De Musa à Medusa

Page 50

Crimes possíveis: o olhar de Paula Rego sobre o romance de Eça de Queirós

O narrador do conto de Borges enfatiza exatamente este aspecto no projeto de Menard, quando convida o leitor a cotejar as passagens idênticas do D. Quixote do séc. XVII e “o” do séc. XX, mostrando as diferenças radicais na interpretação do mesmo texto em épocas diferentes: “A verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro”.5 Para Borges, essa enumeração redigida no século XVII pelo engenho leigo de Cervantes é um mero elogio retórico da história. Quando um escritor do século XX redige o mesmo parágrafo, porém, a ideia parece espantosa: a história, mãe da verdade!: Menard, contemporâneo de William James, não define a história como uma indagação da realidade, mas como sua origem. A verdade histórica, para ele, não é o que sucedeu; é o que pensamos que sucedeu. As cláusulas finais exemplo e aviso do presente, advertência do futuro são descaradamente pragmáticas.6

Em sua teoria, Jauss também reflete sobre esse problema: Compreende-se o texto quando se compreendeu a pergunta a que ele dá resposta. Todavia, a pergunta reconstituída não pode estar no horizonte original, porque este horizonte histórico já foi englobado pelos horizontes da nossa atualidade. A fusão de horizontes já ocorreu, sendo agora parte integrante da compreensão.7

5. BORGES, 1989. 6. Idem, ibidem. 7. AUSS, 1994.

48


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.