De Musa à Medusa

Page 202

Resumo: Em seu livro Natureza-morta, Charles Sterling diferencia os termos “megalografia” de “riparografia”. O primeiro assinala a pontuação das coisas nobres e elevadas que se oferecem à representação: as lendas dos deuses, as batalhas dos heróis, as crises da história. O segundo notifica as coisas sem importância, ínfimas, impuras, que estão sempre presentes mas passam despercebidas. Para o autor, o gênero natureza-morta na pintura resgata os elementos relegados à invisibilidade noutros contextos, capturando o mundo ignorado pelo impulso humano de criar grandeza. Neste gênero, a figura humana, com todo seu fascínio, é apagada. A narrativa, com a linearidade de seus dramas, é banida. O sujeito que ela propõe e assume é anônimo e primordial, distante do esplendor e da singularidade, nivelado com os demais viventes pela comum característica da fome. Os alimentos, os utensílios, as flores fenecendo nos vasos, a domesticidade dos interiores e a plasticidade das superfícies dos bodegones equiparam-se, muitas vezes, à polêmica “escrita feminina” praticada por Clarice Lispector. Na riparografia assim como na lixeratura o humano não detém a primazia do olhar sobre as coisas. São elas que, rasgando o humano, o observam e o interrogam. Neste ensaio procuramos aproximar os princípios deste gênero pictórico à poética clariceana, através da análise de versões do tema Cristo na casa de Marta e Maria na história da arte, e do conto “Os desastres de Sofia”, do livro Felicidade clandestina, peçachave para a compreensão de seu estilo. Palavras-chave: Clarice Lispector, Natureza-morta, Escrita feminina, Cristo na casa de Marta e Maria, “Os desastres de Sofia”.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.