº. 4887/2003, que regula a atuação da administração pública na efetivação do direito territorial étnico das comunidades de remanescentes de quilombo no Brasil.

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A lógica autoritária da política brasileira não se restringe ao Legislativo, pois amplos setores do Judiciário vêm atuando no sentido de caracterizar a luta pela terra e por direitos territoriais como ações criminosas. Há dezenas, se não centenas, de processos judiciais acusando lideranças populares e grupos sociais de formação de quadrilha, porte ilegal de armas e desvios de recursos públicos. De uma maneira geral, são ações legais que explicitam a intolerância às demandas populares e luta por direitos.

A lógica autoritária da política brasileira não se restringe ao Legislativo, pois amplos setores do Judiciário vêm atuando no sentido de caracterizar a luta pela terra e por direitos territoriais como ações criminosas.

Em um regime democrático, no entanto, além dos mecanismos de participação e decisão estabelecidos na Constituição é fundamental abrir espaço político para a consolidação de outros mecanismos para tornar a soberania efetiva e a democracia uma realidade. É nessa perspectiva que esta Relatoria atua, buscando caminhos de fortalecimento da sociedade civil e dos movimentos sociais, o que significa reconhecer a legitimidade dos embates políticos e das mobilizações sociais. Os embates territoriais, as resistências à expropriação das populações do campo, “tradicionais” ou não, não se restringem a uma reação contra as demandas crescentes do mercado de terras. Essa demanda apenas explicita que a terra e o território devem ser entendidos além de um meio e lugar de produção, mas como um lugar “identitário, relacional e histórico”, construído nas lutas e processos sociais das comunidades que aí vivem e se reproduzem.

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Missão ao território indígena de Maró, oeste do Pará

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território indígena de Maró está localizado na Gleba Nova Olinda I, município de Santarém (PA). É uma região de exuberante beleza natural, explicitada em sua rica biodiversidade incrustada no meio da Floresta Amazônica, e cultural, por meio da reprodução social de indígenas, ribeirinhos, extrativistas entre outros atores sociais. As violações de direitos humanos nessa região são frequentes e vão desde o desrespeito às terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e invadidas por empresas madeireiras e fazendeiros até ameaças de morte e agressões físicas às lideranças desses povos. Diante da gravidade das violações denunciadas pelos indígenas e baseando-se no histórico conflitivo local, já averiguada em uma missão na mesma área no ano de 2009, a Relatoria do Direito Humano à Terra, Território e Alimentação realizou uma nova missão na área da comunidade indígena de Maró com o propósito de verificar as recorrentes denúncias, em agosto de 2011. Antes da missão, a Relatoria realizou audiência com o presidente da Funai, Márcio Meira, em Brasília. A intenção foi verificar o andamento do relatório de identificação do território indígena Maró, necessário para a demarcação da área, e pressionar para a conclusão do trabalho. Desde a última incidência da Relatoria na área, observou-se que poucas providências foram tomadas pelas autoridades públicas e os conflitos intensificaram-se em alguns aspectos, como no aumento da invasão às terras indígenas, possibilitada inclusive por concessões florestais do governo estadual, ignorando a existência da terra indígena, além das ameaças e agressões sofridas pelas lideranças locais. A Relatoria chegou à terra indígena de Maró no início da tarde do dia 14 de agosto (domingo) ficando até dia 17 (quarta). Ali, reuniu-se com representantes das três comunidades que compõem o território (Aldeia Novo Lugar, Aldeia Cachoeira do Maró e Aldeia São José III), onde foram relatadas várias situações de graves violações concernentes a ameaças de morte, agressões, tentativas de homicídio, extração ilegal de madeira, invasão da área das comunidades, precariedade em serviços de educação e saúde, entre outras situações preocupantes. Diante da gravidade da situação, houve uma inspeção da Relatoria à mata fechada para a identificação das violações ao território indígena. Constatou-se a existência de nove lotes para realização de manejo florestal. Inúmeras árvores importantes à sobrevivência indígena estavam com plaquetas de alumínio para identificação. Tudo indica que já estão prontos para iniciarem em breve a derrubada das árvores já marcadas. Ali, pudemos averiguar os fatos que haviam sido relatados pelos indígenas.

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Reunião com representantes das três comunidades que compõem o território indígena (Aldeia Novo Lugar, agosto de 2011)

Árvore “plaqueada” para a realização de plano de manejo (na terra indígena Maró, agosto de 2011)

Além disso, os indígenas, no caminho rumo à área invadida por madeireiros, encontraram alguns trabalhadores da própria madeireira na área, o que deu início a uma discussão sobre a área e as violações cometidas pelos madeireiros, já que os indígenas sofrem ameaças constantes por defenderem a floresta em pé. Por fim, acharam melhor irem para que os ânimos não se exaltassem. Além dos conflitos relacionados às violações de direito à terra e território dos povos indígenas de Maró, a ausência de políticas públicas estruturantes do Estado a essas comunidades é uma realidade. Há problemas gritantes no investimento em educação e saúde nessas localidades, os quais puderam ser verificados, desde falta de infraestrutura para atendimento de enfermos até insuficiência e dificuldade na entrega de merenda escolar. Ao retornar da área visitada, a Relatoria participou da I Conferência Internacional de Conflitos Socioambientais e Direitos Humanos que ocorreu na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), em Santarém. Nesse espaço a Relatoria teve a possibilidade de expor a situação da terra indígena de Maró, explicitando pontos nevrálgicos nas violações de direitos humanos ocorridas na região. A exposição dos fatos teve um caráter de denúncia para as autoridades públicas regionais, já que na mesa do evento constavam como debatedores os representantes do Ministério Público Estadual, do Ibama e da Funai. Além de divulgar o relatório da missão, agora a Relatoria Nacional de Direito à Terra, Território e Alimentação tenta garantir uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos do Senado para mobilizar as autoridades públicas nacionais para resolver as violações aos direitos humanos das comunidades indígenas de Maró, no Pará.

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Missão à região do sertão do Rio São Francisco,

Pernambuco

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Nordeste brasileiro, região com os estados de menor IDH do país, tem recebido nos últimos anos diversas obras de infraestrutura que, a despeito de propugnarem o crescimento econômico da região, setorial e quantitativamente, interiorizando a perspectiva governamental de desenvolvimento, não têm sido suficientes para gerar o aumento de acesso a direitos e da qualidade de vida da maior parte do povo sertanejo. A construção de obras portuárias, a exemplo da expansão do Porto de Suape, em Pernambuco, e do Porto de Pecém, no Ceará, de estradas, e de diversas obras no semiárido, notadamente nas proximidades do Rio São Francisco, como a Transnordestina, as barragens, os canais de irrigação e a transposição das águas do rio vêm concomitantemente ampliar a comercialização de commodities agrícolas e beneficiar o lobby do setor energético, sem atenção suficiente para dirimir os problemas reais do povo sertanejo: a falta de terra e de água. A Relatoria do Direito Humano à Terra, Território e Alimentação recebeu diversas denúncias, que demonstram a face perversa do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal, de não só ser incapaz de trazer benefícios para as populações locais impactadas pelas obras, como também de lhes privar da perpetuação de seus modos tradicionais de vida e mesmo de garantias que tinham antes de as obras serem construídas, como o acesso a recursos naturais. Portanto, diante das violações de direitos humanos de comunidades quilombolas, ribeirinhas, povos indígenas e famílias assentadas de Reforma Agrária às margens do Rio São Francisco, a Relatoria realizou uma missão ao semiárido pernambucano, em 2010, região marcada pela insuficiência de políticas públicas de base e que sofre com os impactos de megaprojetos. A missão, que aconteceu nos dias 15 e 16 de outubro de 2010, foi realizada nos municípios de Petrolina, Santa Maria da Boa Vista e Cabrobó (Pernambuco), na região do Sertão do São Francisco. A Relatoria visitou comunidades tradicionais e projetos de assentamentos afetados, e reuniu-se com lideranças comunitárias e movimentos sociais, a fim de ouvir os relatos das violações de direitos sofridas por eles. Além de receber as denúncias, a Relatoria também participou de reuniões com o superintendente do Incra de Petrolina, ao detectar diversas violações ao território quilombola e aos assentamentos de Reforma Agrária, bem como se reuniu com procuradores do Ministério Público Federal de Petrolina, explicitando a gravidade da situação, principalmente quanto aos territórios indígenas e quilombolas, impactados pelos projetos das Barragens de Riacho Seco e Pedra Branca, previstas para serem construídas em Santa Maria da Boa Vista e Orocó, respectivamente. Essas barragens, conforme denúncias das populações impactadas e pelo que se

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depreende do próprio processo de licenciamento do Ibama, possui grandes irregularidades, sendo a principal a ausência de oitiva dos povos e comunidades tradicionais impactados, como prevê a Convenção 169 da OIT, já ratificada pelo Brasil. É grande também a falta de informação da população sobre os projetos, sobre qual sua real extensão espacial, e que comunidades realmente serão atingidas. Para além do projeto dessas e de outras barragens no Rio São Francisco, o Nordeste está incluso no Plano Nacional de Energia (PNE) 2030 como o local para construção de mais uma usina de energia nuclear, prevista para ser implantada no município de Itacuruba, Pernambuco, também às margens do rio, cidade que já fora quase que integralmente realocada, após a formação do lago da barragem de Itaparica. Assim, um verdadeiro canteiro de obras, a região continua padecendo de problemas estruturais, como a alta concentração fundiária, elevados índices de violência no campo e falta do acesso à água na região do semiárido. Ou seja, paradoxalmente o Estado se apresenta na região como o promovedor de um desenvolvimentismo de poucos e seletos beneficiários, mas ausente na promoção de reais políticas públicas de base, que beneficiem o povo sertanejo. Tal postura, além de perpetuar a conhecida indústria da seca, elege algumas obras, como a Transposição do São Francisco, como salvacionista do povo sertanejo, ignorando que apenas a realização da política pública de Reforma Agrária e de convivência com o semiárido são capazes de resolver o problema da seca e da fome. Essa missão constatou que comunidades e trabalhadores rurais enfrentam sérios problemas com falta de água na região, mesmo estando às margens do Rio São Francisco. Além da falta, há dificuldades relacionadas ao saneamento básico, ao transporte e à merenda escolar, à educação, a estratégias de melhoria do solo para a agricultura (incluindo a salinização das terras), às condições das casas (em várias comunidades tradicionais as casas ainda são de taipa) e à obtenção de aposentadoria e de salário-maternidade. Quanto à situação dos quilombolas na região, constatou-se que existem 18 comunidades quilombolas reconhecidas e/ou em processo de reconhecimento pela Fundação Palmares, totalizando 1.807 famílias. Dentre elas, nenhuma possui título territorial, e algumas sequer possuem procedimento de titulação territorial aberto no Incra. Correm também o risco de perda territorial devido aos impactos dos projetos de barragem e a transposição do São Francisco. Em negociações com órgãos federais responsáveis, a exemplo do Ministério de Integração, foram feitos vários acordos, mas as chamadas “obras de compensação” não passaram de promessas, não cumpridas após dois anos – época da missão – da assinatura do Protocolo. Assim como nos territórios quilombolas, a situação das demarcações de terras indígenas materializa várias violações de direitos, o que se deve tanto pela precariedade e lentidão dos procedimentos administrativos em curso na Funai quanto pelos lobbies de grandes grupos econômicos da região. No estado de Pernambuco, os povos indígenas próximos à bacia do Rio São Francisco, os Kambiwás, os Pankararus, os Pipipãs e os Trukás estão sendo atingidos tanto pela transposição (parte dos canais cortam as terras reivindicadas pelos povos indígenas) como o serão pelas Barragens de Riacho Seco e Pedra Branca.

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No que tange a situação dos assentados de Reforma Agrária, muitos problemas e violações foram verificados. Os projetos de “desenvolvimento” para a região têm atendido aos interesses de grandes grupos econômicos, como a construção do Projeto Pontal Sul. O projeto tem o objetivo de irrigar mais de 7.700 hectares de terras no município de Petrolina, com recursos públicos, para posterior alienação de grandes lotes a grupos econômicos, sem atender à demanda local da população rural de acesso à terra e à água. Afora o não acesso à terra, à água e aos investimentos com irrigação, a Relatoria constatou que vários assentamentos deverão sofrer com obras governamentais, especialmente o alagamento das terras devido à construção das barragens ou a perda de área com a passagem do canal da transposição. A Relatoria fez então diversas recomendações aos órgãos públicos para a tomada de providências, tanto no sentido de cumprir promessas já feitas, especialmente a execução das “obras compensatórias” em comunidades quilombolas e projetos de assentamentos, como no sentido de paralisar obras que resultam em violações de direitos dessas comunidades. No início de 2011, a Relatoria fez o lançamento do relatório no estado, resultando em uma série de atividades em Petrolina e Recife. Essas atividades foram marcadas por incidências no Ministério Público e Assembleia Legislativa, por exemplo, bem como por mobilização das entidades e movimentos do estado e uma boa repercussão e várias denúncias na imprensa local e estadual.

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Referências BANCO Mundial. Rising global interest in farmland: Can it yield sustainable and equitable benefits? Washington, setembro, 2010. HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo, Edições Loyola, 2004. SAUER, Sérgio e SILVA Jr., Gladstone Leonel da. Violações de direitos humanos aos povos da terra indígena Maró no oeste do estado do Pará, Santarém/Brasília, Plataforma Dhesca e Terra de Direitos, outubro de 2011 (mimeo). SAUER, Sérgio e FLORÊNCIO, Jackeline. Relatório da missão ao sertão do São Francisco: Violações de direitos humanos de comunidades quilombolas, povos indígenas e famílias assentadas às margens do Rio São Francisco. Brasília, Plataforma Dhesca e Terra de Direitos, 2010 (mimeo). SAUER, Sérgio e MACHADO, Diego Donizetti G. Violações de direitos humanos a comunidades tradicionais em Santarém: Quilombolas, indígenas e ribeirinhos. Santarém/Brasília, Plataforma Dhesca, junho de 2010 (mimeo). SAUER, Sérgio. Demanda mundial por terras: “land grabbing” ou oportunidade de negócios no Brasil? Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas. Brasília, CEPPAC/UnB – available at www.repacm.org. TOULMIN, Camilla; SAUER, Sergio; BORRAS Jr, Saturnino; BINDRABAN, Prem; MWANGI, Esther. Land tenure and international investments in agriculture. Relatório do Painel de Especialistas em Segurança Alimentar. Comitê Mundial de Segurança Alimentar e Nutricional, FAO, Roma, 2011.

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Entrevista Cleber Folgado

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esde 2008, o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, com uma estimativa de arrecadação em torno de R$ 7 bilhões7 com as vendas dos defensivos para 2011. Em termos de uso, já é mais de um bilhão de litros de agrotóxicos nas lavouras, o que significa 5,2 litros por brasileiro ao ano. Os impactos são tão pulverizados quanto o próprio veneno. Já são conhecidas as contaminações em rios, lavouras orgânicas e até mesmo de leite materno. O uso de agrotóxicos e a agroecologia como modelo viável para a agricultura brasileira são dois dos principais temas de trabalho da Campanha Permanente contra Agrotóxicos e pela Vida. Por onde passa, a Campanha encontra pessoas interessadas no assunto, reunidas em auditórios lotados e organizadas em comitês locais de atuação. O desafio é dialogar sobre o modelo de sociedade, a partir de um tema de interesse constante pela população brasileira. Sobre isso, Cléber Folgado, coordenador da Secretaria Operativa Nacional da Campanha, conversou conosco para falar sobre a campanha. Como se organiza a campanha e de que forma ela está chegando nos estados e nas pessoas? A campanha é composta por um conjunto de mais de 30 organizações nacionais e se organiza por comitês locais, coordenações estaduais e coordenação nacional. Para além disso, construímos eixos de atuação que por sua vez têm tarefas específicas. Tais eixos são: Iniciativas com a sociedade; Iniciativas com a base social das organizações que compõem a campanha; Iniciativas com formação e profissionais da área da saúde e educação; Iniciativas no campo jurídico e legislativo. Diante desses eixos prioritários de atuação, a campanha vai chegando de diferentes formas nos estados e nas pessoas, pois cada organização e/ou comitê busca o que mais possibilita somar naquela região e envolver o máximo de pessoas e organizações. Sendo assim, temos visto a realização de encontros, seminários, debate em escolas, universidades, igrejas, audiências públicas, panfletagens, debates em rádios e outros, como forma de levar a campanha à população. A produção do filme O veneno está na mesa, em parceria com o cineasta Silvio Tendler, possibilitou a divulgação massiva da campanha e o debate em relação à problemática gerada pelos agrotóxicos, pois com esse material fizemos várias sessões de lançamento do filme, nos diversos estados, com a presença do próprio Silvio, nas quais posteriormente se realizavam debates e buscavam-se formas de ir consolidando comitês da campanha.

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Dados do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Agrícola (Sindag).

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Por que a Via Campesina decidiu priorizar essa pauta política, engajando-se na campanha contra os agrotóxicos? Na verdade essa não é uma temática nova para a Via Campesina, pois as organizações já fazem enfrentamento e oposição à questão dos agrotóxicos há vários anos. No entanto a construção dessa campanha pela Via Campesina e o conjunto de organizações que faz parte dela recoloca o tema de qual modelo de agricultura queremos para o país, pois os agrotóxicos são hoje um dos principais pilares do agronegócio, que por sua vez produz commodities de acordo com os interesses do mercado internacional e não de acordo com a necessidade de produção de comida para o país. Podemos comprovar isso olhando para os dados, por exemplo, temos um PIB agrícola de 205 bilhões de reais. Destes, 147 bilhões são controlados pelo agronegócio e as empresas transnacionais, no entanto estão concentrados em apenas cinco culturas: soja, cana, milho, café e laranja. Nenhuma dessas é fundamental para os hábitos alimentares do povo brasileiro. Por outro lado, temos a agricultura camponesa e familiar com um PIB de R$ 57 bilhões, ou seja, equivalente a 28% do total, que por sua vez produz as 15 principais culturas do mercado interno e do alimento que o povo brasileiro consome. Para além dessas questões, ainda podíamos agregar que os agrotóxicos são um problema de saúde pública e que, portanto, tal tema deve ser tratado pelo conjunto da sociedade. Diante disso podemos afirmar que é pela necessidade de mudança do atual modelo agrícola e pela sua relação com os agrotóxicos que priorizamos nosso engajamento na campanha contra os agrotóxicos. Sem o agrotóxico, grande parte da produção do agronegócio ficaria inviabilizado. Qual a proposta da Via quanto ao modelo que a agricultura brasileira deveria seguir? Vimos trabalhando ao longo dos anos uma proposta de modelo de agricultura que implica em Reforma Agrária, em produção de comida sem agrotóxicos (venenos), de forma diversificada e que tenha como horizonte atender ao mercado local. A esta proposta chamamos de Agroecologia, que por sua vez aponta para a construção da Soberania Alimentar, ou seja, leva em consideração a qualidade dos alimentos, a condição de vida daqueles que produzem e consomem esses alimentos, a relação harmônica entre produção de alimentos e meio ambiente, etc. Seguir investindo no atual modelo de agricultura é seguir levando o país à dependência dos agrotóxicos e das transnacionais. Portanto, se faz necessário mudar o atual modelo de agricultura, que por sua vez destrói o planeta e os seres humanos, pois o agronegócio está preocupado com o lucro das empresas, e não em resolver o problema da fome no mundo como havia prometido a revolução verde, quando transformou os restos de armas químicas em insumos para a agricultura. Vemos hoje que existem alimentos sobrando no mundo, enquanto que para cada 7 pessoas no planeta 1 passa fome, segundo dados da FAO. Hoje já são inúmeras as experiências de produção agroecológica que temos espalhadas pelo Brasil afora, e que demonstram na prática a sua viabilidade econômica e produtiva. Diante disso exigimos que o governo construa uma política pública séria de transição para a agroecologia, pois assim como na década de 60 e 70, quando o Estado colocou dinheiro para a adoção dos pacotes (insumos, sementes, venenos, fertilizantes, etc.) da chamada revolução

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verde, é obrigação do Estado, hoje, possibilitar condições para que as famílias camponesas possam fazer o processo de transição à agroecologia. Como convencer o camponês a substituir os agrotóxicos por outros insumos orgânicos? Grande parte dos camponeses já está convencida da necessidade de substituir os venenos por outras formas alternativas que não prejudiquem o meio ambiente e nem a si mesmos. No entanto, a dificuldade está nas condições dadas para a substituição. Exemplo disso é a falta de políticas públicas que possam ajudar no processo de transição para a agroecologia quando, por outro lado, temos todo o investimento para que sigam produzindo de forma dependente dos venenos; hoje para se ter uma ideia, o camponês que quer ter acesso a um crédito para investir na produção (como é o caso do Pronaf) é obrigado a adquirir todo o pacote com seus insumos (sementes, fertilizantes, agrotóxicos, etc.) e isso é o que impossibilita a maior adesão por parte dos camponeses às formas alternativas de produção. No entanto, nos cabe lembrar que segundo os dados do governo em seu último censo agropecuário, 75% das pequenas propriedades não usam agrotóxicos, isso nos possibilita afirmar que de fato o principal responsável pelo país ocupar o título de maior consumidor de agrotóxicos do mundo é o agronegócio. Como vê o mercado dos agrotóxicos atualmente, com relação à presença das multinacionais no país? O mercado de agrotóxicos é monopolizado por apenas seis transnacionais, são elas Basf, Bayer, Monsanto, Syngenta, Dow e Dupont. Juntas essas empresas, em 2010, tiveram 67% de participação no mercado mundial de agrotóxicos e, se somarmos as outras sete maiores empresas, veremos que 90% do mercado mundial de agrotóxicos se concentra nas mãos de 13 empresas transnacionais. Do ponto de vista econômico, essas empresas lucraram 7,3 bilhões de dólares em 2010, e estima-se que em 2011 tenham chegado a 8,2 bilhões de dólares. Além disso, tais empresas têm muitos benefícios. Por exemplo, para se registrar um novo ingrediente ativo nos EUA o custo é de 630 mil dólares, já aqui esse valor varia de 53 dólares a mil dólares, ou seja, é muito barato registrar agrotóxicos no país, sem contar a isenção da taxa de manutenção anual e a isenção de impostos que varia de 60% a 100% e a não necessidade de gasto com reavaliação, uma vez que o produto sendo registrado este registro vale eternamente, diferentemente do caso dos medicamentos que a cada cinco anos devem passar por um processo de reavaliação. É por esses motivos que dizemos que a produção e comercialização de agrotóxicos são um elemento central na luta contra as transnacionais, pois, em síntese, são elas as responsáveis pelo envenenamento das pessoas e do planeta, e são elas que ficam com o lucro privado em decorrência do prejuízo social. A campanha contra os agrotóxicos ajudaria aliar a pauta camponesa à dos centros urbanos? Sem sombra de dúvida, e o exemplo mais claro disso é a própria composição atual da campanha, que conta com organizações estudantis, movimentos sociais do campo e da cidade, sindicatos e centrais sindicais, ONGs ambientalistas, pesquisadores, médicos e

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professores, etc. Além do mais, os elementos que a campanha traz para o debate não estão ligados somente às questões camponesas, pois ao questionar os agrotóxicos estamos levantando a pauta da saúde, a pauta da questão ambiental e os problemas climáticos que atingem os centros urbanos, a questão do direito à alimentação de qualidade, etc. Ainda em relação à saúde temos visto o aumento do índice de cânceres e já existem pesquisas que apontam a estreita relação dos agrotóxicos (seja na aplicação ou em seus resíduos presentes nos alimentos) e a questão do câncer. Penso que a campanha tem um enorme potencial de articulação entre as diferentes forças sociais e a sociedade em seu conjunto, e é por isso que para o próximo período vamos intensificar a construção dos comitês locais e a realização de atividades que possam envolver o máximo de organizações e a sociedade. No fim de outubro de 2011, a CLOC e Via Campesina fizeram o lançamento da mesma campanha no continente, durante a realização do III Encontro Internacional de Agroecologia e Agricultura Sustentável, em Cuba. Isso demonstra a capacidade aglutinadora e o potencial mobilizador que tem a campanha contra os agrotóxicos e pela vida.

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Relatorias Nacionais em Direitos Humanos e as dimensões de gênero e raça na sociedade brasileira Olhar as desigualdades sociais e violações de direitos humanos a partir do recorte de gênero e raça na atuação das Relatorias Nacionais foi uma das diretrizes encampadas pela Plataforma Dhesca Brasil no período de 2009 a 2011. A leitura é de que “ser mulher, ser negro, ser mulher negra implica em ocupar determinados lugares e posições sociais em que se torna impossível o exercício efetivo e verdadeiro da cidadania”.

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Plataforma Dhesca Brasil, através das Relatorias Nacionais em Direitos Humanos, intervém nos contextos de violação de direitos, alcançando o campo das desigualdades sociais e exigindo a garantia dos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais, ainda distante de ser efetivada no país. Esse posicionamento político alinha-se com os princípios da integralidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, já reafirmados na Conferência Mundial de Direitos Humanos, Viena, em 1993. Tal intencionalidade, juntamente com um processo de avaliação do projeto Relatorias Nacionais em Direitos Humanos, resultou na incorporação das dimensões de gênero e raça nas diferentes ações de incidência política das Relatorias Nacionais. O processo de constituição das Relatorias, no ano de 2009, incluindo a eleição de relatoras e relatores, e a opção pelos contextos de violações de direitos a serem abordados, levou em consideração a conjuntura nacional de grave ameaça de retrocesso de avanços conquistados no campo da saúde sexual e reprodutiva das mulheres e de um incremento das práticas discriminatórias com base no pertencimento racial, que já vinham sendo focadas por uma das Relatorias. A orientação para incorporar gênero e raça no trabalho das Relatorias significa assumir

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Seminário sobre Gênero e Raça, realizado pela Plataforma Dhesca Brasil, em agosto de 2010

o reconhecimento de que essas dimensões são estruturantes das desigualdades sociais e determinam a subordinação vivida concretamente pelas mulheres e pela população negra brasileiras. Ser mulher, ser negro, ser mulher negra implica em ocupar determinados lugares e posições sociais em que se torna impossível o exercício efetivo e verdadeiro da cidadania. O entendimento das desigualdades de gênero passa pela compreensão desse conceito, que nasceu como uma categoria de análise nos estudos feministas que criticavam as abordagens que justificavam as desigualdades de poder entre mulheres e homens a partir das diferenças na anatomia sexual. O conceito contesta um suposto “alicerce biologicamente determinado” que “justifica” a relação hierárquica entre mulheres e homens reservando às mulheres a condição de “ser reprodutivo” e a posição de “ser inferior ao homem” (SCOTT, 1991; HEILBORN & SORJ, 2002). A dimensão de gênero surgiu como forma de significar relações de poder, atribuindo discursivamente o significado do que é inferior e destinado ao mundo privado como feminino, e o oposto, isto é, superioridade e vida pública como atributos masculinos. A reprodução de tal discurso acaba conferindo um caráter de naturalidade ao que é socialmente construído. Para aprofundar a compreensão sobre raça, é necessário não perder de vista que esse conceito se sustenta pela existência do racismo enquanto ideologia que influencia a forma como a riqueza e o poder se distribuem na sociedade. Segundo Guimarães, a realidade das raças limita-se ao mundo social e, portanto, o racismo é uma forma específica de naturalizar a vida social, explicando diferenças pessoais, sociais e culturais a partir de diferenças atribuídas à biologia. Racismo é aqui entendido como uma ideologia e prática que utiliza critérios de raça para discriminar, segregar e oprimir, hierarquizando diferenças raciais e étnicas na crença da existência de uma raça superior e discriminação racial como a atitude ou ação de distinguir e separar os grupos humanos (as raças), tendo por base ideias preconceituosas.

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Assim, o debate sobre a pertinência analítica da categoria raça emerge com particular tensão. Por um lado, pensadores pautados nos conhecimentos da inexistência de diferentes raças do ponto de vista biológico preconizam a não cientificidade do conceito, enquanto outros, compreendendo o seu caráter político, defendem a apropriada utilização. Raça, tomada como um conceito eminentemente político e socialmente construído, permite evidenciar a existência de desigualdades ligadas à distribuição e acesso a equipamentos sociais como serviços de saúde, educação escolar, mercado de trabalho e às desvantagens geradas por condutas discriminatórias que ocorrem ao longo da vida da população negra. A luta para o enfrentamento do racismo tem uma longa história de articulações internacionais que unem ativistas e políticos de diferentes áreas de atuação. No período pós-guerra, ganharam força movimentos que defendiam o combate ao racismo como elemento essencial da luta por direitos humanos. Nos Estados Unidos, foram os anos heróicos da mobilização pelo fim da segregação racial no Sul, que culminou, em 1964, com a Lei dos Direitos Civis. Protagonizada por importantes lideranças negras como Angela Davis, Malcom X, Martin Luther King, essa conquista teve a participação de mulheres e homens de diferentes pertencimentos raciais. Nos continentes africano e asiático, a luta pela descolonização assistiu a desconstituição de impérios coloniais europeus até a década de 1970. (IBASE, 2007) Desde o final da década de 1990 vêm sendo produzidos e publicados diversos estudos que revelam prejuízos nas condições de vida da maioria das mulheres e da população negra brasileira, manifestando as profundas desigualdades entre negros e brancos e entre mulheres e homens, dentro de uma mesma classe social, evidenciando os efeitos do racismo e do sexismo que impedem essas populações de acessar bens de consumo, serviços e direitos. Autoras e autores da teoria da justiça (PORTO, GIRALDES, RAWLS, 1995) apontam a necessidade de incorporar interesses coletivos e específicos na formulação de políticas públicas de distribuição quando o objetivo é a diminuição das desigualdades, inclusive defendendo uma discriminação positiva em favor dos menos favorecidos. Os direitos humanos das mulheres vêm sendo afirmados desde a inauguração do ciclo de conferências da ONU, na década de 90, que se iniciou com a Conferência de Direitos Humanos de Viena em 1993, seguida das Conferências do Cairo em 94, Beijing 95 e Copenhague 95. Após a realização dessas, processos de monitoramento se seguiram para a avaliação e acompanhamento dos planos de ação das conferências. O Estado brasileiro ratificou os principais tratados internacionais de direitos humanos no âmbito das Nações Unidas que podem ser aplicados para o contexto dos direitos das mulheres. Entre eles, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, a Convenção sobre a Tortura. Os principais tratados internacionais de direitos humanos do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos também foram ratificados pelo Brasil: a Convenção Americana de Direitos Humanos, a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, a Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – Protocolo San Salvador,

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tendo também reconhecido a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e Regras Mínimas para Tratamento de Prisioneiros. (ARAUJO e SIMONETTI, 2010). O Brasil também é signatário da Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, realizada em Durban, África do Sul, em 2001, quando os Estados reunidos reconheceram o racismo como um crime que lesa a humanidade. Ao tornar-se signatário desses tratados internacionais de direitos humanos, o Estado brasileiro assume o compromisso perante a comunidade internacional de realizar esforços para a implementação no seu território. Nesse sentido, os governos devem assegurar que suas leis, políticas e práticas não estejam em conflito e reflitam os compromissos assumidos internacionalmente de respeitar, proteger e assegurar a plena realização dos direitos humanos, como o direito à vida, à saúde, à liberdade e segurança da pessoa, dentre outros. Como realça Norberto Bobbio, os direitos humanos não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas. Para Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução. Refletem um construído axiológico, a partir de um espaço simbólico de luta e ação social. Contudo, ainda que o Brasil seja signatário de tratados e convenções antidiscriminatórias e contar com marcos jurídicos nacionais contrários ao racismo, sexismo e a outras formas de discriminação, as desigualdades e iniquidades no acesso à saúde, à educação, ao trabalho, à renda ainda acontecem entre homens e mulheres e entre brancos e negros. Assim, incorporar gênero e raça na intervenção das Relatorias Nacionais em Direitos Humanos tornou-se imprescindível. A verificação dessas dimensões nos contextos de violações de direitos observados também passa a ser um instrumento de exigibilidade de direitos da população negra e de mulheres brasileiras.

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Referências ARAUJO, M. J. de O. e SIMONETTI, M.C.M. Relatoria do Direito à Saúde Sexual e Reprodutiva. Direitos humanos, gênero e raça. (texto enviado para publicação). GIRALDES, M. R. (1995). Distribuição de recursos num sistema público de saúde. In: Piola, S. F. e Vianna, S. M. (Orgs.). Economia da saúde: Conceitos e contribuição para a gestão da saúde. Brasília, DF: IPEA. GUIMARÃES, A. S. A. Racismo e anti-racismo no Brasil. 34. ed. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo, 1999. HEILBORN, M. L.; SORJ, B. Estudos de gênero no Brasil. In: MICELI, S. (Org.). O que ler na sociologia brasileira (1970 – 1995). Sociologia 2. São Paulo: Editora Sumaré: ANPOCS; Brasília, DF: CAPES, 2ª. edição. 2002. IBASE. Democracia, desenvolvimento e direitos. Um debate sobre desafios e alternativas. RJ, 2007. OLIVEIRA, M. L. P. de; MENEGHEL, S. N.; BERNARDES, J. de S. Modos de subjetivação de mulheres negras: Efeitos da discriminação racial. Psicol. Soc. Florianópolis, v. 21, n. 2, ago. 2009. PORTO, S. M. (1995). Justiça social, equidade e necessidade em saúde. In: Piola, S. F. e Vianna, S. M. (Orgs.). Economia da saúde: conceitos e contribuição para a gestão da saúde. Brasília, DF: IPEA. RAWL, S. J. Uma teoria da justiça. (2a ed.). São Paulo: Martins Fontes. 2002. SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. 1991. Disponível em: http://www.dhnet.org.br /direitos/textos/generodh/gen_categoria.html. Acesso em 14 mai 2005.

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Anotações

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