A montagem da América do Sul

Page 1

Outubro 2011 Nº 188 R$ 9,50 ■

A montagem da

América pesquisa fapesp

do

Sul O quebra-cabeça do continente se fez com rochas de diferentes épocas

Entrevista

Luiz Felipe de Alencastro Uma outra história do Brasil

A dieta de Luzio, o homem pré-histórico do Vale do Ribeira

Motor flex para avião pode reduzir a poluição do ar


Luciana Benjamim Benatti / André Luiz Gaglioti / Instituto de Botânica

imagem do mês

Micromistérios

vegetais Ao examinar as folhas da planta Myriocarpa stipitata por meio de um microscópio eletrônico de varredura, o grupo de Sergio Romaniuc Neto, do Instituto de Botânica, descobriu mais do que minúsculos “pelos” ou tricomas. As estruturas semelhantes a ramos encaroçados são tricomas simples verrugosos, encontrados pela primeira vez nesse gênero da família das urtigas. Em processo de serem descritos, ainda não se conhece sua função. Uma está descartada: essa espécie não causa ardor nem coceira. A imagem integra a exposição A descoberta do invisível, em cartaz no Jardim Botânico paulistano até 31 de dezembro.

PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

3


188 |

outubro 2011

seções 3 IMAGEM DO MÊS 6 CARTAS 7 CARTA Da EDITORa 8 MEMÓRIA 24 ESTRATÉGIAS 42 LABORATÓRIO 64 LINHA DE PRODUÇÃO 94 RESENHA 96 ficção 98 CLASSIFICADOS

18

44

WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

política científica e tecnológica

ciência

28 cultura científica

44 arqueologia

ENTREVISTA 10 Historiador Luiz Felipe de Alencastro propõe que a formação do país se deu fora de seu território, modulada por relações econômicas com a África

capa 18 Gigantescos blocos de rochas com idades e origens variadas formaram a América do Sul, que ainda se move

CapA Chapada dos veadeiros/ Lalo de almeida

Atrair a atenção do público é o grande desafio para os satisfeitos jornalistas de ciência

36 ética Lançado código para

preservar a integridade da pesquisa científica

38 história v 32 Cienciometria

Estudo evidencia o grau de exposição dos artigos brasileiros

35 comemoração Wilson Center promove simpósio sobre a ciência brasileira em evento que marca os 50 anos da FAPESP

Investimento contínuo ajudou astrônomos e astrofísicos a produzir ciência de nível internacional

Homem pré-histórico mais antigo encontrado em São Paulo morava em beira de rio há 10 mil anos, mas quase não comia peixe

48 paleobotânica Floresta de coníferas ocupou ambiente seco e arenoso na era dos dinossauros

51 biologia celular

Trypanosoma cruzi põe as células para funcionar a seu favor


55

66

78

tecnologia 55 ano internacional da química

Feijão transgênico desenvolvido pela Embrapa é imune à doença mosaico dourado

humanidades

66 Engenharia civil

72 Ambiente

84 sociologia

Ciência de ponta busca soluções para doenças tropicais negligenciadas

60 organismos modificados

Construções de concreto mais resistentes ao tempo também suportam bem o fogo

Centro da Via Láctea pode ter duas barras que se cruzam

O fim do reservatório de gasolina em carros flex é uma das novidades para diminuir os gases do efeito estufa

76 Alimentos

Descargas elétricas aplicadas em pastilhas para sensores geram produtos mais robustos

Revestimento orgânico protege frutas, legumes e carnes

78 Arqueometria Diagnóstico por imagem traz à tona detalhes ocultos de quadros e obras de arte

Em crise, umbanda mantém poder cultural de inclusão

90 psicologia

70 Química

62 astrofísica

84

Namorados adolescentes usam violência como forma de comunicação


fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo

empresa que apoia a ciência brasileira

Celso Lafer

Presidente eduardo moacyr krieger

vice-Presidente

Conselho Superior Celso Lafer, eduardo moacyr krieger, Horácio Lafer Piva, herman jacobus cornelis voorwald, Maria josé soares mendes giannini, josé de souza martins, JOSÉ TADEU JORGE, Luiz gonzaga belluzzo, sedi hirano, Suely Vilela Sampaio, Vahan Agopyan, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo Ricardo Renzo Brentani

Diretor Presidente

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ

Diretor Científico

Joaquim J. de Camargo Engler

Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos henrique de brito cruz (presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Arana Varela, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Mariza Corrêa, Maurício Tuffani, Monica Teixeira comitê científico LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (presidente), cylon gonçalves da silva, FRANCISCO ANTôNIO BEZERRA COUTINHO, joão furtado, Joaquim J. de Camargo Engler, josé roberto parra, luís augusto barbosa cortez, luis fernandeZ lopez, marie-anne van sluys, mário josé abdalla saad, PAULA MONTERO, Ricardo Renzo Brentani, sérgio queiroz, wagner do amaral, Walter Colli Coordenador científico luiz henrique lopes dos santos

Diretora de redação mariluce moura editor chefe neldson marcolin Editores executivos Carlos Haag (humanidades), fabrício marques (POLÍTICA), Marcos de Oliveira (Tecnologia), maria guimarães (edição on-line), Ricardo Zorzetto (Ciência) editores especiais Carlos Fioravanti, Marcos Pivetta Editoras assistentes Dinorah Ereno, Isis Nóbile Diniz (edição on-line) revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro editora de arte Laura daviña e Mayumi okuyama (coordenação) ARTE ana paula campos, maria cecilia felli fotógrafo eduardo cesar Colaboradores Ana Lima, André Serradas (banco de imagens), Caeto Melo, Catarina Bessell, Evanildo da Silveira, Daniel das Neves, Guilherme Lepca, João Filho, Juliana C. Silva, Leo Ramos, Marcelo Cipis, Márcia Minillo, Márcio Ferrari, Pedro Hamdan, Samuel Iavelberg e Yuri Vasconcelos

É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização

Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para assinar (11) 3038-1434 fapesp@acsolucoes.com.br

Para anunciar (11) 3087-4212 mpiliadis@fapesp.br Tiragem 39.200 exemplares

IMPRESSão distribuição Plural indústria gráfica Dinap

GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP RUA JOAQUIM ANTUNES, Nº 727 - 10º ANDAR, CEP 05415-012 PINHEIROS - São Paulo – SP FAPESP Rua Pio XI, nº 1.500, CEP 05468-901 Alto da Lapa – São Paulo – SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

instituto verificador de circulação

6

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

cartas cartas@fapesp.br

Programa espacial

Do twitter

Na reportagem a respeito da reestruturação da área espacial brasileira, esta revista deu demonstração clara de parcialidade e “tendencionismo”, quando deu tratamento unilateral e enfático à questão, quando existem outras importantes e especializadas figuras neste contexto e que, em sendo ouvidas, dariam à reportagem a idoneidade que se faz necessária ao tema. Lamentável.

Acabei de receber a @PesquisaFapesp com um artigo que é uma aula sobre hepatites. Levantamento do Ministério da Saúde traz informações importantes. @professor_leo (Leonardo Sokolnik )

Fernando Morais Santos Engenheiro do Inpe há 38 anos e presidente do SindCT, entidade sindical que representa os interesses dos servidores do Inpe e DCTA e das próprias instituições São José dos Campos, SP

Como é de costume nas secretarias do Inpe e DCTA, recebemos a revista da FAPESP mensalmente para leitura de todos. Foi com grande surpresa e constrangimento que constatei a parcialidade da matéria jornalística sobre a reestruturação da área espacial brasileira. Se uma revista científica quer tratar de um assunto tão polêmico, deveria dar oportunidade para outros especialistas da área apresentarem suas opiniões. Vitor Antonio Portezani Departamento de Geofísica Espacial - DGE Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - Inpe São José dos Campos, SP

Correção A foto do pesquisador Vitor Ferreira (acima), da Universidade Federal Fluminense, saiu trocada na reportagem “Sabores e perfumes” (edição 187). No seu lugar foi publicada a foto do professor Norberto Peporine Lopes, da Universidade de São Paulo. Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727 - 10º andar - CEP 05415-012 - Pinheiros São Paulo, SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.


carta da editora

O quebra-cabeça do hemisfério Sul Mariluce Moura - Diretora de Redação

C

riança ainda, eu tinha um especial apreço pelos mapas mais simples, visualmente limpos, e uma persistente antipatia por aqueles que me pareciam extremamente confusos e tão excessivos em seu volume de informação que me era impossível abarcá-los como uma unidade. Assim, eu apreciava os mapas políticos, por exemplo, o do Brasil, o da América do Sul e o dos Estados Unidos, com seus ângulos retos e estados quase quadrados, enquanto votava verdadeira ojeriza aos mapas do campo da geografia física, cheios das linhas desarrumadas e manchas irregulares de relevo e bacias hidrográficas. Lembro-me de ter decalcado com grande prazer, ali pelos 8 ou 9 anos de idade, um mapa de distribuição (precária àquela altura, imagino) das tribos indígenas do Brasil, porque a presença de gês, tapuias, tupis, guaranis, aimorés etc. era assinalada dentro do perfil do território brasileiro por cruzinhas, bolinhas, listras e outros padrões do gênero que tinham para mim um intenso gosto de brincadeira. Essas memórias me vêm enquanto olho uma prova da reportagem de capa desta edição, contemplo com gosto o mapa que ela traz da América do Sul, com áreas diversas marcadas em preto, azul, cinza, branco, alguns trechos riscadinhos, outros pontilhados, e constato o quanto são duradouras algumas percepções da infância inculta. É prazeroso olhar e ler esse mapa. Mas não pretendo ser injusta: são o próprio objeto e a qualidade primorosa da reportagem elaborada pelo editor especial Carlos Fioravanti, para além do mapa, que tornam saboroso esse conjunto de seis páginas escolhido para tema de capa da presente edição de Pesquisa FAPESP. Estamos aqui diante de estudos geológicos que convocam nossa imaginação para alcançar o passado remotíssimo da Terra e, ao mesmo tempo, oferecem preciosas provas empíricas na forma de pillow lavas, corpos de magma basálti-

co assemelhados a bolhas ou, como o nome sugere, a travesseiros, para alicerçar a montagem científica do quebra-cabeça geológico com peças de diferentes origens e épocas que resultaram na América do Sul. Vale a pena conferir a partir da página 18. Sugiro aos leitores dispensarem uma atenção especial também à reportagem sobre novos dados a respeito da dieta de Luzio, o habitante pré-histórico mais antigo (10 mil anos) encontrado no território paulista, em 2000, elaborada pelo editor especial Marcos Pivetta (página 44). Vale o mesmo para a reportagem de Carlos Haag, editor de humanidades, sobre a fragilização da umbanda entre as religiões no país, ainda que mantendo seu poder cultural de inclusão (página 84), e, em tecnologia, para a reportagem de Evanildo da Silveira sobre pesquisa que revelou que o concreto de alta resistência, ao contrário da convicção generalizada até aqui entre os engenheiros, não explode nem se degrada quando submetido a altas temperaturas. Ou seja, ele parece ser matéria-prima muito adequada para que construções resistam ao fogo eventual (página 66). Finalizo com outra bela entrada nos assuntos do hemisfério Sul. Ou melhor, do Atlântico Sul. Refiro-me à entrevista pingue-pongue do historiador Luiz Felipe de Alencastro, a partir da página 10, cujo ponto central é o quanto a formação do Brasil foi determinada pelas relações econômicas e políticas estabelecidas no Atlântico Sul, quer dizer, entre a América do Sul e a África desde o século XVI até o fim do tráfico escravista, já na segunda metade do século XIX. Sua fala é fascinante, entre outras razões, porque se afastando, embasado em farta documentação, do tradicional eixo vertical, das relações Norte-Sul, para abordar a formação histórica do Brasil, ele narra uma ainda mal conhecida história sobre nós mesmos. Boa leitura! PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

7


memória

Entre aves na floresta A ornitóloga Emilia Snethlage realizou pesquisas pioneiras na Amazônia no início do século XX

ARQUIVO PESSOAL DA FAMÍLIA SNETHLAGE

Neldson Marcolin

A

zoóloga alemã Emilia Snethlage aportou em Belém em 1905 para trabalhar no Museu Goeldi e, de cara, começou fazendo história. Foi a primeira servidora mulher contratada pelo estado do Pará e pelo museu, a convite do então diretor suíço Emílio Goeldi. Em 1909 realizou a travessia de uma região desconhecida a pé, entre os rios Xingu e Tapajós, na Amazônia, acompanhada apenas por guias índios. Dirigiu o Museu Goeldi por duas vezes. Antes, fora uma das primeiras alemãs a frequentar uma universidade, em Berlim. Com esse perfil, não é difícil imaginá-la no meio da mata carregando no ombro uma espingarda de caça e nas mãos o caderno de notas, sempre com os olhos postos na folhagem das árvores, observando aves. “O seu Catálogo de aves amazônicas, publicado em 1914, é um trabalho minucioso que se tornou referência obrigatória para todos os ornitólogos nas décadas seguintes”, diz Miriam Junghans, historiadora da ciência, doutoranda da Fundação Oswaldo Cruz e estudiosa do tema.

8

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188


Ilustração de pássaro que consta no Catálogo de aves amazônicas e Emilia (em pé), no Museu Goeldi (sem data)

Coleção Fotográfica / Arquivo Guilherme de La Penha / MPEG / MCTI

À esquerda, Emilia e sua espingarda com dois guias durante pesquisa de campo. Abaixo, a pesquisadora com funcionário do museu e macaco (sem data)

Emilia Snethlage era natural de Brandemburgo, perto de Berlim. Aos 21 anos passou a educar crianças em casas na Alemanha, Inglaterra e Irlanda. Mas, aos 31 anos, mudou de rumo e ingressou no curso de história natural da Universidade de Berlim. O dinheiro pode ter vindo de suas economias feitas durante 10 anos, ou de uma pequena herança que teria recebido na época, segundo Miriam. Emilia também estudou em Jena e Freiburg, onde se doutorou em 1904. Na volta a Berlim, trabalhou como assistente de zoologia do ornitólogo Anton Reichenow, decano do Museu de História Natural. Foi por seu intermédio que ela soube da procura de Emílio

Biogeografia das aves da Amazônia foi seu estudo mais original Goeldi por alguém com formação em ciências naturais – especialidade ainda inexistente no Brasil – e com domínio da língua alemã. Emilia tinha 37 anos e a provável perspectiva de passar a carreira toda como pesquisadora assistente em museus da Alemanha. Já na Amazônia, ela estaria sempre em campo, faria diferença como cientista e poderia continuar ligada às instituições, periódicos e especialistas europeus por meio de correspondência e viagens ocasionais. No Museu Goeldi, Emilia começou como assistente de Emílio Goeldi, que a orientou na pesquisa sobre aves. “Ela continuou o projeto iniciado por ele em 1900. Goeldi retornou à Suíça em 1907 e Emilia assumiu a chefia da seção de zoologia; em 1914 publicou o Catálogo de aves amazônicas”, diz Nelson Sanjad, pesquisador de história da ciência do Museu Goeldi. “Mas seu trabalho realmente original foram os primeiros estudos sobre a biogeografia de

aves, em que mostrava a distribuição geográfica delas na Amazônia.” Em 1909 ela percorreu por quatro meses a zona entre os rios Xingu e Tapajós na companhia de sete índios Kuruaya – quatro homens e três mulheres. A aventura exploratória – feita em meio a ataques de malária – derrubou uma hipótese antiga de que haveria uma comunicação hidrográfica entre os dois rios, resultou na coleta de espécimes botânicos e zoológicos, além de levantamentos etnográficos. Depois de 1914, ela foi duas vezes diretora do museu em um período marcado pela Primeira Guerra Mundial e pela falta de dinheiro e de apoio para a instituição. Por ser alemã, sofreu hostilidades e foi afastada da direção nas duas ocasiões. Em 1922 se transferiu para o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, e continuou a percorrer as matas brasileiras até 1929, quando morreu de um ataque cardíaco em Porto Velho. Tinha 61 anos. Nunca se casou nem teve filhos. “Emilia Snethlage viveu apenas para sua ciência e demonstrava ser ascética. Mas isso não quer dizer que fosse triste. Nos seus relatos percebe-se sua alegria quando escrevia sobre as aves e os índios”, conclui Miriam Junghans.

PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

9


entrevista

Luiz Felipe de Alencastro

O observador do Brasil no Atlântico Sul Historiador propõe que formação do país se deu fora de seu território, modulada por relações econômicas com a África

U

ma outra história, uma visão da formação do país muito diversa daquela que nos foi contada nos bancos escolares e cujos mitos carregamos pela vida afora, emerge da leitura de O trato dos viventes: formação do Brasil nos séculos XVI e XVII, publicado em 2000 pela Companhia das Letras. O ponto central dessa história é certamente a visão de que as raízes desta nação encontram-se, não em seu próprio território, mas num espaço transcontinental, luso-brasileiro e luso-africano, fortemente sustentado por uma zona econômica formada pelo Brasil e por Angola que se mantém do século XVI até a efetiva extinção do tráfico negreiro em 1850. A força dessa relação econômica com a África já era patente, aliás, para o Padre Antonio Vieira, que, em obra citada pelo autor do livro, Luiz Felipe de Alencastro (p. 232), observa que o Brasil “vive e se sustenta” de Angola, “podendo-se com muita razão dizer que o Brasil tem o corpo na América e a alma na África”. Alencastro, historiador e cientista político, 65 anos, a par de oferecer neste livro, central em seu trajeto intelectual, reflexões embasadas em farta do­ cumentação para que se possa repensar a formação do Brasil fora do olhar simplista da dominação Norte-Sul e das lutas só no interior da colônia – dando um novo peso às expedições luso-brasílicas que partem do Brasil para a África no século XVII –, o faz valendo-se de uma narrativa excepcionalmente rica. Seu domínio nesse campo lhe permite entremear as variáveis históricas de longa duração sobre as quais

10

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

se move, recorrendo quando necessário inclusive a outras disciplinas, com fatos contados em ritmo de aventura e micro-histórias individuais relatadas em minúcias instigantes. O projeto completo de Alencastro de repensar a formação do Brasil inclui mais dois livros em curso, capazes de estender sua visão até 1940. Afinal, como ele diz na conclusão de O trato dos viventes, para apreender a formação do Brasil “nos seus prolongamentos internos e externos”, há que se considerar que “de 1550 a 1930 o mercado de trabalho está desterritorializado: o contingente principal da mão de obra nasce e cresce fora do território colonial e nacional”. Professor titular da cátedra de história do Brasil na Universidade de Sorbonne, em Paris, profissional com formação e longa vivência na França, para onde foi a primeira vez empurrado da Universidade de Brasília (UnB), estudante de graduação ainda, pelo clima ameaçador que a ditadura instalara no país em 1964, Alencastro teve um período brasileiro de trabalho, de 1986 a 1999. Foi nesse intervalo professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Atualmente, uma vez por ano ele vem ao país como professor visitante da Escola de Economia da FGV de São Paulo e planeja seu retorno definitivo em 2014. A seguir, os trechos principais de sua entrevista, uma empolgante contação de histórias sobre sua produção, seu trajeto intelectual e pessoal (uma versão mais completa está em www. revistapesquisa.fapesp.br).

fotos eduardo cesar

Mariluce Moura


nononononononononoo

PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

11


■■Eu queria começar por sua visão de que o país se forma fora de seu território. —— Bom, como eu cheguei a isso? Estava fazendo uma tese de doutorado com Frédéric Mauro. Ele era discípulo de Fernand Braudel, que liderava um grupo de historiadores que trabalhavam na perspectiva de uma história global, tanto na questão do espaço, que era a Europa nas relações com os países não europeus, como também no aspecto transdisciplinar, envolvendo a geografia, a economia, a demografia e outras ciências. ■■Isso aconteceu quando? ——O debate sobre essas perspectivas globais era dos anos 1950, 1960. Também participavam dessas discussões o historiador francês Pierre Chaunu e o português Vitorino Magalhães Godinho. Eu cheguei na França no final dos 60 e isso fez muito a minha cabeça, no sentido de que o Brasil nessa perspectiva não queria dizer grande coisa em si. Até porque nem existia Brasil no começo dessa história. Existiam o Peru e o México, no contexto pré-colombiano, mas Argentina, Brasil, Chile, Estados Unidos, Canadá, não. No que seria o Brasil, havia gente no norte, no Rio, depois no sul, mas toda essa gente tinha pouca relação entre si até meados do século XVIII. E há aí a questão da navegação marítima, torna-se importante aprender bem história marítima, que é ligada à geografia. Frédéric Mauro trabalhava nessa perspectiva, por exemplo, com o vice-reino da Nova Espanha e de Vera Cruz, que englobava não só a América Central e o México, mas também as Filipinas. Essa compreensão me deu muita liberdade para ver as relações que Rio, Pernambuco e Bahia tinham com Luanda. Depois a Bahia tem muito mais relação também com o antigo Daomé, hoje Benin, na Costa da Mina. Isso formava um todo, muito mais do que o Brasil ou a América portuguesa. Porque o Estado do Grão-Pará e Maranhão, isto é, todo o território do Rio Grande do Norte para cima, estava completamente isolado de Pernambuco, Bahia, Rio etc. ■■Aliás, em O trato dos viventes você deixa patente o quanto era difícil navegar dessa parte do Brasil em direção àquele pedaço do norte. 12

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

Saber sobre as rotas de navegação é básico para entender as relações do Brasil colonial com o exterior e entre uma parte e outra do litoral

——É, exatamente, tinha que se fazer a navegação via Lisboa. Eu dou vários exemplos dessa dificuldade: Raposo Tavares e os 1.200 paulistas de sua bandeira saem por esse sertão afora em 1648 e vão chegar a Belém em 1651. É uma das maiores marchas por terra daquela época. Vão até parte da Bolívia, depois sobem pelos rios, chegam em Belém, mas para voltar a São Paulo tiveram que ir a Lisboa porque não tinha navio que viesse para baixo com a correnteza que vai para o norte, a partir do Rio Grande do Norte, e os ventos que sopram para o norte ou para leste e oeste. Se tentassem, o barco os levaria para a Guiana. Inversamente, era bastante fácil ir a Luanda e ao Daomé saindo da costa brasileira abaixo de Pernambuco porque os ventos e as correntes eram favoráveis, tinha navegação disponível e isso teve influência até numa reorganização das dioceses. Depois do período filipino, a Espanha pressionou o papa para não reconhecer o Portugal dos Bragança e aquilo se arrastou até 1669. Bispos morriam e não eram renovados, dioceses ficavam abandonadas. Na reorganização, fizeram uma nova diocese no Maranhão e ela dependia do arcebispado de Lisboa. Criaram o arcebispado da Bahia e ele tinha autoridade sobre a diocese de Luanda. Os cardeais, os bispos, os monsenhores, que tinham na época a maior rede diplomática do

mundo, conheciam a realidade dos territórios e dos espaços marítimos. ■■Isso está muito fora daquilo que tradicionalmente se estuda de história do Brasil nas escolas. ——Pois é, mas isso é o básico. Até os nossos bisavós, muitos ainda viajavam de navio. Os imigrantes estrangeiros vieram assim, muitos nordestinos vieram para o Rio e São Paulo de navio, a alta burguesia ia para a Europa de navio, então se tinha o sentido de que o mar une, em vez de separar. Isso condicionava tudo e é essencial para entender as relações do Brasil com o exterior e de uma parte a outra do litoral brasileiro. As rotas pelo mato, que o ouro vai induzir, são do século XVIII. O problema é que os manuais da escola primária e secundária, e até algum livro ou outro de historiador, mostram que Cabral descobriu o Brasil já tendo as fronteiras do Acre e tudo, quando o processo de formação é muito mais complicado. ■■Em que medida olhar o Brasil de longe foi o que lhe permitiu abordar nossa história de outra maneira? ——Eu já dei muitas conferências nos Estados Unidos, na Espanha, na Inglaterra e dou aula na França há muito tempo.Vejo que a visão da formação extraterritorial do Brasil soa óbvia para eles que não têm uma ideia preconcebida. Mas aqui não é óbvio, por quê? Porque tem o peso da história regional, a história singular do Brasil na América Latina, não no sentido de melhor, mas de diferente dos outros, dado o fato de que o vice-reino ficou unido enquanto os quatro vice-reinos espanhóis se fragmentaram em 20 e tantos países. A América britânica, digamos, também virou vários países, Canadá, Estados Unidos e todas as Antilhas que se separaram. As possessões da França também se separaram, porque ela vendeu a Louisiana e depois ficou com a Martinica, Guadalupe, a Guiana e tal. Mas os portugueses vieram para um lugar e ficou tudo unido. Por quê? ■■Sim, por quê, em sua visão? ——Vou chegar lá. Mas queria dizer antes que esse fato de ter sido no século XIX a única monarquia das Américas, com o apoio da burocracia portuguesa, levou a que no século XIX se começasse


reprodução do livro o trato dos viventes

a escrever uma história de encomenda direta da Coroa, para mostrar que o Brasil era unido graças exatamente à monarquia e que sempre houve um sentimento do povo, dos colonos portugueses que estavam aqui, a respeito dessa nação – como se eles tivessem a premonição da nação. A ideia que já se sabia que o Brasil existia não tem base documental nenhuma, o único documento é uma frase ambígua. ■■De Pero Vaz de Caminha? ——Não, de Diogo Pacheco Pereira, que, no Esmeraldo de situ orbis [manuscrito sobre cosmografia e marinharia, de 1506], fala de uma terra que deveria ser descoberta no tempo do rei tal, então alguns argumentam que foi antes de Cabral e a descoberta ficou escondida. Mas isso tem pouca credibilidade histórica. ■■É aquela velha discussão sobre casualidade ou intencionalidade da descoberta discutida nas escolas nos anos 1960? ——Isso. Uma coisa que ninguém fala é que Os lusíadas, que é de 1572, poema para o qual Camões se documentou para narrar a epopeia dos descobrimentos, como todo mundo sabe, fala em suas 1.200 estrofes apenas quatro vezes do Brasil. Duas de maneira indireta. Isso dá a dimensão da insignificância que era o Brasil no século XVI. Importante então era a Índia, a Ásia portuguesa. A historiografia brasileira, num certo sentido, sempre frustrou o narcisismo brasileiro, daí o surgimento de histórias como aquela, no século XIX, de que os fenícios já tinham estado no Brasil. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro decidiu enviar [em 1839] alguns especialistas à Pedra da Gávea [monólito de gnaisse à beiramar, no Rio, cujo topo está a 842 metros do nível do mar], para interpretar umas inscrições na pedra [dizia a lenda que a pedra abrigava a tumba de um rei fenício que subiu ao trono em 856 a.C.]. ■■Mas, retomando, como uma visão não nacionalista interpreta a possibilidade de unificação desse grande território? ——Escrevi em 1979 um artigo sobre “O tráfico negreiro e a unidade nacional brasileira”. A coisa é a seguinte: embora o Rio de Janeiro já fosse capital do vice-reino desde meados do século XVIII, foi quando a Corte veio em 1808

Tráfico de escravos para a América portuguesa, nos séculos XVII e XVIII, decorre de comércio bilateral

que se criou mesmo um polo administrativo. E o Brasil logo era o único lugar na América do Sul que tinha uma monarquia, fato prestigiado pela Europa porque a república era vista como ameaça. Portanto, o peso da vinda da Corte é uma das razões atribuídas à unidade. O que vejo é que, quando o Brasil fica independente, ele é o único país que está praticando o tráfico negreiro como sempre fez, a partir da relação direta que tinha com a África. Essa pilhagem passa a ser vetada pela Inglaterra frontalmente. A Inglaterra domina os mares, tem meios de pressão, era um pouco a ONU, o Vaticano e os Estados Unidos, tudo somado. O grande império que ditava a lei. Mas o Brasil tinha uma economia agrícola de exportação ligada às oligarquias regionais, metidas no comércio de africanos e na atividade escravocrata. E o Império se legitimava internamente porque a Coroa se apresentava às oligarquias como o melhor mandatário desse país complicado junto à diplomacia europeia e, em particular, junto à Inglaterra. E o Império começa a fazer esse país desse tamanho, a fazer uns acordos de fronteiras. A Independência já fora negociada de forma triangular, porque a Inglaterra representava também Portugal. O pai era rei de Portugal, o filho imperador do Brasil, o intermediário, a Inglaterra.

■■O que é essa negociação triangular? —— Portugal tinha uma dívida com a Inglaterra relativa ao custo militar da expulsão dos franceses, e dizia que não tinha dinheiro. A Inglaterra negociava: “O Brasil deve pagar a Portugal uma indenização pela Independência”. O Brasil pagou. Tomando dinheiro emprestado de quem? Dos Rothschild, banqueiros ingleses. O dinheiro nem saiu de lá e o Brasil carregou essa dívida até a República. É um dos raros países do mundo que pagou a Independência! Como o empréstimo brasileiro junto aos Rothschild estava garantido pela renda da alfândega do Brasil, recolhidos na importação e, sobretudo, na exportação do Rio de Janeiro, a Inglaterra também não tinha interesse em que o governo se fragmentasse. De repente o governo do Rio de Janeiro empobrecia e isso quebrava o principal banco inglês que havia emprestado dinheiro ao Brasil. A pergunta é, afinal, quem pagou o pato pela unidade do Brasil? ■■E quem pagou? ——Os 750 mil africanos que entraram aqui depois da proibição legal do tráfico em 1831. Os navios negreiros desembarcavam ilegalmente até 40 mil africanos por ano no Rio de Janeiro e ninguém via. Legalmente, nos termos da própria legislação brasiPESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

13


leira, eram gente livre mas viraram escravos, como explico adiante. E isso manteve a unidade nacional, porque o imperador agora se legitimava com todas as oligarquias dando cobertura a essa pirataria. ■■Por que você diz que 1850 termina sendo uma data mais decisiva para a formação do Brasil do que 1808? ——Esse é o assunto do meu segundo livro, mas já o tenho debatido bastante. Fiz uma crítica às comemorações do bicentenário de 1808, em artigo na Folha. Nas comemorações o Brasil aparecia como país que entra na modernidade por causa da mudança da Corte, com a monarquia se instalando, como não acontecera em nenhum lugar das Américas. A historiografia dominante diz que 1808 foi na realidade o começo da Independência do Brasil, porque houve a abertura dos portos, a Inglaterra se meteu aqui na economia e não saiu mais, e Portugal foi pra escanteio. Então, 1808 e 1822 aparecem como rupturas e o que vem depois é novo. Mas não é. ■■E por quê?

——Porque antes de 1808 o primeiro porto do comércio brasileiro era Lisboa e o segundo era Luanda. Depois de 1808 e até 1850 o primeiro passa a ser Liverpool, mas o segundo é sempre Luan­ da. Então o que eu chamo de matriz espacial colonial, a matriz do Atlântico Sul, não foi quebrada em 1808 nem em

14

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

1822. Os pulmões do Brasil continuaram na África, em Angola e na Costa da Mina e em Moçambique. ■■Até que o tráfico de fato acabe. ——Sim, até 1850. E tinha gente importante como Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850), mineiro, pai da pátria, ministro importante durante a Regência, senador e membro do Conselho do Estado, que achava que ainda dava para empurrar com a barriga, enfrentar a Europa e a marinha de guerra britânica, porque acabar com o tráfico ia arruinar todo mundo no Brasil. O Brasil deu errado no século XIX porque os governantes, a elite do país tomou o bonde errado em 1822 e o preço pago foi alto. ■■O bonde errado foi continuar apostando suas fichas no tráfico, nessa relação econômica com a África por quase 30 anos? ——Sim, é claro que isso permitiu o desenvolvimento do café, mas o peso do atraso para o país, a exploração brutal da mão de obra, o afundamento, a destruição de boa parte da frota mercantil brasileira pelos ingleses, o encarecimento do transporte, tudo isso constituiu um preço muito alto. Sobretudo, houve o sacrifício das duas últimas gerações de negros e mulatos livres ilegalmente mantidos na escravidão. De fato, quando acabou o tráfico legalmente em 1831, a lei dizia: 1) o tráfico está proibido, 2) o africano que desembarcar aqui do navio negreiro é

livre quando pisar na praia e 3) quem mantiver essa gente na escravidão é um sequestrador, está mantendo gente livre em cativeiro privado. Mas a lei não pegou. Depois o imperador foi embora, a Regência quis fazê-la cumprir. Aí, em 1848, Eusébio de Queirós assumiu como ministro da Justiça, os ingleses estavam endurecendo as pressões, e Eusébio, que tinha sido chefe de polícia durante 11 anos e nunca pegou ninguém, chamou os negreiros para dizer que não dava mais. E eles votam a Lei Eusébio de Queirós em sessão secreta no Parlamento, acabando definitivamente com o tráfico. Como acaba mesmo, é claro que houve uma negociação. Uma atividade que dura 300 anos, clandestina há 30 anos, lucrativa para um monte de gente e de repente acaba de uma vez só, não indica que a polícia ficou ótima ou que subitamente todo mundo ficou decente. O fim brusco do tráfico em 1850 mostra que houve uma negociação intensa entre as partes envolvidas, entre a bandidagem negreira, os fazendeiros e o governo. ■■E uma negociação em moeda mesmo? ——Não, o Estado decidiu que ia fazer estrada de ferro para o pessoal do café, o mais envolvido na pirataria negreira àquela altura, o que diminuiria o preço do transporte. Decidiu também fazer uma lei para trazer imigrantes, baixando a taxa de exportação do café e fazendo uma porção de arreglos. Aí vem o arranjo principal, que é dito, não escrito, mas acaba sendo efetivado. Porque de repente tinha 750 mil africanos e os filhos deles, os netos, todos ilegalmente nas mãos de soi-disant proprietários. Mas nenhum desses proprietários foi condenado por sequestro e quase todos os indivíduos livres continuaram a ser mantidos na escravidão. Este é o fato escandaloso, um dos maiores crimes do século XIX, ocorrido no Brasil, que não se ensina nas nossas escolas e faculdades: as duas últimas gerações de escravos no Brasil não eram escravos e estavam ilegalmente mantidos como propriedade de alguém, como cativos. Alguns abolicionistas foram ao tribunal, Ruy Barbosa, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Luís Gama, e conseguiram libertar uns 500 indivíduos entre as centenas de milhares ilegalmente escravizados. Isso virou um tabu na


história do Brasil e hoje pouca gente sabe que a escravidão era não somente imoral, mas era também, e sobretudo, ilegal. José do Patrocínio, em 1880, na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, fez o cálculo do que o fazendeiro, a viúva e até o pedreiro que tinha escravo deviam para essa gente ilegalmente mantida em escravidão. Quando hoje se fala em indenização sempre aparece o pessoal que é contra a cota para dizer que isso é importado dos negros dos Estados Unidos, que, por sua vez, copiaram o exemplo dos judeus depois da Segunda Guerra Mundial. Mas a reivindicação no Brasil é de 1880. ■■Mas os 500 foram atendidos e... ——Esqueceram-se de 1,5 milhão de escravos que eram parte dos 9 milhões de habitantes do Brasil em 1872. Fora os que morreram antes. Então foram eles que pagaram o preço da unidade nacional. ■■Gostaria que você explicasse o caráter

econômico que atribui às expedições mistas de portugueses e brasileiros que foram guerrear na África no século XVII. ——Isso é justamente outra forma de mostrar que não tinha ainda Brasil. Os paulistas estavam envolvidos na caça aos índios no Paraguai, produzindo alimentos em São Paulo para venda na própria região, enquanto Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia estavam em ligação marítima com a África e produzindo para exportação. Era outro sistema desde a época espanhola, mas, sobretudo, a partir de 1648 na guerra holandesa. Quando os holandeses chegaram em Recife para controlar o açúcar, perceberam que o que dava dinheiro não era só plantar cana e fazer o açúcar, mas também vender africanos para os senhores de engenho. E eles saíram de Recife em 1641 para atacar Angola e pegar assim os polos do sistema escravista. Quando começou a guerra de guerrilhas em Pernambuco, saiu também uma expedição do Rio de Janeiro, para expulsar os holandeses de Angola em 1648. ■■Ou seja, o Rio era um entreposto comercial desse grande negócio. ——Sim, era um nexo comercial nesse negócio que tinha a ver com Buenos Aires. Então, do Rio, os portugueses vão se equipar, financiar uma frota e vão

O Brasil não é só o último país que aboliu a escravidão, mas também o que manteve gente presa como escravo por décadas, contra sua própria lei

atacar os holandeses em Angola. Não vão levar ajuda para os rebeldes anti-holandeses de Pernambuco, querem é pegar o deles. Derrotam os holandeses em agosto de 1648, em Luanda, em São Tomé e em Benguela e os expulsam de Angola, o que vai enfraquecê-los em Pernambuco. A partir desta época, começa haver uma presença mais ativa, comercial, política e militar, dos colonos do Brasil em Angola, expandindo o tráfico e as bases da ocupação portuguesa na região. É interessante notar que o tráfico inglês, importantíssimo, maior que o português até o final do século XVIII, o tráfico francês, o holandês, todos mandavam seus agentes até as praias e lá tinham seus intermediários locais, mas só os portugueses junto com os colonos brasileiros entraram terra adentro, pilhando e expandindo as redes de tráfico na África e mais exatamente em Angola. ■■E entraram para valer no continente. ——Nenhum outro país europeu fez isso, só Portugal, com o apoio desse colonato do Brasil e por causa da gula desse colonato. Sem a compreensão disso, não se entende o Brasil. Toda essa coisa de ciclo do açúcar, do ouro, do café, afora o pau-brasil, que era um negócio de índio, só existe movida a escravos que vinham da África. Foi assim que Minas Gerais pôde ser criada, a partir de cidades já existen-

tes. A sucessão de ciclos produtivos no Brasil só é possível graças ao grande ciclo reprodutivo do tráfico negreiro, graças à injeção contínua de energia humana deportada da África para o Brasil. ■■É esse então o capital intensivo o tempo todo na formação do país. ——Sim, e é isso que vai dar vantagem ao Rio de Janeiro e a São Paulo sobre o Nordeste, sobre Bahia e Pernambuco, depois da Independência. A desigualdade regional vem não só de os primeiros estarem no negócio do café enquanto os outros permaneciam no açúcar, mas do fato de os negreiros do Rio disporem de uma logística transatlântica que lhes fornecia mais escravos. Isso também aconteceu em 1808, e quase não se tem ideia de como 1808 foi também o ponto do atraso. Por quê? Porque a Inglaterra, em1807, e os Estados Unidos, em 1808, proíbem o tráfico. Então, toda a rede negreira que tinham montado nos portos africanos é engolida pelo Brasil. Os negreiros brasileiros também vão se beneficiar com as novas mercadorias para o escambo na África que começaram a ser importadas da Inglaterra depois da abertura dos portos, em 1808. ■■É um comércio de armas, de bens de capital, de víveres, de gente... ——Isso tudo, inclusive Moçambique, que não estava antes no circuito, vai ser abocanhado pelos negreiros brasileiros, principalmente do Rio de Janeiro, depois de 1808. ■■Mas por que 1808 em seu olhar é também o atraso? ——Porque vai marcar o Brasil com o trabalho forçado e com uma forma de tráfico negreiro, de dominação econômica e social que já estava saindo do mapa no mundo. Porque vai transformar o Rio na maior cidade escravista do mundo, só no Império Romano há algo comparável: o Rio de Janeiro tinha 260 mil habitantes em 1849 e desse total 110 mil eram escravos, 42%. Isso não tem paralelo e trata-se então da maior cidade do hemisfério Sul! ■■Tem um momento no Trato dos viventes em que você diz que o estatuto dos índios se define em relação ao dos escravos negros. Em que sentido? PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

15


reprodução do livro O brasil dos viajantes

——É que não dá para entender a legislação indígena numa lógica própria, sem ver que ela está em relação com os escravos africanos desde o século XVI. A política de pressão em cima das aldeias para escravizar, reprimir e matar índios foi modificada em 1580, porque os próprios conselheiros jesuítas defenderam amaciar as relações com os índios porque eles os defendiam das revoltas negras. Nunca os missionários entraram na briga para saber se o africano havia sido ilegalmente escravizado ou não, mas a escravidão indígena foi embargada pelos missionários desde o começo, e isso também é um pouco interesse dos negreiros, ou seja, que a escravidão africana predomine. ■■Você também trata da questão da

dessocialização e da despersonalização do escravo negro. Dá para explicar essas noções? ——Eu tomei emprestadas essas noções de Claude Meillassoux, antropólogo econômico importante, autor de A an­­ tropologia da escravidão. Ele mostra que a escravização tem dois processos: o primeiro é a despersonalização, e o segundo e a dessocialização, quer dizer, a pessoa é extraída de sua comunidade, do seu país, da sua nação, da sua língua e da sua religião para ser levada a outro lugar. O escravo é sempre um estrangeiro. E, nesse outro lugar, ele vira coisa, é despersonalizado. Vira mercadoria, gado, no momento em que é ferrado. O ferro é a marca do imposto pago à Coroa. Em quimbundo, língua de Angola, chamava-se karimu, e daí vem a palavra carimbo. Na ilha de Luanda, hoje ligada ao continente, os grandes navios negreiros ficavam ao largo e as canoas atravessavam a baía para embarcar e pegar os escravos que estavam nos depósitos na cidade. Dali eles eram encaminhados para os navios no porrete, porque entravam em pânico, achavam que iam ser devorados pelos europeus e que seus ossos serviriam para fazer queijo e vinho. A memória popular ali da ilha de Luanda, que ainda alcancei em 2003, dizia que só quando eles iam para o Brasil é que se tornavam escravos. É difícil se dar conta do choque psicológico terrível sofrido por essas pessoas que vinham de longe, viajando no interior da África às vezes um ano inteiro até chegar a Luanda, sofrendo 16

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

Rio e Salvador: fundamentais na construção do espaço econômico colonial

incessante violência física e psicológica dos negreiros africanos. Depois entram em cena os negreiros portugueses e brasileiros e os transportam para o outro lado do oceano. Então eles chegam sofridos, abalados, para serem escravizados. E demoram até tomarem pé, conseguir se revoltar e se comunicar com os outros que vieram de outras terras africanas para o Brasil. ■■Trata-se de remontar algumas relações em condições completamente adversas. ——Sim, remontar relações sociais, se repersonalizar dentro da escravidão. No fundo, o grande traumatismo da população negra é que os indivíduos não sabem de onde vêm. Não sabem de que país vêm. ■■Acho admirável, na maneira como você escreve O trato dos viventes, sua capacidade de intercalar com o discurso erudito tantas histórias atravessadas por uma intensa carga humana, digamos assim. ——No debate historiográfico há uma corrente que defende que tem que se fazer a micro-história dos indivíduos sem querer açambarcar uma perspectiva global, porque, argumentam, não dá para ler tudo como antes. Não é bem assim. Antes é que era mais difícil, por-

que era preciso ir a cada biblioteca em que estavam os livros, os documentos, enquanto hoje tenho aqui um disco rígido com muita documentação do Brasil e de Angola, por exemplo. ■■O que sua elaboração intelectual tem a ver com os trajetos da sua vida privada? Vi, por exemplo, que você dedica O trato dos viventes a três jovens vítimas da ditadura, assassinados pela repressão. ——Dos três, Honestino Guimarães, Heleny Guariba e Paulo de Tarso Celestino, conheci melhor Heleny Guariba e Paulo de Tarso. ■■Você saiu do Brasil na época das perseguições políticas, foi para a França, estudou em Aix-en-Provence etc. Como tudo isso foi moldando sua vida e sua produção intelectual? ——Eu estudava no Elefante Branco [Centro de Ensino Médio Elefante Branco – Cemeb], que fez 50 anos agora, depois fui para a UnB [Universidade de Brasília], em março de 1964. Veio o golpe, uma coisa muito surrealista naquele 31 de março/1º de abril em Brasília. De repente chegaram uns caras da PM mineira, de ônibus urbano, com fuzil entre as pernas, e aquilo era o golpe. Todo mundo era meio juscelinista em Brasília e estavam esperando que tivesse uma reação, eleição no ano seguinte e aí o Juscelino [Kubitschek, presidente da República de 1956 a 1960] ia ganhar. O cálculo estava erra-


do. O pessoal que dirigia a Feub (Federação dos Estudantes da Universidade de Brasília) saiu quando houve o golpe, e houve nova eleição e eu fui eleito na chapa, cujo vice-presidente era o Paulo de Tarso Celestino. Eu era primeiro-secretário. O nosso sucessor, quando saímos, foi o Honestino Guimarães. Daí a ligação. Já a Heleny eu conheci em Aix-en-Provence ■■Você era do Partido Comunista?

——Não, mas eu era próximo das posições do partido. Naquele momento só tinha em Brasília o PC e a AP [Ação Popular]. As coisas começaram a ficar mais difíceis com os IPMs (Inquérito Policial Militar). Tive que depor no IPM do método Paulo Freire, no da UNE, em vários. Não éramos tratados com violência, mas a coisa aos poucos ia engrossando. Eu era amigo do [jornalista] Fernando Pedreira, que dirigia a sucursal do Estadão, e ele disse que o jornal estava precisando seguir os processos do Supremo [Tribunal Federal, STF], onde estavam entrando os pedidos de habeas corpus [para os perseguidos da ditadura]. Ele me propôs cobrir o Supremo à tarde, e só tinha aula pela manhã, e aceitei, fui jornalista. Depois ganhei uma bolsa de estudos do governo francês e fui para a França. ■■Quantos anos você tinha? ——Eu tinha 20 anos. Fui estudar história e ciências políticas em Aix-en-Provence, me formei e fui em 1970 para Paris fazer o mestrado em etnologia e o doutorado em história. ■■Você foi literalmente sustentado pelo governo francês por um bom tempo. ——Tive bolsa francesa durante seis anos. Quando eu estava no meio do doutorado, fui dar aulas em Vincennes, que era na época uma universidade experimental, depois comecei a dar aula em Rouen como professor assistente. ■■Quando você começou o trabalho que

se tornaria em O trato dos viventes? ——Comecei o doutorado antes de 1970 e ali desenvolvi algumas ideias que aparecem no livro. Mas foi em meu período de trabalho no Brasil que as coisas avançaram. Fiquei na França até 1986, quando voltei para trabalhar no Cebrap e na Unicamp.

É preciso estudar legislação da imigração separado da legislação abolicionista. E isso anda de par, desata-se de um lado e está puxando do outro

Celso Furtado, que era muito amigo, Fernando Henrique Cardoso, que eu conhecia através de Celso, tinham me aconselhado a voltar. Também Roberto Schwarz, que já tinha voltado para o Brasil, meu amigo e guru intelectual, Violeta Arraes, irmã de Miguel Arraes, que era a líder dos exilados em Paris, enfim, toda essa turma me deu muita força para eu voltar. Entrei no Instituto de Economia na Unicamp, que era então um lugar de debates. Fui dar aulas de história econômica, fiz adiante a livre-docência e, depois, concurso para adjunto. Fui para o Cebrap também, e era muito bom porque o centro nessa época tinha pesquisadores ligados ao PT e ao PSDB: Francisco de Oliveira e Paul Singer, Giannotti e Ruth Cardoso. Foi um momento muito importante, tempo da Constituinte, que revirou minha cabeça. ■■Ao mesmo tempo você foi coordenador de área na FAPESP? ——Luiz Henrique [Lopes dos Santos], que era assessor adjunto para humanas na Fundação e era ligado ao pessoal do Cebrap, me convidou, com o apoio dos colegas da história, para ser coordenador da área de história, geografia e pré-história e eu trabalhei lá de 1989 a 1994. Mas depois da livre-docência eu

tive uma bolsa da Fapesp para transformar meu trabalho em um livro. ■■Uma bolsa de pós-doc? ——Sim, na Sorbonne, com Kátia Mattoso [historiadora brasileira, falecida em Paris em janeiro de 2011]. Ela estava na cátedra de história do Brasil, da qual foi a primeira titular. ■■Para ficar claro: seu projeto envolve três livros ligados à formação do Brasil? ——Sim. Veja, tem essa coisa da ligação dos africanos e dos índios, depois vira ligação da escravidão com a imigração. Tem-se estudado a legislação da imigração separado da legislação abolicionista. Mas as duas coisas andam juntas, desata-se de um lado e está puxando do outro. E é sempre o Estado. Esse é o segundo livro, que vai até o século XIX e tenho feito alguns artigos, por exemplo, o que publiquei nos Annales, em 2006: “Le versant bresilien de l’Atlantique-Sud: 1550-1850”. ■■Até que ano você vai com os três livros? ——A 1940. Eu discuti muito com Celso Furtado e Roberto Schwarz na França e no Brasil sobre esse plano de trabalho ■■Depois de 1850, o que ocorre? ——Não se está mais ligado à África, mas a mão de obra ainda depende de fora, da imigração estrangeira. Mas a partir do período 1927-1934 entram mais migrantes nordestinos do que estrangeiros em São Paulo. Aí ocorre outra ruptura, o mercado de trabalho no Brasil se metaboliza, depende somente da reprodução interna da força de trabalho. ■■Você voltou por que para a França em 1999? ——Tensões e algumas indefinições no trabalho mais alguns problemas pessoais e aí veio uma carta do reitor da Sorbonne dizendo que tinha um posto de história do Brasil que talvez me interessasse. Deu certo e eu fui como professor visitante para começar a dar aulas em setembro, enquanto esperava o novo concurso em março. Passei, virei titular e estou lá até agora. ■■E aí sua ideia é voltar ao Brasil. ——Sim, em 2014. PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

n

17


capa

…E a América do Sul se fez

18

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188


Gigantescos blocos de rochas com idades e origens variadas formaram o continente, que ainda se move

CARLOS GOLDGRUB / OPÇÃO BRASIL IMAGENS

Carlos Fioravanti

Cânion do Itaimbezinho, uma cicatriz geológica de 130 milhões de anos

A

estrutura geológica da Amé­ rica do Sul é um imenso caleidoscópio de blocos de rochas que se quebraram, se colaram e se movimen­ taram de modo impressio­ nante. Em Pirapora do Bom Jesus, município a 60 quilômetros de São Paulo, o geólogo Co­ lombo Tassinari, professor do Instituto de Geo­ ciências (IGc) da Universidade de São Paulo (USP), exibe evidências dessas transformações, que dezenas de geólogos estudam em profun­ didade há pelo menos 50 anos e seu colega da USP Benjamim Bley Brito Neves sintetizou em um artigo recém-publicado na Journal of South American Earth Sciences. “Tudo isso aqui já foi o fundo do mar, há mais de 600 milhões de anos”, diz Tassinari, ao chegar ao alto de uma colina em um dos bairros do município de Pi­ rapora do Bom Jesus. Em seguida, ele para em um terreno de esquina margeado por amoreiras frutificando – em frente há uma escola mu­ nicipal de paredes brancas e um mercadinho que vende baldes, bolas de plástico e sandálias havaianas. No barranco ao lado de uma rua asfaltada, Tassinari exibe uma dessas evidências: as pillow lavas, corpos de magma basáltico em forma de bolhas ou, como o nome sugere, de travesseiros (ver fotos na página 21). “A camada mais externa das pillow lavas se formou quando a lava quente que brotou da crosta oceânica se resfriou ao encontrar a água do mar”, explica Tassinari, que trabalha com Bley e com outros geólogos para reconstruir a turbulenta – e inacabada – história geológica da América do Sul. Há mais rochas desse tipo do outro lado do vale cortado pelo rio Tietê, aqui ainda bastante poluído, de águas escuras e lentas, cobertas com blocos brancos de es­ puma. Ao subir o morro ele já tinha mostrado um depósito natural de calcário e indicado a direção de uma antiga mina de magnetita – outros resquícios do fundo de um mar que se fechou como resultado do embate entre placas tectônicas que vinham em direções opostas. A força das placas era intensa a ponto de fazer com que fragmentos de crosta oceânica que esta­ vam a estimados 4 mil metros de profundidade fossem lançados para dentro do continente e se apresentem hoje a cerca de 600 metros de altitude (possivelmente já formaram morros ainda mais altos). Pesquisadores da USP, Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e de outros centros de pes­


fabio colombini

Chapada Diamantina, 1,4 bilhão de anos

quisa geológica do Brasil normalmen­ te examinam a origem e a composição de partes desse imenso quebra-cabeça, por vezes oferecendo visões mais gerais como a de Bley. Ao mesmo tempo, es­ pecialistas de outros países – Argentina, Estados Unidos, Espanha, Alemanha, Inglaterra, Dinamarca e Austrália – trabalham para entender a formação de seus próprios continentes. Com frequência eles se encontram para se ajudar ou ver como os continentes se encaixavam, já que blocos de rochas hoje na América do Sul estiveram ao lado dos que hoje estão na América do Norte ou na China. O artigo mais recente de Bley com­ plementa outro, de 2008, publicado na revista Precambrian Research em con­ junto com Reinhardt Fuck, da UnB, e Carlos Schbbenhaus, do Serviço Geológico Brasileiro. Os dois traba­ lhos oferecem uma visão abrangente sobre a impressionante diversidade de idades, formas, tamanhos, com­ posição e origens de blocos de rochas da crosta terrestre que vieram de di­ reções diferentes, se encontraram, se 20

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

Onde está hoje o Centro-Oeste havia um oceano do tamanho do Atlântico, diz Fuck, da UnB

empurraram, se amalgamaram ou se destruíram, consolidando o esqueleto geológico do continente sul-america­ no. Blocos de rochas bastante antigos, com idade superior a 2,5 bilhões de anos, encontrados na Bahia e nas mar­ gens do rio Amazonas, se avizinham de outros, menos antigos, de cerca de

2 bilhões de anos, na Região Nordes­ te e em Mar del Plata, Argentina, e os mais jovens, de 500 milhões de anos, como a cadeia montanhosa da Man­ tiqueira, que começa no sul da Bahia e segue até o Uruguai. Essas camadas de rochas podem começar a poucos metros abaixo da superfície e chegar a 40 quilômetros de profundidade. Na América do Sul, como em todo o globo, há uma destruição e uma recons­ trução contínuas. Outro exemplo a céu aberto dos embates tectônicos é o Par­ que Nacional de Itatiaia. Sua estrutura geológica básica resulta dos derrames de lava liberados por um vulcão, mas depois muita lava correu por lá. No livro Itatiaia – Sentinela das alturas (Editora Terra Virgem), Umberto Giuseppe Cor­ dani e Wilson Teixeira, também da USP, apresentam a sequência de movimentos tectônicos que resultaram na formação do pico das Agulhas Negras e de pe­ nhascos cujas laterais lembram as raízes petrificadas de uma imensa árvore. “Onde hoje está o Centro-Oeste ha­ via um oceano do tamanho do Atlânti­ co, entre 900 milhões e 600 milhões de


Vestígios de Rodínia Fragmentos se espalham pela América do Sul

Os continentes em movimento 1,1 bilhão de anos

imagens: 1. Benjamin Bley Brito Neves / USP 2. Z.X.Li ET AL. / Universidade Lund

mais de 2,5 bilhões de anos 2,35 a 2,3 bilhões de anos 2,2 a 2 bilhões de anos

Faixa móvel Margem ativa

1 bilhão de anos

2 a 1,8 bilhão de anos 1,8 a 1,5 bilhão de anos 1,3 a 1 bilhão de anos menos de 1 bilhão de anos

1

A - Cráton São Luís B - Província Borborema C - Bloco Parnaíba D - Cráton São Francisco E - Cráton Paranapanema F - Bloco Rio Apa G - Cráton Luiz Alves H - Maciço Curitiba I - Cráton Rio da Plata

anos atrás”, diz Fuck. Em 1969, depois de trabalhar por cinco anos no mapea­ mento geológico do Paraná, ele ingres­ sou como professor na UnB e se pôs a estudar a geologia da região central do país. Suas análises indicaram que havia um arco de ilhas vulcânicas, como nas Filipinas, resultantes do choque de pla­ cas oceânicas. Da destruição das ilhas resultou uma cadeia de montanhas se­ melhante ao Himalaia, que se estendia por 1.500 quilômetros do sul do estado do Tocantins ao sul de Minas. E depois também desapareceu. Tassinari acredita que a antiga bacia oceânica de Pirapora do Bom Jesus, que ele começou a estudar há 30 anos, deve ser valorizada. Mais ainda: pode se tornar mais uma atração da cida­ de, conhecida pelas festas religiosas e por uma igreja que começou a ser construída em 1725. “Já falamos com o prefeito e estamos batalhando para proteger melhor essas relíquias da his­ tória da Terra”, diz. Segundo ele, esse é o único trecho do estado de São Paulo com uma crosta oceânica relativamen­ te bem conservada.

900 milhões de anos J - Terreno Punta del Este K - Microbacia Falkland L - Terreno Granja M - Terreno Cuyana N - Terreno Pâmpia O - Terreno Arequiça P - Terreno Antofalla Q - Cráton Amazônico

Outra indicação de braços de oceanos extintos são os sedimentos de mar profundo como os encontrados em Araxá, Minas, e em Afrânio e Dor­ mentes, Pernambuco. “A vida de um oceano é muito curta, raramente vai muito além de 200 milhões de anos. A crosta oceânica, por ser mais fina que a continental, é constantemente reci­ clada”, diz Cordani. Ele, Bley e Tassi­ nari atualmente são os pesquisadores principais de um projeto temático em curso coordenado por Miguel Basei, do Instituto de Geociências. Mares de vida curta - Há outras sínte­

ses em construção. Cordani e Victor Ra­ mos, da Universidade de Buenos Aires, coordenam a elaboração do novo mapa tectônico – ou das grandes estruturas geológicas – da América do Sul, sob a su­ pervisão dos serviços geológicos do Bra­ sil e da Argentina. Esse trabalho reúne cerca de 40 geólogos do continente, que sintetizam informações acumuladas ao longo dos últimos 30 anos, desde quan­ do a versão anterior foi feita. Cordani abre sobre a mesa uma das versões do

2

novo mapa, na escala 1:5 milhões: é um mosaico de manchas em vários tons de vermelho, azul e amarelo, representando as diferentes idades e estruturas geológi­ cas da América do Sul. “Não, ainda não pode publicar. É só um rascunho.” Eles pretendem apresentar a versão final em agosto de 2012 no congresso internacio­ nal de geologia na Austrália. Muitas linhas pretas, de compri­ mentos diferentes, cortam o mapa. São as fraturas ou falhas, que podem separar os blocos de rochas e deixar espaço livre para outras rochas. Há cerca de 30 mi­ lhões de anos, rochas vulcânicas preen­ cheram as fraturas formadas muito antes, em estruturas de mais de 600 milhões de anos, formando a base dos terrenos hoje ocupados pela Grande São Paulo, São Jo­ sé dos Campos, Taubaté e outras cidades do Vale do Paraíba. Ao norte, a cidade de Manaus se formou sobre sedimentos rochosos de poucos milhões de anos, mas sob eles há rochas que se uniram há cerca de 500 milhões de anos. As rochas mais antigas do Brasil es­ tão no Nordeste. Nos anos 1960, como um dos fundadores e coordenador do PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

21


laboratório de geocronologia da USP, Cordani acompanhou as equipes da Se­ cretaria de Minas da Bahia que faziam o levantamento geológico do estado. Na região central da Bahia encontraram uma rocha que se mostrava como a mais antiga do país, mas os métodos de datação ainda eram bastante impreci­ sos, com uma margem de erro próxima a 100 milhões de anos. Mesmo assim, Cordani apresentou seus resultados em um congresso em Pequim em 1983 e as rochas da Bahia, com estimados 3,4 bilhões de anos, figuraram entre as mais antigas do mundo. “Em 1991 levei para analisar na Austrália e confirmei.” Hoje ele poderia simplesmente atravessar o gramado em frente à sua sala e usar a microssonda iônica de alta resolução, um sofisticado equipamento de datação de rochas que entrou em operação há poucos meses em um prédio em frente ao Instituto de Geociências. Há dois anos, Bley, Fuck e Elton Dantas, da UnB, identificaram no oes­ te de Pernambuco as rochas ainda mais antigas do continente sul-americano, com 3,6 bilhões de anos. Para Bley, esse episódio teve um sabor especial – e não só por ter nascido ali perto, em Campi­

As rochas de Pernambuco eram quase tão antigas quanto as do Canadá, com 4 bilhões de anos. São os poucos testemunhos dos primeiros tempos da Terra, formada há 4,7 bilhões de anos como resultado de uma nuvem de gás e poeira em rotação. Só havia rocha derretida, erupções vulcânicas e uma atmosfera tóxica, que durou milhões de anos. As primeiras bactérias, capazes de se manter a temperaturas próximas a 100º Celsius, só sobreviveram a partir de 3,5 bilhões. A serra de Carajás, no Pará, e o Quadrilátero Ferrífero, em Minas, contêm rochas também bastante an­ tigas, de 3 bilhões de anos. “Quando chegaram aqui e de onde vieram, não sabemos”, diz Bley. No Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, os físicos Franklin Bispo Santos e seu orientador de doutorado Manoel D’Agrella Filho trabalham para determinar a direção magnética de rochas de Mato Grosso e Roraima no momento em que se for­ maram, entre 1,9 e 1,4 bilhão de anos. Sabendo disso, talvez consigam deter­ minar de onde vieram e se viajaram juntas ou não. Essa técnica, chamada paleomagnetismo, pode reiterar ou en­ fraquecer hipóteses dos geólogos. “O problema”, diz Santos, “é que é muito trabalhosa e por vezes demoramos anos para completar as interpretações”.

Eu vi que tudo aquilo era muito pouco estudado e prometi que voltaria, lembra-se Bley na Grande, Paraíba. Ele percorreu o oes­ te de Pernambuco há 50 anos, recém-saído do curso de geologia em Recife. “Eu andava por ali durante o dia e à noite lia Os sertões à luz de querosene, na calçada em frente ao hotel São Pedro em um vilarejo do município de Ouri­ curi”, recorda-se. “Vi que tudo aquilo era muito pouco estudado e prometi para mim mesmo que voltaria.”

fabio colombini

Um rio e uma ilha - A América do Sul

Itatiaia, história tumultuada 22

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

se formou a partir desses núcleos mais antigos, que cresceram incorporando outros. Segundo Cordani, o cráton amazônico dobrou de tamanho no Proterozoico, o mais longo dos perío­ dos geológicos, com uma duração de cerca de 2 bilhões de anos. Crátons são imensos blocos formados por vários tipos de rocha, normalmente com mais de 1 bilhão de anos, que funcionam co­ mo um conjunto relativamente estável da crosta por pelo menos 100 milhões de anos. O cráton amazônico tem 4,4 milhões de quilômetros quadrados, equivalente a 52% do território bra­ sileiro. Sua porção mais antiga, com mais de 2,6 bilhões de anos, está em Roraima e no oeste do Pará, à qual se uniram outros blocos de granito que formam as Guianas e parte da Vene­ zuela, e depois outros, mais recentes. As rochas mais altas deixaram um vale


fotos eduardo cesar

Tassinari e as pillow lavas de Pirapora do Bom Jesus (detalhe acima)

por onde começou a correr o rio Ama­ zonas, cujos sedimentos formaram a ilha de Marajó. Há 2,5 bilhões de anos houve uma reviravolta na história da Terra, com picos de perda de calor, que permitiram a formação da crosta, a camada mais superficial do planeta, antes tomado por uma sopa quente de magma. Um supercontinente chamado Kenora­ no pode ter se formado nessa época, quando a atmosfera começou a receber oxigênio, essencial para a sobrevivência de microrganismos mais sofisticados, a partir dos quais se desenvolveram os

OS ProjetoS 1. A América do Sul no contexto dos supercontinentes nº 05/58688-1 2. Paleogeografia do cráton amazônico durante o Proterozoico na formação de supercontinentes nº 2007/59531-4 modalidades

1. Projeto Temático 2. Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dores

1. Miguel Ângelo Stipp Basei - IGC/USP 2. Manoel Souza D’Agrella Filho IAG/USP investimento

1. R$ 3.611.085,27 (fapesp) 2. R$ 317.316,92 (fapesp)

multicelulares. “O grau de certeza desse supercontinente? De 20% a 30%. Ainda há muita controvérsia”, alerta Bley. Outro supercontinente pode ter se formado entre 2,2 e 2 bilhões de anos. Bem depois se quebrou e seus pedaços se uniram outra vez formando Rodínia, que reuniu praticamente toda a massa continental da Terra entre 1 bilhão e 850 milhões de anos. Rodínia começou a se quebrar há cerca de 800 milhões de anos, formando oito continentes, que vagaram e depois se encontraram, outra vez formando um único super­ continente chamado Pangea. “Olhe aqui”, diz Bley, mostrando um dos mapas na parede atrás de sua mesa de trabalho. “Pangea também se despe­ daçou, há cerca de 230 milhões de anos, formando os grandes oceanos, Atlânti­ co, Índico, Ártico e Antártico. O mar de Tethys, que era imenso, se fechou. Este bloco, a Índia, subiu 200 quilômetros, veio do sul para o norte.” Inicialmente unidas em um só bloco da Pangea, a América do Sul e a África começaram a se separar dos outros há cerca de 220 milhões de anos. “Os atuais estados de Pernambuco e Paraíba formam as últimas pontes que se despregaram da África”, conta Bley. A maior parte da América do Sul tornou-se relativamente estável por volta de 60 milhões de anos atrás. Os fragmentos de Rodínia formaram uma área relativamente estável da Venezuela à Argentina, a plataforma Sul-Americana, vasto conjunto de blocos de rochas com­

pletados com bacias sedimentares com a da bacia do Paraná, com cerca de cinco quilômetros de sedimentos. “Sobre es­ se pacote de rochas sedimentares e vul­ cânicas formaram-se depressões onde correm o rio Paraná e seus afluentes”, explica Bley. A oeste, porém, existe uma área ainda geologicamente instável, a cor­ dilheira dos Andes, resultado da con­ vergência entre a placa de Nazca e a placa continental sul-americana. Os Andes ainda crescem, incorporando as rochas de Nazca, que afundam no manto da Terra, derretem e depois vol­ tam para a superfície. “A placa de Nazca se movimenta um centímetro por ano”, observa Tassinari. Os oceanos também estão em transformação. “O Atlântico está se expandindo e o Pacífico se fechando”, informa Bley. O resultado? “Daqui a 200 milhões de anos, os continentes vão se unir de novo.” Embora distante, o continente que deve resultar dessa fu­ são já ganhou vários nomes. Um deles é Amásia, já que deve unir outra vez a n América e a Ásia. Artigos científicos 1. Neves, B.B.B. The Paleoproterozoic in the South-American continent: Diversity in the geologic time. Journal of South American Earth Sciences (in press). 2. FUCK, R.A.; Neves, B.B.B. e SCHOBBENHAUS, C. Rodinia descendants in South America. Precambrian Research. v. 160, p. 108-26. 2008. PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

23


Estratégias mundo

as bactérias pedem carona Bactérias resistentes a antibióticos estão viajando, evidentemente sem alarde, nos carros e vans carregados com pessoas, mercadorias e talvez galinhas que circulam pela estrada que corta a região de Borbón, nordeste do Equador (ScienceNow). Os mais de 100 vilarejos da região de Borbón permaneceram isolados por mais de um século. Agora unidos por meio de uma estrada, seus moradores estão trocando micróbios resistentes a antibióticos, que podem ter saído de hospitais de Quito, a capital, e outros centros urbanos. Para chegar a essa conclusão, pesquisadores dos Estados Unidos e do Equador visitaram 31 cidades em 2003 e 2008 e colheram 24

outubro DE 2011

2.210 amostras de bactérias, em busca de variedades de Escherichia coli resistentes a ampicilina e sulfas. Quanto pior o saneamento e maior o uso de antibióticos, maior a transferência de bacilos resistentes a antibióticos, de acordo com o estudo publicado em setembro na Journal of the Royal Society Interface.

PESQUISA FAPESP 188

O Fermilab, laboratório de física de partículas de alta energia dos Estados Unidos, ensaia uma mudança de perfil com a aposentadoria de seu acelerador gigante de partículas Tevatron. O desligamento do acelerador, em operação havia 25 anos, deve-se, em boa medida, à construção do Large Hadron Collider (LHC), que se tornou o maior acelerador de partículas e o de maior Tevatron: fim de linha energia existente no mundo, inauguapós 25 anos rado em 2009 perto de Genebra, na de serviços Suíça. Em 2008, um painel consultivo do Departamento de Energia norte-americano recomendou uma mudança de foco para o Fermilab: em vez de criar partículas ainda não conhecidas produzindo colisões de altas energias, deveria passar a investigar as interações raras envolvendo partículas já conhecidas. Em sua nova fase, o Fermilab já programou vários novos experimentos com neutrinos – partículas quase sem massa que interagem fracamente com a matéria comum –, seguidos por dois experimentos com múons, primos mais pesados dos elétrons. A mudança deve levar à diminuição do tamanho das colaborações de pesquisa – talvez 100 ou 200 por experiência, em vez das cerca de 600 dos tempos do Tevatron. “É uma grande mudança”, disse à revista Nature Regina Rameika, gerente de projeto de um dos experimentos de neutrinos.

Cayambe / wikimedia commons

Reider Hahn

acelerador aposentado

Centro de Quito: troca de micróbios


Próximo da Terra e cenário de processos atmosféricos familiares aos do nosso planeta, Vênus parece ser um destino tentador para sondas planetárias. Por isso, um grupo de cientistas da Nasa está frustrado com a relutância da agência espacial norte-americana em enviar novas missões ao planeta – a última aconteceu em 1990, quando a sonda Magalhães mapeou a superfície de Vênus. Neste ano, sete missões propostas foram rejeitadas. “Estamos consternados”, diz David Grinspoon, astrobiólogo curador do Museu Denver da Natureza e Ciência, no Colorado, que fez uma das

Ciência e prosperidade O Haiti deveria seguir o exemplo de países em desenvolvimento como Ruanda e investir em seu sistema científico e tecnológico para recuperar-se do devastador terremoto de 2010, diz um relatório da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS). O documento “Ciência para o Haiti” apresenta um conjunto de metas, como a criação de uma estratégia para aumentar a capacidade científica e educacional do país e o fortalecimento da relação entre pesquisadores e setor privado. O relatório foi feito por especialistas do Canadá, Haiti, Porto Rico, Ruanda e Estados Unidos. O caso paradigmático é o de Ruanda, país africano que colocou a ciência no centro de sua estratégia para a recuperação econômica após o genocídio de 1994, no qual 800 mil pessoas foram mortas. “Ruanda mostrou que educação científica para crianças gera prosperidade e contribui para a ordem civil”, disse à agência SciDev.Net Gary Machlis, professor da UniversiHaiti: exemplo dade de Idaho, Estados Unidos, de Ruanda é inspirador um dos autores do relatório.

nasa

propostas. A Nasa argumenta que a qualidade das propostas não era boa. Mas algumas razões para negligenciar o planeta são evidentes: nuvens espessas de ácido sulfúrico fazem da coleta de dados um desafio para as sondas e, ao contrário de Marte, Vênus não seria um destino potencial para os astronautas. Grinspoon queixa-se de um círculo vicioso. Sem missões fornecendo dados para análise, o financiamento para pesquisa sobre Vênus diminuiu, levando menos estudantes a entrar nesse campo e limitando a um pequeno círculo a pressão para realizar novas viagens. “Nossa comunidade está minguando”, disse à revista Nature.

Vulcâo em Vênus detectado pela sonda Magalhães

Nigéria vacina contra HPV A Nigéria iniciou a vacinação de meninas entre 9 e 15 anos contra o papilomavírus humano (HPV), como parte de uma estratégia nacional para reduzir a mortalidade associada ao câncer do colo do útero, o tipo de câncer que mais mata no país. O ministro da Saúde da Nigéria, Onyebuchi Chukwu, explicou à agência de notícias AfricaSTI que a alta Marcello Casal Jr / ABr

Vizinho negligenciado

mortalidade associada à doença é causada pela falta de prevenção, tratamento tardio de pacientes e crenças culturais contrárias a intervenções precoces. “A vacina pode proteger 70% de todas as possíveis causas de câncer cervical”, afirmou. O governo, segundo ele, não tem recursos para vacinar todas as meninas, mas fez uma parceria com a entidade Aliança Global por Vacinas e Imunização (Gavi, na sigla em inglês). Com isso, será possível oferecer as vacinas com valor subsidiado. “A Gavi tem sido capaz de negociar com os fabricantes de tal forma que o custo total não seria maior que US$ 15. Muitas famílias podem gastar isso para evitar que suas filhas se tornem vítimas de câncer do colo do útero”, disse. O governo promete identificar as famílias que não podem pagar pela vacina e garantir que suas filhas sejam imunizadas.

PESQUISA FAPESP 188

outubro DE 2011

25


Estratégias brasil

Investimento ascendente

Evolução do desembolso da FAPESP de 2003 a 2010, em R$ 780.033.468

800.000.000

Cooperação em bioenergia A FAPESP e a ETH Bioenergia assinaram um acordo de cooperação no dia 26 de setembro. Simultaneamente, foi lançada uma chamada de 26

outubro DE 2011

679.525.814 637.856.798 549.571.361 521.839.938 481.718.578 393.900.438 354.801.449

2003

2005

2006

O Relatório de 2010 é ilustrado com obras de Anita Malfatti

propostas aberta a pesquisadores vinculados a instituições de ensino superior e de pesquisa, públicas e privadas, no estado de São Paulo. O total de recursos oferecido para as propostas selecionadas é de R$ 10 milhões, sendo

PESQUISA FAPESP 188

2004

R$ 5 milhões pela FAPESP e R$ 5 milhões pela ETH. Os projetos deverão ter duração de até 50 meses e as propostas serão recebidas pela FAPESP até o dia 12 de dezembro. Futuramente há previsão de uma segunda chamada.

2007

2008

2009

2010

Na área agrícola, o foco das linhas propostas está nas áreas de manejo varietal da cana e desenvolvimento de clones projetados para áreas de fronteira agrícola. “Também há ênfase na agricultura de precisão, automação agrícola e desenvolvimento de novas biomassas de ciclo curto que podem complementar a cana-de-açúcar, aumentando sua competitividade”, disse Carlos Eduardo Calmanovici, diretor do Departamento de Inovação e Tecnologia da ETH. Do lado industrial, o destaque é a área de fermentação. “Interessa-nos o desenvolvimento de tecnologias e abordagens para o aumento da competitividade da fermentação e o aproveitamento de subprodutos”, afirmou.

fonte: relatório de atividades fapesp 2010

Os recursos desembolsados pela FA700.000.000 PESP no apoio à pesquisa científica e tecnológica aumentaram 14,8% no 600.000.000 ano passado em relação a 2009. Com 500.000.000 o desembolso de R$ 780,03 milhões 400.000.000 em 2010, a FAPESP mantém a curva ascendente de investimentos, que 300.000.000 cresceram 69% na última década. 200.000.000 Esses dados fazem parte do Relatório de atividades FAPESP 2010, 100.000.000 lançado em 14 de setembro junta0 mente com a abertura da exposição de reproduções de obras da artista plástica Anita Malfatti (1889-1964) que ilustram a publicação. Dois recordes obtidos pela FAPESP em 2010 foram o número de novos projetos contratados (11.155) e o de bolsas vigentes (10.824). Do total aplicado em pesquisa, 36% foram destinados à formação de recursos humanos, 56% para a pesquisa acadêmica e 8% para pesquisa voltada a aplicações. Na linha de Programas Especiais, que cresceu 29%, destaca-se o desembolso no Programa de Apoio à Infraestrutura de Pesquisa. Os R$ 63,26 milhões desembolsados em 2010 representam aumento de 63,52%. “Com a inescapável limitação de recursos para atender todas as justas ambições e necessidades da vibrante comunidade científica paulista, faz parte do esforço por sustentabilidade dar a tais recursos a máxima aplicação possível. Por isso, o Programa Equipamentos Multiusuários (EMU) tem tido especial atenção da FAPESP”, disse Celso Lafer, presidente da Fundação no prefácio do Relatório. A íntegra está disponível em www.fapesp.br/publicacoes/relat2010_completo.pdf.


Ana Nascimento / ABr

Um site que dá acesso a artigos, dicas e reflexões sobre redação de artigos científicos foi lançado pelo zoólogo Gilson Volpato, autor de sete livros sobre o tema e professor do Instituto de Biociências de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp). O endereço www.gilsonvolpato.com.br compreende as seções Ciência, Redação Científica, Publicação Científica, Ética e Moral na Ciência, Sociedade, Administração e Educação. Em cada uma delas há uma lista de livros relacionados ao assunto, artigos, uma série de links para textos externos – com comentários o autor – além de dicas. Também haverá acesso às aulas on-line do curso Bases Teóricas para Redação Científica, apresentado por Volpato na Unesp. “Por enquanto há 19 aulas disponíveis, mas todo o material já foi gravado. Em breve todas as 44 aulas estarão no ar”, disse o professor à Agência FAPESP.

governo do amazonas

Redação científica

Sistema vai monitorar degradação da floresta

O futuro da Amazônia Pesquisadores de 14 instituições europeias e sul-americanas estão engajados num programa que busca antever o que acontecerá com a Amazônia nas próximas décadas. Trata-se do Amazalert, liderado pelos climatologistas Bart Kruijt, da Universidade de Wageningen (WUR), Países Baixos, e Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que também é membro da coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa sobre

Mudanças Climáticas Globais. A equipe vai reunir informações disponíveis em trabalhos anteriores sobre clima regional, desflorestamento, sensibilidade das florestas e ciclo da água, e

desenvolver um sistema que detecte sinais de degradação de grandes dimensões na floresta. Dentro de três anos, o programa deverá fornecer um conjunto de ferramentas para assessorar as tomadas de decisão na gestão futura da região, incluindo formas de monitorar o funcionamento da Amazônia para se evitar mudanças irreversíveis em seus serviços ambientais. O programa tem orçamento de € 4,7 milhões e conta com financiamento do 7º Programa Quadro da União Europeia. Além do Brasil e dos Países Baixos, terá participantes da Alemanha, Áustria, Bélgica, Bolívia, Colômbia, França, Peru e Reino Unido.

Módulo sustentável

Um módulo de pesquisas que o Brasil irá instalar na Antártida está sendo preparado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Batizado de Criosfera 1, o módulo já recebeu sistemas de energia e equipamentos em São José dos Campos, e em breve seguirá para Porto Alegre, de onde inicia a viagem para a latitude 85°S, a cerca de 500 quilômetros do polo Sul geográfico. Financiado pelo Programa Antártico Brasileiro (Proantar), o módulo será o primeiro do tipo instalado no interior antártico a funcionar 24 horas por dia, sem a necessidade de técnicos acompanhando as operações, pois os dados serão enviados por satélite, e sem a emissão de poluentes – ele é dotado de painéis solares e geradores eólicos. Serão coletados dados meteorológicos, como velocidade dos ventos e temperatura, e realizadas medições da composição química da atmosfera da região. Durante o primeiro ano de funcionamento do módulo, cientistas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Inpe irão investigar as consequências climáticas da redução da camada de ozônio Antártida: sobre o polo Sul e o transporte atmosférico de dados enviados poluentes para o ar da região. por satélite PESQUISA FAPESP 188

outubro DE 2011

27


[ cultura científica ]

Leitores esquivos Atrair a atenção do público é o grande desafio para os satisfeitos jornalistas de ciência

Mariluce Moura ilustração Catarina Bessell

D

ois estudos brasileiros sobre divulgação científica, citados em primeira mão na Conferência Mundial de Jornalismo Científico 2011, em Doha, Qatar, no final de junho, propõem quando superpostos um panorama curiosamente desconexo para esse campo no país: se de um lado os jornalistas de ciência revelam um alto grau de satisfação com seu trabalho profissional, de outro, uma alta proporção de uma amostra representativa da população paulistana (76%) informa nunca ler notícias científicas nos jornais, revistas ou internet. Agora o mais surpreendente: no universo de entrevistados ouvidos no estado de São Paulo nesta segunda pesquisa, 52,5% declararam ter “muita admiração” pelos jornalistas e 49,2%, pelos cientistas, a despeito de poucos lerem as notícias elaboradas por uns sobre o trabalho dos outros. Esses e outros dados dos estudos provocam muitas questões para os estudiosos da cultura científica nacional. Uma, só para começar: a satisfação profissional do jornalista de ciência independe de ele atingir com sua produção seus alvos, ou seja, os leitores, os telespectadores, os ouvintes ou, de maneira mais geral, o público? A Conferência Mundial, transferida de última hora do Cairo para Doha, em razão dos distúrbios políticos no Egito iniciados em janeiro, reuniu 726 jornalistas de 81 países que, durante quatro dias, debateram desde o conceito central de jornalismo científico, passando pelas múltiplas formas de exercê-lo e suas dificuldades, até os variados problemas de organização desses profissionais na Ásia, na África, na Europa, na América do Norte ou na América Latina, nos países mais demo-

28

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

cráticos e nos mais autoritários. Uma questão que atravessou todos esses debates foi o desenvolvimento da noção de que fazer jornalismo científico não é traduzir para o público a informação científica – seria mais encontrar meios eficazes de narrar em linguagem jornalística o que dentro da produção científica pode ser identificado como notícia de interesse para a sociedade. A próxima Conferência Mundial será realizada na Finlândia, em 2013. Apresentado por um dos representantes da FAPESP na conferência, o estudo que trouxe à tona a medida preocupante do desinteresse por notícias de ciência chama-se “Percepção pública da ciência e da tecnologia no estado de São Paulo” (disponível em www. fapesp.br/indicadores/2010/volume2/ cap12.pdf) e constitui o 12º capítulo dos Indicadores de ciência, tecnologia e inovação em São Paulo - 2010, lançado pela FAPESP em agosto último. Elaborado pela equipe do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas (Labjor-Unicamp) sob a coordenação de seu diretor, o linguista Carlos Vogt, em termos empíricos a pesquisa se baseou num questionário composto por 44 perguntas aplicado a 1.076 pessoas na cidade de São Paulo e a mais 749 no interior e no litoral do estado, em 2007. Portanto, foram 1.825 entrevistados em


política científica e tecnológica

Quem lê tanta notícia? Comparação da frequência de consumo de veículos informativos: “Lê notícias científicas nos jornais, revistas ou internet?” – 2007 europa

brasil

estado de são paulo

80

76%

70

Fonte: labjor / unicamp. pesquisa sobre percepção pública da c&t no estado de são paulo; mct (2007); eurobarômetro (european comission, 2005)

64% 60%

60

50

40

30 25% 20

19%

19%

20%

11% 10 5% 0

com frequência

de vez em quando

nunca

35 municípios, distribuídos nas 15 regiões administrativas (RAs). Vale ressaltar que esse foi o segundo levantamento direto em uma amostra da população a respeito de sua percepção da ciência realizado pelo Labjor e ambos estavam integrados a um esforço ibero-americano em torno da construção de indicadores capazes de refletir a cultura científica nessa região. A primeira enquete, feita entre 2002 e 2003, incluiu amostras das cidades de Campinas, Buenos Aires, Montevidéu, além de Salamanca e Valladolid, na Espanha, e seus resultados foram apresentados nos Indicadores de C,T&I em São Paulo - 2004, também publicado pela FAPESP. Já em 2007, a pesquisa, com a metodologia mais refinada e amostra ampliada, alcançou sete países: além do Brasil, Colômbia, Argentina, Chile, Venezuela, Panamá e Espanha. O núcleo comum do questionário era constituído por 39 perguntas e cada região podia desenvolver outras questões de sua livre escolha. O outro estudo brasileiro apresentado em Doha chama-se “Jornalismo científico na América Latina: conhecendo melhor os jornalistas de ciência na região” e, a rigor, ainda está em curso. Os resultados preliminares apresentados baseavam-se nas respostas a um questionário composto por 44 perguntas – desenvolvido pela London School of Economics and Political PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

29


Satisfação com o papel de informar Como os jornalistas científicos veem seu trabalho

completamente satisfeito

não sabe / não se aplica

9% 2% 2%

completamente insatisfeito

62%

satisfeito

8%

insatisfeito 17%

nem satisfeito nem insatisfeito

Science (LSE) –, encaminhadas até 21 de junho. Mas a essa altura, mais de 250 jornalistas responderam ao questionário, dentre eles aproximadamente 80 brasileiros, segundo sua coordenadora, a jornalista Luisa Massarani, diretora da Rede Ibero-americana de Monitoramento e Capacitação em Jornalismo Científico, instituição responsável pelo estudo, em parceria com o LSE. O levantamento tem ainda o apoio de associações de jornalismo científico e outras instituições ligadas à área de divulgação científica na Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, México, Panamá e Venezuela. No alvo desse estudo, como indicado, aliás, pelo título, está uma preocupação em saber quantos são, quem são e que visão têm da ciência os jornalistas envolvidos com a cobertura sistemática dessa área na América Latina. “Não temos ideia sobre isso, sequer sabemos quantos jornalistas de ciência existem no Brasil e se eles são ou não representativos dentro da categoria”, diz Luisa Massarani, que é também diretora do Museu da Vida da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e coordenadora para a América Latina da Rede de Ciência e Desenvolvimento (SciDev.Net). Até algum tempo, lembra, “a Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC), com base em seu registro de sócios, si30

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

tuava esse número em torno de 500, mas isso na verdade incluía cientistas e outros profissionais interessados em divulgação da ciência”. A propósito, a ABJC vai iniciar no próximo mês o recadastramento dos sócios, junto com uma chamada para novos associados, o que poderá contribuir para esse censo dos jornalistas de ciência no Brasil. Crença na ciência – Com 46 gráficos e

55 tabelas anexas que podem ser cruzados de acordo com o interesse específico de cada estudioso, o estudo de percepção da ciência bancado pela FAPESP e coordenado por Vogt permite uma infinidade de conclusões e novas hipóteses a respeito de como a sociedade absorve ciência por via da mídia ou como as várias classes sociais ou econômicas no estado de São Paulo reagem à exposição a notícias da área científica. Ao próprio coordenador, um dos pontos que mais chamaram a atenção nos resultados da pesquisa foi a relação inversa que ela permite estabelecer entre crença na ciência e informação sobre ciência. “O axioma seria quanto mais informação, menos crença na ciência”, diz. Assim, se consultado o gráfico relativo a grau de consumo autodeclarado de informação científica versus atitude quanto aos riscos e benefícios da ciência (gráfico 12.11, ver www.fapesp.br/indicadores/2010/

volume2/cap12.pdf), pode-se constatar que 57% dos entrevistados que declararam alto consumo acreditam que ciência e tecnologia podem oferecer muitos riscos e muitos benefícios simultaneamente e 6,3% acreditam que podem trazer muitos riscos e poucos benefícios. Já daqueles que declararam consumo nulo de informação científica, 42,9% veem muitos riscos e muitos benefícios ao mesmo tempo e 25,5% veem muitos riscos e poucos benefícios. “Ou seja, entre os mais informados é bem alta a proporção dos que veem riscos e benefícios na ciência ao mesmo tempo”, destaca Vogt, presidente da FAPESP de 2002 a 2007 e hoje coordenador da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp), indicando que essa seria uma visão realista. Registre-se que o grau de pessimismo é muito maior entre os que declararam consumo nulo de informação científica: 8,1% deles disseram que a ciência não traz nenhum risco e nenhum benefício, enquanto esse percentual foi de 5,8% entre os que declararam consumo baixo, de 2,3% entre os que se situaram na faixa de consumo médio baixo, de 0,7% na faixa médio alto e de zero entre os altos consumidores de informação científica. Na parte do trabalho sobre interesse geral em C&T, chama a atenção como o tema está medianamente situado pelos entrevistados em quinto lugar, depois de esporte e antes de cinema, arte e cultura, dentre 10 assuntos usualmente cobertos pela mídia (gráfico 12.1). Mas enquanto para esporte 30,5% deles se declaram muito interessados e 34,9%, interessados, em ciência e tecnologia são 16,3% os muito interessados e 47,1% os interessados, ou seja, a intensidade do interesse é menor. Vale também observar como os diferentes graus de interesse em C&T aproximam a cidade de São Paulo de Madri e a distanciam imensamente de Bogotá (gráfico 12.2). Assim, respectivamente, 15,4% dos entrevistados em São Paulo e 16,7% dos entrevistados em Madri declararam-se muito interessados em C&T; para a categoria interessado, os percentuais foram 49,6% e 52,7%; para pouco interessado, 25,5% e 24,8%, e para nada interessado, respectivamente, 9,4% e 5,9%. Já em Bogotá, nada menos que 47,5% declararam-se muito interessados. Por quê, não se sabe. Os interessados totalizam


33,2%, os pouco interessados, 15,3% e os nada interessados, 4%. Não há muita diferença no nível de interesse por idade. Jovens e pessoas mais velhas se distribuem democraticamente pelos diversos graus considerados (gráfico 12.6a). Já quanto ao grau de escolaridade, se dá exatamente o oposto: entre os muito interessados em ciência e tecnologia, 21,9% são graduados e pós-graduados, 53,9% têm grau de ensino médio, 21,5%, ensino fundamental, 1,7%, educação infantil e 1% não teve nenhuma escolaridade. Já na categoria nada interessado se encontra 1,2% de graduados e pós-graduados, 26,3% de pessoas com nível médio, 47,4% com ensino fundamental, 8,8% com educação infantil e 16,4% de pessoas que não tiveram nenhum tipo de escolaridade (gráfico 12.5). A par de todas as inferências que os resultados tabulados e interpretados dos questionários permitem, Vogt destaca que se a maioria da população não lê notícias científicas, ela entretanto está exposta de forma mais ou menos passiva à informação que circula sobre ciência. “Cada vez que o Jornal Nacional ou o Globo Repórter fala, por exemplo, sobre um alimento funcional, praticamente a sociedade como um todo passa a tratar disso nos dias seguintes”, diz. Ele acredita que pesquisas de mídia e de frequência do noticiário sobre ciência na imprensa poderão dar parâmetros de indicação para estudos que possam complementar o que já se construiu até agora sobre percepção pública da ciência.

A maioria da população não lê notícias científicas, mas está exposta passivamente à informação sobre o tema na TV, diz Vogt

Profissionais satisfeitos - Luisa Mas-

sarani observa que se hoje já se avançou nos estudos de audiência em muitos campos, especialmente para as telenovelas no Brasil, na área de jornalismo científico ainda não existem estudos capazes de indicar o que acontece em termos de percepção quando a pessoa ouve e vê uma notícia dessa especialidade no Jornal Nacional. “As pessoas entendem bem? A informação suscita desconfiança? Não sabemos.” De qualquer sorte, permanece em seu entendimento como uma grande questão o que significa fazer jornalismo científico, em termos da produção e da recepção. Por enquanto, o estudo que ela coordena conseguiu identificar que as mulheres são maioria entre os jornalistas de ciência na América Latina, 61% contra 39% de homens, e que essa é uma especialidade de jovens: quase 30% da

amostra situa-se na faixa de 31 a 40 anos e 23% têm entre 21 e 30 anos. De forma coerente com esse último dado, 39% dos entrevistados trabalham há menos de 5 anos em jornalismo científico e 23% entre 6 e 10 anos. E, o dado impressionante, 62% estão satisfeitos com seu trabalho em jornalismo científico e mais 9% muito satisfeitos. É possível que isso tenha relação com o fato de 60% terem emprego formal de tempo integral na área. Por outro lado, se os jornalistas de ciência da América Latina não têm muitas fontes oficiais que lhes deem um feed­­­­­back de seu trabalho, 40% deles es­­tão seguros de que seu papel é informar o público, 26% pensam que sua função é traduzir material complexo, 13% educar e 9% mobilizar o público. E avaliando o resultado do trabalho, 50% creem que o jornalismo científico produzido no Brasil é médio, 21% bom e somente 2% o classificam como muito bom. A melhor indicação do quanto os jornalistas de ciência gostam do que fazem está na resposta à questão sobre se recomendariam a outros a carreira. Nada menos do que a metade respondeu que sim, com certeza, enquanto 40% responderam que provavelmente sim. De qualquer sorte, ainda há um caminho a percorrer na definição do papel que cabe aos jornalistas entre os atores que dizem o que a ciência é e faz. “Quem são esses atores?”, indaga Vogt. “Os cientistas achavam que eram eles. Os governos acreditavam que eram eles. Mas hoje dizemos que é a sociedade. Mas de que forma?” n PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

31


[ cienciometria ]

Intercâmbio entre culturas

Ciências exatas e da Terra Biologia

Estudo evidencia o grau de exposição dos artigos científicos brasileiros

Engenharia Saúde

Fabrício Marques Agrárias Humanidades

A

Sociologia

pesquisa brasileira, como se sabe, vem ganhando espaço na geografia da ciência mundial – a contribuição do país para a produção científica internacional passou de 1,6% do total de artigos publicados em 2002 para 1,9% em 2006, segundo dados da base Thomson Reuters. Mas o peso dos diversos campos do conhecimento no desempenho brasileiro é desigual. Estudo divulgado na edição de julho da revista Scientometrics produziu um inédito levantamento sobre a performance de cada conjunto de disciplinas no total de artigos brasileiros divulgados em periódicos internacionais. O trabalho mostra que a área das ciências exatas e da Terra tem quase 70% de pesquisadores que publicam mais da metade de seus artigos em periódicos internacionais, aqueles divulgados em outros idiomas que não o português, enquanto em campos como linguística e artes mais de 80% dos pesquisadores só publicam em revistas nacionais (ver quadro). O estudo é assinado por Paula Leite, doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e por seus dois orientadores, Jacqueline Leta, professora da UFRJ, e Rogério Mugnaini, da Universidade de São Paulo (USP). Um dos destaques do artigo tem a ver com o ineditismo de sua fonte: ele se apoiou na análise de uma base de dados de mais de 51 mil pesquisadores da Plataforma Lattes, do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). “O Currículo Lattes é um exemplo único no mundo.

32

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

Linguística e artes


Visibilidade internacional Distribuição dos pesquisadores do país em oito campos do conhecimento, segundo os tipos de publicação que abrigaram seus artigos científicos (em %)

Altamente internacionais

Fonte: produção científica declarada na Plataforma Lattes - 2001 a 2004

0

20

Tem uma cobertura de toda a produção de pesquisadores brasileiros e é atualizado com frequência”, diz Jacqueline Leta. O grupo teve acesso a uma diversidade de dados de milhares de pesquisadores brasileiros, com sua produção científica entre os anos de 1997 a 2004. As informações também incluíam o nome de cada pesquisador, sexo, campo do conhecimento, ano da formatura, instituição, se foi ou não líder de uma pesquisa, se dispõe de bolsa de produtividade do CNPq e grau de proficiência em idiomas. A produtividade científica, medida pelo número de artigos, foi dividida em duas categorias: as publicações nacionais, aquelas divulgadas em português, e as internacionais, difundidas em outras línguas, notadamente o inglês. Entre toda a amostra, 7.076 pesquisadores não publicaram nenhum artigo em oito anos.

40

P

Internacionais na maioria

Intermediário

60

ara estimar o peso das publicações internacionais em cada setor da comunidade científica brasileira, Rogério Mugnaini, que tem formação em estatística e é professor de métodos quantitativos em políticas públicas da USP Leste, propôs o International Publication Ratio (IPR), ou Índice de Publicação Internacional, determinado pela razão entre o número de publicações internacionais e o número total de publicações. Como o desempenho revelou-se bastante heterogêneo, optou-se por descartar os pesquisadores que haviam produzido menos de três artigos no período, o que fez o número de pesquisadores analisados diminuir para 34.390 nomes. Esse universo foi classificado em cinco grupos. Os de IPR 1 são os “altamente internacionais”, aqueles que tiveram entre 80,1% e

Nacionais na maioria

Altamente nacionais

80

100

100% de artigos publicados em revistas em outros idiomas. Os de IPR 2 foram categorizados como “majoritariamente internacionais”, com 60,1% a 80% de publicações internacionais. Depois vêm o grupo intermediário (IPR 3), com 40,1% a 60% de publicações internacionais, o grupo dos “majoritariamente nacionais” (IPR 4), com 20,1% a 40% das publicações internacionais, e o dos “altamente nacionais” (IPR 5), com até 20% de publicações internacionais. A análise do desempenho segundo os campos do conhecimento mostra que as ciências exatas e da Terra, que reúnem disciplinas como física e química, lideram entre os mais internacionalizados. A metade de seus pesquisadores se enquadra na categoria dos “altamente internacionais”. Somados aos “majoritariamente internacioPESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

33


Revistas de física e de medicina citam artigos, enquanto as de ciências sociais preferem livros e as de veterinária, anais e teses

nais”, o grupo chega a quase 70% do total. Menos de 20% perfilam-se entre os “altamente nacionais”. Em seguida, aparecem biologia e engenharia, com cerca de 30% de pesquisadores com IPR 1, e as ciências da saúde, com cerca de 10%. As demais áreas ostentam menos de 10% de pesquisadores de IPR 1, na seguinte ordem: agrárias, humanidades, sociologia e linguística e artes. No caso das agrárias, há um pelotão de pelo menos 10% dos pesquisadores que se enquadra nas categorias “na maior parte nacionais” e “intermediário”. “É importante observar que a agricultura é um campo importante dentro da ciência brasileira, com um padrão de publicações particular com forte interesse regional da pesquisa”, escreveram os autores. Já as três últimas categorias, que compreendem as ciências humanas, apresentam 80% dos pesquisadores “altamente nacionais”, aquele grupo com menos de 20% de publicações internacionais. Os dados da pesquisa fornecem uma evidência forte das diferenças de culturas de publicação e citação entre as áreas do conhecimento. Enquanto a publicação de artigos em revistas internacionais, aquelas que têm mais visibilidade e reconhecimento, é uma exigência inescapável entre os pesquisadores de áreas como física, astronomia e medicina, os colegas da área de ciências agrárias têm o costume de divulgar a maior parte de sua produção em periódicos nacionais, assim como acontece entre os de ciências humanas, que também gostam de publicar em 34

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

livros. E essas distinções não se limitam ao tipo ou à origem da publicação. Rogério Mugnaini, que trabalhou na biblioteca eletrônica SciELO, é autor de outro artigo, publicado em dezembro de 2010, que mostrava as diferenças de comportamento também nas citações feitas nos artigos. Ele analisou o padrão de citações de revistas brasileiras na base SciELO. Constatou que livros são consideravelmente mais citados numa revista de ciências sociais aplicadas, enquanto a área de saúde coletiva faz uso deste tipo de documento em proporções equiparáveis com os artigos científicos. Nas revistas de física e medicina as citações a revistas internacionais são muito mais prevalentes. E em revistas de veterinária e de ciência da informação destacam-se os anais e teses. “Um questionamento que direcionou essa análise foi a forte dependência de indicadores de impacto, cujo cálculo se baseia estritamente em citações recebidas de artigos”, afirma Mugnaini. “Ao se analisar as bases de dados de revistas percebe-se que outros tipos de documento têm relevância para a literatura publicada nas revistas de diferentes áreas”, diz.

U

ma discussão que os autores fazem se relaciona à adequação da estratégia de forçar os pesquisadores a publicar seus achados preferencialmente em revistas internacionais de alto impacto. “Cada área tem uma dinâmica particular. Mesmo renomados pesquisadores de sociologia ou ciências humanas do país têm a maioria de seus artigos publicados no Brasil e em por-

tuguês”, diz Jacqueline Leta. “Será adequado forçar pesquisadores de certas áreas a fazer algo que eles não desejam ou não estão qualificados a fazer? Esta é a pergunta que precisa ser discutida pela comunidade científica e os responsáveis pela formulação de políticas”, afirma a professora. Rogério Mugnaini observa que cada área vem negociando critérios próprios – e eventualmente inspirando-se no exemplo de outros – para pautar sua estratégia de internacionalização. Ele cita as diferentes regras que as coordenações de área da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) adotaram para evitar traumas e distorções no sistema Qualis, ferramenta usada para classificar os periódicos nos quais os programas de pós-graduação publicam sua produção científica, que valoriza as revistas com fator de impacto maior, caso de muitas das internacionais. “Na área de probabilidade e estatística decidiu-se contemplar não apenas o fator de impacto, mas também a meia-vida da revista. Isso para não equiparar revistas consolidadas com outras que, em busca de impacto, privilegiam a pesquisa de interesse imediatista”, afirma Mugnaini. Outras áreas, como a ciência de computação, associam o fator de impacto a citações do Google Acadêmico, um sinal de aplicação do conhecimento. “Há revistas das áreas médica e biológica que são valorizadas por sua importância independentemente de seu fator de impacto, enquanto nas ciências sociais o que vale é apenas a revista estar indexada, pois não faz sentido pensar em fator de impacto”, afirma o pesquisador. Tais negociações, contudo, não representaram obstáculo para a visibilidade no exterior da produção científica, observa Mugnaini. “A cada triênio, a Capes volta a avaliar os cursos de pós-graduação e coloca o sarrafo um pouco mais alto”, observa. O artigo da Scientometrics mostra que, por mais difícil que seja criar políticas que envolvam todas as áreas do conhecimento, o caminho da internacionalização está fazendo efeito. Apesar das culturas de publicação de cada área, todas apresentaram um aumento no índice de publicações internacionais, quando se comparou o período de 2001 a 2004 e o n de 1997 a 2000.


[ Comemoração ]

Debate em Washington

U

m simpósio em Washington no final de outubro fará parte das comemorações dos 50 anos da FAPESP, que se completam em maio de 2012. A FAPESP Week acontece entre os dias 24 e 26 de outubro, no Woodrow Wilson International Center for Scholars, na capital norte-americana, e vai promover debates entre cientistas brasileiros de diversos campos do conhecimento, cujos temas de pesquisas têm sido apoiados pela Fundação, e colegas dos Estados Unidos. As sessões abrangerão temas como óptica e fotônica, mudanças climáticas, biodiversidade, genômica, bioenergia, câncer, vacinas, doenças infecciosas e tropicais e o estudo das relações entre Brasil e Estados Unidos. O evento é promovido pelo Wilson Center, a National Science Foundation, a Ohio State University e a FAPESP. O Wilson Center é um memorial criado pelo Congresso dos Estados Unidos em 1968 para lembrar o presidente que governou o país entre 1913 e 1921. Tornou-se um fórum de debates entre intelectuais e especialistas sobre grandes questões, com ênfase nas humanidades e nas ciências sociais. Em 2006 criou dentro de seu programa latinoamericano o Brazil Institute, dirigido pelo jornalista Paulo Sotero, cujo foco são as relações entre o Brasil e os Estados Unidos. A sessão de abertura, no dia 24, terá a participação de Celso Lafer, presidente da FAPESP; Michael van

wilson center

Wilson Center sedia simpósio sobre a ciência brasileira que marca os 50 anos da FAPESP

Sede do Wilson Center: discussões sobre grandes temas

Dusen, vice-diretor do Wilson Center; Cora Marrett, vice-diretora da National Science Foundation; Daniel Janies, do Ohio State University Medical Center; e de Paulo Sotero. Em seguida, o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, apresentará um panorama da ciência e da tecnologia no estado de São Paulo. As sessões do primeiro dia abordarão temas sobre os quais os pesquisadores paulistas têm produzido contribuição expressiva. O primeiro deles será óptica e fotônica, campo explorado por dois dos 11 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), da FAPESP. Em seguida, os assuntos serão biodiversidade e mudanças climáticas, que inspiraram dois programas especiais da Fundação, o Biota-FAPESP e o Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais. Também estão previstas uma palestra do biólogo norte-americano

Thomas Lovejoy, criador do conceito de biodiversidade e um estudioso da Amazônia, e a exposição Brazilian nature mystery and destiny, que se baseia em imagens e dados de três projetos financiados pela FAPESP, a Flora brasiliensis on-line, a Flora fanerogâmica do estado de São Paulo e o Biota-FAPESP. No segundo dia, os temas abordados serão a genômica de plantas e a bioenergia, alvos do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen). Na parte da tarde, as discussões terão como motes as relações entre Brasil e Estados Unidos, objeto de análise tanto de pesquisadores paulistas quanto do Brazil Institute do Wilson Center, e estudos em ciência política e política urbana. No terceiro e último dia, os assuntos em debate serão o desenvolvimento de drogas e vacinas no Brasil, a pesquisa sobre câncer, células-tronco e doenças genéticas, doenças infecciosas e doenças tropicais. n Ver a programação completa em www.fapesp.br/week/ PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

35


[ Ética ]

Boas práticas científicas

A

FAPESP lançou seu Código de boas práticas científicas, conjunto de diretrizes éticas para a atividade profissional dos pesquisadores que recebem bolsas e auxílios da Fundação. O documento, o primeiro do gênero de uma grande agência de fomento brasileira, organiza normas que, em diversos casos, já faziam parte da rotina da Fundação e de muitas instituições de pesquisa, como a necessidade de pesquisadores e avaliadores declararem situações de conflito de interesses ou a importância de conservar os registros da pesquisa após a publicação dos resultados. Em outros aspectos, o código busca definir normas para práticas sobre as quais pode haver interpretações divergentes. No que diz respeito à indicação dos autores de um trabalho científico, por exemplo, estabelece que devem ser incluídos apenas aqueles que tenham dado contribuições intelectuais diretas e substanciais para a concepção e realização da pesquisa. E esclarece que a cessão de recursos financeiros e de infraestrutura “não é condição suficiente para uma indicação de autoria de trabalho resultante dessa pesquisa”. O código parte do princípio de que todo cientista é eticamente responsável pelo avanço da ciência e deve conduzir-se “com honestidade intelectual, objetividade e imparcialidade, veracidade, justiça e responsabilidade”. “Há uma tendência crescente de trabalhar a ideia das boas práticas de conduta, no âmbito social, econômico e cultural”, disse o presidente da FAPESP, Celso Lafer. “Como a atividade de pesquisa ampliou-se muito nos últimos anos, era necessário colocar de forma mais explícita os padrões de conduta esperados”, afirmou. A elaboração do código levou em conta a experiência internacional acumulada em relação à

36

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

questão da integridade ética da pesquisa. Serviram como referência códigos de conduta e manuais de procedimentos adotados por agências como a National Science Foundation e os National Institutes of Health, dos Estados Unidos; o Research Councils UK, do Reino Unido; a European Science Foundation; e as agências australianas de fomento. O código começou a ser discutido internamente na Fundação há cerca de um ano. Para dar respaldo ao debate, um documento de trabalho tratando da experiência de outros países foi produzido por Luiz Henrique Lopes dos Santos, professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador adjunto de Ciências Humanas e Sociais da FAPESP, além de coordenador científico da revista Pesquisa FAPESP. Intitulado “Sobre a integridade ética da pesquisa”, o texto apresenta um panorama internacional sobre a questão e indica a existência de três tipos de abordagem. Num deles, em que se incluem países como o Brasil e a França, não há políticas sistemáticas de promoção e prevenção nem mecanismos permanentes a lidar com a questão. No segundo, figuram países como Estados Unidos, Noruega e Dinamarca, que dispõem de uma estrutura coordenada por órgãos dotados de poder e dever legalmente atribuídos. No terceiro, estão nações como Alemanha, Reino Unido, Canadá e Austrália, onde não há órgãos instituídos para regular e supervisionar as atividades relativas à integridade da pesquisa, mas onde as agências nacionais de fomento assumiram funções regulatórias. Há dois meses, o texto final do código foi aprovado pelo Conselho Superior da FAPESP. Posteriormente, foi apresentado e discutido com os pró-reitores de Pesquisa das três universidades estaduais paulistas e com representantes da Sociedade

CSA Images / GettyImages

FAPESP lança código para preservar a integridade da pesquisa


Algumas diretrizes Sobre a concepção, a proposição e a realização da pesquisa científica, o pesquisador deve: • ... visar oferecer uma contribuição que julgue ser original e relevante ao avanço da ciência. • ... estar convencido de que dispõe da capacidade científica para bem realizar seu projeto de pesquisa, assim como dos recursos humanos e institucionais necessários para sua boa realização. • ... expor com precisão e objetividade os fatores positivos e negativos que julgue capazes de influir na determinação do grau de originalidade, relevância e viabilidade do projeto. • ... declarar a existência de qualquer conflito potencial de interesses que possa afetar a fidedignidade científica dos resultados do desenvolvimento do projeto.

• ... lançar mão dos procedimentos que julgue serem cientificamente os mais apropriados e deve realizá-los da maneira que julgue ser cientificamente a mais apropriada para a obtenção dos fins científicos visados. • ... até a publicação dos resultados finais da pesquisa manter em sigilo os dados e informações coletados, os procedimentos realizados e os resultados parciais obtidos, exceto quando sua divulgação for expressamente autorizada por todos os colaboradores ou por todos os coordenadores da equipe. • ... informar seus dados curriculares de maneira veraz, completa e precisa.

Fonte: Código de boas práticas científicas / FAPESP

Disponível em: www.fapesp.br/boaspraticas/codigo_050911.pdf

Brasileira para o Progresso da Ciência e da Academia Brasileira de Ciências, que receberam bem a iniciativa. “A FAPESP busca contribuir para que a gente possa ter na comunidade de pesquisa do estado de São Paulo uma cultura cada vez mais sólida de integridade ética na pesquisa. Trata-se de uma preocupação mundial”, disse Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da Fundação. O código estabelece que as instituições de pesquisa com projetos financiados pela Fundação devem incluir em seu organograma instâncias encarregadas tanto de promover a cultura de integridade ética, por meio de programas regulares de educação, disseminação e treinamento, quanto de investigar e, se for o caso, punir a ocorrência de possíveis más condutas científicas e reparar os prejuízos científicos que tenham causado. “Nosso objetivo é desenvolver uma cultura que valorize as boas práticas, baseada em três pilares: a educação, a prevenção e a investigação, com sanções justas e rigorosas”, disse Brito Cruz. No campo da educação, as instituições deverão promover cursos, workshops e outras atividades que mantenham con-

tinuamente a discussão sobre as boas práticas na agenda de estudantes e pesquisadores. “A questão da educação é fundamental, pois a educação ética é inseparável da educação científica”, disse Luiz Henrique Lopes dos Santos. “Nem sempre é trivial, e frequentemente requer perícia científica, distinguir que dados são relevantes e que dados não são relevantes para a confirmação ou não de uma hipótese científica, quando se trata de estabelecer se um certo artigo relata com fidelidade todos os dados relevantes para a ponderação do grau de corroboração que propõe para suas hipóteses”, afirmou. No campo da prevenção, o objetivo é garantir que pesquisadores e orientadores, se tiverem dúvidas ao enfrentar situações concretas, encontrem respaldo da instituição para resolvê-las – e que eventuais denúncias possam ser recebidas sem que o autor fique vulnerável a retaliações. As más condutas graves mais típicas e frequentes, na definição do documento, são a fabricação de dados; a falsificação de informações, apresentando-as de forma imprecisa ou incompleta a ponto de interferir nas conclusões; e

o plágio, definido como a utilização de ideias ou formulações de outra pessoa sem dar o devido crédito. Alegações de má conduta científica deverão ser investigadas pelas instituições, que farão uma avaliação preliminar, num prazo não maior do que 30 dias. Caso as evidências sejam consistentes, deverá ser aberto um processo de investigação formal. Os acusados serão notificados e a FAPESP avisada sobre a alegação. A investigação deve durar um prazo não superior a 90 dias, durante os quais serão levantadas evidências, depoimentos e pareceres técnicos, com amplo direito de defesa. Se o relatório final não for considerado satisfatório, a FAPESP poderá fazer novo processo de investigação. As medidas punitivas que podem ser impostas pela Fundação incluem, entre outras, o envio de uma carta de repreensão aos autores da má conduta, a suspensão temporária da prerrogativa de solicitar auxílios e bolsas à FAPESP; e a devolução de recursos concedidos para a realização da pesquisa a que se relacionam os problemas. n

Fabrício Marques PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

37


[ história V ]

Competição no céu Investimento contínuo da FAPESP ajudou astrônomos e astrofísicos a produzir ciência de nível internacional

38

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

fotos Ricardo Zorzetto

S

e nos anos 1960 a FAPESP já tinha um papel importante na distribuição de bolsas e na importação de equipamentos vinculados à pesquisa em astronomia e astrofísica, no passado recente a Fundação passou a investir fortemente em infraestrutura capaz de dar competitividade internacional à comunidade científica brasileira nesse campo do conhecimento. Não se tratou apenas de integrar consórcios internacionais que propiciaram aos astrônomos tempo de observação em potentes instalações, como o Observatório Austral de Pesquisa Astrofísica (Soar), desenhado para obter imagens com excelente qualidade do céu na faixa da luz visível ao começo do infravermelho, e o Observatório Pierre Auger, concebido para captar raios cósmicos de alta energia, ambos na cordilheira dos Andes. A FAPESP também estimulou a criação de competência nacional na fabricação de instrumentos sofisticados instalados nos observatórios. “Criar programas de instrumentação de ponta, como os que conseguimos fazer, é um passo fundamental para quem aspira produzir ciência de primeira divisão”, afirma o astrofísico João Steiner, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG), da Universidade de São Paulo (USP), que integrou o conselho diretor do Soar por 12 anos e participou do projeto do telescópio desde sua concepção, no início dos anos 1990. Na primeira década de atividade da FAPESP, entre 1962 e 1971, a astronomia chegou a absorver mais de 1% dos recursos da Fundação. Os investimentos, conforme registrou o livro Pesquisa e desenvolvimento, lançado por ela no início dos anos 1970, eram dedicados principalmente a bolsas, viagens a congressos, vinda de professores estrangeiros e


Milhares de fibras ópticas finíssimas conectam o espectrógrafo Sifs ao telescópio Soar (esq.)

compra de equipamentos. As pesquisas realizadas no Observatório Astronômico da USP, então situado no Parque do Estado da capital paulista, receberam auxílios entre 1962 e 1967. A principal contribuição da FAPESP foi ter custeado a instalação e manutenção do astrolábio Danjon, instrumento através do qual é possível registrar com grande precisão o instante de passagem de um astro por uma altura fixa do céu, assim como o treinamento de pessoal para utilizá-lo. O Centro de Rádio Astronomia e Astrofísica do Mackenzie (Craam), criado em 1960, é testemunha dos investimentos da Fundação em astronomia desde os seus primórdios. O financiamento foi fundamental para que o grupo se mantivesse em seus primeiros anos. “Procuramos o então diretor científico da FAPESP, o geneticista Warwick Kerr. Ele nos orientou sobre a apresentação de projeto que permitiu comprar uma série de equipamentos básicos, todos de segunda mão, mas de grande qualidade, como osciloscópios geradores de sinal que haviam sido construídos pelos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial”, lembra o físico brasileiro Pierre Kaufmann, até hoje pesquisador do Craam. Segundo ele, a orientação da FAPESP foi fundamental, também, para que o grupo, formado ainda por muitos astrônomos

amadores e estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Mackenzie, conseguisse recursos de outras fontes, como o Escritório Americano de Ciência para a América Latina. Em sua primeira década de existência, o grupo teve mais de 50 artigos científicos publicados em revistas especializadas. A aposta da Universidade Mackenzie na astronomia teve apoio da FAPESP em várias fases: como na consolidação de um rádio-observatório no Parque do Ibirapuera, em 1962, sua transferência para Campos do Jordão, em 1964, e a mudança para uma área no bairro de Itapetinga, próximo de Atibaia, no final dos anos 1960. Ali, em 1971, foi instalado o radiotelescópio para ondas milimétricas com diâmetro de 13,4 metros – onde o grupo teve extensa produção em radioastronomia. A antena de Atibaia foi a primeira do tipo no hemisfério Sul. Hoje tem pouco uso. “Já não é competitiva como antigamente”, diz Kaufmann. A equipe do físico seguiu fazendo ciência de classe mundial no Telescópio Solar para Ondas Submilimétricas (SST), instalado no final dos anos 1990 no complexo astronômico El Leoncito, a 2,6 mil metros de altitude nos Andes argentinos. Foi lá que, em 2004, Kaufmann e colegas argentinos identificaram um novo tipo de explosão solar, PESQUISA FAPESP 1878 outubro DE 2011 n

n

39


divulgação / observatório pierre auger

-se na área óptica e de infravermelho, apoiada pelo LNA, Soar e Gemini. Outros 18% trabalham com astronomia teórica e 11% com radioastronomia – 3% dividem-se em outras áreas. Instrumentos - O projeto do Soar

Estação do observatório Pierre Auger: detecção e estudo de raios cósmicos

produzindo os chamados raios T. Captados pela antena de 1,5 metro do SST, ultrapassaram o limite de 100 gigahertz (GHz), até então a frequência máxima de energia na faixa de rádio observada nas explosões solares. O grupo de Kaufmann detectou a radiação em duas frequências: 212 e 405 GHz ou 0,2 e 0,4 terahertz, a unidade de medida adotada, que explica o nome dessa radiação e a situa no espectro entre as ondas de rádio e a luz visível. “A emissão dessa forma de radiação é o fenômeno de mais alta intensidade, comparada com a de outras faixas de energia liberadas nas explosões solares”, diz Kaufmann, coordenador do estudo que relata a identificação dos raios T em explosão solar na Astrophysical Journal Letters. Inaugurada em 1999, a antena do SST custou US$ 1,26 milhão, financiada pela FAPESP, e segue em atividade. “Até os anos 1980, a FAPESP foi fundamental para a criação de massa crítica, que aproveitaria os investimentos em infraestrutura feitos a partir dos anos 1990”, diz João Steiner, do IAG. A Fundação ajudou a comprar equipa40

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

permitiu que o país aprendesse a desenvolver instrumentos astronômicos sofisticados. O custo de construção do observatório foi de US$ 28 milhões, cabendo ao Brasil uma contribuição de US$ 14 milhões (os Estados Unidos são o parceiro na empreitada), divididos entre o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que destinou US$ 12 milhões, e a FAPESP, com participação de US$ 2 milhões. Já os instrumentos desenvolvidos para o telescópio foram majoritariamente patrocinados pela FAPESP. Foi o caso, por exemplo, do espectrógrafo de campo integral do Soar (Sifs). Instalado em 2010, custou US$ Engajamento 1,42 milhão, sendo 79% bancados pela FAPESP, de empresas na 15% pelo LNA, do governo federal, e 6% por produção de um programa do CNPq. Com 3 mil peças e finísmentos para o Laboinstrumentos simas fibras ópticas, o ratório Nacional de Sifs é capaz de fracionar Astrofísica (LNA), ajudou na a imagem de um objeto em Itajubá (MG), que celeste em 1.300 partes foram usados por formacão de iguais e, a um só temgrupos de pesquisapo, registrar o espectro dores de São Paulo estudantes e de todas elas. e de outros estados. Em meados de 2009, Inaugurado em 1981, pós-doutores outro equipamento proo telescópio de 1,60 jetado e construído com metro do LNA instaa participação de brasilado no Observatóleiros havia sido conectado ao Soar: rio Pico dos Dias, em Brasópolis, Mia câmera Spartan, especializada em nas Gerais, foi o primeiro laboratório imagens no infravermelho – radiação efetivamente criado no Brasil. “Mas o LNA também perdeu competitividaeletromagnética percebida pelos seres humanos na forma de calor e capaz de, daí a importância da participação de atravessar as gigantescas nuvens de brasileira nos observatórios Gemini, poeira interestelar que ocultam galáem 1993, e Soar, em 1998”, diz Steiner, xias e berçários de estrelas. No caso referindo-se a dois telescópios usados da Spartan, a FAPESP bancou 55% da pelos astrônomos brasileiros nos Andes chilenos. Esse investimento, diga-se, contribuição brasileira para o projeto. Outro equipamento recém-entregue ajudou a moldar a comunidade cientíé o filtro imageador ajustável brasifica em astronomia. Um levantamento leiro (BTFI), equipamento de US$ 1 feito por Steiner mostra que 61% das milhão (82% investidos pela FAPESP) lideranças científicas de astronomia, que permitirá identificar a composiaquelas que têm bolsas de produtividação química e medir os movimentos de do CNPq nível 1 e 2, concentram-


miguel boyayan

relativos internos dos objetos celestes. Por fim, há o espectrógrafo Échelle do telescópio Soar (Steles). Como o Sifs, o Steles analisará as cores da luz emitida por estrelas e galáxias, mas enxergará uma proporção maior do espectro da luz visível – e com melhor resolução. A FAPESP bancou 44% do custo de US$ 1,2 milhão. O Soar é dotado de um espelho de 4,1 metros de diâmetro, a metade do tamanho de seu vizinho Gemini, cujo consórcio o Brasil também integra. “Houve quem estranhasse o investimento num telescópio com espelho de quatro metros, quando o país já tinha acesso a um de oito metros”, diz Cláudia Mendes de Oliveira, professora do IAG-USP e coordenadora de Astronomia e Ciência Espacial da FAPESP. “A verdade é que eles são muito complementares. E no Gemini, que era mais complexo, não teríamos a chance de investir no desenvolvimen­to instrumental, como fizemos com o Soar”, afirma. Em 2007, o resultado de uma observação feita no Soar por um brasileiro foi registrada pela revista Nature. Quase dois anos antes, na madrugada de 25 de setembro de 2004, o observatório espacial norte-americano Swift emitiu um alerta com as coordenadas do que poderia ser uma explosão de raios gama – a morte de uma estrela com massa dezenas de vezes superior à do Sol que se transforma em um buraco negro – ocorrida na constelação de Peixes.

Um dos fotodetectores de raios cósmicos, em imagem feita em 2003

Conexão - Também no Observatório

Investimento em grandes observatórios busca manter competitivo o trabalho dos astrônomos brasileiros

Eduardo Cypriano, astrônomo residente do Soar, trabalhava naquela noite e detectou os primeiros sinais da explosão. Os novos equipamentos do Soar começam a impulsionar a produção científica em áreas como os núcleos ativos de galáxias, anãs brancas pulsantes e explosões de raios X. Quando estiverem funcionando plenamente, diz Steiner, a astronomia brasileira vai mudar de patamar.

Pierre Auger a FAPESP, que ajudou a financiar a participação brasileira, adotou a estratégia de conectar um grande projeto de ciência fundamental com o desenvolvimento industrial nacional. Um grupo de empresas de alta tecnologia trabalhou na pesquisa de uma rede de detectores de raios cósmicos e no seu gerenciamento. “Os recursos permitiram a presença de um grande contingente de professores, pós-doutores e estudantes de graduação trabalhando na instalação e operação do observatório”, diz o físico Carlos Escobar, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que coordenou a participação brasileira no Pierre Auger. Montado em Malargue, nos Andes argentinos, por um consórcio de 17 países, o Pierre Auger é a maior instalação voltada para a detecção e o estudo dos raios cósmicos ultraenergéticos, que podem chegar a energias cerca de 10 milhões de vezes superiores às alcançadas pelos atuais aceleradores de partículas. O grupo brasileiro foi responsável pelo projeto e instalação de componentes dos telescópios de fluorescência, desenvolvidos pelas indústrias brasileiras Equatorial, Estrutural e Schwantz. O Brasil forneceu mais da metade dos 1.660 tanques Cerenkov que constituem os detectores básicos do observatório. “Também foi intensa a participação das empresas brasileiras Alpina e Rotoplastyc. A interação com as indústrias foi benéfica para os pesquisadores, em especial os estudantes e pós-doutores, que tiveram um aprendizado sobre os desafios de desenvolver instrumentação de grande porte no Brasil e hoje vários deles estão liderando seus próprios projetos, com envolvimento industrial brasileiro. Já as indústrias melhoraram seus produtos, agregando-lhes melhor tecnologia”, diz Escobar. Os equipamentos fornecidos pelo Brasil ao observatório, que custaram US$ 4,1 milhões, foram bancados pela FAPESP (61%), Finep (24%) e CNPq (15%). A participação no Pierre Auger rendeu ao país a publicação de 25 artigos em revistas internacionais, que receberam mais de 1.300 citações em um intervalo de 10 anos. “Formamos mais de 20 doutores e 20 mestres em temas relacionados ao Pierre Auger”, diz Escobar. n

Fabrício Marques PESQUISA FAPESP 1878 outubro DE 2011 n

n

41


cern

laboratório

Mais rápidos que a luz

Marcos André / Opção Brasil Imagens

Em 23 de setembro, físicos do experimento Opera promoveram um concorrido seminário no Centro Europeu de Pesquisas Nucleares, o famoso Cern, em Genebra, para explicar uma notícia quase inacrediável que havia ganhado os meios de comunicação no dia anterior: tinham indicações persistentes de que um feixe das partículas denominadas neutrinos percorrera os 730 quilômetros que Físicos no Cern se separam o instituto científico na cireúnem para debater velocidade de neutrinos dade suíça e o Laboratório Nacional de Gran Sasso, na Itália, a uma velocidade 60 nanossegundos superior à da luz. O anúncio causou um misto de perplexidade e ceticismo O ritmo da Chuva na comunidade científica. De acordo com a teoria da relativino nordeste dade de Albert Einstein, a velocidade da luz, de cerca de 300 A análise dos dados diários mil quilômetros por segundo, é o limite cósmico da velocidade de chuva registrados na natureza. “O resultado foi uma surpresa completa”, disse o por meio de 600 estações físico Antonio Ereditato, da Universidade de Berna, porta-voz meteorológicas dos nove do experimento. “Depois de meses de estudos e checagens estados do Nordeste cruzadas, não encontramos nenhum efeito instrumental que brasileiro indica que pudesse explicar essa medida. Vamos continuar os estudos a variação da precipação no Opera, mas estamos também ansiosos para que medições pluviométrica está longe independentes sejam feitas para entender a natureza dessa de ser uniforme em toda observação.” A equipe do experimento também divulgou um artigo científico com os detalhes de suas medições. a região, considerada a

Interior da Bahia: precipitações oscilantes 42

outubro DE 2011

PESQUISA FAPESP 188

mais seca do país. Nas localidades do semiárido, a quantidade de dias em que esse fenômeno ocorre ao longo dos meses do ano oscila muito mais do que na zona da mata e no agreste. Esse tipo de variação também está presente quando se compara a média de dias de chuva dos estados nordestinos. De acordo com um estudo de pesquisadores da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e da Universidade Federal de Sergipe (UFS), no

Maranhão, por exemplo, pode chover apenas dois dias por mês (em agosto e setembro) ou 18 dias em março (Revista Brasileira de Engenharia Agrícola e Ambiental). Em Sergipe, o número de dias de chuva num mês vai de um mínimo de quatro (em novembro, dezembro e janeiro) a um máximo de 16 (em julho). Para calcular as médias pluviométricas, o estudo levou em conta informações levantadas apenas por estações meteorológicas que operam continuamente ao longo de 30 anos. Foi considerado um dia com chuva quando houve precipitação superior a 0,1 milímetro. De acordo com o estudo, o padrão de chuvas em algumas localidades, como na pernambucana Juazeiro dos Cândidos, foi completamente aleatório no período estudado.


catarina bessell

Sutilezas de um bom nariz

tumores iluminados O uso de uma substância fluorescente ajudou cirurgiões a remover células tumorais em ovário, que de outro modo não seriam reconhecidas nem eliminadas. Vasilis Ntziachristos, da Universidade de Munique, Alemanha, e colaboradores da Holanda e dos Estados Unidos verificaram que os tumores possuem muito mais receptores celulares para o folato, também conhecido como vitamina B9, do que as células normais. Em seguida, viram

que o folato se ligava ao isotiocianato fluorescente. Os pesquisadores injetaram a etiqueta fluorescente em pacientes e, por meio de uma câmara e uma luz especiais, identificaram as células tumorais malignas brilhando após se juntarem ao isotiocianato. Nenhuma reação foi observada nos tumores benignos. A técnica aumentou a precisão das cirurgias e permitiu a retirada de tumores com menos de um milímetro de diâmetro (Nature Medicine, 18 de setembro). O próximo passo é verificar se o método amplia a taxa de sobrevida das pessoas tratadas.

A Planta que se planta Em colaboração com pesquisadores de universidades dos Estados Unidos e da Europa, um botânico amador que vive no litoral norte da Bahia, o russo Alex Popvkin, descreveu uma nova espécie de planta da mata atlântica que se “ajoelha” e enterrra a própria semente. Por ser o primeiro membro de sua

Alex Popvkin

Rémy, o rato-gourmet do desenho animado Ratatouille, tem um olfato fantástico. Um novo estudo indica que sua aptidão pode realmente fazer sentido. Pesquisadores da Universidade Harvard, Estados Unidos, identificaram 88 receptores do chamado órgão vomeronasal em ratos. Complementar ao olfato, o sistema vomeronasal exerce um papel importante no acasalamento ou no comportamento defensivo. Neurônios vomeronasais acionados por odores específicos de urina, lágrima e saliva de ratos já haviam sido descobertos. Agora um estudo mais amplo, provavelmente o maior já feito, lista receptores que podem ser ativados por odores agradáveis ou desagradáveis específicos (Nature, 21 de setembro). Há receptores ativados exclusivamente pelo cheiro de cobras e outros pelo de outros predadores, indicando a complexa maquinaria sensorial que regula o comportamento defensivo, social e sexual dos ratos. Muitos receptores sexuais são exclusivos de machos ou fêmeas. Apenas dois, por enquanto, são comuns aos dois sexos.

família a exibir esse comportamento adaptativo, o vegetal recebeu o nome científico de Spigelia genuflexa. Durante a maturação do fruto, as inflorescências basais da S. genuflexa inclinam-se em direção ao solo e depositam as sementes sobre a superfície ou as enterram sob os musgos. “É a primeira publicação minha sobre botânica que sai numa revista com peer review”, diz o russo, cujo trabalho apareceu em setembro no periódico PhytoKeys. Os exemplares da planta foram encontrados no solo arenoso da Fazenda Rio do Negro, no município de Entre Rios, de propriedade de Popvkin. Um empregado se interessou pelas flores brancas e rosas de um exemplar do vegetal, que chega no máximo a 25 centímetros de altura, e o levou para a avaliação de Popvkin. Depois de fazer fotos da planta e colocá-las na internet, o botânico amador iniciou uma parceria de estudos com pesquisadores do exterior que redundou na descrição da nova espécie e na publicação do artigo numa revista internacional.

S. genuflexa se curva para enterrar semente PESQUISA FAPESP 188

outubro DE 2011

43


A dieta de Luzio Homem pré-histórico morava em beira de rio há 10 mil anos, mas quase não comia peixe Marcos Pivetta

44

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188


Ciência

[ Arqueologia ]

fotos eduardo cesar

A

Dentes de Luzio: bem preservados e com poucas cáries

dieta do habitante pré-histórico mais antigo encontrado em terras do estado de São Paulo reforça a ideia de que existiu no Vale do Ribeira, perto da divisa com o Paraná, um povo com uma cultura intermediária entre o modo de vida do litoral e o do planalto. Luzio, apelido dado ao esqueleto humano de 10 mil anos de idade descoberto em 2000, vivia na bacia do rio Jacupiranga, distante algumas dezenas de quilômetros da costa, mas tinha uma cultura com certos elementos que o conectavam ao mar. No sítio em que foi achado, havia centenas de pontas de flecha de pedra e adornos feitos com dentes de macaco, mas também uns poucos enfeites elaborados com dentes de tubarão e pontas de rabo de arraia. Luzio tinha marcas de remador ou nadador em sua clavícula e fazia cemitérios em que os mortos eram cobertos por uma grossa camada de conchas – um tipo de vestígio arqueológico conhecido como sambaqui, característico das antigas populações do litoral e apenas eventualmente encontrado nas cercanias de rios brasileiros. Apesar desses elementos que o ligavam ao mundo aquático, Luzio comia qual um morador do Brasil central, segundo estudo publicado em 14 de setembro na revista científica Plos One. Seu cardápio do dia a dia era composto de carne de caça, provavelmente de roedores, porcos-do-mato e veados, alguns tubérculos, frutas e – agora vem o dado interessante – quase nenhum peixe ou crustáceo, seja de origem marinha ou mesmo fluvial. A reconstituição do repasto típico de velho morador do sambaqui de rio foi feita pela bioantropóloga Sabine Eggers, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), em parceria com três pesquisadores do exterior. A partir de amostras de uma proteína (colágeno) e de um mineral (apatita) extraídos de ossos de Luzio, a pesquisadora analisou a presença de diferentes formas, os chamados isótopos, de dois elementos químicos, o carbono e o nitrogênio. “Por essa abordagem, conseguimos inferir como foi a alimentação do Luzio nos últimos seis meses de

vida”, diz Sabine, especialista em estudar a dieta e as doenças dos povos antigos. “Não dá para dizer que ele nunca comeu peixe, mas, com certeza, esse item não era frequente em seu cardápio.” Os testes com isótopos foram feitos em dois laboratórios distintos e ambos deram o mesmo resultado. De baixa estatura, com cerca de 1,60 metro, Luzio recebeu esse nome porque seus traços lembravam os de Luzia, o crânio humano mais antigo encontrado no Brasil, pertencente a uma jovem que viveu há 11 mil anos em Lagoa Santa, nos arredores de Belo Horizonte. Luzio e Luzia tinham, no jargão dos especialistas, traços negroides, semelhantes aos dos atuais aborígenes australianos e africanos. A maioria dos autores acredita que esse tipo físico não deixou descendentes no continente americano. As atuais tribos de ameríndios derivam de antigas populações de traços ditos mongoloides (com os olhos puxados), típicas da Ásia, que, segundo alguns modelos de ocupação das Américas, se estabeleceram aqui posteriormente. Quando foi resgatado do sítio arqueológico de Capelinha I, no município de Cajati, durante escavações patrocinadas por um projeto temático da FAPESP, Luzio forneceu indícios de que podia ter uma dieta singular (ver reportagem de Pesquisa FAPESP na edição no 112, de junho de 2005). Para algúem que viveu há 10 milênios, seus dentes estavam bem conservados e exibiam somente um leve desgaste horizontal. “Encontramos no Luzio apenas quatro microcáries”, conta Sabine. “Nos habitantes de sambaquis de mar é comum depararmos com arcadas dentárias mal preservadas.” Os povos pré-históricos que viveram na costa brasileira se alimentavam basicamente de peixes e moluscos. Ao ingerir cotidianamente esse cardápio, os dentes desses sambaquieiros entravam em contato com restos de areia e conchas, elementos que contribuíam para seu desgaste. Luzio apresentava dentes em bom estado. Era, portanto, esperado que tivesse uma dieta mais próxima da dos antigos habitantes de áreas de planalto, em que o consumo de carne de caça e plantas não castiga tanto os dentes. Mas não se suspeitava que os peixes fossem uma raridade em PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

45


Vida num sambaqui Luzio viveu há 10 mil anos no sul do estado de São Paulo, no Vale do Ribeira, numa zona de transição entre o litoral e a serra do Mar. Quando morreu, o habitante pré-histórico tinha cerca de 30 anos e media 1,60 metro

O LOCAL DA DESCOBERTA

FLECHAS E LANÇAS

O esqueleto do homem pré-histórico foi encontrado no sítio Capelinha I, no município de Cajati, atualmente a 40 quilômetros da costa. Na época de Luzio, o mar estava mais baixo e distante da terra firme do que hoje

Centenas de pontas feitas de sílex, quartzo e outros materiais foram achadas em vários sítios pré-históricos da região, inclusive em Capelinha I

DENTE DE MACACO Partes de animais das matas também eram utiizadas para fazer colares, como atesta essa fileira de caninos perfurados que foram retirados de bugios

TUBARÃO Dentes perfurados desse peixe marinho, usados provavelmente em colares ou pulseiras, indicam que Luzio deveria ter contato com povos da costa brasileira

FLAUTA Encontrado junto aos restos de Luzio, um osso polido de animal terrestre apresenta características que lembram o instrumento musical de sopro

CARNÍVORO

46

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

CEMITÉRIO DE CONCHAS Como os habitantes pré-históricos do litoral, os antigos moradores do Vale do Ribeira cobriam seus mortos com camadas dessas partes dos moluscos

infográfico daniel das neves

Apesar de aparentar algum contato com o mar, o antigo habitante do Vale do Ribeira quase não comia peixes e moluscos. Sua dieta era composta de pequenos animais de caça, frutas e tubérculos


fotos eduardo cesar e Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos/ IB-USP

Crânios de Luzio (à esq.) e de Luzia: traços semelhantes aos dos atuais aborígenes australianos e africanos

suas refeições. “Chegamos a pensar que Luzio fosse um ceramista pescador-coletor”, comenta o arqueólogo Levy Figuti, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, coordenador dos trabalhos de escavação no Vale do Ribeira que redundaram na descoberta do crânio de 10 mil anos em Capelinha. “Mas hoje está ficando mais evidente que ele era provavelmente um caçador-coletor.” No sítio de Capelinha I foram encontradas, além dos artefatos de origem marinha e dos vestígios de construção de sambaquis com conchas terrestres, muitas evidências de que Luzio vivia da caça de animais terrestres. Foram resgatadas pontas de lanças e de flechas feitas de sílex ou quartzo, dentes perfurados de bugios, usados, como os de tubarão, provavelmente em colares ou pulseiras, e uma flauta feita com osso polido de mamíferos terrestres. Em seus trabalhos de campo, a equipe de Figuti estudou 30 sambaquis fluviais do Vale do Ribeira e encontrou cerca de 60 esqueletos de antigos habitantes da região. Só no sítio arqueológico de Moraes, na bacia do rio Juquiá, foram descobertos restos de 40 indivíduos, a maioria tendo vivido há cerca de 5 mil anos. Nenhum deles era tão velho nem exibia os traços físicos de Luzio (todos tinham uma morfologia do tipo asiático), embora elementos de contato com o mar estivessem presentes em alguns desses lugares. Como Luzio chegou ao Vale do Ribeira? Há duas hipóteses, que não são necessariamente excludentes e podem

Pesquisadores não sabem se Luzio chegou ao Vale do Ribeira por uma via costeira ou por caminhos do interior do Brasil até ser combinadas. Mais jovem e com traços físicos semelhantes aos de Luzia, o sambaquieiro fluvial pode ser um representante dos descendentes do povo de Lagoa Santa que conseguiu cruzar o interior do Brasil e se estabelecer no Vale do Ribeira. “Olhando o trecho do litoral brasileiro em que há grande ocorrência de sambaquis, entre o Espírito Santo e Santa Catarina, vemos que a serra do Mar representa uma grande barreira para o contato entre os povos do mar e os do interior”, diz a arqueóloga Mercedes Okumura, do MAE-USP. “Mas o Vale do Ribeira pode ter sido uma exceção nesse cenário.” Ponte para o mar - Nessa região do sul

do território paulista, a transição entre a serra do Mar, onde predominava a mata atlântica, e a área costeira é mais suave, com escarpas menos íngremes. O Ribeira do Iguape é um dos poucos rios de São Paulo que correm do planalto para o leste, a caminho do mar. Corta serras e pequenos vales, criando ambientes que podem ter sido pontes naturais entre o litoral e o planalto. Essas

particularidades da geografia da região podem ter facilitado o contato de Luzio com as populações do Atlântico. Existe outra explicação para a presença de Luzio no extremo sul de São Paulo em tempos tão recuados. Ele pode ter migrado da área costeira para a de planalto. Nesse caso, ele seria representante de um povo que teria abandonado a vida no litoral e decidido desbravar as terras mais altas. Contra essa hipótese há um dado incômodo: até agora não se descobriu nenhum sambaqui litorâneo que seja mais antigo do que o sítio de Capelinha I. A atual cronologia de ocupação da costa atlântica não favorece esse cenário. Mas há um atenuante. Há 10 mil anos, a linha da costa se encontrava algumas dezenas de quilômetros mais distante do que está hoje. É possível que os sambaquis mais antigos estejam hoje cobertos pelas águas e talvez nunca sejam encontrados. Nos últimos anos, boas notícias animaram os estudiosos dos cemitérios de conchas encontrados na costa atlântica. Novas datações de sítios com sambaquis indicam que a presença humana em trechos do litoral brasileiro é mais antiga do que se pensava. O arqueólogo Flavio Calippo, hoje professor na Universidade Federal do Piauí (UFPI), encontrou no início da decada passada vestígios de ocupação humana de 8 mil anos no sítio semissubmerso de Cambriú Grande, na ilha do Cardoso, também no Vale do Ribeira. A equipe do físico Roberto Meigikos dos Anjos, da Universidade Federal Fluminense (UFF), obteve recentemente mais evidências geológicas que confirmam a idade do Sambaqui do Algodão, em Angra dos Reis. O sítio arqueológico tem mesmo 8 mil anos. “Parece que os sambaquis mais antigos estão no trecho do litoral entre Rio e São Paulo”, diz Meigikos. No entanto, nenhuma dessas datações recentes resolve a questão se Luzio veio do mar ou das terras altas antes de se fixar em Capelinha. n Artigo científico Eggers, S. et al. Paleoamerican diet, migration and morphology in Brazil: archaeological complexity of the earliest americans. Plos One. Publicado eletronicamente em 14 de setembro de 2011. PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

47


[ Paleobotânica ]

As árvores do deserto Floresta de coníferas ocupou ambiente quente e arenoso na era dos dinossauros Isis Nóbile Diniz

O

s proprietários da Fazenda Sobradinho, próximo à cidade de Uberlândia, em Minas Gerais, retiraram de suas plantações há 40 anos o que pensavam ser apenas pedras no caminho e as deixaram em marmorarias da região. Naquele ano, 1972, os geólogos Kenitiro Suguio e Armando Márcio Coimbra analisaram o material e concluíram que as pedras eram, na verdade, troncos fossilizados de árvores que dois anos depois a paleontóloga Diana Mussa classificou como sendo de um grupo de pinheiros primitivos. Mas a conclusão foi recebida com descrença no meio científico. É que quando essas plantas viveram, cerca de 130 milhões de anos atrás, toda aquela região era parte de um vasto deserto de areia. A confirmação de que os pesquisadores brasileiros estavam certos só veio agora. As evidências mais convincentes de que os fósseis da Fazenda Sobradinho são mesmo de plantas ancestrais das coníferas – grupo que inclui os pinheiros, as araucárias e as sequoias – foram apresentadas em julho deste ano em um artigo no Journal of South American Earth Sciences, resultado de um trabalho iniciado 15 anos antes. Edivane Cardoso, hoje professor da Universidade Federal de Goiás, era estudante de biologia na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) no final dos anos 1990 quando resolveu analisar ao microscópio os fósseis encontrados durante seu trabalho final do curso de graduação. E se surpreendeu ao ver entre as amostras de rocha fragmentos de caule petrificado. Mais especificamente, eram fragmentos de lenho – tecido de

48

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188


sustentação, formado pelos canais que transportam água e nutrientes entre as raízes e as folhas – de plantas que viveram 130 milhões de anos antes, no período geológico Cretáceo. Cardoso e o orientador de sua monografia na UFU, o geólogo Adriano Rodrigues dos Santos, tiveram dificuldade em convencer outros pesquisadores da descoberta. “Enviávamos o estudo para congressos e eles duvidavam. Não acreditavam que eram fósseis de vegetais tão antigos, encontrados na formação Botucatu”, conta Cardoso. Supercontinente - Até então se du-

fotos Edivane Cardoso / UFG e Adriano R. dos Santos / UFU

Fósseis encontrados em fazenda próxima a Uberlândia, Minas Gerais

vidava de que plantas de grande porte pudessem ter vivido na região no Cretáceo, uma vez que a formação Botucatu era um deserto de areia que se estendia por áreas que hoje formam o Sudeste e o Sul do Brasil, parte do Paraguai, da Argentina e do Uruguai. Na época em que viveram essas coníferas, os dinossauros já haviam se espalhado pelo planeta. A América do Sul ainda estava conectada à África e ambas integravam um supercontinente chamado Gondwana, em cujo centro ficava o de­serto Botucatu. Segundo simulações geo­lógicas, esse deserto era parte de uma região árida mais extensa situada no hemisfério Sul, próximo ao equador, durante um grande ciclo climático de aquecimento global (hothouse), no qual prevaleceram altas temperaturas. “Os cientistas diziam que a ocorrência de fósseis na formação Botucatu era impossível, até que se descobriram registros de pegadas de dinossauros ali”, conta a paleobotânica Margot Guerra Sommer, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que ajudou a descrever os fósseis das coníferas no Journal of South American Earth Sciences. O número, a densidade e o porte dos troncos fossilizados permitem aos pesquisadores supor que houve uma floresta de coníferas onde hoje existe um fragmento de cerrado. Os fósseis são de plantas adultas e estão tombados, muitos deles compactados horizontalmente, sinal de que grande quantidade de sedimento recobriu a antiga floresta antes que as plantas se petrificassem. Cinco exemplares de grande porte, cada um com mais de cinco metros de comprimento, foram recuperados. Também foram encontrados fragmenPESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

49


Pontos vermelhos marcam onde foram achados troncos petrificados, incrustados em rochas expostas da formação Botucatu (mancha verde) Há 130 milhões de anos

Hoje Laurásia

BRASIL

MT

gondwana

GO DF

2

MG MS SP

PR SC

Afloramentos da formação Serra Geral Afloramentos da formação Botucatu Triângulo Mineiro

RS

Ocorrências de lenhos fósseis

1

tos fósseis menores, inclusive de raízes. “São muitos fósseis, não conseguimos precisar quantos”, diz Margot. Segundo as pesquisadoras, essas árvores devem ter vivido próximas umas das outras, formando uma densa floresta. Além disso, eram de grande porte, com até 20 metros de altura, provavelmente mais altas do que os pinheiros atuais. Ao analisar as características microscópicas dos fósseis, Margot e Etiene Fabbrin Pires, hoje professora na Universidade Federal do Tocantins, verificaram que os exemplares coletados são anatomicamente semelhantes, ou seja, todos provavelmente pertencem à mesma espécie, que integra o grupo das protopináceas. “Esse material é importante, pois se trata do primeiro registro paleobotânico para a formação Botucatu em toda a bacia do Paraná”, explica Etiene. Diante desse cenário, os pesquisadores se perguntaram: como essas árvo50

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

res teriam se desenvolvido no deserto? As raízes fossilizadas encontradas no sedimento arenoso da Fazenda Sobradinho indicam que o material não foi transportado e que as plantas provavelmente viveram no local onde foram sepultadas. “O curioso é que essas grandes árvores eram sustentadas por um solo pobre em nutrientes”, conta Etiene. De acordo com os pesquisadores, é possível que essas árvores vivessem à margem do deserto, em formações vegetais que cresceram entre as dunas, em regiões com maior umidade, ambientes semelhantes àqueles em que hoje se desenvolvem os oásis. A água, embora disponível, era escassa em determinados períodos. Os anéis de crescimento, estruturas do tronco que indicam o ciclo de vida das plantas, sugerem que essas árvores viveram sob estresse constante. “Nos anéis de crescimento, as células do lenho tardio não apresentam espessamento

da parede, como ocorre nas árvores atuais”, explica Etiene. “Nesses fósseis, houve simplesmente redução do tamanho da célula.” Essas características anatômicas indicam que o crescimento dessas protopináceas era controlado pela alternância de estações secas e úmidas, e não pela disponibilidade de mais ou menos luz solar, como ocorre com as coníferas atuais, adaptadas a climas temperados. Folhas perenes - As análises micros-

cópicas dos lenhos fósseis também levaram a concluir que provavelmente as folhas dessas plantas eram perenes e não caíam em períodos de seca prolongada. Mas é impossível afirmar como era a aparência dessas árvores, já que só troncos e raízes foram preservados. “Elas deveriam se parecer com as coníferas atuais”, diz Margot. “Com base na anatomia do lenho, pode-se sugerir que elas tenham sido ancestrais de plantas do gênero Pinus.” Cicas, samambaias e outras coníferas dominavam a paisagem em diferentes regiões do globo na época em que essas protopináceas viveram. “Há registro de coníferas em ambos os hemisférios em períodos anteriores, contemporâneos e posteriores ao estudado”, diz Etiene. Na época em que as coníferas da Fazenda Sobradinho viveram as plantas com flores estavam surgindo e, só alguns milhões de anos mais tarde, se adaptariam aos diferentes ambientes do planeta. Hoje as coníferas ocorrem em poucos locais nas regiões Sudeste e Sul do Brasil. Por enquanto, não é possível explicar como ocorreu a fossilização dessas árvores. Uma hipótese é que esse processo de petrificação tenha se iniciado com a planta ainda viva, como ocorre em muitos ambientes hoje. “Vamos investigar as características anatômicas que ajudam a determinar a espécie”, conta Margot. “A partir de características dos fósseis e do sedimento, também queremos conhecer com mais precisão qual o ambiente em que essas plantas viveram no grande deserto Botucatu.” n Artigo científico PIRES, E. F. et al. Early Cretaceous coniferous woods from a paleoerg (Paraná Basin, Brazil). Journal of South American Earth Sciences. v. 32 (1), p. 96-109. jul. 2011.

fontes: 1. Edivane Cardoso com base em Maria Labouriau / História Ecológica da Terra 2. Pires et al./ Journal of South American Earth Sciences

Mapa dos fósseis


Renato Mortara / UNIFESP

[ Biologia celular ]

O parasita discreto Trypanosoma cruzi põe as células para funcionar a seu favor Carlos Fioravanti

Acima, o T. cruzi sobre uma célula: estratégias desvendadas

U

m grupo de pesquisadores brasileiros trabalhou em conjunto em 2010 na Universidade de Maryland, Estados Unidos, para concluir um trabalho que detalhou os artifícios que o protozoário Trypanosoma cruzi adota para invadir e ocupar as células humanas, primeiro passo para começar a infecção que caracteriza a doença de Chagas, ainda relativamente comum em alguns países das Américas. As conclusões a que chegaram indicam que o Trypanosoma cruzi coloca os mecanismos de reparo celular para funcionar a seu favor e ajudam a explicar a afinidade do parasita pelas células musculares, causando a expansão do coração, uma das características da fase crônica da doença. A mortalidade causada por essa enfermidade tem se reduzido nos últimos anos, mas estima-se que de 3 a 5 milhões de pessoas ainda tenham a forma crônica do também chamado mal de Chagas. O médico Carlos Chagas já tinha visto em 1909, por meio de um microscópio de seu laboratório no Instituto Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, o T. cruzi em células e no sangue de pessoas infectadas. Na década de 1940, Herta PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

51


VOLKER STEGER/SCIENCE PHOTO LIBRARY

O inseto transmissor, ainda um perigo

52

n

OUTUBRO DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

Meyer, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fez um filme que mostra o parasita ocupando as células e se reproduzindo ali dentro (o filme encontra-se na página da Sociedade Brasileira de Protozoologia (<www.sbpz.org. br> – depois, clique em interage e multimídia). Essa foi uma parte do trabalho desses pioneiros sobre a identificação do agente causador, do inseto transmissor e dos sintomas característicos da doença, mas as limitações de seus equipamentos não lhes permitiram ir muito além (ver Pesquisa Fapesp no 163, setembro de 2009). Em Maryland havia não só equipamentos, mas também especialistas com interesses convergentes. A bióloga Maria Cecília Fernandes, que fez o doutorado na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), já estava lá há quase dois anos estudando os mecanismos pelos quais o T. cruzi invade as células humanas. Ela trabalhava no laboratório de biologia celular, coordenado por Norma Andrews. Norma investiga a interação entre o T. cruzi e as células hospedeiras desde os anos 1980, quando fez o doutorado na Universidade de São Paulo (USP) com o médico e bioquímico Walter Colli, um

dos maiores especialistas em doença de Chagas no Brasil. Uma de suas linhas de trabalho é justamente os mecanismos de reparo de membrana celular. Em abril de 2010, Renato Mortara, professor da Unifesp que estuda o comportamento do T. cruzi desde os anos 1980, se uniu ao grupo em Maryland. Passo a passo - Como eles precisavam

de outros equipamentos, pediram ajuda a dois brasileiros que estavam em Bethesda, a menos de uma hora de College Park: Bechara Kachar, pesquisador formado em medicina pela USP que está desde 1986 nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), e Leonardo Rodrigues de Andrade, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) atualmente no laboratório de Kachar. Com a ajuda de colegas norte-americanos, eles estudaram, filmaram e deduziram, por meio de provas e contraprovas, o passo a passo da invasão e ocupação celular pelo T. cruzi. O parasita, provavelmente por causa de sua intensa movimentação, lesiona a membrana externa da célula, causando um pequeno buraco. Por aí entram íons de cálcio, abundantes no espaço extracelular, como o grupo de


Norma havia mostrado. Outros grupos também estudaram intensamente o comportamento do T. cruzi. Anos antes, por exemplo, Sergio Schenkman e sua equipe da Unifesp haviam indicado como o parasita escapava das defesas dos organismos que invade (ver Pesquisa Fapesp no 118, dezembro de 2005). Esse novo trabalho mostra que, no interior da célula, o cálcio iônico aciona a fusão de compartimentos conhecidos como lisossomos com a membrana externa ao redor do minúsculo buraco que o parasita está abrindo. Ao se fundirem com a membrana, os lisossomos liberam uma enzima chamada esfingomielinase, que por sua vez induz à formação de outra molécula da membrana, a ceramida. Por sua vez, a ceramida forma uma curvatura na membrana, remove a região lesionada e conserta a membrana, desse modo facilitando a entrada do parasita. “O parasita aproveita em seu benefício a enzima e a ceramida, enfim, o mecanismo de reparo celular da lesão na membrana”, diz Mortara. “O T. cruzi tem uma afinidade pelas células musculares, que estão mais sujeitas a lesões e, por essa razão, acionam com frequência os mecanismos de reparo da membrana externa.” Dentro da célula, em compartimentos semelhantes a lisossomos, o protozoário se movimenta intensamente. “A intensa movimentação provavelmente atrai outros parasitas para a mesma célula”, diz ele. O T. cruzi libera toxinas que lhe permitem escapar. Começa a se multiplicar e, dias depois, pode gerar

O Projeto Estudos moleculares do Trypanosoma cruzi e de sua interação com células e fatores do hospedeiro in vitro e in vivo nº 2006/61450-0 modalidade

Projeto Temático Co­or­de­na­dor

José Franco da Silveira Filho – Unifesp investimento

R$ 1.523.719,55 (fapesp)

Se errar o ponto onde tocar a superfície da célula, o microrganismo pode acionar as defesas, que o destruirão

uma centena de cópias. De tão abarrotada, a célula deixa de funcionar e se rompe, liberando parasitas que colonizam outras células. Como o piloto de um avião se aproximando de uma cidade, o microrganismo precisa escolher bem onde tocar uma célula. Não há, claro, uma intenção de onde pousar, mas uma afinidade eletrostática com alguns pontos – se errar, poderá disparar os mecanismos de defesa que tendem a eliminar os visitantes indesejados. Bactérias, vírus e protozoários adotam estratégias diferentes que lhes permitem atravessar a membrana e entrar onde talvez encontrem alguma proteção e possam se reproduzir. “Os protozoários causadores da leishmaniose parecem explorar um mecanismo de reparo celular similar ao do T. cruzi para invadir os macrófagos”, observa Mortara. Táticas diferentes - Cada microrga-

nismo sobrevive por meio de formas próprias de fazer as células trabalharem a seu favor. Em agosto na Cellular Microbiology, Rey Carabeo, do Imperial College London, de Londres, apresentou várias estratégias de invasão adotadas por bactérias que causam problemas para os seres humanos como a Salmonella, a Escherichia coli e a Chlamydia. Em geral, essas bactérias acionam os mecanismos que produzem uma remodelação de proteínas abundantes logo abaixo da membrana celular, as actinas. Cada uma delas, ao encostar na célula

hospedeira, aciona diferentes proteínas que se ligam às actinas, induzindo a construção de moléculas alongadas como pilares que esticam a célula. Formam-se assim os prolongamentos da superfície celular que engolfam o microrganismo e lhe permitem ingressar sem causar lesão à membrana. Na edição de julho da Molecular Microbiology, James Bamburg, da Universidade do Estado do Colorado, Estados Unidos, detalhou o encadeamento de moléculas que facilitam a entrada apenas da Listeria monocytogenes, uma bactéria que pode causar infecções severas, principalmente em gestantes. A doença de Chagas já não preocupa tanto. O combate aos insetos transmissores fez o número de pessoas contaminadas cair bastante: os serviços públicos de saúde registraram menos de 200 casos e apenas três mortes atribuídas a essa doença em 2008. Não há mais tantas casas de pau a pique com buracos em que os insetos se escondem, mas ainda há razões para preocupação. Por causa da falta de higiene e de atenção, o contágio continua, por meio do consumo de caldo de cana ou de suco de açaí contaminados ou, mais raramente, da transfusão de sangue e do transplante de órgãos. Em uma conferência em 2010, Norma comentou que essa é uma doença associada à pobreza, com cerca de 18 milhões de pessoas contaminadas nas Américas Central e do Sul. É também difícil de ser detectada: 41% das pessoas portadoras de T. cruzi são assintomáticas. Em 45% dos infectados o coração se expande e em outros 11% o esôfago ou o estômago é que se dilatam. Segundo ela, a doença de Chagas dificilmente pode ser eliminada, já que o parasita pode ser transmitido ao ser humano por cerca de 100 espécies de mamíferos, incluindo alguns mais próximos como cães, gatos e roedores. Por viverem perto das casas, esses animais se transformam em reservatórios do parasita, depois de sugados n pelos insetos transmissores. Artigo científico Fernandes, M.C. et al. Trypanosoma cruzi subverts the sphingomyelinasemediated plasma membrane repair pathway for cell invasion. The Journal of Experimental Medicine. v. 208, n. 5, p. 909-21. 9 mai. 2011. PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

53


especial // Ano Internacional da Química

Batalhas farmacológicas Ciência de ponta busca soluções para doenças tropicais negligenciadas Maria Guimarães ilustração Pedro Hamdan

A

ciência tem muito a avançar no que diz respeito a tratar as doenças que afetam 20% da população nas regiões mais pobres do planeta. Enfermidades como a malária e a leishmaniose são conhecidas como doenças tropicais negligenciadas, já que a maior parte dos países pouco desenvolvidos está nos trópicos. Mas na verdade estão associadas à falta de recursos econômicos, ao acesso sanitário precário e ao mau atendimento da saúde: mesmo em regiões tropicais, só existem onde há pobreza. Combater essas doenças é ultrapassar a ciência e atacar as injustiças irremediáveis dos nossos tempos, como disse o químico Carlos Montanari, da Universidade de São Paulo (USP) de São Carlos, na abertura do sexto encontro do ciclo de conferências organizado pela FAPESP e pela Sociedade Brasileira de Química no âmbito do Ano Internacional da Química. “Minorar os estados das doenças tropicais negligenciadas é uma intervenção para promover mudança social”, completou. Para perseguir esse objetivo além do cien­tífico, mesmo numa série de conferências sobre química, é também preciso cruzar as fronteiras das disciplinas tradicionais. De fato, as palestras do dia 14 de setembro reu-


niram um engenheiro eletricista eletrônico que virou físico, um químico industrial doutor em química orgânica e professor num instituto de física, e uma química especializada em biologia celular e molecular. Esses líderes na área de desenvolvimento de fármacos que apresentaram suas pesquisas ao público reunido no auditório da FAPESP foram, respectivamente, Glaucius Oliva e Adriano Andricopulo, ambos do Instituto de Física da USP de São Carlos, e Célia Garcia, do Instituto de Biociências (IB) da USP. Ameaça mundial - Em consonância com o cargo

atual de presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Glaucius Oliva se mostrou atento não só à pesquisa, mas também à formação de jovens – representados na plateia pelos já habituais alunos do Instituto Técnico de Barueri e por estudantes do Instituto de Educação Atenas, em Arujá. “Vocês são certamente o nosso maior patrimônio”, disse o físico, cuja gravata imitava um quadro-negro com fórmulas e cálculos escritos a giz. Bem-sucedido no desafio de falar a uma audiência diversa, Oliva mostrou o impacto das doenças tropicais negligenciadas. “Elas cegam, desfiguram, estigmatizam e potencialmente matam”, alertou, ressaltando que neste momento cerca de 1 bilhão de pessoas estão infectadas com uma ou mais dessas enfermidades e outros 2 bilhões vivem em áreas de risco. No total, uma ameaça a metade da população mundial. 56

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

"Essas

doenças atingem metade da população mundial”, diz Andricopulo

Ele contou que boa parte dos medicamentos em uso ainda hoje foi desenvolvida antes de 1950, quando os colonizadores europeus na África tinham motivos de sobrevivência própria para combater as doenças. O resultado do fim do período colonial é um arsenal antigo e extremamente limitado de fármacos, que se renovou pouco. Nas últimas décadas, o imenso investimento financeiro pela indústria farmacêutica no desenvolvimento de novas drogas não teve impacto expressivo para minorar o sofrimento das populações desfavorecidas. Mas, mesmo que ainda chegue pouco à prática, a compreensão bioquímica das doenças teve avanços imensos de lá para cá, e é esse conhecimento que norteia o grupo comandado por Oliva no Centro de Biotecnologia Molecular Estrutural (CBME), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. Oliva comparou o encaixe entre as substâncias e os receptores nas células à diversidade de tomadas, preocupação de quem viaja ao exterior com o secador de cabelos na bagagem. “As tomadas brasileiras recentemente sofreram uma mutação e se tornaram resistentes aos aparelhos”, brincou, se referindo à mudança recente nas normas elétricas do país que torna os aparelhos antigos dependentes de adaptadores. É nesse conceito de encaixe que se baseia o desenvolvimento moderno de fármacos, muito diferente da tentativa e erro que norteou avanços históricos na medicina, como a descoberta da penicilina.


“Determinar a estrutura dos receptores é muito importante”, explicou. E é aí, com técnicas que permitem examinar e construir modelos de moléculas, que os físicos podem contribuir para o estudo das doenças. A partir do conhecimento básico dos organismos e das proteínas que causam as enfermidades, é possível localizar os alvos e encontrar moléculas para bloquear os receptores. Um exemplo é a doença de Chagas: endêmica na América Latina, causa 43 mil mortes por ano entre os 18 milhões de infectados. E não há tratamento eficaz. Uma abordagem é procurar, na biodiversidade brasileira, moléculas que possam gerar um novo fármaco. Com modelos da estrutura de receptores-alvo na membrana do parasita ou das células do hospedeiro, os pesquisadores hoje sabem exatamente as propriedades necessárias num composto que inative esse receptor. É como um quebra-cabeça em que se procura, numa montanha de pequenas peças, uma que tenha, num lado, uma protuberância arredondada e reentrâncias em outros três, por exemplo. Na química, as propriedades procuradas nas moléculas são a capacidade de atrair ou repelir água, ou a tendência a se ligar a elementos específicos. “Podemos ver como uma molécula de planta se encaixa no sítio ativo do Trypanosoma cruzi para combater a doença de Chagas”, explicou. Adriano Andricopulo, também associado ao CBME, fez coro. “Há uma urgência muito grande por um medicamento novo contra a doença de Chagas.” Um alvo possível, segundo ele, é a

cruzaína, uma proteína importante em todo o ciclo de vida do parasita. Vários inibidores dessa proteína já estão descritos na literatura, mas até agora nenhum deu origem a um medicamento que possa entrar em uso disseminado. O mesmo vale para outras doenças, como tuberculose e malária: a equipe de São Carlos está em busca de proteínas-alvo para, em seguida, encontrar novos compostos que bloqueiem o seu funcionamento. Um estudo de triagem biológica automatizada em alta escala foi realizado em colaboração com a Pfizer, visto que os recursos da indústria farmacêutica são quase sempre melhores do que os dos laboratórios nas universidades. O objetivo, nesse caso, é buscar tratamentos para a malária por meio de ensaios experimentais que identifiquem compostos capazes de bloquear a tiorredoxina redutase, uma proteína de Plasmodium falciparum, o parasita causador de uma das formas dessa doença. “Todas as estratégias são possíveis, desde que se possa usar métodos modernos”, avisou. Nesse arsenal moderno, os icônicos tubos de ensaio têm pouco espaço. Boa parte da busca de princípios ativos é hoje feita em modelos virtuais das proteínas e dos compostos promissores. Nessas representações tridimensionais em computador é possível fazer uma triagem virtual e avaliar se as moléculas visadas podem alterar a conformação da proteína ou impedir mudanças essenciais para seu funcionamento. Um quebra-cabeça, algo como o antigo jogo Tetris. Mas o trabalho não acaba aí: não adianta encontrar um encaixe perfeito se o composto não consegue chegar à proteína-alvo. Alguns medicamentos podem ser administrados por via oral, por exemplo, outros só funcionam se forem injetados diretamente no sangue. Propriedades como absorção e biodisponibilidade, chamadas de farmacocinéticas, precisam ser levadas em conta quando se pensa em desenvolver medicamentos. “O efeito terapêutico envolve não apenas o princípio ativo, mas também a combinação de propriedades farmacocinéticas”, resumiu Andricopulo. Pensando nisso e numa iniciativa para potencializar o trabalho feito por grupos de pesquisa diversos, os pesquisadores de São Carlos estão montando uma base de dados, disponível gratuitamente na internet <http://miro.ifsc.usp. br/pkdb>, com as propriedades farmacocinéticas e físico-químicas de centenas de compostos. Biologia da malária - Outra abordagem trans-

cende a análise molecular e considera também o seu contexto biológico. Com esse olhar, Célia Garcia mostrou como um caminho para combater a malária pode estar na conjunção entre a bioquímica e as biologias molecular e celular do ciclo de vida do parasita que a causa, o plasmódio. Depois de injetado no sangue pelo mosquito PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

57


fotos samuel iavelberg

Adriano Andricopulo, Célia Garcia e Glaucius Oliva

"Encontramos um composto

mais eficiente e mais barato contra malária”, disse Célia

anófeles, esse organismo microscópico se instala no fígado durante uma fase, antes de invadir os eritrócitos – os glóbulos vermelhos do sangue. Na busca por descobrir como o plasmódio se reproduz, o grupo revelou uma troca de informações intensa entre parasita e hospedeiro indicadora da existência de receptores muito específicos na membrana das células. É como se houvesse um interfone entre os plasmódios e os glóbulos vermelhos, mostrou Célia, cuja equipe é pioneira em desvendar esse tipo de sinalização. Ao longo dos anos, o grupo do IB está aumentando o conhecimento dos fatores que tornam a invasão bem-sucedida. Buscar o código para essa comunicação no material genético foi um desafio: não se tinha pistas para a função de 60% do genoma do Plasmodium falciparum, sequenciado em 2002. Com ajuda da bioinformática, os pesquisadores encontraram quatro genes que determinam receptores – chamados de serpentina – da membrana do parasita que funcionam como antenas para a comunicação com o hospedeiro. “A célula do plasmódio precisa captar o que está fora”, explicou Célia. Mais recentemente, descobriram quais moléculas se ligam a dois desses receptores, um passo gigantesco para a pesquisa farmacêutica numa forma 58

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

inovadora de tentar sabotar a comunicação essencial ao microrganismo invasor. Mas não basta entrar nas células. “A relação entre o hospedeiro e o parasita é essencial para regular o ritmo da doença”, disse Célia. Essa relação é mediada pelo ATP (substância que funciona como combustível celular) e pela melatonina (hormônio que tem um pico de liberação à meia-noite). “O plasmódio percebe o ambiente dentro dos eritrócitos e sincroniza o ciclo de vida.” Sua equipe já identificou, e está estudando, duas proteínas do plasmódio que se ligam à melatonina. De posse desse conhecimento, a química do IB vem testando moléculas sintéticas que bloqueiam a ação da melatonina sobre o parasita, o que pode melhorar a ação dos antimaláricos. Encontrar novos caminhos farmacológicos é importante porque a medicação disponível deixa a desejar. A atavaquona, por exemplo, medicamento usado para prevenção, é cara e precisa ser ingerida junto com alimentos gordurosos. “Em colaboração com Vitor Ferreira, da Universidade Federal Fluminense, encontramos um composto mais eficiente e mais barato”, especificou Célia, pensando em caminhos inovadores para desenvolver medicamentos. Em conjunto, as três palestras abriram uma janela sobre como a biologia, a química e a física interagem para entender e combater doenças. E revelaram uma complexidade que deixa pistas sobre os motivos da lentidão no desenvolvimento de curas. n


[ organismos modificados ]

Feijão transgênico desenvolvido pela Embrapa é imune à doença mosaico dourado

60

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

U

m novo feijão, indistinguível da variedade carioquinha, a mais plantada no país e, portanto, mais frequente no prato dos brasileiros, traz uma diferença nada trivial: resiste à doença conhecida como mosaico dourado, capaz de dizimar plantações inteiras. A novidade está numa alteração genética introduzida na planta pelo engenheiro agrônomo Francisco Aragão, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (Cenargen), e o agrônomo Josias Faria, da Embrapa Arroz e Feijão. Em setembro a produção desse feijão transgênico foi aprovada pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), depois de detalhada análise de estudos que avaliaram os riscos ao ambiente e à saúde que a planta poderia representar. Na torcida para que a aprovação resista aos protestos dos ativistas e se mantenha, Aragão festeja o sucesso inédito do trabalho feito numa instituição pública: “Só a China tinha conseguido até agora, eles têm um algodão modificado e um mamão resistente a vírus”. No dia seguinte à aprovação, o telefone do pesquisador do Cenargen não parou de tocar, e não eram só jornalistas. “Os produtores logo ligaram perguntando se eu podia lhes mandar sementes”, conta Aragão, ainda longe de poder distribuir seu êxito. O mosaico dourado causa danos em todos os lugares em que se cultiva feijão nas Américas. No Brasil, só não é um problema no Rio Grande do Sul, onde a mosca-branca transmissora não se adapta bem ao frio. Segundo estimativas da Embrapa Arroz

e Feijão, entre 9 e 18 milhões de pessoas encheriam os pratos de feijão com as safras perdidas para a doença. Para combater o vírus, os pesquisadores da Embrapa fizeram uso de uma defesa natural do feijão: fragmentos de RNA, moléculas mais simples aparentadas ao DNA. É um sistema imunológico inato, embutido no material genético do organismo e ainda em processo de ser desvendado. A geneticista Marie-Anne Van Sluys, da Universidade de São Paulo (USP), estava numa conferência nos Estados Unidos em 1998 em que o francês Hervé Vaucheret e o britânico David Baulcombe sugeriram que pequenas moléculas de RNA se movimentando pela planta induziam uma resposta de defesa contra vírus. “A ideia chamou atenção na reunião, ninguém acreditava ainda”, conta. Depois disso os estudos avançaram e hoje se sabe que os pequenos RNAs funcionam como reguladores da atividade genética e como mecanismo de defesa em organismos tão diferentes quanto plantas, bactérias, vermes e seres humanos. Avanços nessa área arrebataram o Nobel de Medicina em 2006, mas os estudos pioneiros com plantas ficaram de fora (ver Pesquisa FAPESP nº 133). Usar esse sistema de alta complexidade para estudar funções gênicas é o que move o laboratório de Marie-Anne. “Os pequenos RNAs vieram para confundir a nossa cabeça”, brinca. Ela explica que Aragão usou uma função desses RNAs – a defesa contra vírus – já sedimentada na literatura científica. Mesmo assim, demonstrar que a interferência por RNA em feijões transgênicos funciona contra o tipo de vírus causador do mosaico

Marcia minillo

Escudo contra vírus


sebastião araujo / embrapa

lação recente, publicada em setembro na Cell Research por um grupo chinês, de que RNAs de vegetais ingeridos em maior quantidade naquele país continuam presentes no sangue e regulam a expressão dos genes de mamíferos. Se a observação também for válida para o feijão, suas armas antivirais já estão instaladas no sangue humano, com ou sem transgênicos. Além disso, o grupo de Aragão verificou que o mecanismo não é muito ativo nas sementes, apenas nas partes verdes das plantas – menos populares na dieta brasileira. Outras batalhas - Para que uma plan-

Alteração genética não é ativa nas sementes

dourado rendeu à dupla da Embrapa um artigo na Molecular Plant-Microbe Interaction em 2007 e outro na Nature Biotechnology em 2009. No caso específico do feijão não modificado, essa defesa natural só se desencadeia depois que a planta foi infectada, e por isso com frequência chega tarde demais para conter a multiplicação do vírus. O que os pesquisadores fizeram foi copiar para o DNA da planta um trecho do material genético viral com o código para pequenos RNAs que regu-

lam a produção da proteína REP, essencial para a multiplicação dos invasores. Com a alteração, a planta transgênica fabrica constantemente esses RNAs, que se dobram e se enrolam na forma de grampos e põem em ação uma maquinaria da planta para degradá-los. Dessa maneira, a planta desmantela também os RNAs produzidos pelos vírus, abortando sua disseminação. A alteração genética apenas antecipa um processo idêntico ao que já acontece no feijão, com as mesmas substâncias, por isso não era esperado que oferecesse riscos à saúde e ao ambiente. Com isso em mente, não é preocupante a reve-

ta transgênica seja aprovada, porém, não basta engenharia genética. Aragão e seus colegas estão debruçados sobre o tema há quase uma década (ver Pesquisa FAPESP nº 85) e estudam esse transgênico desde 2005: verificaram que nada se altera. “Fizemos a caracterização molecular, agronômica e nutricional”, conta o pesquisador. Também alimentaram animais com o feijão modificado e não detectaram diferenças. Além de reduzir a mortalidade nas lavouras de feijão, o aumento na capacidade de a planta combater a doença por conta própria reduziria em muito o uso de inseticidas nas plantações, usados para combater as moscas-brancas. A produção se tornaria assim menos nociva à saúde e também mais barata. A aprovação na CTNBio é motivo de festa para os pesquisadores, mas não o fim do caminho. “Em três anos devemos ter as sementes para os produtores”, prevê Aragão. Isso, claro, se a aprovação se mantiver. Para Walter Colli, professor do Instituto de Química da USP e presidente da CTNBio entre 2006 e 2009, “a Justiça cometerá uma injustiça se barrar o feijão da Embrapa”. Ele explica que a Comissão visa o respeito ao princípio da precaução: “a maioria de seus membros são cientistas que conhecem intimamente os mecanismos genéticos e fisiológicos dos seres vivos”. “A tecnologia empregada por Aragão é limpa, linda e original”, sentencia Colli. Caso entre de fato em produção, o feijão da Embrapa será a primeira variedade modificada produzida no Brasil, sem participação das grandes empresas multinacionais. n

Maria Guimarães PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

61


[ Astrofísica ]

Um x na Via Láctea?

62

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

Centro da galáxia pode ter duas barras que se cruzam Marcos Pivet ta

estrela luminosa rica em metais, as red clumps giants, que são usadas para inferir distâncias astronômicas e também como traçadoras de certas estruturas de galáxias. A distribuição dessas estrelas num mapa que divide o bojo da Via Láctea em 170 setores quadrados deu forma à dupla barra cruzada no centro da galáxia. Desde o início do ano 2010 um novo levantamento no infravermelho próximo tem monitorado a região central de nossa galáxia com o telescópio Vista, instalado no Chile e operado pelo Observatório Europeu do Sul (Eso). Os resultados preliminares dessa iniciativa corroboram aparentemente a hipótese da existência de uma estrutura em X no coração da Via Láctea, segundo Saito. Desde meados dos anos 1990, os astrofísicos desconfiam de que a Via Láctea, como dois terços das galáxias espirais, apresenta uma barra em seu bojo, cuja extensão total deve equivaler a algo entre 15% e 20% do diâmetro da galáxia. Na década passada, a suspeita se tornou uma certeza e hoje as discussões giram

Acima, imagem da Via Láctea com um X desenhado em seu centro, onde parece haver duas barras estelares que se cruzam. Abaixo esboços de um modelo, feito por Sergio Vásquez da PUC chilena, de como pode ser o X na galáxia

Sergio Vásquez/ PUC do CHILE

A

concentração de estrelas luminosas no centro das galáxias espirais costuma originar uma estrutura de forma ovalada que lembra uma bola de futebol americano, o bojo galáctico. Mas o acúmulo de matéria no coração da Via Láctea pode ter gerado um bojo de contornos pouco usuais, marcado por duas barras estelares (e não apenas uma) que se cruzam e delineiam um X. Essa conclusão, controversa, é defendida pelo astrofísico brasileiro Roberto Saito, da Pontifícia Universidade Católica do Chile, e colegas chilenos, europeus e americanos num artigo publicado na edição de setembro da revista científica The Astronomical Journal. “Dependendo de como observamos a galáxia, vemos uma barra tridimensional que se divide em duas, formando um X ou até um K”, diz Saito. “São duas barras na diagonal, uma principal e outra secundária.” De acordo com a técnica usada pelos pesquisadores para estudar a composição do bojo, o X atravessa a região mais central da Via Láctea e suas pontas são visíveis entre três e oito graus tanto acima como abaixo do plano do disco galáctico. Para mapear o interior do bojo da Via Láctea, o trabalho de Saito analisou dados coletados em três comprimentos de ondas do infravermelho por um levantamento de todo o céu visível nos hemisférios Norte e Sul realizado entre o final dos anos 1990 e a primeira metade da década passada, o projeto 2Mass. Em meio a essa avalanche de informações, os astrofísicos procuraram especificamente a localização de um tipo de


intervenção sobre foto eso / s. brunier

em torno das características dessa barra – ou barras, como advoga Saito. Se as conclusões do estudo estiverem corretas, o bojo da Via Láctea não é o primeiro a esconder duas barras de estrelas brilhantes na forma de um X. As NGC 128, 3625, 4469 e 4710 são exemplos de galáxias cuja região central também pode ser assim. O problema é que, por estarmos dentro do objeto a ser observado, algumas características da Via Láctea são mais difíceis de serem flagradas do que as propriedades de galáxias vizinhas. Para tornar as coisas ainda mais difíceis, nosso ângulo de visão da Via Láctea não é dos melhores. Outro empecilho é a existência de grãos de poeira em meio aos gases que formam o espaço entre as estrelas. Essas finas partículas absorvem e espalham as radiações emitidas pelos astros em diversos comprimentos de onda, principalmente no da luz visível e ultravioleta, e criam um fenômeno conhecido como extinção. Certas regiões da galáxia, como o bojo, acabam então se tornando virtualmente inacessíveis aos telescópios ópticos. As observações

feitas no infravermelho sofrem menos interferências da poeira interestelar. Por isso são muito usadas em trabalhos sobre a Via Láctea. Dinâmica caótica - Não há consenso

sobre a natureza do bojo da Via Láctea entre os especialistas que estudam a estrutura da galáxia. Jacques Lépine, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), é cético com relação à possibilidade de haver um X no centro de Via Láctea. Prefere acreditar que dificuldades em corrigir a interferência do fenômeno da extinção no trabalho de Saito poderiam explicar o X da questão. “A dinâmica caótica das estrelas velhas (amareladas) que constituem o bojo não permitiria que tal estrutura sobrevivesse”, afirma Lépine. “Em outras galáxias, em que é mais fácil visualizar o bojo, vemos no máximo uma estrutura box-shaped (num formato de caixa).” Para Lépine, a Via Láctea tem apenas uma barra, que se encontra quase alinhada com o centro da galáxia e o Sol.

Seu colega no IAG-USP, Augusto Damineli, tem uma opinião diferente. “O X no bojo da Via Láctea parece ser um resultado bem robusto, embora o mapeamento da galáxia precise ser refinado”, diz ele. “Outras galaxias têm uma estrutura desse tipo, que aparece (nos trabalhos científicos) como resultado de simulações numéricas.” Não há uma explicação simples para a existência de bojos com formato em X, segundo Damineli. Se o centro da Via Láctea abrigar mesmo uma estrutura formada por duas barras que se cruzam e criam uma concentração de estrelas com contornos semelhantes à letra do alfabeto, o uso do próprio termo bojo, que remete automaticamente a formas arredondadas, pode se tornar inadequado para descrever a região central de algumas galáxias. n Artigo científico Saito, R. K. et al. Mapping the X-shaped milky way bulge. The Astronomical Journal. v. 142, n. 3, p. 76. set. 2011. pESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

63


linha de produção

Sensor separa cores da luz Uma antena capaz de separar as cores azul e vermelha de um feixe de luz foi construída por pesquisadores da Universidade de Tecnologia Chalmers, na Suécia. A estrutura, menor do que o comprimento de onda da luz visível (entre 390 e 770 nanômetros), a rigor não seria capaz de dispersar a luz. Mas é exatamente isso o que a nanoantena faz. O truque empregado pelos pesquisadores foi construir a antena com composição assimétrica de materiais, criando mudanças de fase óptica. A estrutura consiste em duas nanopartículas, uma de prata e outra de ouro, dispostas sobre uma superfície de vidro e separadas por uma distância de cerca de 20 nanômetros. 64

outubro DE 2011

Um experimento realizado nos laboratórios nacionais de Luz Síncrotron (LNLS) e de Biociências (LNBio), em Campinas, fracionou de forma seletiva nanopartículas de prata para a obtenção de melhor resposta na eliminação de bactérias. “Mostramos que nanopartículas com tamanho de 17 nanômetros apresentam os melhores resultados em experimentos in vitro contra quatro tipos de bactérias [Escherichia coli, Staphylococcus aureus, S. epidermis e Micrococcus lysodeikticus]”, diz Mateus Borba Cardoso, pesquisador do LNLS. “O tamanho da nanopartícula faz uma diferença brutal.” O uso dessas partículas é uma Ilustração simula solução já incorporada, por exemplo, em linhas de nanopartículas, em instrumentos cirúrgicos no Brasil e no exterior. branco, sobre bactérias O desenvolvimento da técnica de fracionamento poderá também possibilitar o uso de nanopartículas em antibióticos. O estudo foi capa da revista Journal of Essas nanopartículas têm Materials Chemistry, número 33, de setembro. Para Mateus, propriedades ópticas o trabalho mostrou a possibilidade do uso de nanopartículas diferentes, que possuem associadas a antibióticos para diminuir a resistência aos midivergências de ressonâncias plasmônicas. O que significa crorganismos e encontrar, em novas pesquisas, por exemplo, o que os elétrons livres tamanho ideal para combater o vírus HIV relacionado à Aids.

nas nanopartículas – chamados plásmons de superfície – oscilam fortemente em sintonia com a frequência da luz. Os resultados podem levar a nanossensores ópticos, capazes de detectar concentrações muito baixas de gases, ou biomoléculas para diagnosticar doenças em uma fase precoce.

Esquema de funcionamento da nanoantena

PESQUISA FAPESP 188

Materiais alternativos Uma nova liga de materiais inteligentes – conhecidos pela sua capacidade de retornar à forma original mesmo após sofrer uma deformação – à base de cobre Timur Shegai / Univ. Tecnologia Chalmers

Journal of Materials Chemistry

Pequenas doses

e alumínio foi desenvolvida por pesquisadores da Universidade de Zagreb, na Croácia, em colaboração com parceiros internacionais. O principal objetivo do projeto, conduzido durante três anos com apoio do projeto europeu Eureka, foi encontrar uma alternativa economicamente viável para substituir em algumas aplicações a liga comercial de titânio e níquel, que são matérias-primas mais caras. Entre os empregos previstos para a liga de cobre e alumínio estão a indústria eletrônica e mecânica, além de smartphones e aparelhos de alta tecnologia.


Instituto Fraunhofer

contato inteligente

Uma nova metodologia para avaliar as informações e melhorar a qualidade da tomada de decisões nos processos de prospecção e exploração petrolífera em alto-mar foi finalizada por uma equipe de pesquisadores da Faculdade de Engenharia Mecânica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “A partir do recebimento de informações dinâmicas da produção de petróleo, relativas ao fluxo de óleo, água e gás, por exemplo, que refletem a situação de cada poço, é possível diminuir as incertezas dos modelos de simulação numérica e fazer uma previsão mais certeira do comportamento futuro do campo petrolífero, possibilitando um melhor gerenciamento do reservatório”, explica o professor Denis Schiozer. “Esse tipo de análise é fundamental no pré-sal, onde a logística de exploração é mais complexa e a prospecção mais cara”, diz.

Pesquisas da Petrobras (Cenpes). O projeto recebeu financiamento da Petrobras e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Também fez parte das redes temáticas da Petrobras, uma série de parcerias com instituições acadêmicas.

Biodiesel sem fraudes Detectar biodiesel adulterado pode se tornar uma tarefa simples com um marcador fluorescente à Petrobras

Diminuindo as incertezas

Os sistemas de automatização de uma casa incluem modelos sofisticados de janela que possuem um dispositivo, ligado a uma central, que avisa quando – e o quanto – ela está aberta. Esses sensores, disponíveis na Europa, chamados de contatos, são instalados na maçaneta da janela e, para funcionar, precisam ser alimentados por energia – geralmente uma bateria ou células solares. A novidade, desenvolvida por cientistas do Fraunhofer Institute for Microelectronic Circuits and Systems (IMS), em Duisburg, na Alemanha, é um novo Sinais de rádio sistema de alimentação sem fio baseado em abrem e fecham sinais de rádio que dispensam os cabos que as janelas ligam a janela à fonte de energia ou a uma bateria. Compacto, o módulo de controle pode A metodologia, que agora ser posicionado discretamente no ambiente e possui um sistema de transmissão que recebe informações sobre o status está sendo incorporada a um da janela (aberta, entreaberta, fechada) e as envia para uma software, foi desenvolvida ao longo de quatro anos com central no prédio ou mesmo para o telefone celular do usuário. o apoio de engenheiros Os pesquisadores alemães já construíram um protótipo e agora ligados à produção da pretendem integrar outros tipos de sensores, como os que empresa e do Centro de permitem a regulagem de temperatura do ambiente.

Estudo de variáveis na exploração no fundo do mar

base de porfirinas – moléculas orgânicas usadas em terapia fotodinâmica e catalisadores para degradação de poluentes –, desenvolvido na Universidade de São Paulo (USP). As porfirinas para uso como marcadores de biodiesel precisam ser solúveis no biocombustível. “Fizemos modificações nas moléculas para que não reagissem com o biodiesel”, diz a química Ana Cecília Figueira, que conduziu a pesquisa junto com o professor Osvaldo Antonio Serra, do Departamento de Química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP. “Nos estudos, elas conseguiram permanecer durante 90 dias no biodiesel sem alteração”, relata Ana Cecília.

PESQUISA FAPESP 188

outubro DE 2011

65


Carlos Britez n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

fotos marcia minillo

66


tecnologia

[ engenharia civil ]

Concreto durável Construções mais resistentes ao tempo também suportam bem o fogo Evanild o da Silveira

Pilares durante a construção e no estacionamento atual do edifício e-Tower, em São Paulo

A

convicção generalizada no meio técnico da construção civil de que o concreto de alta resistência (CAR) explode ou se degrada fortemente ao ser submetido a elevadas temperaturas, como no caso de um incêndio, pode ser um equívoco. Ele resiste muito bem a esse tipo de situação como mostrou um estudo realizado para a tese de doutorado Avaliação de pilares de concreto armado colorido de alta resistência, submetidos a elevadas temperaturas, do engenheiro civil Carlos Amado Britez, defendida em março deste ano na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). A tese demonstrou que, dependendo das condições, o CAR pode resistir muito bem ao fogo, tanto quanto o concreto comum. Considera-se, em geral, CAR – às vezes, também chamado no Brasil de concreto de alto desempenho (CAD) – aquele apropriado para uso em construções que terão longa vida útil com poucas intervenções de manutenção, e podem durar por mais de 100 anos, porque são mais resistentes às intempéries. A característica principal do CAR é apresentar resistência superior a 50 mega-pascal (MPa), unidade que mede a pressão e a tensão a que são submetidos os materiais. Um MPa equivale a 10,19 quilogramas-força (kgf) – ou newton (N) – por centímetro quadrado. Ou o equivalente a colocar, sem danos, 10 quilos sobre um centímetro quadrado de concreto dimensionado para esse fim. O experimento teve a participação de 10 empresas de engenharia e cons-

trução com financiamento e fornecimento de materiais e produtos, além de contar com o acompanhamento de cinco entidades ligadas ao setor como a Associação Brasileira de Cimento Portland (ABCP) e o Instituto Brasileiro de Concreto (Ibracon). O CAR surgiu no final dos anos 1950, na Noruega, para atender às necessidades de segurança e durabilidade de grandes obras, que requeriam um material de baixa permeabilidade e alta resistência mecânica, como túneis, e de construções em alto-mar, industriais e nucleares. Naquela época, a “alta” resistência correspondia a algo entre 50 e 60 Mpa. Em comparação, o concreto comum não passava de 12 a 15 MPa. Em qualquer tipo desse material, as características dependem da dosagem dos componentes de que ele é feito, como o tipo de cimento e os aditivos. A água é um dos ingredientes que mais influem nesse aspecto. “Quanto maior a quantidade dela na composição, menos resistente o concreto”, explica Britez. Os agregados, graúdos, como a brita, e miúdos, como a areia, também têm papel fundamental. Mas há ainda outros ingredientes importantes, chamados de adições, como a sílica ativa e o metacaulim, que ajudam a torná-lo mais compacto, ocupando os espaços vazios que a brita, com sua estrutura irregular, não consegue preencher. Na receita também entram substâncias químicas dispersantes (aditivos), que, por exemplo, servem para diminuir a quantidade de água necessária para a hidratacão das partículas de cimento. Depois tudo isso é “empacotado” ou reunido num produto que é pESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

67


Formulação variada - O ponto princi-

pal do trabalho é que a demonstração da ocorrência ou não do spalling depende de uma série de circunstâncias e características do concreto de alta resistência submetido a altas temperaturas como a formulação, que pode variar em cada país. Seu orientador, o professor Paulo Roberto Helene, do Departamento de Engenharia de Construção Civil, da PoliUSP, lembra que a maioria dos estudos

O pigmento de óxido de ferro pode servir como um termômetro natural e auxiliar na avaliação depois de um incêndio

realizados no Brasil e no exterior utiliza corpos de provas (amostras de concreto) pequenos, com poucos centímetros cúbicos, sem aço na estrutura. “Nessas condições, efetivamente, em alguns casos, o CAR se destrói”, diz Paulo Roberto. A idade do material é outro quesito que influencia na ocorrência do spalling, tanto em experimentos como em situações reais. Britez diz que em muitas pesquisas são utilizadas amostras que não têm mais de um mês de idade. Dificilmente, no mundo real, uma estrutura com esse tempo seria submetida a altas temperaturas de um incêndio. “Em um edifício, por exemplo, um pilar de um mês raramente seria afetado por um incêndio, pois o prédio ainda estaria em construção

O pilar com 2,5 metros de altura antes de ser levado ao forno e o resultado depois com 95% da sua integridade 68

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

e não haveria móveis ou outros materiais inflamáveis que contribuem para um incêndio”, explica. Com o passar do tempo o concreto ganha resistência e diminui sua umidade interna. Por isso, o ideal é o uso de amostras com pelo menos um ano de idade para ensaios de simulação de incêndios. “Daí a importância do trabalho de Britez, que realizou os ensaios em uma amostra de dimensões reais, um pilar com estrutura semelhante ao usado num edifício construído de fato”, diz Paulo Roberto. Ele se refere ao e-Tower, prédio erguido em 2002, na rua Funchal, na Vila Olímpia, na zona Sul de São Paulo. Na época, o concreto usado em seus pilares bateu o recorde mundial de resistência, com 125 MPa. Uma réplica de um desses pilares, com 70 por 70 centímetros de lado e dois metros e meio de altura, ficou oito anos ao ar livre num pátio da Poli, até ser usado na pesquisa. Num forno do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), três faces do pilar foram submetidas – a outra ficou para fora, porque não havia espaço –, durante três horas, a temperaturas que chegaram a 1.200ºC. Para medir a temperatura alcançada no interior do pilar, foram instalados nele, em profundidades variadas, diversos termopares – espécie de termômetros. “Constatei que no núcleo a temperatura chegou a até 40ºC, calor que sofreria normalmente em alguns dias de verão”, conta. “Nessa parte, foi como se o pilar nem soubesse que estava pegando fogo.” Mas mesmo na parte mais externa os estragos foram relativamente pequenos. “Da área da seção transversal do pilar, 95% se manteve íntegra e 5% foi reduzida por efeito spalling”, conta Britez. Apenas uma camada superficial, com cerca de cinco milímetros (mm) de espessura, onde a temperatura atingiu mais de 1.000ºC ficou de cor alaranjada e foi muito afetada. Mais no interior, onde a temperatura média foi de 600ºC, surgiu depois do fogo uma camada preta, de cerca de 55 mm de espessura. No núcleo, a coloração ficou a mesma da peça original, vermelha. Essa pigmentação foi usada em alguns pilares do e-Tower para diferenciá-los de outros, feitos com concreto comum. Ela se deve a um pigmento feito com óxido de ferro (Fe2O3), que possibilitou uma das descobertas mais importantes do trabalho. “Ele pode servir também como um

Fotos Carlos Britez

o concreto. O CAR é mais compacto e tem menos porosidade. Paradoxalmente, essa última característica também é seu ponto fraco. Na Europa, depois de algumas décadas de uso, descobriu-se que, em certas condições, ele pode se desplacar ou até mesmo explodir quando tem de enfrentar altas temperaturas, como ocorreu, na década de 1990, em alguns túneis europeus que sofreram grandes incêndios. É um fenômeno chamado spalling, ou desplacamento, que em alguns casos pode ser explosivo. “Algumas teorias indicam que isso ocorre porque, quando o material é exposto a elevadas temperaturas por um determinado tempo, a água livre presente em sua composição se aquece e vira vapor”, explica Britez. “Com a baixa porosidade do CAR, ela não consegue extravasar, o que aumenta a pressão interna a ponto de causar o spalling.” Foi aí que surgiu a desconfiança em relação ao uso desse tipo de concreto em grandes obras. A tese conseguiu desmitificar esse cenário.


O que acontece com o aumento da temperatura do concreto Etapas da evolução do material em situação de incêndio

A temperatura do ar em incêndios raramente excede este nível, mas as chamas podem alcançar 1.200oC ou mais

900oC

Ilustração mostra pilar dentro do forno durante o experimento

800oC

700oC

Acima desta temperatura há uma significativa redução das propriedades mecânicas do concreto

600oC

adaptado da tese de carlos Britez

500oC

550oC a 600oC Materiais à base de cimento apresentam fissuras consideráveis

400oC

Início da perda de 300 C resistência do concreto. Apenas poucos centímetros da superfície terão essa 200oC temperatura. No interior, ela é mais baixa o

250oC a 420oC Alguns desplacamentos podem ocorrer na superfície do concreto

excelente termômetro natural, auxiliando na avaliação da estrutura depois do incêndio”, explica Britez. “As análises que fizemos mostraram que a cor é um indicador de temperatura e de resistência mecânica.” Constatar isso só foi possível porque é sabido que o óxido de ferro sofre alterações químicas e muda de cor com o aumento da temperatura. Ou seja, o concreto vermelho fica escuro quando aquecido em temperaturas com cerca de 600°C. Em temperaturas mais

altas, acima dos 900°C, ele pode mudar de cor novamente, tornando-se alaranjado, conforme mostrou a pesquisa. A cor vermelha no núcleo da peça testada indica que ali o calor não foi grande. “Mesmo sem os termopares no corpo de prova, poderíamos inferir sobre as temperaturas que foram alcançadas no interior dele. Isso é importante, porque o pigmento poderá ser usado em outros experimentos feitos daqui por diante.” Aumento das obras - Ele espera ainda

O Projeto Ação de altas temperaturas sobre concretos aplicados em túneis – n° 2002/10118-4 modalidade

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dor

Antônio Domingues de Figueiredo – USP investimento

R$ 56.574,75 (FAPESP)

que seu trabalho traga outra contribuição à área de grandes construções: o aumento do uso do concreto de alta resistência. “O ideal seria que ele fosse usado na maioria das obras, como portos, pontes e edifícios de grandes alturas, por exemplo. Isso evitaria muitos problemas e daria maior durabilidade a elas. Em obras com CAR, os agentes do ambiente têm dificuldade muito maior para penetrar no concreto, alcançar o aço e desencadear o processo de corrosão. Isso também diminuiria o custo de manutenção das estruturas.” Além disso, o CAR é ambientalmente correto, segundo Britez. Como tem maior resistência, dependendo do caso é pos-

sível que as estruturas possam ser projetadas com menores dimensões e consumindo menos material. “Isso significa menos consumo de cimento, brita, areia e outros materiais com matéria-prima extraída da natureza”, explica o pesquisador. O custo é outra questão que se deve levar em conta na hora de escolher que tipo de concreto usar numa obra. A produção do CAR ainda é mais cara, por causa dos materiais empregados. “Mas no geral é possível que a construção saia mais barata, porque será necessária uma quantidade menor de concreto de alta resistência na obra.” Outra linha de pesquisa na mesma área é exercida pelo professor Antônio Domingues de Figueiredo, do mesmo Departamento de Engenharia de Construção Civil da Poli-USP. Em 2005 ele finalizou um projeto financiado pela FAPESP sobre altas temperaturas em tipos de concretos relacionados a túneis. O objetivo era avaliar a condição de utilização de fibras de polipropileno como proteção passiva para o CAR contra o lascamento explosivo que pode ocorrer durante um incêndio. Além disso, havia a meta secundária de avaliar em que condições o material era mais suscetível a esse tipo de ocorrência. A preocupação principal de Figueiredo era com as obras em túneis, que, por causa do lençol freático, geralmente têm a sua estrutura saturada de água, o que aumenta o risco de lascamento. “Nosso projeto demonstrou que a utilização de fibras de polipropileno misturadas ao concreto podem efetivamente reduzir esse risco”, diz ele. “No caso de um incêndio, essas fibras amolecem e até se fundem, produzindo um caminho para a saída do vapor de água. Com isso, o concreto pode ser calcinado, mas se mantém íntegro protegendo as camadas mais internas de revestimento do túnel e, por consequência, garantindo a estabilidade da estrutura.” O trabalho realizado por Figueiredo com materiais poliméricos adicionados ao concreto foi aproveitado em alguns túneis construídos em São Paulo, como nas obras do Rodoanel e na rodovia dos Imigrantes. Mas ele tem outras aplicações. A mais comum é a utilização em pavimentos, nos quais as fibras poliméricas são usadas para o controle da fissuração oriunda da retração do material após a secagem. n pESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

69


[ química ]

Cerâmica

mais densa

Ricard o Zorzet to

D

ois pesquisadores brasileiros e um francês desenvolveram uma forma eficiente e barata de produzir sensores de alta qualidade com a aplicação de descargas elétricas no material cerâmico usado nesses produtos. A nova técnica permite o adensamento dos grãos cerâmicos das peças fabricadas na forma de pastilhas utilizadas em sensores para medir gases nos escapamentos de automóveis e na produção do aço nas siderúrgicas. Também entram na fabricação de sensores de temperatura, como os embutidos nos telefones celulares para detectar o aquecimento anormal do aparelho, e em alguns tipos de célula a combustível, equipamento que produz energia elétrica a partir de hidrogênio. A indústria confecciona essas peças hoje usando um equipamento importado que custa por volta de US$ 250 mil e submete um pó composto por uma mistura de óxidos – em geral, de zircônio e de ítrio – a pressões mil vezes maiores que a atmosférica e temperaturas de quase 1.500 graus Celsius por algumas horas. O resultado são pastilhas rígidas, bastante resistentes ao desgaste e à corrosão e capazes de suportar temperaturas elevadas. Em parceria com o pesquisador francês Michel Kleitz, os físicos Eliana e Reginaldo Muccillo conseguiram, ainda de modo experimental, criar outra forma de obter o mesmo tipo de produto. Mas consumindo muito menos dinheiro e energia. No final de 2010, durante uma temporada de dois meses no laboratório chefiado pelo casal Muccillo no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), Kleitz viu a oportunidade de testar uma ideia que começara a se formar dois anos antes. Em vez de contar com alta pressão e temperaturas elevadas para produzir peças cerâmicas de grãos finos e maior densidade – e, consequentemente, de melhor qualidade, já que as propriedades da cerâmica são determinadas pelo grau de compactação dos grãos –, o eletroquímico francês, pesquisador aposentado do Instituto Nacional Polítécnico de Grenoble (INPG), imaginou ser possível forçar a aproximação dos grãos de outra maneira. Ele lembrou de técnicas de sol-

70

n

outubro DE 2011

Descargas elétricas aplicadas em pastilhas para sensores geram produtos mais robustos

n

PESQUISA FAPESP 188


dagem e de estudos teóricos de outros grupos sugerindo que descargas elétricas poderiam contribuir para adensar os grãos cerâmicos com dimensões da ordem de nanômetros (milionésimos de milímetro). Montagem decisiva - Mas no labora-

tório do Ipen faltava um equipamento: uma fonte de energia para controlar a passagem de corrente elétrica pela amostra de cerâmica. Esse tipo de aparelho até é produzido comercialmente. Mas o importado custa US$ 18 mil e demoraria a chegar e o produzido no Brasil não ficaria pronto em menos de 90 dias. Reginaldo decidiu, então, pedir ajuda a outro físico, Yamato Miyao, professor aposentado do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP). Miyao desenhou os circuitos da fonte e uma semana depois apareceu no laboratório do Ipen com o equipamento pronto. Parecido com um gabinete de computador, o aparelho permitiu realizar os testes iniciais, mas era preciso aperfeiçoá-lo. Duas semanas mais tarde, depois de gastar quase R$ 1 mil em peças na rua Santa Ifigênia, paraíso dos componentes eletrônicos no centro de São Paulo, Miyao retornou com o aparelho de que precisavam. Reginaldo, Kleitz e Eliana submeteram 99 amostras de pastilhas cerâmicas fabricadas por eles no laboratório do Centro de Ciência e Tecnologia de Materiais do Ipen a uma série de testes em que ora mantinham a temperatura

Os Projetos 1 - Estudo de fenômenos intergranulares em materiais cerâmicos – nº 2005/53241-9 2 - Michel Kleitz, Conseil National de la Recherche Scientifique – França – nº 2010/51293-0 modalidade

1 - Projeto Temático 2 - Auxílio a Pesquisador Visitante

constante e variavam a intensidade da corrente elétrica, ora modificavam a temperatura conservando a corrente elétrica inalterada. Eles verificaram que ao expor o material por uns poucos segundos a uma corrente elevada e temperatura entre 970 e 1.150 graus Celsius foi possível produzir peças cerâmicas com grãos tão unidos quanto os obtidos pelo processo industrial tradicional, a sinterização rápida por plasma (spark plasma sintering). Houve, porém, uma diferença importante. Com a nova estratégia, que denominaram soldagem rápida de grãos (flash grain welding), a compactação ou sinterização dos grãos ocorreu à pressão ambiente. A passagem de uma corrente elétrica alternada pela amostra provoca o aumento da temperatura no espaço entre os grãos e inicia uma agitação microscópica, fazendo os grãos se aproximarem. Essa técnica não necessita de equipamentos caros, afirmam os pesquisadores no artigo em que descrevem os resultados, aceito para publicação no Journal of the European Ceramic Society em apenas 22 dias. “Mostramos que no século XXI ainda é possível fazer ciência com bricolagem”, comenta Kleitz. Os pesquisadores não sabem em quanto tempo o novo processo tornaria mais barato fabricar pastilhas de cerâmica de alta qualidade. A técnica precisa ser aperfeiçoada. Ao trocar os componentes da cerâmica, porém, as coisas não andaram tão bem. Em alguns casos, a temperatura no espaço entre os grãos se tornou tão elevada – atingiu mais de 2.000 graus – que os grãos se fundiram completamente, transformando a pastilha em vidro. “Há o dia da caça e o do caçador”, lamentou Kleitz.“Estamos tentando entender o que aconteceu. Atualmente fazemos um experimento por dia para tentar dominar a técnica com diferentes materiais”, conta Eliana. Eles estudam também a possibilidade de usar a técnica para produzir, em escala piloto, cerca de 200 pastilhas com as mesmas propriedades, o que demonsn traria a viabilidade industrial.

miguel boyayan

Co­or­de­na­dores

No Ipen, pastilhas de cerâmica utilizadas em sensores

1 - Reginaldo Muccillo – Ipen 2 - Eliana dos Santos Muccillo – Ipen investimento

1 - R$ 802.674,39 (FAPESP) 2 - R$ 19.714,58 (FAPESP)

Artigo científico MUCCILLO, R. et al. Flash grain welding in yttria stabilized zirconia. Journal of the European Ceramic Society. v. 31, p. 1.517-21. jul. 2011. pESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

71


[ ambiente ]

Inovações reduzem

emissão de carbono O fim do reservatório de gasolina em carros flex é uma das novidades para diminuir os gases do efeito estufa Dinorah Ereno ilustração Guilherme Lep ca

E

mpresas brasileiras dos setores automotivo, metalúrgico e de energia vêm desenvolvendo inovações em produtos e processos que contribuem para a redução da emissão de gases de efeito estufa. Entre as tecnologias analisadas por pós-graduandos da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP) e apresentadas em um seminário no dia 10 de agosto estão um sistema que elimina a necessidade do reservatório de gasolina para dar partida em veículos flex e a inovação estrutural no virabrequim – um eixo do motor que transforma a energia da combustão (a queima do combustível) em potência para movimentar o veículo – com redução no gasto de combustível. Outros processos são a criação de um sistema multicombustível para aviões de pequeno porte e uma plataforma inteligente de gerenciamento de eletricidade. “O projeto para a eliminação do tanquinho nasceu como uma evolução do sistema de injeção eletrônica flex”, diz o engenheiro mecânico Eduardo Campos, gerente comercial da empresa Magneti Marelli, fabricante de sistemas e componentes para a indústria automotiva, e coordenador do projeto. A pesquisa, iniciada em 2003, teve como objetivo preparar o álcool na quantidade exata, para que fosse queimado dentro do motor no momento da partida. Eliminar a necessidade da gasolina para a partida a frio com etanol foi um trabalho bastante complicado em razão da característica físico-química do álcool, que não queima abaixo de 15 graus Celsius. “O tanquinho de gasolina é um grande emissor de poluen-

72

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188


MELHOR APROVEITAMENTO ENERGÉTICO

Carros flex A empresa Magneti Marelli elimina tanquinho de gasolina para partida a frio nos veículos bicombustíveis

Virabrequim A ThyssenKrupp modifica formato de peça do motor para reduzir atrito e permitir maior capacidade de carga

Plataforma Hemera Empresa CAS desenvolve sistema que gerencia as informações sobre geração, transmissão, distribuição e consumo de eletricidade

Flex aeronáutico Instituto de Aeronáutica e Espaço e a Magneti Marelli desenvolvem sistema bicombustível para aviões de pequeno porte

tes, porque ele é acionado quando o catalisador do carro ainda está frio”, diz Campos. O catalisador é um componente do sistema de escapamento dos carros que reduz a poluição causada pela emissão de gases nocivos à saúde, como hidrocarbonetos, monóxido de carbono e óxidos de nitrogênio. O sistema deverá estar no mercado no final do próximo ano, quando serão lançados novos modelos de veículos. Caberá a cada indústria automobilística definir a melhor estratégia para que o sistema de aquecimento do etanol, composto por aquecedores elétricos instalados no sistema de injeção do combustível do motor, entre em funcionamento. “Uma das propostas é que a central eletrônica inicie o processo quando o motorista abrir a porta do veículo”, diz Campos. Outra é que o sistema seja acionado no momento da partida do veículo. “A tecnologia pode ser usada não só para a mistura gasolina e etanol, mas também para outras combinações”, diz Gleriani Ferreira, que apresentou no seminário coordenado pelo professor Jacques Marcovitch, ex-reitor da USP, um estudo de caso sobre essa e outras inovações na indústria automotiva

como parte da disciplina Estratégias Empresariais e Mudanças Climáticas, da pós-graduação da FEA. No setor automotivo, outro desenvolvimento que contribui para reduzir o gasto de combustível é uma inovação estrutural no virabrequim da empresa ThyssenKrupp. Algumas curvaturas feitas no centro do virabrequim melhoraram o equilíbrio da peça. “Nasceu de uma ideia bem simples. Em vez de uma superfície de suporte linear [mancal], ele é feito de forma côncava”, diz o engenheiro Ricardo Santoro Cardoso, responsável pelo desenvolvimento de produtos da ThyssenKrupp. A vantagem da modificação é que a peça, com o novo formato, deixa de concentrar tensões e, com isso, consegue ter maior capacidade de carga. “Testes de fadiga comprovaram na prática que essa solução tem uma resistência 40% maior que a atual”, diz Soares. A conta da redução de emissões leva em consideração que, se o diâmetro do virabrequim atual fosse aumentado para conseguir absorver mais carga, a sua massa aumentaria e com isso ele teria que fazer mais giros para movimentar o veículo, o que representaria mais

gasto de energia. “Como o processo de movimentação fica facilitado, há diminuição do consumo de energia e de combustível”, diz Cardoso. A inovação está sendo testada em laboratório. A previsão é de que os testes com motores de clientes, no caso as indústrias automobilísticas, começarão a ser feitos nos próximos seis meses. Outra novidade apresentada, que já mostrou em testes preliminares a capacidade de reduzir emissões de gás carbônico (CO2), é um sistema flex fuel aeronáutico desenvolvido em parceria entre o Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), um centro de pesquisa e desenvolvimento vinculado ao Comando da Aeronáutica, e a Magneti Marelli. O sistema permitirá às aeronaves de pequeno porte com motores a pistão (motor a combustão semelhante ao dos carros) utilizar gasolina de aviação, etanol ou até mesmo misturas entre os dois combustíveis. “Nós temos a segunda maior frota de aeronaves a pistão do mundo, usadas na agricultura, para treinamento de pilotos, como táxi aéreo, lazer e transporte particular”, diz o engenheiro Paulo Ewald, coordenador do projeto. pESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

73


Métricas da produção sustentável Redução no consumo de energia, de água, de emissão de gases, de dejetos, aumento na cobertura vegetal e no número de patentes “A retórica da sustentabilidade deve dar lugar às métricas, um instrumento efetivo de medição dos cortes das emissões de gases de efeito estufa”, diz Jacques Marcovitch. “Esse é um princípio central na transição para a economia de baixo carbono.” A proposta do professor é utilizar seis indicadores para serem aplicados no âmbito das empresas e do produto interno bruto (PIB) de um país. “Escolhemos, entre tudo o que havia disponível em termos de métrica, seis parâmetros, considerados um denominador comum para todos os setores industriais e todas as regiões do país”, relata.

A

ideia de utilizar a tecnologia flex para aviões começou com o desejo de melhorar a parte de gerenciamento dos motores a pistão. “Hoje os motores aeronáuticos que usam o carburador ou a injeção mecânica dependem da sensibilidade do piloto”, diz Ewald. “Só existe um ponto de ignição do motor, que é fixo e foi concebido para a condição mais crítica do voo, a decolagem.” Em todas as outras situações há um gasto maior de combustível, porque esses motores têm como característica o uso do próprio combustível para refrigerar o motor. Os ajustes do motor são feitos manualmente, a cada variação de altitude. “O sistema de gerenciamento eletrônico que está em desenvolvimento vai sempre procurar o melhor ponto de ignição, dependendo da altitude que o avião está voando, da rotação do motor e da carga”, relata Ewald. Ele também vai selecionar a mistura ar-combustível mais adequada. Isso significa menos desgaste para o piloto, redução no consumo de combustível e nas emissões de gases do efeito estufa. Atualmente o sistema flex para motores de avião a pistão está em fase de calibração do motor. Inicialmente será

74

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

A fabricação sustentável de qualquer produto deve levar em conta a redução no consumo de energia por unidade produzida, o corte na emissão de gases estufa, a diminuição no consumo de água, a redução de dejetos, o aumento na cobertura vegetal e no número de patentes por 100 mil habitantes. “Para cada unidade produzida de um ano para outro o fabricante teria que revelar de forma consistente e verificável cada um dos itens listados.” Para desatrelar o crescimento econômico do consumo de recursos naturais, o mesmo conceito seria aplicado ao país com relação ao PIB.

colocado em um motor de fabricação norte-americana, o Lycoming 0-360 A1D, com potência de 180 HP, o mesmo utilizado em aeronaves como Neiva Regente, designada na Força Aérea Brasileira (FAB) como U-42. Dados preliminares da Divisão de Propulsão Aeronáutica do IAE mostram que o uso de etanol em aviões – por exemplo, no modelo agrícola Ipanema, da Embraer – reduz as emissões de gás carbônico em cerca de 38% na decolagem e de 63% quando em velocidade de cruzeiro, em comparação com os aviões que usam gasolina. O projeto recebeu R$ 580 mil da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), por meio do fundo setorial CT-Aeronáutico.

O

utra inovação analisada no seminário é uma tecnologia chamada plataforma Hemera, com capacidade para gerenciar de forma centralizada todas as informações sobre geração, transmissão, distribuição e consumo de eletricidade, desenvolvida pela CAS Tecnologia. “A tecnologia compõe a cadeia de smart grids, ou redes inteligentes, no Brasil”, diz José Guilherme Campos, que escolheu esse tipo de sistema para estudo de caso porque a eficiência energética é citada

em um estudo do Banco Mundial como um dos principais fatores que irão contribuir para uma economia de baixo carbono. O sistema é composto de um arranjo de hardwares e softwares que utiliza uma infraestrutura de telecomunicações para coletar, armazenar, processar e transmitir informações sobre os fluxos de energia e consumo.

E

ntre as várias funcionalidades estão oferecer dados via web e em tempo real aos consumidores, com simulação de faturamento e opção de tarifa pré-paga, além de controle remoto on-line com envio de ordens para ligar e religar uma estação de energia. O sistema também facilita a logística de atendimento em campo por meio da integração com dados geográficos e regras antifraudes com respaldo legal de corte, entre outras. O sistema é utilizado por concessionárias de energia junto a seus clientes, principalmente os de média e alta tensão (grupo A), mas tem potencial para ser usado pelos consumidores residenciais Entre as aplicações estão o redirecionamento automático do fluxo de energia, por exemplo, para hospitais quando há uma queda na rede elétrica. “A plataforma Hemera tem conseguido ganhos significativos em termos de eficiência energética, com redução média no consumo de 20% após sua implantação”, disse o diretor de Serviços da CAS, Odair Marcondes Filho, durante o seminário. Os grandes e médios consumidores do grupo A respondem por cerca de 2% a 3% dos consumidores totais, mas representam de 40% a 50% das receitas das concessionárias de energia. O próximo desafio da CAS são os consumidores residenciais, de baixa tensão. Mas para isso seria necessário substituir os medidores eletromecânicos pelos eletrônicos, fator fundamental para o desenvolvimento e implementação das redes inteligentes. Uma tarefa bastante complexa, já que o Brasil tem mais de 60 milhões de residências. A plataforma Hemera tem concorrentes no mercado, soluções oferecidas pelas empresas M2M telemetria e ADTS. “Os recursos, no entanto, têm como foco basicamente a mensuração remota de dados, a identificação de falta de nível de tensão e fase, além da detecção de fraudes de vazamentos”, diz Campos. n


[ Alimentos ]

Embalagem comestível Revestimento orgânico protege frutas, legumes e carnes Yuri Vasconcelos

A

grande novidade do novo tipo de embalagem é que o consumidor não precisa removê-la. Ela pode ser ingerida sem causar dano à saúde porque não é metabolizada pelo organismo humano e sua passagem pelo trato gastrointestinal é inócua. A embalagem serve para prolongar o tempo de prateleira de frutas, verduras, laticínios, carnes, pescados e outros alimentos perecíveis, mantendo a sua integridade estrutural e protegendo-os dos microrganismos que causam a degradação do produto. A novidade faz parte de um estudo realizado em parceria entre pesquisadores brasileiros e portugueses para o desenvolvimento de filmes e revestimentos comestíveis em escala micrométrica e nanométrica para fins alimentares. A inovação, ainda em fase de testes, deverá ter impacto na agroeconomia, porque, ao conservar os alimentos frescos por mais tempo, ajudará a reduzir o desperdício de frutas e verduras que, segundo estatísticas do Ministério da Agricultura, chega a 35% da produção brasileira. No Brasil as pesquisas são conduzidas pelo Departamento de Bioquímica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Em Portugal estão a cargo do Instituto de Biotecnologia e Bioengenharia da Universidade do Minho (Uminho), em Braga. Os dois grupos iniciaram a cooperação

76

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

em 2005 em um projeto financiado pela União Europeia – o Alfa-Valnatura –, do qual fizeram parte também instituições de outros cinco países: Argentina, Cuba, Espanha, Irlanda e México. Depois o grupo de brasileiros e portugueses continuou os estudos em outros programas. Os nanofilmes ou nanorrevestimentos comestíveis são películas finas incolores, invisíveis a olho nu, que envolvem completamente o alimento. São constituídos por várias camadas de polissacarídeos, polímeros naturais há tempos usados pela indústria na fabricação de caldos de cozinha, por exemplo. Para o desenvolvimento da nanopelícula, vários polissacarídeos foram testados. “Podemos destacar alguns polissacarídeos que apresentam boas propriedades de barreira seletiva à passagem de gases, tais como a quitosana, extraída da carapaça de crustáceos, o alginato, de algas marinhas marrons, a k-carragenana, de algas vermelhas, o policaju, da goma do cajueiro, e a pectina, cuja fonte comercial mais importante é a polpa de maçã e cascas de frutas cítricas”, diz a bioquímica Maria das Graças Carneiro da Cunha, da UFPE. As nanopelículas feitas com esses polissacarídeos não têm gosto e, por isso, não interferem no sabor dos alimentos. “O teor de calorias é muito baixo e os alimentos podem ser consumidos por diabéticos”, diz Maria das Graças.


Métodos de aplicação Entre as três maneiras para revestir os alimentos, as de imersão e aspersão podem ser facilmente adaptadas à indústria

IMERSÃO

ASPERSÃO

FILME

Peter Dazeley / getty image

Baixo custo - A pesquisadora explica

que existem três rotas para a aplicação desses nanomateriais. A primeira é por meio da imersão do alimento em soluções polieletrolíticas, formadas por polissacarídeos ou proteínas. Como resultado, obtém-se o revestimento nanolaminado, capaz de mudar, em muitos casos, as características da superfície. Esse método, segundo Maria das Graças, é considerado de baixo custo e versátil. É uma técnica simples e sem necessidade de equipamentos complexos. Outra maneira de se obter o revestimento nanolaminado é por aspersão das mesmas soluções polieletrolíticas sobre o alimento. Trata-se também de uma boa opção porque pode ser adaptada às condições existentes na indústria alimentícia para a lavagem de alimentos. Por fim, existe uma outra aplicação em que o alimento é envolvido por um filme – como se fosse coberto por uma película transparente. Nesse caso, a película, embora muito fina, é mais volumosa, em escala micrométrica. “Não vejo prós e contras em cada um desses métodos. Vai depender do tipo de alimento e da finalidade desejada”, diz a pesquisadora da UFPE. “Pelo que tenho visto no Brasil, o método de imersão é bastante viável, porque são

utilizados tanques onde as frutas são mergulhadas para receberem o tratamento de preservação. Mas o método de aspersão também é possível, porque as frutas passam por um processo convencional de lavagem antes de receber o tratamento de preservação. Só após uma análise geral, incluindo os custos, é que se poderá afirmar qual dos métodos é mais adequado”, diz ela. Essa é também a opinião do engenheiro químico português José Teixeira, que coordena as pesquisas na Universidade do Minho, ao lado do pesquisador António Vicente. “Até o momento, testes feitos em laboratório mostraram os mesmos resultados quanto à conservação dos produtos, mas com diferentes gastos de utilização de película. Ainda é prematuro afirmar qual dos métodos será mais viável no meio industrial”, diz José Teixeira. Uma vantagem adicional das nanopelículas é o fato de elas permitirem a incorporação de compostos bioativos, como antimicrobianos e antioxidantes. “A película pode tornar-se um veículo para a incorporação desses compostos, permitindo ter um alimento com melhores propriedades”, afirma o pesquisador português. “Os agentes microbianos e antioxidantes podem ser liberados gradualmente na superfície dos alimentos”, destaca Maria das Graças. Em Portugal, testes realizados com películas finas em escala nanométrica tiveram resultados animadores. O nível de perdas de mo-

rangos caiu 30% e de queijos, 20%, segundo a equipe da Uminho. No Brasil, o engenheiro de pesca Bartolomeu Souza, que concluiu seu doutoramento em novembro de 2010 na instituição portuguesa, tem aplicado filmes e revestimentos comestíveis em escala micrométrica para prolongar o tempo de prateleira de pescados. “Nossos estudos revelaram que amostras de salmão revestidas com a película apresentaram um crescimento microbiano mais lento, o que permitiu prorrogar por três dias o prazo de validade do peixe resfriado”, diz Bartolomeu. Depois de voltar de Portugal, ele foi aprovado em um concurso para professor da Universidade Federal do Ceará (UFC). Os testes com as diferentes películas desenvolvidas pelos cientistas brasileiros e portugueses avançam, mas eles ainda não obtiveram autorização das autoridades sanitárias dos dois países para uso comercial. Empresas brasileiras e estrangeiras já demonstraram interesse em comercializar a tecnologia, mas, segundo Maria das Graças, “ainda estamos em estágio de negociações”. n Artigo científico Medeiros, B.G.S. Polysaccharide/protein nanomultilayer coatings: construction, characterization and evaluation of their effect on “rocha” pear (Pyrus communis L.) Shelf-life. Food and Bioprocess Technology. Publicado on-line em 20 de janeiro de 2011. PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

77


[ arqueometriA ]

Pinturas escondidas Diagnóstico por imagem traz à tona detalhes ocultos de quadros e obras de arte Marcos Pivet ta

78

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

fotos: elizabeth Kajiya-if/usp

N

ada substitui o olho de um especialista para avaliar as particularidades de um quadro. Mas o emprego em importantes museus e instituições culturais do país de uma série de análises físicas e químicas tornou-se uma ferramenta adicional para entender o estilo e o processo criativo de certos pintores, dar parâmetros ao trabalho de conservação e restauração e trazer à tona facetas ocultas de algumas pinturas. Nesse sentido, a história do quadro Marinha, um óleo sobre madeira produzido provavelmente no início da década de 1940 pelo italiano Virgilio Guidi (1891-1984), é bastante ilustrativa. No catálogo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), onde se encontra guardada, essa tela abriga, oficialmente, apenas uma pintura: uma vista do Grande Canal de Veneza, com destaque para a Igreja de San Giorgio Maggiore. No entanto, basta virar o quadro para ver, a olho nu, em seu verso o retrato de uma mulher. Imagens no infravermelho desse lado B da tela revelaram uma terceira pintura escondida sob as tintas que deram forma à figura feminina: outra cena marítima da cidade italiana. A descoberta do trabalho oculto no verso do quadro Marinha foi obtida com o uso de uma técnica óptica não destrutiva denominada reflectografia de infravermelho, que permite ver através das camadas de tinta e, assim, identificar desenhos ocultos pela pintura mais superficial. “Pensávamos que iríamos estudar duas pinturas de Guidi, a da frente e a de trás, mas acabamos descobrindo uma terceira”, diz Márcia Rizzutto, do Instituto de Física da USP, especialista em arqueometria, disciplina que usa métodos científicos para a análise de obras de arte e objetos arqueológicos. A física teve acesso à pintura italiana por meio de uma colaboração de trabalho com a historiadora

O retrato feminino acima aparece no verso do quadro Marinha, do italiano Virgilio Guidi (alto da página), que faz parte do acervo do MAC


da arte Ana Gonçalves Magalhães, do MAC, que, num projeto financiado pela FAPESP, está reavaliando e atualizando o catálogo do museu da universidade. “As informações científicas são hoje indispensáveis para o estudo e a conservação de obras de arte”, afirma Ana. A reflectografia de infravermelho é uma técnica baseada na capacidade de reflexão e absorção que alguns elementos químicos possuem quando sujeitos a ondas eletromagnéticas. As imagens no infravermelho são captadas por uma câmera digital de alta resolução dotada de uma lente com um filtro de luz para esse comprimento de onda. A radiação eletromagnética incidente passa pelas camadas mais externas de tinta até ser absorvida e refletida de volta para a câmera por algum material. O efeito do método é tornar os pigmentos superficiais, que formam a imagem visível a

olho nu, mais transparentes e aumentar o contraste de eventuais desenhos de fundo. Cada composto reflete de forma diferente no infravermelho. Pigmentos à base de carbono, muitas vezes utilizados pelos artistas para fazer versões preliminares ou esboços de quadros que posteriormente são cobertos por outras tintas, refletem bem no infravermelho. De acordo com os comprimentos de onda usados nas análises, a espessura das camadas de tintas superficiais e o tipo de pigmentos presentes numa obra, o resultado da equação transparência e contraste pode ser mais favorável à descoberta de surpresas, como a versão do Grande Canal de Veneza que o italiano Guidi preferiu encobrir com um retrato feminino. A tela Marinha faz parte da Coleção Francisco Matarazzo Sobrinho, composta por 429 obras de artistas

brasileiros e do exterior, que pertenceu ao antigo Museu de Arte Moderna de São Paulo e, desde 1963, foi transferida para o acervo do MAC. Em seu trabalho de catalogação das pinturas do museu paulista, Ana priorizou um lote de 70 telas produzidas por pintores italianos na primeira metade do século passado que foram compradas por Ciccillo Matarazzo, como o rico industrial ítalo-brasileiro era mais conhecido, logo após a Segunda Guerra Mundial. Dentro desse subconjunto de telas, cinco quadros chamaram a atenção da historiadora. Eles exibiam pinturas tanto na parte da frente como também no verso. As obras que estavam na frente são as que Ciccillo oficialmente comprou. Sobre elas há informações nos registros do museu. As que estão na parte de trás, mesmo quando visíveis a olho nu, não PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

79


têm documentação ou apresentam registros incompletos. “Nesses casos, Ciccillo comprou uma obra e acabou levando duas, a da frente e a de trás”, afirma Ana. A tela de Guidi é um caso extremo, em que há três pinturas no mesmo suporte, sendo uma invisível a olho nu. Por sinal, graças ao trabalho de catalogação da historiadora se descobriu que a figura feminina retratada no verso era a mulher do artista italiano. Retoques revelados - Outro caso in-

teressante é o da pintura Nu inacabado, um óleo sobre tela de 1943 de autoria do italiano Felice Casorati (1883-1963), que também compõe a Coleção Francisco Matarazzo Sobrinho. O quadro, devidamente catalogado no MAC, mostra uma mulher despida sentada numa cadeira. No verso da pintura aparece 80

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

uma segunda obra, também visível a olho nu, sobre a qual não havia nenhuma informação: o retratro de um menino. Márcia Rizzutto fez imagens das duas pinturas usando diferentes métodos, como a reflectografia de infravermelho e também a fluorescência de luz ultravioleta. “Essa segunda técnica permite visualizar informações superficiais da camada pictórica e detectar sujidades, fungos, rasgos, fissuras e áreas retocadas”, explica a física da USP. Quando expostos à radiação ultravioleta, alguns materiais usados nas pinturas, como os diferentes tipos de verniz, tornam-se fluorescentes. Áreas retocadas, em que o verniz original foi removido e recoberto por outro pigmento, aparecem como manchas escuras quando vistas com essa técnica. As imagens de ambos os lados do quadro obtidas com essas duas técnicas

Imagem no infravermelho revela uma cena de Veneza que foi encoberta pela pintura do retrato feminino

distintas evidenciaram que o estilo das pinturas era diferente. Casorati desenhou a cena do nu, com algum pigmento à base de carbono, antes de adicionar cor a ela. Já o autor do retrato do menino tinha um estilo mais impressionista. Não há desenho a carvão e o artista pintou fazendo pequenos borrões com a tinta. Essas informações, aliadas a uma pesquisa histórica sobre a vida de Casorati, levaram Ana a uma descoberta: a figura do menino foi pintada por Daphne Maugham Casorati (1897-1982), mulher de Casorati e mãe do garoto. Às vezes, o casamento entre as várias técnicas de arqueometria e a análise artística das pinturas não produz resul-


tados aparentemente tão espetaculares, como nos casos dos estudos das obras de Guidi e Casorati. Ainda assim, traços insuspeitos de uma pintura podem vir à tona quando a ciência joga luz sobre um quadro. Na tela A adivinha, do italiano Achille Funi (1890-1972), outro óleo sobre madeira da coleção de Ciccillo Matarazzo, Márcia e Ana perceberam que parte do cenário de fundo do lado direito da obra, onde havia uma parede e uma porta em arco, foi coberta por uma tinta escura. Por algum motivo, Funi mudou de ideia e ocultou essa parte do background. “Descobrimos alterações que os pintores fazem e não incorporam à obra final por meio da análise dos diversos tipos de imagem que podemos obter de um quadro”, diz Ana. Por sinal, esse quadro, embora não tenha nenhuma pintura oculta ou visível no verso, é inédito para a historiografia internacional e não consta do catálogo geral da obra de Funi na Itália. Rotina de museu - Em grandes mu-

seus da Europa e dos Estados Unidos, como o Louvre em Paris, a National Gallery de Londres e o Metropolitan de Nova York, as análises arqueométricas já se incorporaram à rotina das instituições há décadas. Os próprios estabelecimentos contam com aparelhos e pessoal qualificado para fazer os es-

OS ProjetoS 1. Reavaliação crítica e atualização da catalogação do acervo do MAC-USP - nº 2009/01041-7 2. Feixe externo de íons para caracterização não destrutiva de objetos arqueológicos e obras de arte do patrimônio cultural nº 2007/08721-8 modalidade

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­doras

1. Ana Gonçalves Magalhães – MAC-USP 2. Márcia Rizzutto – IF-USP investimento

1. R$ 18.400,00 (FAPESP) 2. US$ 38.000,00 e R$ 34.500,00 (FAPESP)

Imagens na luz visível e no infravermelho (à dir.) da tela A adivinha, de Achille Funi: detalhes do fundo do quadro são destacados por técnicas da arqueometria

tudos, não sendo necessário, em alguns casos, nem recorrer a parcerias com os pesquisadores de universidades. Aqui os museus começaram a se abrir para esse tipo de colaboração há poucos anos. Na Pinacoteca do Estado de São Paulo, por exemplo, toda peça que hoje entra no acervo passa obrigatoriamente por cinco exames: uma análise organoléptica (feita por um especialista em arte) e obtenção de imagens no infravermelho, ultravioleta, luz rasante (para detectar desníveis e fraturas na pintura) e luz transversa. A maioria dos exames é feita no próprio museu. Em alguns casos, os quadros têm de ser levados até o Institudo de Física da USP, onde são realizados estudos dos pigmentos ou radiografias. “Essas análises foram incorporadas à documentação das obras”, diz Valeria de Mendonça, coordenadora do núcleo de conservação e restauro da Pinacoteca. “Elas serão úteis para eventuais restaurações no futuro e para pesquisas sobre o estilo de artistas.” Valeria calcula que cerca de 100 obras da Pinacoteca já foram alvo de exames arqueométricos pela equipe de Márcia. No momento há um grande estudo em curso, em parceria com a USP, sobre as características estilísticas e os tipos de pigmento usados pelo pintor brasileiro Oscar Pereira da Silva (1867-1939). A Pinacoteca dispõe de uma dezena de pinturas do artista, que são um bom material de análise. Algumas técnicas arqueométricas permitem discriminar os pigmentos

originalmente usados por um artista e diferenciar as tintas que foram posteriormente empregadas em restaurações da obra. A química Cristiane Calza, do Laboratório de Instrumentação Nuclear da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ), conta com um sistema portátil de fluorescência de raios X que tem produzido resultados interessantes quando seu feixe é apontado para telas e esculturas. Recentemente, com a ajuda do aparelho, a pesquisadora identificou 10 diferentes camadas de tinta na antiga estátua de São Sebastião da Igreja dos Capuchinhos, no Rio de Janeiro. A camada original, que remete ao século XVI, quando a obra foi trazida de Portugal por Estácio de Sá, era composta pelo branco de chumbo misturado com um pouco de vermilion (à base de sulfeto de mercúrio). “Esse pigmento tinha o intuito de conferir um tom rosado à pele”, diz Cristiane. A composição da segunda à quinta camadas era a mesma da primeira, com maior ou menor adição de vermilion ao branco de chumbo. Na sexta e sétima camadas aparecem pigmentos que começaram a ser utilizados no século XIX: litopônio (um branco obtido com a mistura de sulfato de bário e sulfeto de zinco) e o vermelho ocre. Na oitava ressurge o branco de chumbo, agora misturado ao ocre e vermilion. Na nona há branco de zinco e ocre. Na última e atual camada, legado de um restauro realizado no século XX, foi caracterizado o emprego de branco de zinco, branco de titânio e ocre. “Com essas informações é possível pensar numa restauração da estátua que tente preservar as características originais da obra”, afirma Cristiane. n PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

81


Albani Ramos / Folhapress

humanidades

84

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188


[ sociologia ]

A força social da umbanda

Em crise, a “religião brasileira” mantém poder cultural de inclusão | Carlos Haag

Filhos de santo recebem entidades durante culto no terreiro de Pai Benedito, em Codó, Maranhão

egundo o Mapa das religiões, divulgado recentemente pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), o número de pessoas que se declararam umbandistas se resume a 0,23% da população brasileira. Em 1980 já era minguado 0,6%, passando para 0,5% em 1991 e 0,3% em 2000, segundo o IBGE. Quais as consequências desse abalo demográfico na umbanda, dita a primeira religião efetivamente brasileira? “Que o catolicismo caísse cada vez mais era esperado. Mas a umbanda, a ‘religião brasileira’ por antonomásia, mestiça de índio, negro e europeu, prosopopeia consumada de nossa miscigenação constitutiva que os cientistas sociais consideraram como forma religiosa plenamente ajustada, posto que sincrética à realidade brasileira, mesmo a mais urbana e modernizada, é um fenômeno que dá o que pensar. Fico encabulado com o declínio censitário da umbanda, o ‘Brasil brasileiro’ indo para o ralo”, analisa Flávio Pierucci, sociólogo da Universidade de São Paulo (USP) e autor de A religião como solvente (2006). Nas páginas finais de As religiões africanas no Brasil (1958), Roger Bastide já alertava para “as ameaças que pairam sobre a umbanda”, sem a qual não há mais defesa segura contra as tensões e conflitos peculiares à sociedade de classes. As comunidades umbandistas não mais seriam “nichos”. PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

85


fotos leo ramos

Meditação durante as cerimônias de imantação em terreiro carioca. Ao lado, oferenda em troca de sabedoria: conselhos das entidades são valorizados

Nelas, os valores de um sagrado corrompido apenas refletiriam os dilaceramentos da sociedade inclusiva. Nem tudo o que é mágico se dissolve no ar: o que estamos perdendo com a fragilização da umbanda? “A história cultural brasileira pode ser aprendida e apreendida não apenas em livros de história, mas também em terreiros de umbanda. A umbanda reinterpreta os valores, as visões históricas e os acontecimentos nacionais, dialogando com a realidade. As classes de pertença de seus espíritos refletem também grupos que geralmente sofrem ou sofreram exclusão social, uma marca de resistência e preservação de um modo de dialogar com a realidade social de forma a articular, pelos rituais, a inclusão social”, afirma o psicólogo José Francisco Miguel Henriques Bairrão, docente de psicologia social na USP, on86

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

de coordena o Laboratório de Etnopsicologia, que estuda fenômenos ligados à umbanda, como o transe umbandista, ato enunciativo em que se condensam reminiscências pessoais e sociais. “Portadoras de vozes ancestrais inconscientes, essas memórias, uma vez resgatadas, podem distribuir benefícios psíquicos e simbólicos aos seus herdeiros”, lembra o pesquisador. Segundo Bairrão, o panteão umbandista é constituído por personagens que assinalam a necessidade no passado (memória coletiva), bem como, em muitos casos, ainda no presente, de atenção e de inclusão, visão bastante distante da “teologia da prosperidade” da Igreja Universal, que vê nela uma rival a ser dizimada como a religião do diabo e do mal.

A

particularidade religiosa da umbanda, diz o autor, nem africana nem cristã, pode ser a expressão de um patrimônio cultural pujante e digno da realidade social brasileira. Ela comporta processos de inclusão social e pode ser um meio de elaboração de experiências sociais traumáticas para

significativos grupos sociais brasileiros. Para Bairrão, o estudo do imaginário popular religioso da umbanda, além de permitir a obtenção de subsídios para o conhecimento da realidade social e psíquica brasileira, pode ajudar o desenvolvimento de estratégias éticas para o trabalho com comunidades e a consolidação de um método empírico de estudo da alteridade, como analisa em sua pesquisa Imagens e signos no corpo da umbanda, financiada pela FAPESP. Para o pesquisador, a umbanda é ainda uma oportunidade excelente para refletir formas sociais e alternativas de resistência étnica e cultural. “Ela oferece uma ocasião ímpar para aprender com os setores populares a relativizar o psicologismo e o individualismo, consagra o humano, pondo no seu panteão a totalidade de suas sutilezas, agradáveis ou não, um testemunho de uma ética singular, de vocação universal que propõe um sentido de inclusão psicológica e social, politicamente indócil a tentativas históricas e teóricas de manipulação”, avalia. Por todas essas características, a


umbanda seria um lugar de excelência para abrigar as minorias despossuídas, em especial os negros, ainda que, como observa Pierucci, “afirmativamente afro e marcantemente popular, ela não se fechava etnicamente em sua negritude, mas se oferecia brasileiramente a todos os brasileiros”. Os números provam o oposto: os negros convertidos ao pentecostalismo se mostram em proporção muito maior (14,2%) do que os que se dizem adeptos das religiões dos orixás (3%). Já o Censo 2000 revelava que havia no Brasil cerca de 2 milhões de negros evangélicos diante de menos de 100 mil negros declarando-se adeptos dos cultos afro-brasileiros (66.398 na umbanda e 29.123 no candomblé). Estudar a umbanda e entender esses mecanismos torna-se, então, uma necessidade. “O crescimento aparentemente irrefreável das conversões às igrejas pentecostais e neopentecostais de raiz protestante está aí para mostrar que hoje no Brasil vivenciar uma religião implica romper com o próprio passado religioso. Nessas rupturas com mundos religiosos que antes pareciam bastar, mas de repente não mais, os adeuses são muitos. Entre eles, o adeus ao sincretismo umbandista que se supunha aderido com homóloga perfeição à identidade cultural brasileira”, avalia Pierucci. “Essa demonização dos orixás funciona, porque as pessoas têm medo. Com pastores sistematicamente na televisão ou no rádio dizendo que aquilo é o demônio, realmente as pessoas começam a achar que existem religiões demoníacas no Brasil.”

D

o apogeu à queda, passaram-se poucos anos para a umbanda. Para os seguidores da religião, a primeira manifestação da umbanda sem vínculos com o kardecismo ou com o candomblé ocorreu em São Gonçalo, no Rio, em 15 de novembro de 1908. Nesse dia, na Tenda Nossa Senhora da Piedade, o médium Zélio Fernandino de Moraes, então com 17 anos, recebeu o Caboclo Sete Encruzilhadas. Estava fundada a religião e o primeiro terreiro de umbanda, oficialmente reconhecidos dali em diante. Religião recente desenvolveu-se nos anos 1920, quando kardecistas de classe média, atraídos pelos espíritos de caboclos e pretos-velhos que se incorporavam nos terreiros de

A história cultural brasileira pode ser apreendida não apenas nos livros, mas também nos terreiros de umbanda, diz Bairrão

macumba cariocas, assumiram a liderança. Imediatamente extirparam dos cultos os rituais mais “primitivos” capazes de mexer com os pruridos das classes médias, moralizaram os “guias”, educando-os nos princípios da caridade cristã em leitura kardecista, racionalizaram as crenças e organizaram as primeiras federações que associaram terreiros até então fragmentados. Já nas décadas de 1930 e 1940 começava a se disseminar pelo tecido urbano mais moderno do país, o das cidades grandes da região mais desenvolvida, o Sudeste. A perspectiva da construção de uma identidade nacional esteve sempre à mão entre os intelectuais, pelo menos desde a República, o que desde logo favoreceu toda uma boa vontade com a umbanda. Em 1941 chegaram a realizar o Primeiro Congresso Nacional de Umbanda, para afastar de vez o estigma da “macumba”. Nos anos 1960, os esforços foram recompensados e a religião foi reconhecida oficialmente no censo nacional. Festivais de umbanda começaram a ser incluídos nos calendários oficiais e nos anos 1970 era a fé de maior cresci-

mento com uma população estimada em 20 milhões de fiéis. O refluxo iniciou-se na década de 1980 e não parou mais, em sintonia com o crescimento das seitas pentecostais. Essas se desenvolveram na esteira da crise metropolitana das últimas décadas, ocupando o espaço dos terreiros nas periferias. “Com o aumento da pobreza, as pessoas ou se apegam a religiões de práticas mais intensas, como as pentecostais, ou perdem a esperança e viram sem religião”, explica o antropólogo Ronaldo de Almeida, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). A “teologia da prosperidade” da Igreja Universal fez do pobre um ator econômico e o tornou responsável por sua salvação. A umbanda, por sua vez, trabalha em registros mais “engajados” socialmente. “A justiça, vista pela ótica dos subalternos, dos despossuídos, marginalizados ou precariamente dispostos nos lugares sociais, aparece como um fundamento moral da prática mágica umbandista”, observa o sociólogo Lísias Nogueira Negrão, autor de Umbanda: entre a cruz e a encruzilhada (1998). PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

87


JOSÉ PATRÍCIO/ agencia estado

Universidade de Indiana, que acaba de lançar nos EUA Holy harlots: femininity, sexuality, and black magic in Brazil (University of California Press), um estudo sobre Pombagiras. “Elas são a corporificação da feminilidade transgressora, que é ao mesmo tempo desejável e mortal, o ‘lado negro’ do feminino. Talvez em nenhum outro lugar além do Brasil essa figura foi imbuída com o poder de vingar e cuidar”, diz Kelly. Segundo ela, a entidade é venerada pela população das classes trabalhadoras dos centros urbanos, em particular por mulheres e homossexuais. “Aqueles que recebem a Pombagira na possessão de um transe, sejam homens ou mulheres, são transformados por um tempo em rainhas ultrafemininas, sedutoras e prostitutas desbocadas. Sob o ‘disfarce’ da Pombagira, os possuídos ganham o poder das demandas sobre amantes e marido, alterando eventos sobre os quais, sem a entidade, teriam pouco ou nenhum conSegundo o pesA umbanda reconhece o mal como trole”, conta. quisador, esta mora“Acredita-se que a lidade particular, que parte da natureza humana, Pombagira tenha uma legitima a punição dos experiência de vida maus por suas vítimas, mas não o enxerga como maldade, muito rica e seus conseestá distante da molhos são valorizados ralidade vigente burpois é uma religião de liberação guesa. “Antes, é uma pela compreensão de desejos e fantasias”, anamoral baseada no senlisa o sociólogo Regitimento de justiça danaldo Prandi, autor de queles que vivem num Pombagira e as faces inconfessas do Brameio competitivo, sem meios materiais é igualmente indócil às tentativas de dosil (1996). “Ela abre acesso aos instintos necessários para enfrentar a luta cotiminação. Para o pesquisador, a umbane desejos inconfessos e seu culto revela diana e superar os problemas. É uma da, ao fazer seus adeptos lidarem com o lado ‘menos nobre’ da concepção poética pragmática, que não opõe valores lados mais obscuros, reforça sua força pular de mundo, uma negação do esteabstratos às relações concretas restritilibertária de ensinar o funcionamento reótipo do brasileiro cordial. Com a vas, mas que as reconhecem e aceitam dos aspectos sociais e coletivos menos Pombagira é guerra.” Não se trata, poexibíveis e, por isso, mais verdadeiros. como são: cobranças e demandas.” Uma rém, de “coisa do diabo”. “A umbanda forma de ver o mundo que dá armas “A ‘esquerda’ umbandista não é o mal reconhece o mal como parte da natupara seus “rivais”, colocando a religião metafísico, mas o pessoal e socialmente reza humana e o descaracteriza como ‘mal dito’: a sensualidade, a revolta, a em risco pela sua “demonização”. maldade, pois é uma religião de liberacrítica mordaz, as falas inconvenientes, ção, e não do acobertamento das paiem dúvida, nota Bairrão, em a falta de hipocrisia e o prazer sem morxões humanas como os pentecostais”, daças. É a guardiã de um bem precioso: compromissos com estratégias analisa. Por isso, a pesquisadora acrea liberdade, encarnando um sentido sode disfarce perante o dominandita que o Exu feminino se adaptou te, os Exus e Pombagiras associam-se às cial de resistência e vitalidade”, explica. muito bem ao país. “As brasileiras sotrevas, não apenas de forma metafísica, Nesse contexto, os Exus não são maus, frem a pressão de ser, ao mesmo tempo, mas, acima de tudo, nas facetas sociais embora possam ser (mal) vistos, a ressexualmente atrativas e castas. Muitas e políticas. Os Exus comportam a funposta ao mal como expropriação de si mulheres internalizam esse conflito e ção de dar cidadania ao recalcado, de em prol de um bem do outro. sofrem por não saber como dar conta simbolizá-lo miticamente, do ponto de Esse incentivo à “ação” está presente dele”, diz Kelly. Segundo a americana, no cotidiano dos adeptos, mesmo em vista psicológico e social. Assim, se o esse dilema leva tanto à obsessão nacioreino da “esquerda” da umbanda (dos suas relações amorosas, como revela a nal pela cirurgia plástica, como à devoespíritos “sem luz”) guarda o escondido, pesquisa da antropóloga Kelly Hayes, da

S

88

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188


leo ramos

ção da Pombagi­ra pelos populares. “Para quem não pode pagar um analista, a Pombagira permite que se possa conviver com impulsos e desejos não socialmente aceitáveis em seu meio.”

A

ssim, o transe daria “licença” para donas de casa fazerem coisas impensáveis em seu cotidiano, além de dar forças para desafiar maridos infiéis e violentos. Seria a Pombagira que exerceria a vingança. “A umbanda legitima para a mulher um mundo que rompe com as normas dominantes e dá uma linguagem moral e um repertório ritual que facilita para ela articular esses significados alternativos”, diz Kelly. Forma-se um “triângulo” entre mulher, Pombagira e marido, que se submete em face da nova força da esposa, redefinindo relacionamentos. “Isso permite às mulheres negociarem convenções patriarcais de gênero e sexualidade que as relegam a um lugar subordinado ao homem, limitando o poder feminino à esfera doméstica e estigmatizando a sexualidade da mulher, enquanto ao homem tudo se permite.” A figura da Pombagira mexeu com a cabeça dos homens, mesmo os intelectuais. “Foi a etnóloga Ruth Landes, em 1940, que assinalou pela primeira vez a presença de relações de gênero transgressoras nos cultos de possessão, com a formação de ‘matriarcados’ e uma maior exibição de homossexuais masculinos nos terreiros”, conta a antropóloga da Unicamp Patricia Birman, autora de Transas e transes: sexo e gênero nos cultos afro-brasileiros (2005). Até então, as casas de santo eram cuidadosamente preservadas por pesquisadores como Bas-

O Projeto Imagens e signos no corpo da umbanda - nº 2007/04368-1 modalidade

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dor

José Francisco Bairrão – USP investimento

R$ 55.670,00 (fapesp)

São Jorge (acima) em altar de terreiro. À esquerda, escultura com terço no cerimonial do Caboclo Sete Flechas

tide e Arthur Ramos, vistas como uma harmonia social e moral que precisava ser defendida, uma visão politicamente correta que pretendia rebater o estigma dessas comunidades, que deveriam ser elevadas a um padrão que não assustasse os “brancos” e suas famílias. “O horizonte moral orientava os estudiosos a valorizar a face reprodutiva das identidades femininas e a excluir os aspectos desviantes. O ideal da maternidade e a adequação às relações de gênero faziam das mulheres desses terreiros um tanto assexuadas, subordinadas à vida em família e à hierarquia patriarcal”, nota Patricia. Mulheres poderosas e homossexuais masculinos e femininos construíam famílias de santo, que seus defensores, intelectuais da elite brasileira, olhavam repetidamente com candura e romantismo, apagando diligentemente as marcas (em grande medida corporais), bem evidentes, em que sexo, gênero e poder tão facilmente se reuniam.” O quadro analítico só se modificou a

partir de 1968. Mas nesse meio-tempo as Pombagiras continuavam a remexer o imaginário feminino. “Elas mudaram as relações de poder nas relações afetivas e sexuais. Afinal, o aliado invisível dá proteção e poder ao ‘cavalo’, cujo homem não tem as mesmas mediações espirituais. Ele se submete e se vê obrigado a um pacto com o ser invisível”, analisa a antropóloga Stefania Capone, autora de A busca da África no candomblé: tradição e poder no Brasil (Pallas). Reitera-se a marca “ativa” da umbanda e, ao mesmo tempo, sua faceta mais frágil diante dos ataques. “No Brasil atual, um dos aspectos mais salientes da ‘força social’ que ainda tem um tipo determinado de religião está justamente na sua capacidade estatisticamente comprovada de dissolver antigas pertenças e dilapidar linhagens religiosas estabelecidas. Um bye, bye, Brasil!”, analisa Pierucci. Uma religião que, afirma, é destrutiva, predatória e que, de salvação individual, só cresce ao extrair membros das outras coletividades, que, uma vez individualizados, são engajados na criação de uma comunidade que só oferece laços religiosos. “Quer um solvente cultural universal? Pegue uma religião de tipo congregacional, receita Weber. ‘Pegue e pague’, hão de acresn centar nossos neopentecostais.” PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

89


90

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188


[ PSICOLOGIA ]

Tempos de cólera no amor Namorados adolescentes usam violência como forma de comunicação ilustração Caeto Melo

O

refrão da música de Belchior renova-se a cada geração como uma maldição sem antídoto: “Minha dor é perceber/ Que apesar de termos feito tudo o que fizemos/ Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. É o que revela a pesquisa Violência entre namorados adolescentes (lançada agora em livro, Amor e violência, pela Editora Fiocruz), feita entre 2007 e 2010 a pedido do Centro Latino-Americano de Estudos da Violência e Saúde Jorge Careli (Claves/Fiocruz) e coordenada por Kathie Njaine, professora do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O projeto reuniu um grupo de 11 pesquisadores de diversas universidades para investigar a violência nas relações afetivo-sexuais de “ficar” ou namorar entre jovens de 15 a 19 anos de idade, a partir de um universo de 3,2 mil estudantes de escolas públicas e privadas de 10 capitais brasileiras. “Os jovens de hoje, ao mesmo tempo que recriam novas formas e meios de se relacionar, em que o ‘ficar’ e o uso da internet para interação amorosa e sexual são o novo, repetem e reproduzem modelos relacionais tradicionais e conservadores, como o machismo e o sentimento de posse, expressos em suas falas e no trato com o parceiro e a parceira”, afirma a pesquisadora. Talvez até com maior intensidade do que faziam nossos pais. Praticamente, nove em cada 10 jovens que namoram praticam ou sofrem variadas formas de violência e para marcar território casais jovens recorrem à violência para controlar seus

parceiros, e a agressão virou sinônimo de domínio nas relações amorosas desses adolescentes. “Creio que a violência vem se tornando uma forma de comunicação entre muitos jovens, que alternam os papéis de vítima e autor, de acordo com o momento e o meio em que vivem. Esses atos estão se banalizando a ponto de serem incorporados naturalmente na convivência, sem reflexão alguma sobre o que isso pode significar para a vida afetiva-sexual”, observa Kathie. “Os adolescentes adotam cada vez mais cedo a violência em diversos graus e começam a achar isso muito natural. Acreditam que para ter o controle da relação e do companheiro é preciso usar a violência.” Belchior continua profético ao afirmar “que o novo sempre vem”, ainda que nem sempre num registro positivo. Segundo o estudo, as garotas são, ao mesmo tempo, as maiores agressoras e vítimas de violência verbal e na categoria de agressões físicas, que incluem tapas, puxão de cabelo, empurrão, socos e chutes, os números revelam que os homens são mais vítimas do que as mulheres: 28,5% delas informaram que agridem fisicamente o parceiro; 16,8% dos meninos confessaram o mesmo. Em termos de violência sexual, o esperado acontece, porém há surpresas: 49% dos homens relatam praticar esse tipo de agressão, enquanto 32,8% das moças admitem o comportamento. Curiosamente, na opinião de 22% dos jovens de ambos os sexos, a violência é o principal problema do mundo de hoje, bem à frente da fome, da pobreza e da miséria. Quem disse que coerência é o forte dos jovens? PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

91


Isso se reflete igualmente em práticas que os jovens, em casa, abominam em seus pais, como a vigilância constante de hábitos e vestuários. Para dominar o parceiro, o adolescente busca controlar o comportamento do outro, as roupas que usa, os nomes na agenda do celular, os acessos a redes virtuais de relacionamento, as pessoas com quem conversa. “Como se não bastasse isso, surge um elemento novo: a ameaça de difamação do outro pela divulgação de fotos íntimas pelo celular ou via internet foram estratégias citadas pelos jovens como tentar evitar o fim do namoro, em especial por parte dos meninos”, conta a socióloga e pesquisadora da Fiocruz Maria Cecília de Souza Minayo, organizadora do estudo ao lado de Kathie. A violência em tom de ameaça (provocar medo, ameaçar machucar ou destruir algo de valor) vitima 24,2% dos jovens, um jogo sujo perpetrado por 29,2% dos entrevistados. De acordo com os dados, 33,3% das meninas assumem que ameaçam mais seus parceiros em relação a 22,6% dos meninos. “Os números se aproximam. Tudo sugere que existe um ciclo de vitimização e perpetração. As experiências permanentes de situações agressivas se traduzem no estímulo a relacionamentos conflituosos e no aprendizado do uso da violência para obter poder e amedrontar os outros. Esse comportamento aprendido e aceito interfere no lugar que o jovem ocupará na rede social e no seu desempenho nas relações afetivas e sexuais”, observa a médica Simone Gonçalves de Assis, pesquisadora do Claves/Fiocruz e outra das organizadoras do projeto. Afetivas - “O complexo é que existe

uma identidade que ultrapassa regiões e classes sociais quando observamos o comportamento dos jovens dessas 10 capitais. Há também similaridades entre os estudantes das redes de ensino público e privado. Nas relações afetivas dos jovens chamam mais a atenção as semelhanças do que os eventuais aspectos divergentes”, nota Kathie. Um aspecto que reúne todos é o novo formato das relações amorosas contemporâneas. “Elas são mais provisórias, temporárias. Desde os anos 1980 vem sendo bastante usada entre os jovens a expressão ‘ficar’ para caracterizar uma fase de atração sem maiores compro92

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

São sempre reações antagônicas: compromisso ou não compromisso; intimidade sexual ou superficialidade; exclusividade ou traição

missos e que pode envolver de beijos a relações sexuais”, observa Maria Cecília. No “ficar”, notam as pesquisadoras, o amor não é pré-requisito e implica uma aprendizagem amorosa, um tipo de teste para um eventual namoro, relação vista como mais “séria” e, principalmente, mais pública, simbolizando a entrada do jovem na cena dos adultos em visitas aos pais do parceiro e no planejamento do tempo em conjunto e o sentimento de maior solidez na relação. “É, no entanto, tudo muito nebuloso e muitos jovens afirmam que, depois de ‘ficar’, não sabem se estão namorando ou não”, diz a autora. Nos dois estados existe o ciúme e o desejo de controlar

o outro. “Por causa da iminência de serem acusados de ciúme, desconfiança e traição nas relações de namoro, muitos rapazes e moças justificam sua preferência pelo ‘ficar’, relação em que supostamente não existem amarras e há menos risco de se apaixonar e de se decepcionar”, nota Kathie. Ou, na fala de um entrevistado: “Eu mesmo não confio em ninguém. Eu posso pensar: eu não vou trair ela, mas ninguém sabe o que está acontecendo com ela”. “São sempre reações antagônicas: compromisso versus não compromisso; longa duração versus pouca duração; intimidade sexual versus superficialidade sexual; envolvimento afetivo versus não envolvimento afetivo; exclusividade versus traição”, avalia a pesquisadora. “No entanto, se há uma persistência do machismo como um (anti) valor de longa duração, existem mudanças provocadas pelas mulheres, que se colocam numa posição de parceiras capazes de questionar e propor novas modalidades de relacionamento. Muitas adotam comportamentos ditos masculinos, como a agressão física e verbal”, observa Maria Cecília. No caso do sexo, inclusive. “Os meninos usam estratégias românticas para transar com as parceiras, com ar-


forma de violência”, diz Kathie. “Os adolescentes elegeram a família como a principal referência para questões afetivo-sexuais. Os dados revelam, porém, que raramente os adolescentes procuram ajuda em situações de violência no relacionamento e apenas 3,5% dentre eles afirmaram ter solicitado apoio profissional por causa de uma agressão causada pelo parceiro.” Para Kathie, os profissionais nas escolas e os amigos precisam ser informados para ajudar no processo. Agressão - “Grande parte dos rapazes

Grande parte dos rapazes e moças gumentos de que seria uma ‘prova de amor’. Muitas meninas reproduzem valores de subjugação, mas um número não desprezível delas toma a iniciativa e testa os garotos na sua sexualidade, humilhando os que não querem transar com elas”, completa. O “ficar” trouxe novidades também para os homossexuais e bissexuais: 3% e 1% dos rapazes, respectivamente, assumiram o comportamento. “Para os jovens que se engajam nessas relações, o ‘ficar’ serve como experimentação e confirmação da opção sexual. Por serem menos públicas, as relações do ‘ficar’ geram menos suspeitas e minimizam rejeições, assédios e violências até que o jovem esteja seguro de sua orientação sexual”, nota Simone. Mas, apesar do discurso renovado dos jovens que dizem “adorar amigos gays”, a realidade mantém o preconceito dos velhos tempos e é uma fonte de bullying entre colegas. Outro aliado do “ficar” é a internet, vista como espaço mais livre e de maior comunicação para a organização de encontros, ampliando a possibilidade de experimentação das relações e forma de conhecer melhor o parceiro, se aproximar e travar amizades. Mas nem mesmo a ferramenta moderna conse-

considera normal a agressão verbal e física na resolução de seus conflitos amorosos

gue pôr fim ao combustível natural das brigas: o ciúme, considerado entre os jovens como algo natural entre pessoas que se amam. Incluindo-se os célebres “gritos”: algumas adolescentes usam essa estratégia para evitar a subjugação, adotando uma postura agressiva antes que os rapazes o façam. Eles, por sua vez, ao contrário do que pensam as mulheres, consideram que gritar não resolve problemas de relação. Nisso há um dado preocupante. “Observamos que o jovem que é vítima da violência verbal do parceiro tem 2,6 vezes mais chances de ter sofrido esse tipo de agressão por parte dos pais, comparado com quem não sofreu nenhuma

e moças considera normal a agressão verbal e física na resolução de seus conflitos amorosos. Romper com essas práticas implica o questionamento sobre certos modelos de existência instituídos no campo social. É importante questionar a associação mecânica de características tidas como universais ao ‘ser homem’ e ao ‘ser mulher’, bem como criticar a desqualificação de um gênero em prol da valorização do outro”, avisa a pesquisadora. Os padrões de violência afetivo-sexual tendem a se reproduzir, porque são estruturais e estruturantes. “Atua-se muito pouco em relação a essa violência entre jovens e adolescentes. Eles costumam ficar em seus próprios mundos, as escolas geralmente não se envolvem no assunto porque julgam que isso não é de sua alçada. Os pais ou não têm tempo ou não acompanham verdadeiramente a vida dos filhos e a tendência é a reprodução dos padrões familiares e grupais”, analisa Maria Cecília. Segundo ela, há uma supervalorização de modelos de consumo, beleza, competitividade e poder, em detrimento de outros modelos, incrementada em grande parte pela mídia, o que provoca uma crise de valores na sociedade. “A juventude reflete de muitos modos esses valores. Mas eu tendo a achar que os jovens de hoje, no meio de mudanças profundas e aceleradas, não são piores que os de nosso tempo, nem ideológica, nem do ponto de vista do compromisso social”, acredita a autora. “Ao contrário: como sempre eles estão aí para realizar uma nova direção do mundo e nos surpreender, como vem ocorrendo, politicamente em vários países do mundo.” Na contramão, felizmente, dos nossos pais. n PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

93


resenha

O filósofo no jornal “O exercício da filosofia consiste no aprendizado de ver através de óculos determinados até que se revelem os limites dessa visão e surja a necessidade de mudar de lentes “ Mariluce Moura

O

s ensaios de Notícias no espelho tratam do juízo estético, do juízo moral e do juízo político, explicou o autor, José Arthur Giannotti, durante o debate que precedeu o lançamento do livro no auditório da Folha de S. Paulo, na terça, 20 de setembro. Em termos editoriais stricto sensu, esses 35 ensaios – um deles inédito e 34 selecionados dentre 85 artigos publicados no caderno Mais! da Folha, de 2000 a 2010 – organizam-se na verdade em cinco capítulos, sob os títulos “Em busca do sentido da arte”, “Conjunturas”, “Questões morais”, “Modos de filosofar” e, por último, “Em volta da política”. Mas a depender do gosto e das inclinações de cada leitor, é possível encontrar outras formas mais pessoais de reagrupar esses textos densos, boa parte deles escritos em linguagem de uma clareza gratificante e, em alguns casos, atravessados por inesperada ironia e humor. São textos que, na condição de “exercícios da prática filosófica na imprensa” ou “mastigações filosóficas a partir do hoje”, para tomar emprestadas expressões do próprio Giannotti no debate, parecem dotar as notícias tratadas de um outro volume e conformação. À força do pensamento crítico, elas ganham profundidade no reflexo do espelho filosófico, perspectiva e eixos fortes de articulação com visões de longo prazo, seja da ordenação política do mundo, da construção do conhecimento ou da produção da cultura, entre outros recortes possíveis. Dessa forma, a um olhar jornalístico particularmente atento ao campo

Notícias no espelho José Arthur Giannotti PubliFolha 280 páginas R$ 39,90

94

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

(Giannotti, 2011, p. 193)

da divulgação científica parece lícito chegar ao final da leitura de Notícias no espelho tendo rearranjado para uso próprio os ensaios sob três tópicos: ciência, diálogos com filósofos seminais e conjunturas (coincidindo neste último com a escolha dos editores). A ciência faz sua primeira aparição em “Elogio à técnica” (p. 113), texto de 2007 em que Giannotti observa que “a oposição radical entre conhecimento e técnica, se já existiu, não mais existe, de sorte que interessa examinar o que se entende quando se fala do saber e do fazer desse ponto de vista”. E é exatamente a esse exame que ele procede, investindo contra visões maniqueístas ou ingênuas. “Não cabe menosprezar os perigos da tecnologia”, mas “esses perigos, no mínimo, são equiparáveis àqueles processos naturais em transformação, tais como erupções vulcânicas fantásticas, terremotos, tsunamis avassaladores e assim por diante”, ele diz, para propor em seguida que “é simplesmente ideológico imaginar que tudo que vem da natureza é bom”. “É no seu uso, particularmente no seu uso social”, que conhecimento e técnica podem se tornar perigosos, segundo Giannotti. “Não existem dois planos separados, esse da tecnociência e aquele de seu emprego no contexto, quer da concorrência cruzada entre instituições privadas e estatais, quer no conflito entre as nações. São essas instituições particularizadas ou globalizadas que dirigem o mainstream do progresso das ciências e das técnicas.” Sem concessões, Giannotti leva longe seu olhar sobre o que conforma a liberdade de escolha na produção científica, desde o projeto de pesquisa. Se “saber mais e poder fazer mais sempre criaram vantagens no embate entre as nações”, foi claramente depois da Segunda Guerra Mundial que “esse processo de ganhar na margem” se converteu “numa luta de ganhar pela ampliação e pelo controle dessa margem”. A corrida pela fabricação da bomba atômica, diz, “não se resumiu a uma apropriação de teorias feitas, ela se abriu numa corrida vertiginosa para obter novos conhecimentos, somente disponíveis graças ao investimento de capitais fabulosos”. Ele interroga “em que medida o circuito de capitais determina e é determinado pelo desenvolvimento do saber fazer”, lança um olhar para a transformação da guerrilha, por artes da associação entre o Estado e a indústria bélica


norte-americanos, em tempos de paz, num inimigo mais importante que o inimigo externo, e pergunta se “a guerrilha não é antes de tudo a vontade de usar procedimentos elementares para emperrar a grande máquina do mundo cotidiano”. Por essas vias Giannotti vai conduzindo seu exame crítico até afirmar que “não tem mais sentido dizer que mesmo a produção da ciência pode ser feita para o bem ou para o mal. Ela progride pelo empuxo dos mais fortes politicamente, mas a cada passo adiante ela também abre poros nesse grande sistema, exibindo suas contradições”. Dialeticamente, ele propõe ao final: “A pergunta não consiste, então, no modo como se exploram as contradições para que uma nova forma de sociabilidade, menos predadora, possa pelo menos ser sonhada? E o sonho não é técnico”. Há mais exercícios filosóficos sobre a ciência no notável ensaio “Feiticeiros do saber” (p. 118), em que Giannotti se debruça sobre o monopólio da invenção tecnológica como fonte proeminente do poder econômico das grandes corporações e dos Estados nacionais e sobre a ciência como força produtiva, como capital. “Como essa capacidade de inventar se caracteriza, quando se converte em fator crucial da concorrência capitalista? Primeiramente, ela se transforma em capital, na acepção mais simples da palavra, a saber, controle sobre o trabalho alheio”, diz, nesse texto de 2003. A tecnociência ainda é objeto do filósofo nas reflexões sobre a questão das células-tronco embrionárias dos ensaios “Decisão vital” (p. 142) e “Liberdade vigiada” (p. 150), ambos de 2008, e em “Fetiche da razão” (p. 219), de 2003, que é um entre vários outros textos nos quais

Conhecimento e técnica só podem vir a ser perigosos, então, no seu uso, particularmente no seu uso social

Giannotti mobiliza todo seu arsenal crítico contra a contrafenomenologia da Escola de Frankfurt. Aliás, no debate do lançamento de Notícias no espelho, Giannotti referiu-se a seu combate à fenomenologia e à antifenomenologia de Frankfurt ao comentar o ensaio inédito que abre o livro, “Sobre a imagem” (p. 19). Ali, lidando com o jogo do belo e do feio, investindo contra a noção asfixiante de mimese e a dupla conceitual “forma e conteúdo”, ele se empenha em tomar a imagem como um objeto neutro. Vale observar que é justamente este texto, elaborado originalmente para o livro e não para a Folha de S. Paulo, o mais difícil para os pouco íntimos da linguagem da filosofia e do juízo estético. Mas a estranheza, a sensação que ele produz de que há excesso de frieza na racionalidade filosófica serão desfeitas nos ensaios seguintes, até se dissolver por completo em “O malandro Satã” (p. 64), uma amostra bela e sutil de como o pensamento filosófico pode, sim, se unir à sensibilidade. A propósito, Giannotti declarou no auditório da Folha que busca escrever da maneira mais simples, mas o problema é que “a filosofia não se facilita. Ou se exerce a filosofia ou se faz coletânea de opiniões”. Dito de outro modo: “A filosofia não pode ser divulgada e é necessário que tenha alguma presença na vida pública”.

Resta pouco espaço para um breve comentário do que foi antes referido como diálogos com filósofos seminais e, por último, conjunturas. Assim, me atenho à exemplar clareza didática de “A questão do socialismo” (p. 91), completada por “Além de Marx” (p. 201) e por “O novo império” (p. 229). É fundamental lê-los se nos ocupa o pensamento o mundo contemporâneo com seus enigmas. Acrescento como indispensável “A primeira morte de Wittgenstein” (p. 187) e, num outro extremo, entre os vários textos em que Giannotti exerce sua crítica ferina contra os filósofos da Escola de Frankfurt, “Adorno sem ornamentos” (p. 194), título cujo jogo de palavras já antecipa o que virá ao longo do texto. Faço aqui um parêntese rápido, dentro da rubrica conjunturas, para a análise corajosa do terrorismo do presente que está em “A lógica ensandecida do terrorismo” (p. 100) e em “A ocultação do real” (p. 106), antes de encerrar com a carga sarcástica que o autor de Notícias no espelho despeja sobre a filosofia de Frankfurt. Veja-se: “A chamada Escola de Frankfurt se transformou em monumento; como tal, muitas vezes mais frequentada do que entendida. É natural que doutrinas que propõem revoluções ou mesmo reformas radicais se vejam tentadas por alguma espécie de messianismo, santificando seus heróis: são Stirner, são Marx, são Gramsci etc. Não há dúvida de que os frankfurtianos não atingiram tais picos, mas me parece que já são tratados como beatos, sendo que seus textos muitas vezes são lidos, principalmente pelos historiadores hagiógrafos, como a boa palavra revelada”. PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

95


ficção

Carros invisíveis atropelam transeuntes distraídos Uma fábula

João Filho

N

a notícia, meio escondida em um canto de site, três linhas apenas com o título em itálico, eu vi um velho pesadelo consumado. Intuitivamente, já desconfiava de uma seita oculta de Possantes Atropeladores, pois só a nata poderia possuir tais. Esse desconfiar vinha desde menino. O que era imaginação pueril foi se organizando logicamente, como é dado àqueles de educação exemplar de que se orgulham os melhores. Porém é homem-feito que leio a notícia. E se veio assim como microconto, sabia, era dissimulação. De um modo ou de outro eles sempre deixaram pistas esses anos todos. Retrospectivamente analisando, era como se quisessem que eu de alguma maneira soubesse. Às vezes se exercitavam com distorções grosseiras como ufos e afins. Eu os persegui e temi como um curioso, crente que não estava sendo observado. Notícia lida, fiquei mais temeroso, pois nunca tinham sido tão explícitos e tão próximos – a vítima foi uma fêmea do meu círculo de relações. Pela minha vivência, eu os supunha invisíveis e os conhecia parcialmente, pensando que o mesmo se sucedia com eles em relação a mim. Quase sempre atuavam em pontos nobres. Superiores preferiam superiores. Honra perversa. Pela dinâmica da técnica estavam mais silenciosos, eu pressentia. Pelo estado dessa última vítima, presumia-se o estilo. A cada assassinato, procurei conversar com os peritos. Com o tempo, percebi que agiam simulando uma forma aleatória, talvez para enganar os desatentos. Pouquíssimas eram vítimas suas. O tempo entre um e outro ataque espaçava-se. À medida que eu recolhia os dados, via que eram brutais na feitura, mas refinados no acabamento. Presumi que os Possantes utilizados eram de fabricação única, cada um possuía o seu. Podiam atacar místicos genuínos, um gênio sem um tostão, um Nobel em qualquer área

96

n

outubro DE 2011

n

PESQUISA FAPESP 188

do conhecimento. Ou seja, essa fauna dotada do mais elevado espírito, que contempla e investiga a Natureza e os passos do Ser. Nunca a vulgaridade das celebrities. O válido, percebi, era a aristocracia. E dessa eu fazia parte, contudo, discretíssimo. No último ataque houve uma testemunha, que da varanda de sua mansão viu ao longe um corpo ser arremessado tão subitamente que beirou alucinação, seguido de um som agudo – como algo que se desloca no ar numa velocidade impressionante. Ela vinha me visitar. A perícia encontrou marcas de pneus na pavimentação e o corpo desfigurado. Evitei sair durante um mês. E quando o fiz foi de carro, não estacionando em lugares onde era preciso andar em espaços abertos. Findado o mês, recebi uma caixa sem remetente. O serviçal disse ter sido entregue pelo correio. Com um cuidado burro, abri: uma edição luxuosa e sóbria, em couro e papel, lacrada com uma fita, em in-4 surgiu. Era sobre a seita. Não havia iluminuras. Em um estilo direto, não citava nomes, genealogias. Tão somente propósitos. Argumentava-se a sutileza da agressão. Não havia juízos morais. O que se lia secamente era a técnica para o instante brusco. Na última página, uma carta. Sabiam mais de mim do que eu deles. Diziam da inutilidade de se acionar qualquer autoridade, mesmo serviço secreto, pois eu seria dado como doido, ou, com muita boa vontade, um excêntrico. Pendulei entre o pânico e a indolência absoluta. Como deixaram exato no texto que só “abordavam” pedestres, então eu não deveria me preocupar com ambientes fechados. Entretanto, longas caminhadas em


Juliana C Silva

lugares semidesertos eram vitais para mim. A invisibilidade torna os condutores transparentes, daí que ao guiar um Possante eles não apareciam. Quem, onde e como podia se dar a agressão eu não sabia. Comecei a ponderar sobre o imprevisível. Por que eu? Difícil foi contatar alguns aristocratas. Como abordá-los foi outro problema, eram meio antípodas como eu. Falei com três sobre um determinado livro, se haviam recebido algo semelhante. Não haviam. Mesmo sendo bem posto, privilegiado no meu mirante, fiquei desnorteado. Paranoico, tranquei-me na casa perto do bosque e pus-me a vasculhar em todos os meios de comunicação disponíveis. Impossibilitado de andar em lugares abertos, garagens eram portos para esse caminhar dentro de limites táteis. Carros, garagens, estações, conglomerados, aeroportos. Viver tubular para os mais mecânicos. Degenerativo para os catastróficos. Enfim, eu sobrevivia. Consultando tomos antigos numa noite insone e suarenta, encontrei referências de certo manuscrito, possivelmente redigido durante os 1200, por um grupo de homens e mulheres que conceituavam o mecanismo da agressão. Eram a nata da época. Rigorosos em todos os níveis do conhecimento. Buscando alucinadamente saber mais sobre a seita, devastei bibliotecas, sábios plurilinguísticos, geografias e culturas. Vi que esse mesmo grupo teórico-prático aparecia ao longo das Eras. Imperceptíveis para olhares neófitos. O ano marco que encontrei foi apenas mais uma aparição. Fiquei esgotado. Veio a primavera, já estava fisicamente recuperado, saudável até. Mas ainda em um viver tubular, persisti nos cuidados. Por que eu? A seita dos Possantes Atropeladores era um fato. Eles, os atuais, se autointitulavam com outro nome, mas preferi este.

Meses se vão, consigo regular a neurose, recebo outro livro-carta. A princípio, gelei, mas abri e li. Eu tinha sido um dos escolhidos-vítima por ter nascido inexplicavelmente com o gene da neutralização da seita. Em cada geração nasciam alguns. Esses, como eu, sofreram a mesma tática. Eles, os Possantes, possuíam as suas leis eternas e só matavam adultos. Os executados muitas vezes os ignoravam. Aqueles que não ignoraram não sei dizer se desistiram ou se se entregaram. Não tive notícias de outro que tenha sobrevivido. Para eles eu não passava de um vermezinho. Não tinham pressa, ou saísse ou passaria o resto da vida nesse viver tubular, que, mesmo com todos os esforçosos lenitivos, já me topava um limite. Meu caso não poderia ser resolvido com o ar das montanhas, de florestas, eu, desgraçadamente, precisava de planícies e estradas, serras e estradas, cidades e estradas. Sem isso, lenitivo que fosse, era inútil. Mesmo me armando pesadamente, sabia que eram invisíveis. Mesmo treinando acertar nas rodas, como conseguiria? Eram poderosos ao massacrarem, semissilenciosos. De século a século, eles alcançaram o ápice. Que tecnologia era essa? Não era a diária, mesmo complexa, das ruas. Era o inusitado. Que faria eu? Desistir ou enfrentar? Amofinei no meu viver tubular, daí este relato. Eles, às vezes, se exibem para mim, e do meu mirante – casa, aeroporto, prédio, conglomerados – testemunho a eficiência da técnica e não mais me assombro. João Filho, poeta e escritor, participou de algumas antologias de contos, dentre elas Contos Sobre Tela e Geração Zero Zero, fricções em rede. Publicou em 2004, Encarniçado, contos. Em 2008, Três sibilas, poesia, e 2009 Ao longo da linha amarela, contos. Edita o blog www.voosempouso.blogspot.com PESQUISA FAPESP 188

n

outubro DE 2011

n

97


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.