Amigos Inimigos

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UM

Amizade Antiga Um cheiro insuportável: jiló podre, gambá e gato molhado. O chulé do irmão não tem comparação. – Rico, leva essa coisa para a lavanderia! – grita Maria, segurando um par de meias com as pontas dos dedos. A outra mão ocupada em tapar o nariz, evitando que o odor impregnasse o cérebro. No sofá, o menino joga seu videogame portátil, alheio a qualquer comentário. Levanta os olhos, conferindo o rosto da irmã, avermelhado pela raiva. – Ah, mana! Depois eu faço isso – disse, virando para o lado. Era o fim. Lá estava o irmão, um guri folgado com seus recém-feitos onze anos. Sempre às voltas com novidades eletrônicas. – Américo, sai logo daí ou eu vou chamar a mamãe! Lembra que ela pediu ontem para você se livrar dessas meias do jogo de basquete? Foi suficiente para o menino pular alguns metros. – Ninguém me chama de Américo! É Rico, Ri-co! – exclama visivelmente alterado.


A mãe tinha talento para nomes diferentes. Felizmente abençoou a filha mais velha com um nome comum. Rico não teve a mesma sorte. – Américo do Sul! Não me faça descer! – a voz da mãe ecoando pelo corredor superior. Contrariado, abandonou o videogame em um canto, resolvendo dar conta do objeto malcheiroso. Puxou as meias, acomodando no bolso. – Um porco, definitivamente um porco – deduziu a irmã. Maria subiu as escadas, desistindo de entender em que momento a mãe errou na educação. Faltava pouco para o início da primeira aula. Caso atrasasse, ouviria a irritante dona Ana, bedel do colégio, com seus sermões intermináveis sobre “os jovens de hoje em dia”. Prende os cabelos revoltos em um rabo alto, evitando se incomodar. Olha o espelho, desanimada. Alisa a blusa do uniforme. Gostaria que seus seios crescessem um pouco mais. Tinha catorze anos, idade suficiente para um sutiã 40. A envergonhava entrar nas lojas e suplicar por um mísero 36. Magra demais, baixa demais. Maria tinha dificuldade em aceitar o que a genética decretou. Às vezes preenchia os espaços vazios do sutiã com bolinhas de papel, rezando para que estas não resolvessem saltar para fora, na frente de um menino interessante. Seria bom ter um corpo adulto, como o de Patrícia, uma de suas amigas de sala. Pescoços entortavam quando ela passava. Até o uniforme horroroso cor de abóbora do colégio ressaltava as curvas perfeitas. Em Maria ficava como um saco disforme, contribuindo para evidenciar a falta de conteúdo. Claro que Patrícia chamava atenção, senão pelo corpo, com certeza pelos cabelos loiros bem arrumados e os grandes olhos azuis.

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“Uma barbie”, conclui. A beleza da amiga poderia ser irritante, mas seu jeito meigo e alienado a fazia uma pessoa muito querida. Patrícia era a última a entender as piadas, inclusive as óbvias. Tinha dificuldade nas matérias difíceis e costumava recorrer à Camila, a inteligente da turma. Esta a salvou de muitas notas ruins, com seu comportamento prestativo, ensinando calmamente todos os pontos da lição. O rosto de Camila surgiu na mente de Maria. Desejava que a amiga estivesse melhor nesta manhã. Não gostava de vê-la triste pelas constantes brigas dos pais. Estavam se separando, havia um ano. Ainda dividiam o mesmo teto e usavam a filha em suas discussões prolongadas. Isso deixava Camila ansiosa, procurando refúgio na comida. Aumentou vários quilos desde que tudo começou. Nunca falou sobre isso com a amiga, mas a mochila repleta de chocolates e bolachas denunciava o novo hábito. Maria pega o celular de cima da cama, assustada. – Caramba! Sete horas! – disse, agarrando a mochila pesada. Desceu as escadas correndo, teria quinze minutos para fazer um percurso que normalmente levaria o dobro de tempo. – Tchau, mãe! – grita, batendo a porta. Um “tchau” abafado foi ouvido antes que Maria chegasse à rua. O safado do irmão saiu de fininho, sem alertá-la do adiantado da hora. – Ele vai ver só – praguejava. – Vou comer todas as balas dele assim que chegar em casa! O vício de Rico: balas de morango, de uma marca importada. As guardava embaixo da cama, escondidas entre os tênis puídos e os carrinhos de controle remoto. Torcia para que Maria não encontrasse.

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Quando a irmã queria puni-lo, descobria o esconderijo se livrando das balas, uma a uma. Isso deixava Rico possesso, enchendo os ouvidos da mãe com acusações. Maria negava tudo e dizia que provavelmente um dos ratos que habitavam o quarto do irmão que fez o serviço. Andava em passos largos, cansada pelo material que carregava. Era dia de Educação Física. Maria optou pela natação, o que a obrigava a levar todo o apetrecho necessário. Óculos, maiô e toalha dividiam espaço com as apostilas, o penal, fones de ouvido. Por sorte, morava próximo ao colégio, facilitando a falta de um carro. A mãe pagava com dificuldade o bom colégio em que Maria e Rico estudavam, inviabilizando arcar com custos desnecessários como o de um automóvel. O pai faleceu há muitos anos e a mãe assumiu os dois papéis. Maria lembrava pouco dele. Cenas de passeios no parque, sorvetes derramados e risos ocupava a memória no que se referia àquele que a mãe descrevia como alguém importante. Não podia dizer que sentia falta do pai. Estava acostumada com a família que tinha. Apesar das desavenças, eram unidos e a mãe desempenhava muito bem a função de provedora. Ensinava a valorizar o que possuíam e a ajudar nos afazeres domésticos. Maria torcia para que a mãe esquecesse dela após o almoço, quando a louça pedia para ser lavada. Fugia quando podia, mas a voz insistente desta chamava à realidade. Às vezes, queria ter uma vida como a de Morgana, cercada de criados. Adivinhando os pensamentos, a amiga apareceu. – Oi, quer uma carona? – disse Morgana, abrindo a porta do carro, onde se podia avistar o motorista sorridente. – Aceito sim, obrigada! – respondeu Maria, aliviada.

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Morgana era uma boa amiga, estranha, mas presente. Tinha um jeito melancólico de ser, pessimista a maioria das vezes. Usava os cabelos lambidos na cara, meio curtos, e muitos brincos na orelha. A maquiagem pesada em volta dos olhos mal podia ser percebida, tendo em vista os grossos fios negros que cobriam parte do rosto. Costumava enfrentar a diretora, usando os mais diferentes acessórios para ir às aulas. Hoje mostrava seus coturnos militares. – E aí, gostou? – perguntou Morgana, levantando os pés. Maria riu, balançando a cabeça: – Você não tem jeito! A diretora vai te chamar outra vez! Em um balançar de ombros desinteressado Morgana assentiu: – Tudo bem, duvido ela achar o meu pai para reclamar. Um executivo importante era o pai de Morgana, dividido entre reuniões e viagens ao redor do mundo. Via a filha somente aos fins de semana, e de forma rápida, entre as voltas de iate e uma festa im-per-dí-vel. – Ele deve estar na China, ou nos Estados Unidos, não sei – completou, em um tom baixo. Um silêncio incômodo se fez, quebrado pelo motorista: – Chegamos, senhorita Morgana, quando devo buscá-la? – Não sei, Jonas, depende se eu ofender alguém hoje – dito isso saiu do carro, dando passagem para Maria. O sino tocou estridente, avisando a última chamada para a primeira aula. Maria e Morgana correram, dispostas a se livrar da insistente bedel. Alcançaram a porta da sala, antes que dona Ofélia a fechasse. – Essttãooo atraassaadasss – disse a professora com a voz arrastada.

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As meninas sentiam vontade de rir sempre que dona Ofélia se dirigia a elas. Uma senhora de aparência cansada, bochechas rosadas e proeminentes. Era professora de Português e aparecia nas fotos das turmas do colégio desde as primeiras gerações. Tinha sonífero na voz, o que fazia com que metade dos alunos fosse tomada por um sono profundo após vinte minutos de aula. Era comum um estudante ser acordado por ela com uma reguada bem administrada na carteira. A vítima despertava em um susto, misto de surpresa e receio. Se dona Ofélia estivesse em um dia ruim mandaria o infeliz para a diretora Edmira. Maria e Morgana sentaram rapidamente, evitando mais olhares de reprovação. Normalmente, Morgana andaria lentamente, buscando provocar, mas pela cara da professora resolveu que a chance de ir para a diretoria era grande. À frente de Maria, Patrícia passava os dedos pelos cabelos, separando as mechas, distraída. Com certeza em outra dimensão. – Psiu, Patrícia – sussurrou Maria, chamando a amiga. Esta permaneceu alheia, conversando com um duende imaginário. Maria intensificou o chamado: – Ei, Patrícia! Nada. Quando Maria se preparava para chamá-la outra vez, uma voz brotou do fundo da sala: – Patrícia, ô sua surda, todo mundo já sabe que a Maria quer falar com você! Um rapaz alto e magro, com cabelos castanhos e uma cara debochada era o dono da voz.

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“Jack”, pensou Maria, ao mesmo tempo que a professora virou e disse três palavras: – Maria. Jack. Diretora. Não podia acreditar. De novo esse ser intrometido cruzava seu caminho. Jack tinha a mesma idade de Maria, talvez meses mais velho. Conheciam-se há muito tempo, por serem vizinhos. As mães eram amigas e costumavam se encontrar para cafés ou coisas do tipo. Brincavam juntos quando pequenos, frequentando a vida um do outro. “Amigos ”, resumiu Maria. Não lembrava quando simplesmente haviam se afastado. “Provavelmente quando ele se tornou esse bobo irritante”, concluiu. E lá foram os dois rumo à sala da diretora, onde provavelmente ficariam até dona Edmira se compadecer. Levantaram das cadeiras, se preparando para deixar a sala de aula. – Tá na hora de comprar uma antena parabólica para se comunicar com a Patrícia. Toda essa confusão e ela nem percebeu! – comentou Jack, irônico. Maria olhou a amiga e constatou que esta continuava viajando em um mundo só seu. Essa era Patrícia, linda e desconcentrada. Preferiu não responder ao comentário impertinente do rapaz. Não daria a ele esse gosto. Ignorou propositadamente, evitando maiores contatos. Este assumiu uma careta desgostosa, mas permaneceu quieto. Estava acostumado com o desprezo de Maria. “E ela já foi minha amiga, não sei como!”, se questionou. Chegaram à sala de porta verde, temida por todos os alunos. Lá dentro a diretora conferia os castigos adequados.

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A maioria tinha que escutá-la comentar casos de marginais conhecidos. Sempre terminava com a frase: “amanhã pode ser você”. Catastrófica. – Quem ela vai citar hoje? Bin Laden? – disse Jack, rindo do hábito da diretora. Maria sentiu vontade de rir também, mas se conteve, não queria intimidade. Não eram mais amigos, há muito tempo. – Podem entrar! – soou a ordem da diretora que aguardava sentada em sua mesa. Jack entrou, seguido por Maria. – Senhorita, Maria, que novidade vê-la por aqui. Quando avisaram que uma aluna do nono ano viria, pensei se tratar da sua amiga Morgana, assídua frequentadora de minha humilde sala – disse Edmira, caminhando até eles. Apontou para duas cadeiras. – Sentem – ordenou. Foi prontamente atendida. – Senhor Jack, como está o seu pai? – perguntou. – Bem – respondeu, sem dar atenção ao comentário. O pai de Jack era um político conhecido na cidade, figura melosa que insistia em beijar todos ao seu alcance. Tinha o sonho de ver Jack estudando no exterior. Para tanto, lhe deu um nome norte-americano e o obrigou fazer aulas de inglês desde cedo. A mãe trabalhava em casa, comumente submissa aos desejos paternos. Uma figura amorosa e apagada. Maria sentiu pena ao observar o rosto fechado de Jack. Todos só queriam saber de seu pai, só perguntavam dele. Desde que se lembrava era: “seu pai isso”, “seu pai aquilo”. Não deveria ser fácil viver às voltas com esse fantasma. – E quem tumultuou a aula da senhora Ofélia? – continuou a diretora.

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Edmira tinha mania de usar os mesmos pronomes de tratamento para se dirigir a todos: alunos, pais ou professores. Senhora para lá, senhor para cá. Maria achava isso engraçado. Silêncio. A diretora contornou as cadeiras, procurando reação. Como nenhum dos dois se pronunciou, resolveu agir: – Já que vocês são tão próximos, penso que vão gostar de ficar em minha sala, olhando um para a cara do outro até o sinal tocar! – E saiu batendo a porta. Frustração. Maria precisava assistir à aula de Português. Seu último teste não foi dos melhores. – Afinal, o que você queria tanto com a Patrícia? – Jack puxou conversa, quebrando da falta de assunto. Não lembrava a última vez que se falaram. Maria não sabia se respondia. Desejava perguntar à Patrícia sobre a ausência de Camila. A amiga nerd nunca perdia uma aula. Frequentava todas as matérias, absorvendo os conhecimentos possíveis. Mas naquela aula Camila não estava. O que teria acontecido? Ela e Patrícia caminhavam juntas até o colégio. Talvez Patrícia tivesse informações. – Queria saber sobre a Camila – respondeu, sem explicações. E assim permaneceram, fitando a parede, presos em seus pensamentos. Maria contemplou Jack furtivamente, percebendo como ele cresceu. Não parou para olhá-lo propriamente desde que se afastaram. Ainda lembrava o garoto de cara alegre e rechonchuda, mas agora era um adolescente magro e petulante. Jack girou a cabeça em sua direção, o que fez com que Maria parasse de olhar imediatamente, adquirindo um rubor

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estranho. A companhia de Jack deixava-a incomodada. Suspirou aliviada quando o sinal tocou, avisando que o martírio chegou ao fim. Saiu da sala correndo, deixando Jack sozinho. Desceu as escadas até o pátio, onde Patrícia, Morgana e agora Camila estavam sentadas em um banco. – Olha lá a sortuda! – disse Morgana. – Sortuda, até parece – resmungou Maria. – Claro, você e aquele gatinho do Jack sozinhos na sala da diretora – cutucou Camila, que sabia da ojeriza da amiga. A resposta de Maria foi uma cara mal-humorada, o que fez com que trocassem de assunto rapidinho. O comentário de Patrícia provocou risos: – A Maria foi na sala da diretora hoje? Nem vi... – Ai, ai, Patrícia, um dia eu te compro um satélite para melhorar sua conexão com o universo – disse Camila. – E falando em universo – lembrou Maria – o que aconteceu no seu que você não foi à aula hoje? Camila ficou séria. Maria percebeu que algo aconteceu. – Nada demais – respondeu curta e seca. Isso não é normal. Camila sempre foi uma pessoa falante. Por que agora esse comportamento? – Desculpe perguntar, Camila, mas me preocupo com você – insistiu Maria. Camila olhou os joelhos. – A verdade é que não consegui me vestir a tempo – respondeu. – Nenhuma das minhas roupas me serve. Estou gorda e feia! – desabafou. As amigas se entreolharam sem saber o que responder. O fato é que Camila engordou uns dez quilos desde o início do ano. E os pais pareciam não se importar com isso.

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– Pense bem, Camila, poderia ser pior – colocou Morgana. – Você podia estar igual à Gertrudes – disse apontando para uma menina alta e esquelética, com cabelos que lembravam a noiva do Frankenstein. – Isso não me consola – respondeu Camila. – Vocês sabiam que no horóscopo de hoje, Câncer está na lua de Escorpião, favorecendo as relações familiares e os amores antigos? – falou Patrícia, que costumava trazer comentários sem nexo. – Tudo o que precisamos: outra dose de família e relações mal resolvidas! Iupiii! – disse Morgana, jogando as mãos para cima, fazendo Camila e Maria rirem, melhorando o clima. – Você deveria ler a coluna astral, tem bons conselhos – argumentou Patrícia, fingindo-se ofendida, mexendo os cabelos. – Claro, claro – respondeu Morgana, compreensiva. Neste momento, Maurício cruzou o pátio, fazendo Maria se esquecer das amigas. – Terra chamando Maria, depois sou eu a desligada – disse Patrícia em um risinho. – É só o Maurício passar que a Maria se desconecta de tudo! – colocou Camila, dando tapinhas nas costas da amiga. – Aquele riquinho chato! – exclamou Morgana, mostrando a língua em uma careta de nojo. – Ele não é chato! – reclamou Maria, em defesa daquele que ocupava seus sonhos. Maurício prendia a atenção de praticamente todas as meninas da escola. Loiro de olhos azuis, dizia ser o melhor jogador de futebol do time. Gostava de mostrar os presentes caros que recebia da mãe. Colecionava tênis e roupas de marca enquanto a mãe colecionava maridos, atualmente no terceiro casamento. Um mais rico que o outro.

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Não gostava de Jack, com quem costumava entrar em conflito. Ambos jogavam no time da escola, mas não se entendiam, para desespero do treinador. – E você também é riquinha! – disse Maria para Morgana. – Mas eu sou um amor! – respondeu a amiga, fazendo as colegas gargalharem. Morgana era assim, uma contradição ambulante. – E que tal se fôssemos ao meu quarto depois da aula para organizar minha coleção de bonecas? – sugeriu Patrícia. – Prefiro cortar os pulsos – disparou Morgana. Patrícia ignorou o comentário, murmurando um “eu acho bem legal”. – Desculpe, Patrícia, mas minha mãe pediu que eu fosse até a venda da esquina comprar umas frutas – disse Maria, fugindo do compromisso de gosto duvidoso. – E eu tenho que estudar para recuperar o que perdi da aula de Português – justificou Camila. Rapidamente, cada uma seguiu seu caminho, evitando que Patrícia tivesse outra ideia para um programa “agradável”. Bem a tempo do sinal tocar, avisando a próxima aula: Física. – Ninguém merece – resmunga Maria que detesta com todas as forças a matéria. Tudo compensado pelo professor Pedro, um cara engraçado e não muito mais velho do que os próprios alunos. Tentava encaixar uma frase engraçada ao final das explicações. Normalmente conseguia arrancar risadas de solidariedade, devido às piadas muito ruins. – Ele deve achar que nós temos oito anos – comenta Morgana. – Ora, vamos! Dê um crédito para ele, é esforçado! – defende Camila, mais interessada no professor do que na aula.

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Isso ficava claro pelos inúmeros corações desenhados nas folhas do caderno e o fato de a amiga tirar dúvidas que não existiam depois da aula. – E viva o amor platônico! – debocha Morgana, irritando Camila. – Não é nada disso que vocês estão pensando! – Se explica. – Tudo bem... – acalma Maria. – Do que vocês estão falando? – surge Patrícia do além. E assim transcorreram as aulas daquele dia: Matemática, Literatura e Educação Física. Apenas Maria escolheu a natação, enquanto Camila decidiu fazer vôlei, Patrícia dança e Morgana fingia que corria. Maria ajeitou a touca de látex que repuxava os fios do cabelo. O maiô com o emblema da escola a fazia se sentir desproporcional. – Praticamente uma tábua – concluiu Maria encarando o espelho do vestiário. Caminhou até a piscina, lutando para que o maiô grande demais ficasse no lugar. Atrasou um pouco e todos os alunos estavam em fila, no aquecimento. A professora Roseli dava as últimas coordenadas, os instruindo a dar cinco voltas caminhando em volta da piscina antes das séries. – Que bom que se juntou a nós, Maria – disse a professora, em um leve puxão de orelha. Maria virou um pimentão quando todos repararam em quem havia chegado. Queria se esconder, mas logo notou que não olhavam diretamente para ela. – Desculpe o atraso professora, é minha primeira aula, perdi o horário – falou uma voz masculina.

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– Não pode ser, não pode ser, não pode ser, não pode ser... – repetiu Maria de olhos fechados, como um mantra. Mas era. Jack caminhou até a fila, com a sunga laranja de gosto duvidoso da escola. A maioria dos nadadores eram meninas, o que obrigou Jack a se posicionar entre duas morenas gêmeas. Estas ficaram alvoroçadas e felizes pela presença do rapaz. – Que bom tê-lo aqui, Jack! Quando o treinador Heitor me disse que o capitão do time de futebol iria nadar conosco não acreditei! – disse Roseli, feliz por ter finalmente um atleta no grupo. Maria permaneceu estática, processando na cabeça o motivo de Jack ter escolhido justamente a natação como esporte esse ano. O interesse dele estava voltado único e exclusivamente ao futebol. Era muito azar ele decidir morrer de amores pelo mesmo esporte. – E será que você poderia se juntar a nós, Maria? – insistiu a professora, apontando para o final da fila. – Vai ver a touca está apertando o cérebro dela – falou Jack, com um jeito engraçado. Riso geral. A raiva que Maria sentia daquele rapaz transbordava pelos poros. Criou em sua mente cenas em que o atirava em uma piscina cheia de tubarões. Decidiu acordar e se colocar no lugar apontado por dona Roseli. Por sorte, bem longe de Jack. A aula começou e Maria não teve mais tempo de pensar no infeliz. Depois de várias voltas em torno da piscina e muitas idas e vindas em séries de nado, estava exausta. Foi para o ves-

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tiário, preocupada com a hora. A mãe não gostava de atrasar o almoço, precisava voltar cedo ao trabalho. Lavou os cabelos desajeitada, sem ter tempo de secá-los. Vestiu a roupa aos turbilhões, enfiando o tênis no meio do caminho. Carregando a mochila saiu do colégio, intercalando pulinhos que a levariam mais depressa para casa. – Cheguei, mãe! – disse, batendo a porta. Rico estava em seu habitat natural, jogado ao sofá, compenetrado no game. Maria lembrava da vingança das balas e sabia que em breve teria sua chance. – Oi, mãe – falou se aproximando do fogão, onde Joana fritava bifes. – Oi, filha – respondeu, dando um beijo. – E como foi na escola? – Mais ou menos – comentou Maria, revendo os episódios passados. – Ela foi parar na sala da diretora! – entregou o irmão, berrando do sofá. Uma aberração da natureza, só isso poderia descrever a criatura que dizia ser seu irmão. – Com a diretora! – falou alto a mãe, virando para encarar a filha com um ar de reprovação. – Calma, foi um mal-entendido! – explicou Maria, esperando que isso a contentasse. – Mas a diretora não achou isso quando deixou a Maria e o Jack na direção por toda a primeira aula. – Entregou mais uma vez o irmão, satisfeito por ver Maria em uma encrenca. “Um alien que veio a este planeta para atazanar a vida das irmãs.”

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– Você não arranjou briga com o filho da Sônia de novo, né? – exigiu saber a mãe. – Ele é um chato – reclamou Maria, engolindo as palavras ao se deparar com o olhar bravo de Joana. – Pois gosto muito da Soninha e acho que você deveria tentar conviver com o Jack. Um rapaz tão querido! – emendou a mãe, ressaltando as qualidades do “Jackzinho”. “Um entulho, isso sim!”, pensou Maria. Joana levou a travessa de arroz até à mesa, terminando de dispor os pratos. – Eu não entendo, vocês se davam tão bem até pouco tempo, brincavam tanto juntos! – continuou a mãe. – Ah, mãe, deve fazer uns cinco anos que eu não brinco, muito menos com o Jack! – disse Maria, escandalizada pela mãe acreditar que ela ainda poderia ter laços com aquele inconveniente. Sentaram para comer, sem maiores comentários. O irmão bagunçava a comida, enfiando na boca tudo o que estivesse ao seu alcance. – Como disse, um porco – definiu Maria. A mãe terminou rapidamente, se ajeitando para sair. – Se eu chegar atrasada o Sr. Ranoldo vai me matar! – avisou, procurando sua pasta. Beijou os filhos e saiu para não perder a carona até o trabalho. – E não se esqueçam de comprar abobrinha e cebola para amanhã – berrou a mãe, já no banco do passageiro. Para Maria, ficou uma pia repleta de louça e a tarefa de ir até a quitanda. Não sobrava tempo à mãe para as tarefas domésticas, restando à Maria e seu irmão ajudarem na casa. Em termos, pois até um pouco antes da mãe chegar nada era feito.

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Resolveu ir comprar o que faltava ao perceber que todos os iogurtes desapareceram da geladeira como num passe de mágica. Pegou uma nota de cinquenta que a mãe deixou escondida em um falso vidro de biscoitos. Caminhou até a esquina da rua, carregando uma sacola onde se lia: “preserve o meio ambiente”. Andava distraída, quando avistou o letreiro berrante da venda do Seu Alceu. Lá se vendia de tudo, o que fazia com que Maria não precisasse enfrentar os grandes mercados para as compras do dia a dia. Selecionou itens que faltavam para o almoço: ovos, abobrinha, cebola. E outros itens também muito necessários: iogurte, chocolate, cereal, bolacha. Indispensáveis. Levou tudo até o caixa, quando um saco grande de ração para cachorro invadiu seu campo de visão. – Ei, tira esse treco da minha cara! – pediu Maria, lutando contra o pacote de cinco quilos de ração “Bau-Bau” que insistia em sufocá-la. – Desculpe, não vi que tinha alguém na minha frente – respondeu Jack, sem perceber de quem se tratava. – Quero que esse dia acabe! – gritava Maria por dentro. Lá estava Jack, atrapalhando sua vida outra vez! – O que você está fazendo aqui? – perguntou Maria sem paciência. Ela sabia que Jack morava perto de sua casa, afinal eram vizinhos, mas também sabia que Jack nunca precisou levantar um dedo para os afazeres domésticos. Sua mãe cuidava de tudo, enquanto o pai trazia todo o dinheirinho para o pequeno Jack. – Ué, vim comprar ração para o Edu, meu labrador, esqueceu dele? – respondeu com um sorriso casual.

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O comentário soaria simpático se Maria não estivesse tão enfezada. É claro que lembrava de Eduardo Príncipe I, o cachorro de Jack. O conheceu no dia em que ela e Jack ficaram amigos, brincando no parquinho da praça. Deviam ter uns quatro anos e depois disso passaram a se ver todos os dias. – Minha mãe comprou uma marca muito ruim, com um gosto horrível, é claro que o Edu não quis comer – explicou Jack, fazendo uma careta feia. – Você ainda come a ração do Edu? – questionou Maria. – Não é comer, eu apenas provo para ver se está boa – justificou Jack. Um clima ameno se fez entre eles, e Maria não gostou nem um pouco. Estavam se aproximando e um alarme soou. – Preciso ir, ao contrário de você, tenho muito trabalho em casa – disse Maria, atrevida, indo até a porta da venda. Do balcão, ouviu-se a voz do quitandeiro: – Você vai pagar por esses produtos, mocinha? Maria estava tão preocupada em sair de perto de Jack que esqueceu que precisava pagar. Jack passou por ela rindo, carregando o pacote de ração. Recebeu uma abobrinhada na cabeça, devidamente administrada por Maria. – Paguei por ela – sorriu ao ver o rosto surpreso de Jack. Este inesperadamente não reagiu e nem a ofendeu. Saiu sem dizer uma palavra. Maria preferia que ele a tivesse xingado. Ou dito alguma coisa sem graça, como costumava fazer. Estranhou a atitude. – Acho que ele ficou magoado – disse Seu Alceu, apoiando a cabeça com a mão, coçando o bigode. – É verdade – concordou dona Genuína, moradora da casa 49.

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O que faltava, plateia! Maria correu para casa. O rosto queimava. Raiva, talvez. Jogou as compras em cima da mesa e subiu para o quarto, se jogando na cama. Tinha vontade de chorar, mas nenhuma lágrima saía. Por que dava tanta importância para o que aquele guri pensava ou sentia? Deveria se preocupar com Maurício, muito mais interessante. Levantou e olhou seu mural de retratos. Perdeu a conta dos anos que se passaram e que as fotos foram se acumulando uma em cima da outra. Ali repousava uma imagem de Maurício, durante um dos treinos de futebol. Patrícia conseguiu no arquivo da escola. Embaixo de todas as fotos, uma figura meio apagada pelo tempo apareceu. Nela Maria e Jack se abraçavam, fazendo “chifrinho” na cabeça um do outro. Tinham oito anos. A última foto que tiraram juntos. Maria sentou ao chão e retirou todas as camadas, uma a uma. Guardou as fotos em que Jack surgia, deixando as atuais. Um pouco antes da mãe chegar, arrumou a casa e colocou a roupa para lavar. Esperava-a todas as noites para ver a novela das sete. Nesse dia decidiu ficar no quarto, olhando a parede. A campainha tocou. Quem poderia ser? – Oi, Jack! Que bom ver você por aqui! Quanto tempo! – disse Joana. Agora é demais! Ele estava na casa dela! Maria correu para o banheiro e trancou a porta. Ligou o chuveiro, torcendo para a mãe não a fazer sair do banho e receber a visita ilustre. Joana dirigiu-se ao quarto de Maria e, ouvindo o som da água que caía, desceu as escadas.

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Maria percebeu que o diálogo cessou, mas não conseguiu entender o desfecho. Ao sair do banheiro, viu um pequeno cartão com desenhos de coelhinhos encostado em seu travesseiro. Nele uma frase rabiscada à mão com os dizeres: Desculpe por tudo, Jack. Mais tarde, a mãe estava sentada ao sofá acompanhando a última novela. Chamou ao ver Maria no quintal: – Filha! Você reparou no cartão que Jack deixou para você? – Sim, mãe – respondeu Maria – estou colocando ele no devido lugar. Maria coloca o último monte de barro em cima do buraco raso. Vê-se apenas um punhado de terra, nenhum sinal do cartão. A mãe não entendeu o comentário, mas resolveu deixar para outra ocasião. – Esses adolescentes...

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