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Hugo Teixeira

DOUTOR, MEU MEDO É DA ANESTESIA! AS PERIPÉCIAS DE UM ANESTESISTA/ PEÃO

Sã o Pa u lo

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Copyright © 2012 by Hugo Pires Teixeira Coordenação Editorial Letícia Teófilo Preparação Thiago Fraga Projeto gráfico e Diagramação Francisco Martins/Project Nine Capa Carlos Eduardo Gomes Ilustrador Raff Ribeiro Revisão Mônica Vieira/Project Nine Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Teixeira, Hugo Pires Doutor, meu medo é da anestesia! : as peripéciais de um anestesista peão / Hugo Pires Teixeira. -- Barueri, SP : Novo Século Editora, 2012. 1. Crônicas brasileiras 2. Médicos - Memórias I. Título. II. Série. 12-13578 CDD-926.1

Índices para catálogo sistemático: 1. Médicos anestesistas : Memórias : Tratamento humorístico 926.1

2012 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À NOVO SÉCULO EDITORA LTDA. CEA – Centro Empresarial Araguaia II Alameda Araguaia 2190 – 11º Andar Bloco A – Conjunto 1111 CEP 06455-000 – Alphaville Industrial, Barueri – SP Tel. (11) 2321-5080 – Fax (11) 2321-5099 www.novoseculo.com.br atendimento@novoseculo.com.br

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Prólogo

Anestesia é uma arte. A arte de suprimir a dor e a consciência. De causar um relaxamento muscular tão profundo que nem a morte faria tão bem. De colocar uma vida próxima à luz no fim do túnel e puxá-la de volta pelo pé, infelizmente nem sempre no mesmo estado em que ela foi. De deixar partir quando se esgotaram os últimos recursos, e nada mais haveria de digno na vida artificial que daí viria, ou, simplesmente, quando a Morte dá seu beijo suave. Anestesia é, também, outra arte. A arte de tomar esporro de cirurgião, ao dizer que o paciente não está relaxado, que está demorando demais para começar a anestesia, ou demorando demais para acordar. De falar besteira para desanuviar o clima tenso. De rir junto com a enfermagem. De tomar café o dia inteiro. E sim, por que não, de arrumar a porcaria do foco cirúrgico que nunca está bom! Este livro reúne textos inventados ou autobiográficos e piadas médicas velhas e novas. Também causos da sala de cirurgia, acontecidos comigo ou não, escritos de maneira a preservar a identidade dos protagonistas, mas que, JURO, são verdade. Você acredita em anestesistas? Eu não...

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Confissão

Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Desespero, 17h21 – Padre, eu pequei... – Pois não, meu filho, quais são os seus pecados? – Sou anestesista e matei um colega cirurgião com 23 tiros... – Mas isso é muito grave, meu filho. Por que você fez uma coisa dessas? – Foi por uma série de coisas que ele fazia comigo, seu padre, e com meus colegas de especialidade... – Tenho certeza que nada poderia ser tão grave a ponto de levar você a matá-lo... Ihhuiiiiiiiiiiiiiiiiii! Merda, maldito Angry Birds! – Padre, o senhor tá jogando? – Er... Claro que não. Prossiga, meu filho... – Então, seu padre, como ia dizendo, esse colega começou me mandando atender o telefone dele quando estava operando... – Que mal tem nisso, meu filho? – Atender não era o problema, mas assim que eu atendia, ele ficava lá do campo cirúrgico gritando: “Quem é? Quem é?

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Quem é?” e eu não conseguia ouvir o que a pessoa que ligou falava... – Que filho da puta! – Seu padre! – Desculpe, filho, prossiga... – O pior não era isso, seu padre, depois me mandava ficar segurando o telefone na orelha dele sem parar de operar e ficava um tempão batendo o maior papo, como se eu fosse um escravo... – disse entre lágrimas e assoando o nariz. – Desculpe... – Nossa, isso é muita sacanagem. O que mais, filho? – Bom, toda hora ele também me mandava arrumar o foco... – Mas, meu filho, não existem manoplas estéreis para os próprios cirurgiões arrumarem os focos cirúrgicos? – Pro senhor ver... Ele ficava me chamando de cinco em cinco minutos dizendo que a luz estava ruim... – Caceta... – E não acabou! Gritava comigo dizendo que o relaxamento tava uma merda, e eu avisava que tinha acabado de fazer, mas não adiantava... – E você usava estimulador1 pra verificar o relaxamento? – Sim, mas ele dizia que não acreditava nessas tecnologias, que era ele quem sabia se estava relaxado ou não etc... – mais choro. 1

Estimulador de nervo periférico (ENP) é um monitor utilizado para verificar o grau de relaxamento de um paciente, embora a maioria dos cirurgiões dizerem que ele não serve para nada.

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– Que animal! – E quando eu adiava alguma cirurgia por falta de um exame importante ou problemas clínicos com o paciente, ele gargalhava, dizendo que anestesista era tudo a mesma bosta, que só sabíamos cancelar cirurgias, e por aí vai... – Nossa, tô ficando com raiva desse cara... – Ele também se intrometia dizendo qual tipo de anestesia eu deveria aplicar, se eu deveria fazer sangue ou não, quantas bolsas, o momento de transfundir, que técnica usar para dor etc. Ele se metia em tudo, em tudo! – Calma, filho. Você está ficando histérico. E como foi o crime? – A gota d’água, seu padre, foi o dia que cheguei pra anestesiar pra ele e, quando ele me viu, comentou, na frente dos outros médicos, em alto e bom tom, que eu só servia pra fazer... – respirou fundo – consultório de pré-anestésico! – chorando convulsivamente. – Nãããããão, ele falou isso? – Falou, seu padre. Eu enlouqueci, o senhor sabe que essa é a ofensa máxima pra um anestesista, né? Puxei minha arma e dei os tiros no cara... Fugi e aqui estou. – Bom, meu filho, primeiro você deve se mostrar verdadeiramente arrependido de seus atos... – Padre, quero que caia agora um raio nesta igreja se eu não estiver arrependido...

Corpo de Bombeiros, 17h48 “ATENÇÃO TODOS OS CARROS! Atenção todos os carros! Dirijam-se com a máxima urgência para a Igreja Nossa Senhora 9

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do Perpétuo Desespero, incêndio de proporções maciças causado por forte descarga elétrica, provavelmente um raio! Dois corpos carbonizados foram encontrados no local!”

Inferno, 17h49 – Olá, irmãozinho, você é quem? – Opa, seu Diabo, acho que não deu tempo de ser absolvido, devo ter morrido e vim parar aqui. Prazer, sou o Anestesista. – Prazer, Lúcifer. Você vai gostar do inferno, a raça de vocês vem bastante para cá, e a maioria acha melhor aqui do que aguentar o que vocês aguentam todo dia... – Acho que vou me dar bem, então... – disse sorrindo, e olhando em volta notou: – Nossa... Então é assim que é o inferno... Parece com o pronto-socorro do hospital que eu trabalhava... – Mas conta o que você aprontou para vir parar aqui... – Então, seu Lúcifer, tudo começou...

Céu, 18h01 Riiiiiiiiiing – Alô... – voz de sono. – Tava dormindo, Deus? – Ahã... O que você quer, Belzebu? – Hahaha, achei que você não dormia... – Fala logo, porra! – Olha a boca, Senhor, só eu posso falar assim. Seguinte, bateu um Anestesista aqui e acho que vocês cometeram um engano... 10

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– Explica! – Ué, o senhor não é onipresente, onisciente e blá-blá-blá? Deveria saber o caso do cara, hahahahaha! – Desembucha de uma vez, Lúcifer! – Seguinte: acho que vocês mandaram o cara errado para cá, quem devia estar aqui era o Cirurgião. Ele está aí em cima com vocês... – Qual foi a história? – Tudo começou...

Inferno, 18h17 – Anestesista, acho que você está com sorte. Seu amigo Cirurgião tá descendo e você vai para o céu... Venha, te levo lá em cima e aproveito para filar um uísque do Senhor...

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Sete erros comuns nas séries médicas

Em 1961 estreou, na TV norte-americana, uma série que tratava dos bastidores de um grande hospital, cujo drama central era o relacionamento de um interno de medicina com seu mentor, que tentava aprender sua profissão ao mesmo tempo em que lidava com os dramas particulares de seus pacientes. Dr. Kildare era baseado em uma série de rádio dos anos 1950, e foi um enorme sucesso instantâneo, elevando Richard Chamberlain a ídolo juvenil da época. Foi a primeira série médica a fazer sucesso na TV, e foi logo seguida por outras, como Ben Casey (Estados Unidos) e Emergency Ward 10 (Grã-Bretanha), abrindo espaço, posteriormente, para a comédia M.A.S.H. (1970), baseada no filme homônimo, e mais tarde, ainda, E.R., Grey’s Anatomy, Nip & Tuck, entre outras séries, já nos anos 1990 e 2000. A grande diferença da pioneira Dr. Kildare das mais atuais é que se acrescentou à fórmula a vida pessoal dos protagonistas, além de fazê-los viver questionamentos éticos que expunham suas fragilidades e dúvidas. Comparável, se você for um bom leitor de quadrinhos, à criação do HomemAranha por Stan Lee e John Romita, herói cheio de problemas

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pessoais e financeiros. O público, acostumado com o Super-Homem, herói infalível, bonzinho e lindão, se vê às voltas com outro mais próximo de sua própria realidade, o frágil Peter Parker. Sucesso imediato! Até aí, beleza. O problema, que acredito atormentar a vida dos redatores das séries médicas, é que não teria a menor graça, ou audiência, se eles mostrassem o dia a dia chato e repetitivo dos prontos-socorros. Uma boa dose de exagero, um pouco de mentira e erros de tradução são um prato cheio para um mala como eu: 1

Médicos que sabem fazer qualquer coisa: é completamente impossível, com os avanços tecnológicos e a superespecialização médica atuais, que médicos saibam fazer uma neurocirurgia, diagnósticos clínicos avançados e um cateterismo cardíaco. Uma comparação grosseira seria um jogador de futebol conseguir ser físico teórico e agrônomo, simultaneamente, ou seja, possível apenas em um universo paralelo.

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Os “rodapés”: há um momento em que os diagnósticos começam a ficar intrincados demais, os redatores precisam colocar rodapés de livros de medicina interna para que haja suspense e mistério e o desfecho invariável da descoberta do problema. Acontece, inclusive, sobreposição de vários problemas em um mesmo paciente, como o malandro ter passado as férias na África e aspirar um produto 13

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químico na garagem. Além do lúpus, claro... Ou câncer... Isso todos têm. 3

Legendas sofríveis: neste quesito ponto para os “legenders” voluntários que traduzem para os releases das séries na internet. A tradução é muito melhor, inclusive os termos técnicos, em relação à “oficial” da TV ou dos DVDs. Senão vejamos, “chest tube” é dreno torácico, e não “tubo de peito”, e “put an IV line” é pegar uma veia ou um acesso venoso, e não “colocar uma linha na veia”. E por aí vai...

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Baixaria: Dr. House é o alter ego dos médicos. Todos já tiveram vontade de, um dia, pegar algum paciente mala e apertar seu pescoço, e isso é humano e inegável. O problema é que ele faz isso de forma totalmente gratuita, escorraçando pacientes e familiares só por diversão. Queria vê-lo fazer isso em uma grande emergência do Rio de Janeiro ou São Paulo. Tomava uma azeitona no primeiro dia e ia amanhecer com a boca cheia de formigas em uma vala.

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Hora certa e lugar certo: está jantando e sua aorta dissecou? Não tem problema, o chefe da cirurgia cardíaca do hospital próximo está na mesa ao lado e diagnostica seu problema, com absoluta certeza, só de olhar para você. Um parente ou os próprios protagonistas adoecem? Claro que não será algo simples, tem que ser um diagnóstico quase impossível para ter graça, mas você 14

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está exatamente no centro de diagnósticos difíceis. Vai se suicidar? Recomendo não pular de um prédio, pois fatalmente você cairá ao lado de um residente de cirurgia que passava pelo local por acaso. 6

Descartando diagnósticos: já repararam que durante as sessões diagnósticas, ao se aventarem hipóteses, elas são facilmente descartadas porque falta um sintoma? Todos sabemos que as doenças apresentam uma frequência maior ou menor de alguns sinais e sintomas, mas cada um não está necessariamente presente em todos os pacientes. Existem infecções sem febre, infarto sem dor etc.

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Erros médicos: e os erros crassos? Rapidamente nossos heróis contam tudo às famílias e pedir desculpas, e nunca são processados. E olha que eles relatam tudo, com requintes de crueldade do tipo “Olha, queria seu perdão, confundi a vesícula de sua mãe com o baço e a arranquei por engano...”.

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Jejum?

Parece piada... O paciente entrou na sala com olhar apavorado, muito ressabiado, como se alguém fosse tirar seu escalpo ou realizar algum ritual de magia negra depois que ele dormisse. O residente preparava diligentemente as drogas para induzir à anestesia. Estava contente aquele dia, plantão animado, com paciente baleado, muitos procedimentos para fazer, staff1 gente boa, cirurgião rápido. Na história, o paciente relatou que os tiros foram dados por um marido traído, que soubera pela “rádio-peão” da comunidade que ele, paciente, andava catando sua dileta esposa. O paciente jurava, por tudo que é mais sagrado, que não tivera nenhum envolvimento com a tal rapariga. – Eu não comi, doutor, você tem que acreditar. Eu não comi aquela mulher! – Tudo bem, campeão, não cabe a mim te julgar. – Mas o senhor acredita em mim, né? 1

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Staff ou médica-assistente é a médica, já especializada, responsável pelo plantão, e tem o residente como seu escravo particular.

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Ele, penalizado, ia responder quando a staff do plantão entrou na sala para ajudar na indução. Viu a ficha ultrarresumida de pré-operatório. – Você perguntou a ele do jejum2? – Putz, esqueci... – Vê com ele, então. Ele se vira para o paciente, cada vez mais tenso: – Companheiro, preciso que seja sincero, senão você pode ter sérias complicações... O paciente suava frio. – Qual foi a última vez que você comeu? Ele, então, entra em total desespero e fala, aos prantos: – Doutor, eu confesso, comi sim, mas foi só uma vez, doutor, e foi aquela galinha que me seduziu! Gargalhadas histéricas encheram o ar da sala.

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Jejum pré-operatório: para cirurgias eletivas, em adultos, pedimos geralmente oito horas de jejum para sólidos. Como, no caso, a cirurgia era de urgência, seria feita independentemente do jejum, mas a forma de indução para estômago cheio ou vazio são bem diferentes.

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