[poemário o gosto dos poemas]

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O gosto dos poemas poemário

Rui Machado  MMXIV


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SEQUÊNCIA TÍTULO Autor PÁGINA

1. FOI PARA ISSO QUE OS POETAS FORAM FEITOS A. M. Pires Cabral 3 2. OS NAMORADOS POBRES Adília Lopes 4 3. PARA ALÉM DA CURVA DA ESTRADA Alberto Caeiro 6 4. EU AMEI-TE Aleksandr Púshkin 7 5. ARS POÉTICA Archibald MacLeish 8 6. AS RELAÇÕES PERIGOSAS Carlos Marzal 9 7. DISCIPLINA Cesare Pavese 10 8. ÍTACA Constantino Cavafy 11 9. SÊ Douglas Malloch 13 10. QUE LÁBIOS OS MEUS BEIJARAM… Edna St. Vincent Millay 14 11. BAIRRO LIVRE Jacques Prévert 15 12. CASA DA MISERICÓRDIA Joan Margarit 16 13. CANTIGA, PARTINDO-SE João Roiz de Castelo-Branco 17 14. CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA Jorge de Sena 18 15. PEDE-SE A UMA CRIANÇA: DESENHA UMA FLOR! José de Almada Negreiros 20 16. O POEMA José Tolentino Mendonça 21 17. NO MUNDO QUIS UM TEMPO QUE SE ACHASSE Luís Vaz de Camões 22 18. CÂNTICO DA HUMANIDADE Miguel Torga 23 19. SÍSIFO Miguel Torga 24 20. AS PALAVRAS FUNDAMENTAIS Nicolás Guillén 25 21. A ESTRADA NÃO TRILHADA Robert Frost 26 22. SE Rudyard Kipling 27 23. PROSA PARA A MINHA AMADA Rui Machado 29 24. OS TRÊS PRATOS Tonino Guerra 30 25. A CABRA Umberto Saba 31 26. A LIÇÃO DE POESIA Vasco Popa 32 27. OH CAPITÃO! MEU CAPITÃO! Walt Whitman 33 28. NÃO SÃO COMO O SOL… William Shakespeare 34 29. CONVERSA COM A PEDRA Wislawa Szymborska 35 30. QUE PENA, ÉRAMOS UMA INVENÇÃO TÃO BOA Yehuda Amichai 37

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FOI PARA ISSO QUE OS POETAS FORAM FEITOS

semear tempestades e assegurar que cresçam foi para isso que os poetas foram feitos esgrimir com a mais idónea das espadas: a coragem foi para isso que os poetas foram feitos namorar a perfeição e às vezes alcançá-la foi para isso que os poetas foram feitos

A. M. Pires Cabral

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OS NAMORADOS POBRES

O namorado dá flores murchas à namorada e a namorada come as flores porque tem fome Não trocam cartas nem retratos nem anéis porque são pobres Mas um dia têm muito medo de se esquecerem um do outro então apanham um cordel do chão cortam o cordel com os dentes e trocam alianças feitas de cordel Não podem combinar encontros porque não têm número de telefone nem morada Assim encontram-se por acaso e têm medo de não se voltarem a encontrar O acaso não os favorece Decidem nunca sair

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do mesmo sítio e ficarem sempre juntos para não se perderem um do outro Procuram um sítio mas todos os sítios têm dono ou mudam de nome Então retiram dos dedos os anéis de cordel atam um anel ao outro e enforcam-se Mas a namorada tem de esperar pelo namorado porque o cordel só dá para um de cada vez O namorado descansa à sombra da figueira e a namorada baloiça na figueira O dono da figueira zanga-se com os namorados pobres porque julga que estão a roubar figos e a andar de baloiço

Adília Lopes

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PARA ALÉM DA CURVA DA ESTRADA

Para além da curva da estrada Talvez haja um poço, e talvez um castelo, E talvez apenas a continuação da estrada. Não sei nem pergunto. Enquanto vou na estrada antes da curva Só olho para a estrada antes da curva, Porque não posso ver senão a estrada antes da curva. De nada me serviria estar olhando para outro lado E para aquilo que não vejo. Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos. Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer. Se há alguém para além da curva da estrada, Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada. Essa é que é a estrada para eles. Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos. Por ora só sabemos que lá não estamos. Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva Há a estrada sem curva nenhuma.

Alberto Caeiro

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EU AMEI-TE…

Eu amei-te; mesmo agora devo confessar, Algumas brasas desse amor estão ainda a arder; Mas não deixes que isso te faça sofrer, Não quero que nada te possa inquietar. O meu amor por ti era um amor desesperado, Tímido, por vezes, e ciumento por fim. Tão terna, tão sinceramente te amei, Que peço a Deus que outro te ame assim.

Aleksandr Púshkin

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ARS POÉTICA

Um poema deve ser palpável, silencioso, como um fruto redondo. Mudo como os velhos medalhões ao toque dos dedos. Silente como o gasto peitoril de uma janela em que cresceu o musgo. Um poema deve ser calado como o voo dos pássaros. Como a lua que sobe, um poema deve ser imóvel no tempo, deixando, memória por memória, o pensamento, como a lua detrás das folhas de inverno; deixando-o como, ramo a ramo, a lua solta as árvores emaranhadas na noite. Um poema deve ser imóvel no tempo como a lua que sobe. Um poema deve ser igual a: não a verdade. Para toda a história da dor, uma porta franqueada e uma folha de ácer. Para o amor, as gramíneas inclinadas e duas luzes sobre o mar. Um poema deve ser, e não significar. Archibald MacLeish

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AS RELAÇÕES PERIGOSAS

O trato excessivo com optimistas, mulheres carinhosas e escritores acaba por nos ser mau para o corpo, embora bem pior para o espírito. Reparo agora que acreditei, e por mais tempo que o aconselhável, que a única tarefa desta vida é ser feliz ou presumi-lo ao menos. Todos nós sabemos a natureza da felicidade, pois a infundem os optimistas e certas mulheres e porque os poetas no-la explicam; sabemos que é um bem perecedouro, que é feita de matéria fugitiva, que seu preço nem sempre é razoável, sabemos tudo isso e não sabemos que a única tarefa é preservar-nos de qualquer destruição, sobreviver ao curso dos dias, mesmo inclusive sobrevivermos à felicidade. Hoje firmo mais perto a esperança: que se seja leve a terra que pisamos e que o próximo instante leve seja.

Carlos Marzal

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DISCIPLINA

O trabalho começa ao romper do dia. Mas nós começamos, um pouco antes do romper do dia, a reconhecer-nos nas pessoas que passam na rua. Ao descobrir os raros transeuntes, cada um sabe que está sozinho e que tem sono – perdido no seu próprio sonho, cada um sabe no entanto que com o dia abrirá os olhos. Quando a manhã chega, encontra-nos estupefactos a fixar o trabalho que agora começa. Mas já não estamos sozinhos e ninguém mais tem sono e pensamos com calma os pensamentos do dia até que o sorriso vem. Com o regresso do sol estamos todos convencidos. Mas às vezes um pensamento menos claro – um esgar – surpreende-nos inesperadamente e voltamos a olhar para tudo como antes do amanhecer. A cidade clara assiste aos trabalhos e aos esgares. Nada pode turvar a manhã. Tudo pode acontecer e basta levantar a cabeça do trabalho e olhar. Rapazes que se escaparam e que ainda não fazem nada passam na rua e alguns até correm. As árvores das avenidas dão muita sombra e só falta a erva entre as casas que assistem imóveis. São tantos os que à beira-rio se despem ao sol. A cidade permite-nos levantar a cabeça para pensar estas coisas, e sabe bem que em seguida a baixamos.

Cesare Pavese

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ÍTACA

Quando partires de regresso a Ítaca deves orar por uma viagem longa, plena de aventuras e de experiências. Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros, um Poseidon irado – não os temas, jamais encontrarás tais coisas no caminho, se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime teu corpo toca e o espírito te habita. Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros, Poseídon em fúria – nunca encontrarás, se não é na tua alma que os transportes ou ela os não erguer perante ti. Deves orar por uma viagem longa. Que sejam muitas as manhãs de Verão, quando, com que prazer, com que deleite, entrares em portos jamais antes vistos! Em colónias fenícias deverás deter-te para comprar mercadorias raras: coral e madrepérola, âmbar e marfim, e perfumes subtis de toda a espécie: compra desses perfumes quanto possas E vai ver as cidades do Egipto, para aprenderes com os que sabem muito. Terás sempre Ítaca no teu espírito, que lá chegar é o teu destino último. Mas não te apresses nunca na viagem. É melhor que ela dure muitos anos, que sejas velho já ao ancorar na ilha, rico do que foi teu pelo caminho, e sem esperar que Ítaca te dê riquezas. Ítaca deu-te essa viagem esplêndida. Sem Ítaca, não terias partido. Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te. Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.

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Sábio como és agora, senhor de tanta experiência, terás compreendido o sentido de Ítaca.

Constantino Cavafy

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SE

Se não puderes ser um pinheiro no topo da colina sê um arbusto no vale – mas sê o melhor arbusto na margem de um regato; Sê um ramo, se não puderes ser uma árvore. Se não puderes ser um ramo, sê um pouco de relva e dá alegria a um caminho; Se não puderes ser almíscar, sê então apenas uma tília mas a tília mais viva do lago. Não podemos ser todos capitães; temos de ser tripulação. Há alguma coisa para todos nós aqui. Há grandes obras e outras menores a realizar, E é a próxima, a tarefa que devemos empreender. Se não puderes ser uma estrada, sê apenas uma senda, Se não puderes ser sol, sê uma estrela; Não é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso mas sê melhor do que o que quer que sejas!

Douglas Malloch

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QUE LÁBIOS OS MEUS BEIJARAM…

Que lábios os meus beijaram e onde e porquê Não me recordo mais, e os braços nos quais Me surpreendia a aurora. Sei que chove lá fora Esta noite e fantasmas batem com a mão Na vidraça, como quem implora. E que uma dor silenciosa me invade o coração, Dos jovens que esqueci e que jamais voltarão À minha procura, com um grito pela noite fora. Como aquela árvore que ignora As aves que um dia lhe poisaram nos ramos Embora se sinta mais leve que outrora, Também eu não sei que jovens amei, Sei apenas que o verão cantou em mim e sei Que o verão não canta mais em mim agora.

Edna St. Vincent Millay

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BAIRRO LIVE

Meti o boné na gaiola saí com um pássaro na cabeça E então já não se faz continência perguntou o comandante Não já não se faz a continência respondeu o pássaro Ah bem desculpe julguei que se fazia disse o comandante Não há de quê toda a gente pode enganar-se disse o pássaro.

Jacques Prévert

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CASA DA MISERICÓRDIA

O pai fuzilado. Ou, como diz o juiz, executado. A mãe, a miséria e a fome, a instância que alguém lhe escreve à máquina: Saludo al vencedor, Segundo año Triunfal, Solicito a Vuecencia deixar os filhos nesta Casa da misericórdia. O frio do seu amanhã está numa instância. Os orfanatos e hospícios eram duros, mas ainda mais dura era a intempérie. A verdadeira caridade dá medo. É como a poesia: um bom poema, por mais belo que seja, tem de ser cruel. Não há mais nada. a poesia é agora a última casa da misericórdia.

Joan Margarit

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CANTIGA, PARTINDO-SE

Senhora, partem tão tristes meus olhos por vós, meu bem, que nunca tão tristes vistes outros nenhuns por ninguém. Tão tristes, tão saudosos, tão doentes da partida, tão cansados, tão chorosos, da morte mais desejosos cem mil vezes que da vida. Partem tão tristes, os tristes, tão fora de esperar bem, que nunca tão tristes vistes outros nenhuns por ninguém.

João Roiz de Castelo-Branco

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CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural. Um mundo em que tudo seja permitido, conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós. E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto o que vos interesse para viver. Tudo é possível, ainda quando lutemos, como devemos lutar, por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, ou mais que qualquer delas uma fiel dedicação à honra de estar vivo. Um dia sabereis que mais que a humanidade não tem conta o número dos que pensaram assim, amaram o seu semelhante no que ele tinha de único, de insólito, de livre, de diferente, e foram sacrificados, torturados, espancados, e entregues hipocritamente à secular justiça, para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.» Por serem fiéis a um deus, a um pensamento, a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas à fome irrespondível que lhes roía as entranhas, foram estripados, esfolados, queimados, gaseados, e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido, ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória. Às vezes, por serem de uma raça, outras por serem de urna classe, expiaram todos os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência de haver cometido. Mas também aconteceu e acontece que não foram mortos. Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer, aniquilando mansamente, delicadamente, por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus. Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror, foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha há mais de um século e que por violenta e injusta

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ofendeu o coração de um pintor chamado Goya, que tinha um coração muito grande, cheio de fúria e de amor. Mas isto nada é, meus filhos. Apenas um episódio, um episódio breve, nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis) de ferro e de suor e sangue e algum sémen a caminho do mundo que vos sonho. Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais que uma vida ou a alegria de tê-1a. É isto o que mais importa - essa alegria. Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo ou sofre ou morre para que um só de vós resista um pouco mais à morte que é de todos e virá. Que tudo isto sabereis serenamente, sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, e sobretudo sem desapego ou indiferença, ardentemente espero. Tanto sangue, tanta dor, tanta angústia, um dia - mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga não hão-de ser em vão. Confesso que muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos de opressão e crueldade, hesito por momentos e uma amargura me submerge inconsolável. Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam, quem ressuscita esses milhões, quem restitui não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado? Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes aquele instante que não viveram, aquele objecto que não fruíram, aquele gesto de amor, que fariam «amanhã». E por isso, o mesmo mundo que criemos nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa que não é nossa, que nos é cedida para a guardarmos respeitosamente em memória do sangue que nos corre nas veias, da nossa carne que foi outra, do amor que outros não amaram porque lho roubaram. Jorge de Sena

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PEDE-SE A UMA CRIANÇA: DESENHA UMA FLOR!

Pede-se a uma criança: Desenha uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém. Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu. Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais. Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: Uma flor! As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor! Contudo a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas, são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!

José de Almada Negreiros

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O POEMA

O poema é um exercício de dissidência, uma profissão de incredulidade na omnipotência do visível, do estável, do apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há poema verdadeiro que não torne o sujeito um foragido. O poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em campos nevados, por orlas intactas. Que outra verdade existe no mundo para lá daquela que não pertence a este mundo? O poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agitação da sua piedade, não a procure. O poema devolve o inexprimível. O poema não alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que o mundo repudia.

José Tolentino de Mendonça

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NO MUNDO QUIS UM TEMPO QUE SE ACHASSE

No mundo quis um tempo que se achasse O bem que por acerto ou sorte vinha; E, por exprimentar que dita tinha Quis que a Fortuna em mim se exprimentasse. Mas por que meu destino me mostrasse Que nem ter esperanças me convinha, Nunca nesta tão longa vida minha Cousa me deixou ver que desejasse. Mudando andei costume, terra e estado, Por ver se se mudava a sorte dura; A vida pus nas mãos de um leve lenho. Mas, segundo o que o Céu me tem mostrado, Já sei que deste meu buscar ventura Achado tenho já, que não a tenho.

Luís de Camões

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CÂNTICO DA HUMANIDADE

Hinos aos deuses, não. Os homens é que merecem Que se lhes cante a virtude. Bichos que lavram no chão, Actuam como parecem Sem um disfarce que os mude. Apenas se os deuses querem Ser homens, nós os cantemos. E à roga do mesmo carro, Com os aguilhões que nos ferem, Nós também lhes demonstremos Que são mortais e de barro.

Miguel Torga

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SÍSIFO

Recomeça... Se puderes, Sem angústia e sem pressa. E os passos que deres, Nesse caminho duro Do futuro, Dá-os em liberdade. Enquanto não alcances Não descanses. De nenhum fruto queiras só metade. E, nunca saciado, Vai colhendo Ilusões sucessivas no pomar. Sempre a sonhar E vendo, Acordado, O logro da aventura. És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura Onde, com lucidez, te reconheças.

Miguel Torga

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PALAVRAS FUNDAMENTAIS

Faz com que a tua vida seja sino que repique ou sulco onde floresça e frutifique a árvore luminosa da ideia. Alça a tua voz sobre a voz sem nome de todos os demais, e faz com que ao lado do poeta se veja o homem. Enche o teu espírito de lume; procura as eminências do cume e, se o esteio nodoso do teu báculo encontrar algum obstáculo ao teu intento, sacode a asa do atrevimento perante o atrevimento do obstáculo.

Nicolás Guillén

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A ESTRADA NÃO TRILHADA

Num bosque, em pleno Outono, a estrada bifurcou-se, mas, sendo um só, só um caminho eu tomaria. Assim, por longo tempo eu ali me detive, e um deles observei até um longe declive no qual, dobrando, desaparecia... Porém tomei o outro, igualmente viável, e tendo mesmo um atractivo especial, pois mais ramos possuía e talvez mais capim, embora, quanto a isso, o caminhar, no fim, os tivesse marcado por igual. E ambos, nessa manhã, jaziam recobertos de folhas que nenhum pisar enegrecera. O primeiro deixei, oh, para um outro dia! E, intuindo que um caminho outro caminho gera, duvidei se algum dia eu voltaria. Isto eu hei-de contar mais tarde, num suspiro, nalgum tempo ou lugar desta jornada extensa: a estrada divergiu naquele bosque – e eu segui pela que mais ínvia me pareceu, e foi o que fez toda a diferença.

Robert Frost

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SE

Se podes conservar o teu bom senso e a calma No mundo a delirar para quem o louco és tu... Se podes crer em ti com toda a força de alma Quando ninguém te crê...Se vais faminto e nu, Trilhando sem revolta um rumo solitário... Se à torva intolerância, à negra incompreensão, Tu podes responder subindo o teu calvário Com lágrimas de amor e bênçãos de perdão... Se podes dizer bem de quem te calunia... Se dás ternura em troca aos que te dão rancor (Mas sem a afectação de um santo que oficia Nem pretensões de sábio a dar lições de amor)... Se podes esperar sem fatigar a esperança... Sonhar, mas conservar-te acima do teu sonho... Fazer do pensamento um arco de aliança, Entre o clarão do inferno e a luz do céu risonho... Se podes encarar com indiferença igual O triunfo e a derrota, eternos impostores... Se podes ver o bem oculto em todo o mal E resignar sorrindo o amor dos teus amores... Se podes resistir à raiva e à vergonha De ver envenenar as frases que disseste E que um velhaco emprega eivadas de peçonha Com falsas intenções que tu jamais lhes deste... Se podes ver por terra as obras que fizeste, Vaiadas por malsins, desorientando o povo, E sem dizeres palavra, e sem um termo agreste, Voltares ao princípio, a construir de novo... Se puderes obrigar o coração e os músculos A renovar um esforço há muito vacilante,

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Quando no teu corpo, já afogado em crepúsculos, Só exista a vontade a comandar avante... Se vivendo entre o povo és virtuoso e nobre... Se vivendo entre os reis, conservas a humildade... Se inimigo ou amigo, o poderoso e o pobre São iguais para ti à luz da eternidade... Se quem conta contigo encontra mais que a conta... Se podes empregar os sessenta segundos Do minuto que passa em obra de tal monta Que o minuto se espraia em séculos fecundos... Então, óh ser sublime, o mundo inteiro é teu! Já dominaste os reis, os tempos, os espaços!... Mas, ainda para além, um novo sol rompeu, Abrindo o infinito ao rumo dos teus passos. Pairando numa esfera acima deste plano, Sem receares jamais que os erros te retomem, Quando já nada houver em ti que seja humano, alegra-te, meu filho, então serás um homem!...

Rudyard Kipling

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PROSA PARA A MINHA AMADA

Mesmo quando não te vejo, é nisto que penso: és tão bonita. Queria-to dizer, mas não consigo: há coisas que não sei dizer. Penso nelas e vejo-as muito claramente, mas não consigo dizê-las. A beleza tornou-te inaudita. Sorrio. Olho para a estrada mas a pensar em ti. O meu silêncio nomeia devagarinho a tua beleza. Invoco-te de uma forma delicada. Invoco cada detalhe, cada pormenor. Mas é da beleza por inteiro que o meu silêncio se ocupa. Silêncio e beleza e pensamento, ocupam-se por inteiro. Preenchem-se. Mesmo calado, penso em ti e consigo ver-te. Apesar de olhar para a frente, é para dentro que eu vejo. Poderias ficar infinitamente assim: tu. Até que um dia o esquecimento seja mais forte, eu vejo-te. Os olhos, os lábios, a boca, a testa, o nariz, as mãos, o cabelo, o pescoço, a pele. Tu. Tu com o teu sorriso. Até mesmo esse ar sério que fazes quando não olhas para mim. A maneira como fumas ou como olhas para a frente enquanto avançamos pela estrada. Tu. Eu. Nós. O mesmo instante. A juventude é o chão sob os teus pés. E eu sempre a pensar até quando não digo nada: és tão bonita. Mesmo quando não acontece nada. Até quando já não penso em ti.

Rui Machado

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OS TRÊS PRATOS

Quando o camponês descobriu que sua mulher o traiu, obrigou-a a preparar a mesa para três. E durante o resto da vida comeram contemplando, diante deles, o terceiro prato vazio.

Tonino Guerra

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A CABRA

Falei com uma cabra. Estava sozinha no prado, estava presa. Saciada de erva, molhada pela chuva, balia. Aquele monótono balido era irmão da minha dor. Eu respondi-lhe, a princípio por brincadeira, depois porque a dor é eterna, tem voz e não muda. Era esta voz que sentia gemer numa cabra solitária. Numa cabra de rosto semita sentia queixarem-se todos os outros males, todas as outras vidas.

Umberto Saba

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A LIÇÃO DE POESIA

Estamos sentados num banco todo branco Sob o busto de Lenau Abraçamo-nos E entre dois beijos falamos De poesia Falamos de poesia E entre dois versos abraçamo-nos O poeta olha para longe através de nós Através do banco branco Através do saibro da alameda Ele cala magnificamente Os seus belos lábios de bronze No jardim público de Verchatz Aprendi pouco a pouco O que é essencial num poema

Vasco Popa

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Ó CAPITÃO! MEU CAPITÃO!

Ó Capitão! meu Capitão! Finda é a temível jornada, Vencida cada tormenta, a busca foi laureada. O porto é ali, os sinos ouvi, exulta o povo inteiro, Com o olhar na quilha estanque do vaso ousado e austero. Mas ó coração, coração! O sangue mancha o navio, No convés, meu Capitão Vai caído, morto e frio. Ó Capitão! meu Capitão! Ergue-te ao dobre dos sinos; Por ti se agita o pendão e os clarins tocam teus hinos. Por ti buquês, guirlandas… Multidões as praias lotam, Teu nome é o que elas clamam; para ti os olhos voltam, Capitão, querido pai, Dormes no braço macio… É meu sonho que ao convés Vais caído, morto e frio. Ah! meu Capitão não fala, foi do lábio o sopro expulso, Meu calor meu pai não sente, já não tem vontade ou pulso. Da nau ancorada e ilesa, a jornada é concluída. E lá vem ela em triunfo da viagem antes temida. Povo, exulta! Sino, dobra! Mas meu passo é tão sombrio… No convés meu Capitão Vai caído, morto e frio.

Walt Whitman

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NÃO SÃO COMO O SOL…

Não são como o sol os olhos da minha amada; Mais rubro que os seus lábios é o coral: Os seus seios não são como a neve imaculada, E os seus cabelos negros são grossos como metal. Já vi rosas de damasco brancas e encarnadas, Mas nunca no seu rosto vi essas cores. Agradam-me muito mais outros odores, Que me agrada o hálito da minha amada. Não nego que embora goste de a escutar, Ao meu ouvido soa melhor uma canção. Reconheço que nunca vi uma deusa caminhar: Ela quando caminha pisa o chão. E no entanto considero mais rara a minha amada, Que tudo com que possa ser comparada.

William Shakespeare

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CONVERSA COM A PEDRA

Bato à porta da pedra. – Abre. Sou eu. Quero entrar dentro de ti, Olhar tudo ao meu redor, Respirar-te. – Vai-te embora – diz a pedra. Estou hermeticamente fechada. Mesmo feitas em pedaços estamos hermeticamente fechadas. Mesmo em areia desfeitas Não abrimos a ninguém. Bato à porta da pedra – Abre. Sou eu. Venho por pura curiosidade. A vida é a única ocasião para a satisfazer. Tencionava passar pelo teu palácio e depois visitar ainda a folha e a gota de água. Não tenho muito tempo para isto tudo. O meu ser mortal devia comover-te. – Sou de pedra – diz a pedra – impossível perturbar a minha seriedade. Vai-te daqui. Faltam-me os músculos do riso. Bato à porta da pedra – Abre. Sou eu. Ouvi dizer que há em ti grandes salas vazias, nunca vistas, belas em vão, mudas, sem o eco dos passos de ninguém. Reconhece que tu própria pouco sabes disso. – Grandes salas e vazias – diz a pedra – só que lá não há lugar. Belas, talvez, mas de beleza inacessível aos teus pobres sentidos. Poderás reconhecer-me, mas nunca me conhecerás.

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Em toda a superfície me volto para ti, Mas o meu interior volta-te as costas.

Bato à porta da pedra. – Abre. Sou eu. Não procuro em ti eterno asilo. Não me sinto infeliz. Não sou um sem-abrigo. O meu mundo é digno de regresso. Hei-de entrar e sair de mãos vazias. E como prova real de ter estado, não apresentarei senão palavras a que ninguém dará crédito. – Não entras – diz a pedra. Falta-te sentido de participação. E nenhum outro sentido pode substituí-lo. Nem um olhar omnividente te servirá de nada sem esse sentido. Não entras. Em ti esse sentido é vaga intenção. Vago é o seu germe, a sua concepção. Bato à porta da pedra. – Abre. Sou eu. Não posso esperar dois mil séculos para me recolher ao teu telhado. – Se não acreditas em mim – diz a pedra – vai ter com a folha, dir-te-á o mesmo. Com a gota de água e o mesmo te dirá. Pergunta por fim a um cabelo da tua própria cabeça. Estou prestes a rir às gargalhadas De rir como a minha natureza me impede de rir. Bato à porta da pedra. – Abre. Sou eu. – Não tenho porta – diz a pedra.

Wislawa Szymborska

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QUE PENA, ÉRAMOS UMA INVENÇÃO TÃO BOA

Eles amputaram As tuas coxas das minhas ancas. Tanto quanto sei São todos cirurgiões. Todos eles. Eles desmantelaram-nos Um ao outro. Tanto quanto sei São todos engenheiros. Todos eles. Que pena. Éramos uma invenção Tão boa e amável. Um aeroplano feito de um homem e de uma mulher. Com asas e tudo. Pairávamos ligeiramente por cima da terra. Até voávamos um pouco.

Yehuda Amichai

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