Medeia Magazine 21 - Janeiro e Fevereiro 2016

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OS OITO ODIADOS

O regresso de Quentin Tarantino

BENOÎT JACQUOT EM ENTREVISTA A propósito de O Diário de Uma Criada de Quarto

CAROL

Todd Haynes adapta o romance de Patricia Highsmith

JOGO DE DAMAS

Conversa entre a realizadora Patrícia Sequeira e a argumentista Filipa Leal

ANDREI TARKOVSKY

A obra integral do realizador chega aos cinemas Medeia em Fevereiro JANEIRO | FEVEREIRO 2016 1 JANEIRO | FEVEREIRO 2016

Textos de Francisco Ferreira, Karin Badt, Inês Lourenço, Joana Amaral Dias, Nuno Galopim e Serge Daney


EDITORIAL “No amanhã” Entre um e outro ano, tempo de balanço, tempo de recomeço. No balanço, poderíamos salientar mais de uma centena de estreias, as sessões especiais, os clássicos em cópias restauradas, as conversas com os realizadores, os actores, portugueses e estrangeiros, os muitos amantes do cinema que passaram pelas nossas salas e connosco viram e discutiram os filmes. As exposições, as sessões de leitura, a poesia. Com o cinema sempre presente. No ano que agora começa, o nosso empenho será fazer ainda mais e melhor. Unidos nesta enorme paixão pelo cinema, pelos filmes e a magia da sala escura. Um agradecimento especial para si, espectador/a das nossas salas, uma “imensa minoria” que queremos cada vez maior, e que justifica o nosso trabalho. Um óptimo 2016. Continuamos a contar consigo. As Nossas Salas: Cinema Monumental (Lisboa) Espaço Nimas (Lisboa) Teatro Municipal Campo Alegre (Porto) Auditório Charlot (Setúbal) Theatro Circo (Braga) Teatro Académico de Gil Vicente (Coimbra) Centro de Artes e Espectáculos (Figueira da Foz)

Programação sujeita a alterações de última hora. Confirme sempre em www.medeiafilmes.com Equipa Director: Paulo Branco Coordenação Editorial: António Costa Colaboração: Benoit Jacquot, Chen Gatete, Diana Cipriano Fátima Castro Silva, Filipa Leal Francisco Ferreira, Inês Lourenço Joana Amaral Dias, Karin Badt Nuno Galopim, Patrícia Sequeira Renata Curado, Serge Daney Design: André Carvalho e Catarina Sampaio Capa: Os Oito Odiados Com o apoio

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RUMO À OUTRA MARGEM KISHIBE NO TABI

DE KIYOSHI KUROSAWA ESTREIA 7 JAN

EXCLU

CINEMSIVO AS M

EDEIA

Dur: 128 min

COM ERI FUKATSU, TADANOBU ASANO, YÛ AOI, AKIRA EMOTO

Certamente que o realizador Kiyoshi Kurosawa, uma das grandes figuras do cinema japonês contemporâneo, não conhecerá o belíssimo poema Farewell Happy Fields, de Manuel António Pina (1992), mas ao vermos Rumo à Outra Margem (Cannes 2015, Prémio Melhor Realização da Secção Un Certain Regard), os versos deste poema ecoam em nós (e muitos outros do poeta, aliás): “Vamos então os dois outra vez / ao longo de certas ruas sombrias e de certos dias / e sorris e falas alto; / está calor mas tens as mãos frias, / compramos coisas, visitamos / talvez algum último amigo / sem sabermos que eu já não estou vivo.” O filme de Kurosawa é, como vários dos seus filmes anteriores, embora de forma bastante distinta, um filme de fantasmas. Expliquemo-nos: Mizouki (Eri Fukatsu), uma jovem professora de piano, entra em casa depois de um árduo dia de trabalho. Prepara o jantar e, subitamente, vemos surgir, no vão da porta, um homem, Yusuke (Tadanobu Asano), o seu marido, que morrera três anos antes. Um fantasma, portanto, mas um fantasma de uma “beleza solar” (Cahiers du Cinéma), vestido com as suas roupas, que fala, caminha, senta-se, come, suspira, abraça a mulher… Os japoneses chamam (ainda os Cahiers) “evaporação” a esta “fuga”. Ysuke propõe então à mulher fazer com ele uma viagem de despedida (ainda Pina, sobre o luto: “Eu sei, é preciso esquecer, / desenterrar os nossos mortos e voltar a enterrá-los”), mas que é, ao mesmo tempo, também uma espécie de viagem iniciática, ou mesmo nova lua-de-mel, por montanhas e aldeias do Japão, na qual Mizouki conhecerá aspectos e pessoas na vida do seu marido que até então desconhecera. Filme de fantasmas, Rumo à Outra Margem será também filme que ruma às origens do cinema, esse “reino das sombras”, e ao “fantascópio” de Robertson, antecessor do “cinematógrafo”. Que dizia (e o filme é também isto): “Para os primeiros filhos dos homens esta era ao princípio uma opinião sagrada e religiosa, o facto de o espírito, o sopro, não perecer com eles; que esta substância ligeira, aérea, de nós próprios adorava aproximar-se dos lugares que tinha amado. Esta ideia consoladora enxugava as lágrimas de uma esposa, de um filho infeliz, e foi por amizade que a primeira sombra nos surgiu.” Entre a realidade e o inconsciente, a presença e a ausência, Rumo à outra Margem é um filme de maturidade, para muitas das publicações de cinema um dos melhores do ano, que toca os nossos sentidos, tão perto que está de nós. Prémios e Festivais: Festival de Cannes - Un Certain Regard, Prémio Melhor Realização


ESTREIAS CINEMA

CORAÇÃO DE CÃO HEART OF A DOG

DE LAURIE

ANDERSON

EM EXIBIÇÃO

Dur: 75 min

divaga sobre as falhas na nossa capacidade de moldar o significado do mundo. E, no entanto, o que torna o filme tão envolvente é o poder das suas histórias. As suas histórias inspiram com a sua confidencialidade. Todas tocam subtilmente os temas da perda e do amor, como uma peça de música jazz a improvisar na mesma melodia.

“Sentir a tristeza sem estarmos tristes”, afirma Laurie Anderson em staccato no seu novo filme Coração de Cão. “Este é um ditado budista antigo, muito difícil de pôr em prática. Como é que é possível sentir-se triste sem estar triste?” O seu filme autobiográfico mostra-nos como. Uma compilação de histórias sobre a perda – da sua cadela, da sua mãe, da segurança em Nova Iorque e, mesmo sem dizê-lo, do seu marido Lou Reed – Coração de Cão expressa uma alegria na vida tal como ela é. Tal como os famosos concertos de Anderson nos anos 70 e 80, o seu filme é uma colagem de texto, imagem e som, do passado ao presente, filmado em câmara lenta, com still-frames e jump-cuts, a um ritmo staccato. Ao longo do filme, Anderson usa filtros sobre as suas imagens: chuva, cores, água rumorejante, gotas de sangue, vidro rachado.

“Este é um ditado budista antigo, muito difícil de pôr em prática. Como é que é possível sentir-se triste sem estar triste?” Laurie Anderson Coloca também questões filosóficas, de forma intermitente, na sua voz curiosa e cheia de alma, tais como: “Para que servem os dias? Para nos acordar e colocar-nos entre as noites sem fim.” A sua pergunta mais persistente é se a linguagem consegue contar adequadamente as nossas histórias. Citando vários pensadores, tais como David Foster Wallace, Wittgenstein e Kierkegaard – a realizadora

A primeira história e também a mais longa é a da relação de Anderson com a sua cadela Lolabelle, desde o momento em que a artista a “deu à luz” num sonho até ao momento da sua morte. É uma ode ao amor incondicional: que irá libertar-nos da dor da morte. Na segunda metade do filme, a realizadora analisa histórias de infância, incluindo um acidente num mergulho. O centro destas memórias de infância: a relação desapegada da artista com a sua mãe. Ficamos a saber que Anderson não se sentia amada pela sua mãe, nem a amava.

Pela conclusão do filme, torna-se claro que, embora Coração de Cão pareça ser uma colagem aleatória de meditações sobre perda, tem um arco narrativo central (e profundamente bem sucedido): a história de Laurie Anderson a nascer como artista. O filme começa e termina com uma alusão à sua mãe a “agarrar-se à linguagem” como modus operandi até ao momento da sua morte, em que toda a linguagem se “dispersa”. Neste trabalho – tal como ao longo da sua carreira – Laurie tem criado a sua própria linguagem. A sua história vai desde dar à luz uma “cadela” no seu sonho até dar à luz Coração de Cão, o filme em si mesmo. Karin Badt [Trad. Renata Curado]

Prémios e Festivais: Festival de Veneza – Selecção Oficial, Em Competição Lisbon & Estoril Film Festival – Selecção Oficial Independent Spirit Awards – Nomeação: Melhor Documentário

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ESTREIAS CINEMA

DIÁRIO DE UMA CRIADA DE QUARTO JOURNAL D’UNE FEMME DE CHAMBRE

DE BENOÎT

JACQUOT

COM LÉA SEYDOUX, VINCENT LINDON, CLOTILDE MOLLET

EM EXIBIÇÃO

Dur: 96 min

MM - Célestine, a criada de quarto, é uma "rapariga solitária" (para usar o título de um filme seu, o que também se pode aplicar a outras heroínas na sua obra), insubmissa e ao mesmo tempo apaixonada, por vezes ambígua?

ENTREVISTA A BENOÎT JACQUOT Medeia Magazine - Já realizou filmes a partir de Dostoievski, Henry James ou Marivaux. O seu último filme é Diário de uma Criada de Quarto, a partir do romance de Octave Mirbeau, que Renoir e Buñuel já tinham também adaptado. Qual foi o desafio para si ao adaptar agora esta obra? Benoît Jacquot - O que me interessou foi, por um lado, que dois grandes cineastas que muito admiro tivessem, cada um deles, feito um filme a partir desse livro, e que os dois filmes fossem tão diferentes um do outro. E pensei que eu próprio poderia fazer, a partir do mesmo livro, um terceiro filme, muito diferente, e que seria tão singular para mim como tinham sido os filmes de Buñuel e Renoir para eles. Por outro lado, mesmo se não tivesse havido aqueles filmes destes dois grandes cineastas, o livro interessava-me imenso naquilo que diz respeito à situação histórico-política actual em França, que em vários aspectos é muito similar, e recorda aquele momento que foi o fim do século XIX e início de século XX, e especificamente a altura do caso Dreyfus, que representa não só para mim mas para muitos outros, o início do antissemitismo, do racismo contemporâneo. MM – A escolha de Léa Seydoux e Vincent Lindon, com os quais já trabalhara em filmes anteriores, foi fundamental para chegar àquilo que queria para este filme? BJ - Sim. É verdade que são dois actores com quem já fiz vários filmes, que conheço ambos muito intimamente e a cada filme que faço, a ideia de que eles possam ter um papel surge-me como um reflexo. Depois, mesmo que não sejam eles forçosamente, tanto um como o outro estão sempre presentes. Neste caso, quando pensei em fazer O Diário de uma Criada de Quarto, quando o imaginei, vi-o logo com a Léa Seydoux. O outro papel, o masculino, é menos central no filme, que é, na verdade, quase por inteiro construído à volta da personagem feminina e o facto é que o primeiro nome, o primeiro rosto, a primeira pessoa, a actriz em que pensei foi Léa Seydoux. 4

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BJ - É de todas as formas uma personagem complexa, dividida, contraditória, que poderia tão bem ser isto e aquilo e hesita, ela própria, entre isto e aquilo. E nessa perspectiva, há certamente na personagem ligações com outras, de outros filmes meus, com a mesma actriz ou com outras. Mas tento sempre fazer os meus filmes, todos eles, como se fossem o primeiro e o último; não posso, portanto, comentar as minhas próprias escolhas. MM – No Lisbon & Estoril Film Festival escolheu mostrar e comentar o filme de Joseph Losey The Gipsy and the Gentleman antes da projecção de Diário de uma Criada de Quarto. Qual é a relação entre os dois? Como é que a sua cinefilia pode insinuar-se na sua obra? BJ - Joseph Losey é um cineasta que foi descoberto em França mais ou menos na altura em que comecei a querer fazer cinema. E talvez por isso seja um cineasta cujo estilo e mundividência desde cedo me marcaram. E acontece que Losey sempre foi extremamente atraído, interessado, solicitado por tudo o que fossem relações de servidão e dominação, fossem elas de classe ou sexuais, e muitas vezes as duas ao mesmo tempo. No caso de Diário de uma Criada de Quarto, em que a própria matéria do filme é constituída por esse tipo de conflitos, ocorreu-me pensar em Losey, e especialmente nesse filme cujo argumento é inteiramente feito desse tipo de relações. Há ainda outra coisa de que gosto muito nesse filme, e que tem que ver com o que tentei fazer no Diário de uma Criada de Quarto: é o paradoxo de uma mise-en-scène extremamente refinada, elegante até, para expor horrores, que são violentos; e isso interessa-me muito em Losey, nesse filme em particular. [Transcrição e trad. Chen Gatete]

Prémios e Festivais: Festival de Berlim – Selecção Oficial, Em Competição Lisbon & Estoril Film Festival – Selecção Oficial


ESTREIAS CINEMA

JOGO DE DAMAS JOGO DE DAMAS

DE PATRÍCIA

SEQUEIRA

ESTREIA 28 JAN

Dur: 89 min

COM ANA NAVE, ANA PADRÃO, FÁTIMA BELO, MARIA JOÃO LUÍS, RITA BLANCO

Depois do velório de Marta, as suas cinco melhores amigas vão passar a noite no turismo rural que ela não chegou a inaugurar. Essa longa noite é uma viagem labiríntica pelos caminhos da amizade, na qual cada uma se revela como se fosse o último dia. Na véspera do enterro, fala-se da vida e de uma amizade que sobreviveu a tudo. Mas será esta amizade capaz de sobreviver à morte? O Enquadramento da Ausência

Jogo de Damas é a primeira longa-metragem da realizadora Patrícia Sequeira. A realizadora e a guionista, Filipa Leal, conversam connosco. Filipa Leal Os poetas, já se sabe, não servem para nada… Patrícia Sequeira Eu descobri exactamente que é nas coisas que não servem para nada que reside o maior prazer. Filipa Leal Tenho para mim que o escritor é um actor frustrado, e que de certa forma o texto somos nós a entrar em cena, e por isso, escrever palavras para serem ditas por actores é, de certa forma, juntar os dois lados de mim.

Patrícia Sequeira Um actor é um criador e não deve ser apenas um executante. Nesse sentido, agarrei em cinco actrizes que admiro e trouxe-as comigo para um processo de criação. E acho que aí, para já, o filme passa a ser nosso e tem esta motivação de não serem apenas executantes, trazerem a sua personagem, trazerem os seus contributos, e trazerem alguma verdade. O caminho também tem de ser interessante para chegar a um fim e eu quis valorizar este caminho. Filipa Leal Há uma frase da Clarice Lispector, que é uma referência para mim, em que ela diz qualquer coisa como “e escreverei sem estilo, isso é o máximo que um escritor pode desejar”. Para mim, o processo foi 50% de edição e 50% de criação. Este é um filme em que as actrizes são também autoras; em que a realizadora é também autora, e portanto o que me foi pedido foi que partisse de um material que foi reunido em cinco dias de improvisação com as actrizes e com a Patrícia, e de uma estrutura previamente definida, e que daí construísse um guião e desenvolvesse alguns temas centrais do filme.

Poderá ser aparentemente simples este enredo mas é extremamente complexo, porque joga com tudo o que são as peças da nossa vida real. Envelhecer, ou a hipótese de morrermos, ou a hipótese de nos afastarmos de nós e dos outros, está sempre em jogo.

Patrícia Sequeira Há aqui uma necessidade de fazer uma espécie de enquadramento da ausência. Eu tentei filmar, de alguma maneira, o vazio que se sente com uma perda. É como se, nalguns quadros, nós estivéssemos a enquadrar a amiga e a Marta, mas simplesmente a Marta não está lá, tem um espaço vazio. Isso reforça a ideia da ausência e, de alguma maneira, tentei que isso fosse uma presença, que essa ausência fosse uma presença no filme.

Prémios e Festivais: Lisbon & Estoril Film Festival – Selecção Oficial

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ESTREIAS CINEMA

MUITO AMADAS MUCH LOVED

DE NABIL

AYOUCH

ESTREIA 18 FEV

EXCLU

CINEMSIVO AS M

EDEIA

Dur: 108 min

COM LOUBNA ABIDAR, HALIMA KARAOUANE, ASMAA LAZRAK, SARA EL MHAMDI ELAALOUI

Muito Amadas, a sexta longa-metragem do cineasta Nabil Ayouch, uma das vozes mais expressivas do recente cinema marroquino, tem a câmara à altura de Noha, Randa, Soukaina e Hlima, mulheres de Marraquexe que ganham a vida recorrendo à prostituição. Não é abusivo encontrar aqui um retrato da condição da mulher árabe. Apesar de banido no seu território de origem, este tornou-se o filme de maior projecção internacional do autor de Os Cavalos de Deus, My Land e Ali Zaoua, Prince of the Street. Porque é que fez este filme? Porque precisava, antes de mais, de exprimir um ponto de vista sobre estas mulheres. Sentiu que Marrocos precisava destas imagens? Não me cabe a mim responder a essa pergunta, seria pretensioso da minha parte. Mas qualquer sociedade precisa de se olhar ao espelho. Como é que escolheu as actrizes do filme e porque decidiu trabalhar com amadores? De facto, três dos quatro papéis principais são interpretados por actrizes que aparecem pela primeira vez em frente à câmara. Loubna Abidar, que faz de Noha, teve pequenas experiências de cinema. É ela quem diz, aliás, que foi este o seu primeiro papel. Parti à procura de uma verdade a partir da experiência das actrizes, das suas raízes, dos bairros populares em que cresceram. Elas estão habituadas a frequentar aquele meio, falaram com muitas prostitutas, vizinhas, amigas, viram como elas falam, como andam, como pensam e quando começámos a trabalhar já traziam essa bagagem com elas. Gostei do que me propuseram e sobretudo das histórias pessoais que me contaram. Precisou de conhecer com detalhe o mundo da prostituição para fazer este filme? Sim. Passei por uma fase de investigação, de entrevistas. O mais importante aqui foi a escuta. Durou um ano e meio. Encontrei entre 200 a 300 prostitutas e falei com pessoas que gravitam nesse meio: taxistas, empregados

de bar, travestis... Pessoas que vemos no filme, de resto. […] A fase de pesquisa e de entrevistas alimentou-me, aquele meio, para mim, tornou-se mais claro e íntimo e permitiu-me também construir o NABIL AYOUCH filme como um puzzle de histórias. É neste puzzle que entra a ficção. O olhar que projecto sobre aquelas mulheres é um olhar de ficção sobre quatro personagens ficcionais, mesmo se cada uma delas é constituída por muitos pedaços de pessoas e de histórias que encontrei.

Esperava a proibição de Much Loved pelas autoridades marroquinas, e logo agora uma fase em que o país anda a saudar a vitalidade do seu cinema recente? Esperava que houvesse um debate duro, difícil, e uma confrontação forte, porque o assunto é sensível. Imaginava-me a ter que defender o meu filme com muita garra para que ele pudesse ser exibido na sua integralidade. Mas não esperava a interdição sumária, sem sequer ter sido mostrado e registado. O debate foi cortado. E em França? Estreou-se a 16 de Setembro nas salas após um periodo de ante-estreias por todo o hexágono. E é curioso: como há no país uma fortíssima comunidade magrebina, só agora o filme começa a ser discutido, sobretudo nas redes sociais, em ecos que começam a chegar a Marrocos. E muita gente lamenta: “fizemos parte daqueles que condenaram o filme sem o ter visto porque acreditámos no que nos foi dito. Mas mudámos completamente de ideias...” [Excerto de uma entrevista de Francisco Ferreira a Nabil Ayouch, em Toronto]

Prémios e Festivais: Festival de Cannes – Quinzena dos Realizadores Lisbon & Estoril Film Festival – Selecção Oficial

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ESTREIAS CINEMA

ANOMALISA ANOMALISA

ESTREIA 21 JAN

Dur: 90 min

DE DUKE JOHNSON, CHARLIE KAUFMAN COM VOZES DE DAVID THEWLIS, JENNIFER JASON LEIGH, TOM NOONAN

Homus-Cliente Um homem voa para uma cidade banal, hospeda-se num hotel banal e comete mais uma série de banalidades como pedir room service, ir à casa de banho e telefonar à família. A sua vida, representada no grande ecrã por um fantoche, é tão banal que até dói. Nada se destaca, a ponto de a voz de todas as outras personagens – à excepção da de uma mulher anormal – ser a mesma como se o mundo inteiro fosse uma mesmice, ou seja, tivesse sido canalizado para uma única pessoa estupidamente aborrecida. O humor é mordaz e este homem é, nada mais nada menos, do que um escritor de best sellers e um orador motivacional na excitante área das televendas. Esta monotonia bocejante da vida pós-moderna (ou será pós-humana?) torna-se particularmente angustiante porque interpela o espectador sobre a sua própria solidão e isolamento. Quando o protagonista compra uma boneca insuflável dá-se o fantoche-encontra-boneca e é inevitável pensar quantos dos nossos encontros serão assim.

QUARTO

Aliás, neste charco de águas paradas, o amor é um desvio do sistema que importa corrigir. O nosso fantoche discursa para a sua plateia de fãs dizendo que “nunca nos devemos esquecer que o cliente é um indivíduo como eu ou você”. Mas o que Anomalisa grita o tempo inteiro é que, agora, todos os indivíduos são clientes como nós. Arrepia. Joana Amaral Dias

Prémios e Festivais: Festival de Veneza – Grande Prémio do Júri Lisbon & Estoril Film Festival – Selecção Oficial Golden Globes – Nomeado para Melhor Filme de Animação

Independent Spirit Awards – Nomeado para Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Argumento e Melhor Actriz Secundária

ESTREIA 11 FEV

ROOM

DE LENNY ABRAHAMSON

Dur: 118 min

COM BRIE LARSON, JACOB TREMBLAY, SEAN BRIDGERS

No novo filme de Lenny Abrahamson, destaque para a interpretação de Brie Larson, uma mãe em cativeiro que faz os possíveis para proteger o seu filho. Entre quatro paredes, com uma cama e pouco mais. É assim que se encontram Ma (Brie Larson) e o seu filho Jack (Jacob Tremblay). Os dois vivem em cativeiro, ela há sete anos, e ele há cinco, desde que nasceu – Jack nunca conheceu outro mundo para além daquele quarto. Este cativeiro é o ponto de partida de Quarto, até ao momento em que Ma e Jack conseguem escapar, e o filme parte para a exploração de outros temas: em vez de se focar na relação entre vítima e raptor, o que importa aqui é o que se passa após o cativeiro, a relação entre mãe e filho e os efeitos desta clausura a longo termo. Cá fora, o mundo que Ma e Jack encontram não corresponde ao que Ma se lembrava. Se para Jack a construção de um novo mundo exterior, onde absorve tudo, é mais simples, para Ma não é tão fácil assim. A representação do pós-cativeiro e a reintegração das personagens no mundo cá fora não é tão habitual. Por isso, Quarto subverte as expectativas, e torna-se

também um retrato poderoso do stress pós-traumático. Quarto é baseado no romance homónimo da escritora Emma Donoghue, que assina também o argumento do filme. Em entrevista à revista Time, a escritora afirma que esta história é, acima de tudo, sobre “o poder extraordinário do amor entre mãe e filho”. Pela sua interpretação em Quarto, Brie Larson está nomeada para os Golden Globes como Melhor Actriz e também para os Screen Actors Guild Awards, na mesma categoria. Tendo sido muito elogiada pela crítica, apresenta-se assim como candidata ao Oscar para Melhor Actriz. Renata Curado Prémios e Festivais: Festival de Toronto – Prémio do Público London Film Festival – Em Competição Golden Globes: Nomeado para Melhor Filme, Melhor Actriz e Melhor Argumento Lisbon & Estoril Film Festival – Em Competição

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ESTREIAS CINEMA

TARKOVSKY, A MORTE NA ALMA

FEVEREIRO DE 2016 NO ESPAÇO NIMAS E TM CAMPO ALEGRE

ANDREI TARKOVSKY

Andrei Tarkovsky nasceu em 1932 “numa pequena aldeia nas margens do Volga”. Tem trinta anos quando realiza A Infância de Ivan, que não passa despercebido (Leão de Ouro em Veneza em 1962). De facto, Tarkovsky – com apenas oito filmes no seu activo – não será nunca um cineasta desconhecido. Nem no seu país nem fora dele. Não será também um “dissidente”. Simplesmente, como Bresson (que admira e que o admira), não transigirá nunca. A criação, para ele, é coisa demasiado séria para não ser individual, absolutamente. Ao longo dos primeiros trinta anos (o pai, Arseni, poeta, separase da mãe de Andrei quando este tem três anos), Tarkovsky estuda música, depois pintura, árabe, geologia e cinema (na VGIK1, sob a direcção de Romm2). Em 1959, 8

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realiza uma curta-metragem (Hoje não Haverá Saída Livre) e em 1960 o seu filme de fim de curso (O Rolo Compressor e o Violino). É com o seu amigo e coargumentista Andrei Mikhalkov-Konchalovski que realiza A Infância de Ivan. De imediato, gera-se um mal-entendido. Este filme de guerra muito violento, cujo herói é uma criança de doze anos, parece aderir ao ambiente do “degelo”3, mas Ivan é já um mutante, tipicamente tarkovskyano. Em 1966, com o célebre Andrei Roublev, as contrariedades irão realmente começar. Este fresco ambicioso (cujo tema é o lugar do artista no mundo) incomoda

as autoridades soviéticas, que tudo farão para que seja visto o menos possível no estrangeiro (o filme será exibido in extremis no Festival de Cannes, mas sem a fórmula ritual “a URSS apresenta”). O filme histórico é sem dúvida um género tipicamente soviético, mas quando o herói que o protagoniza é um homem só, um artista apanhado na tormenta da História, as autoridades desaprovam. A desaprovação será menor com Solaris (1972), filme de ficção científica, também muito ambicioso, pensado como uma resposta ao 2001 de Kubrick, mas será ainda maior com O Espelho (1974), filme francamente autobiográfico


ESTREIAS CINEMA e onírico que vale a Tarkovsky a pior das críticas, a de formalismo, e mesmo de elitismo. Stalker (1979) será o seu último filme produzido na URSS (exibido como “filme surpresa” em Cannes). Apesar desse jogo que jogou durante muito tempo, Tarkovsky (que não ansiava exilar-se) conseguiu criar uma “obra” (que os críticos ocidentais seguiam atentamente) que se lhe consentia criar, na condição de ser pouco difundida. Lobo solitário mesmo no seu país, Tarkovsky “só à sua arte prestou contas”, durante o maior tempo possível. E isso apesar das mesquinhezes, dos Bondarchouk4 e de todos os que tinham por missão torná-la tão pouco visível quanto possível. Até ao dia em que o próprio Tarkovsky sentiu necessidade de se aproximar geograficamente daqueles que, no exterior, o consideravam um cineasta de primeira grandeza. Em 1983, filma em Itália Nostalgia, “viagem de um intelectual russo em Itália”, e renuncia a regressar à URSS. É na Suécia que filmará, já doente, o seu último filme, dedicado ao filho, O Sacrifício (1985). Ao contrário do seu ex-cúmplice Konchalovski, Tarkovsky não era dos que se adaptariam facilmente ao Ocidente. Por um lado, porque sempre visou mais “universal”, por outro porque, como bom eslavófilo, não tinha senão palavras duras para a “miséria espiritual” que via tanto a Oeste como a Este. Esclareceu essa questão em numerosas entrevistas, colocando invariavelmente a fasquia “muito alta”, mais alta, em todo o caso, que todos os discursos recuperadores que queriam fazer dele um herói. Serge Daney, La Maison cinéma et le monde, 2012

[Trad. e notas: Fátima Castro Silva]

Em 2016 a Leopardo Filmes e a Medeia Filmes levarão a cabo uma importante e extensa operação que percorre um século do cinema russo, uma das mais importantes e influentes cinematografias na história do cinema. Começamos, em Fevereiro, com a obra integral de um dos seus maiores expoentes na segunda metade do século XX, Andrei Tarkovsky, de que lhe damos conta nestas páginas. Continuaremos, depois, partindo do “marco inaugural” das vanguardas dos anos 20, um percurso pelas obras maiores, muitas delas restauradas, de Eisenstein, Vertov, Dovjenko, Romm, Khutsiev, Shepitko, Klimov, entre outros, até ao último dos grandes mestres, Sokurov, de quem estrearemos, Francofonia.

O ROLO COMPRESSOR E O VIOLINO 1961 THE STEAMROLLER AND THE VIOLIN

A INFÂNCIA DE IVAN 1962 IVAN'S CHILDHOOD

ANDREY RUBLEV 1966 ANDREY RUBLEV

SOLARYS 1972 SOLARYS

O ESPELHO 1974

THE MIRROR

STALKER 1979 STALKER

NOSTALGIA 1983 NOSTALGIA

O SACRIFÍCIO 1986 SACRIFICE

1

Universidade Estatal Russa de Cinematografia, a mais antiga escola de cinema do mundo, fundada em 1919 em Moscovo.

2

Mikhail Romm, realizador soviético e professor na VGIK, influenciou uma série de futuros realizadores, entre os quais Tarkovsky.

3

Período da história da URSS, após a morte de Estaline, entre 1953 e 1964, marcado pelas políticas de “desestalinização”, aumento da liberdade de expressão e “coexistência pacífica” com o Ocidente, implementadas por Nikita Khrushchev.

4

Serguei Bondarchouk, realizador soviético, sobretudo conhecido por Guerra e Paz (1967), a partir de Tolstoi, filme com 7 horas de duração e o mais caro jamais realizado na URSS, largamente financiado e apoiado pelo governo soviético.

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ESTREIAS CINEMA

CAROL CAROL

DE TODD

ESTREIA 4 FEV

HAYNES

Dur: 118 min

COM CATE BLANCHETT, ROONEY MARA, SARAH PAULSON, KYLE CHANDLER

Todd Haynes regressa com uma deslumbrante adaptação do romance O Preço do Sal, de Patricia Highsmith, num filme protagonizado por Cate Blanchett e Rooney Mara.

“O romance de um amor que a sociedade proíbe.” Foi a frase usada para vender O Preço do Sal, de Patricia Highsmith, aquando da edição de 1953. Um romance entre duas mulheres com idades, estatutos e experiências de vida completamente diferentes e as consequências que enfrentam devido ao que sentem e por agirem de acordo com esta paixão. O livro, concebido num estado febril, inspirou-se num breve encontro entre a autora e uma elegante mulher mais velha que uma vez atendeu quando trabalhava numa loja em Manhattan. Curiosamente, o filme Breve Encontro de David Lean foi uma das grandes inspirações para a estrutura narrativa da adaptação de Todd Haynes, que capta tanto a intimidade como a ilicitude da escrita de Highsmith. Começamos por ver um encontro entre duas pessoas, em flashback descobrimos o que acontecera até esse momento, voltando no fim a esses instantes com um entendimento diferente daquilo que está em jogo. “Em Carol, quando voltamos à conversa do início, os estatutos da relação mudaram. Therese (Rooney Mara) – uma jovem vulnerável que se apaixonou por Carol (Cate Blanchett) – foi magoada e desenvolveu defesas e limites. Mudou o seu aspecto e cresceu”, refere Todd Haynes em entrevista à revista Film Comment. A mudança a que alude na personagem de Therese deve-se a esse amor vivido com Carol, às emoções que experimentou pela primeira vez, desde a felicidade do primeiro toque ao desespero do coração partido. As mutações na personagem interpretada por Mara, de jovem vulnerável a mulher firme, são acentuadas pelo sumptuoso guarda-roupa de Sandy Powell, colaboradora habitual de Haynes. Em Carol, os figurinos “amplificam a

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faísca entre as protagonistas, adicionando uma extremidade angular à dinâmica interpessoal em evolução entre elas. Os subtis códigos do vestuário são tão centrais que nos momentos de nudez não é a presença da pele que assombra, mas sim a ausência da roupa”, afirma Mark Kermode, no jornal The Guardian. A década de 1950, tão central ao filme e às questões sociais que aborda, é familiar a Todd Haynes. Já tinha assinado Longe do Paraíso, uma homenagem aos melodramas de Douglas Sirk, que abordava o tema da proibição numa sociedade fechada a tudo o que diferia do comportamento padrão. No entanto, enquanto o filme de 2002 recriava os imaculados subúrbios do Connecticut e uma existência (aparentemente) idílica, Carol transporta-nos para a Nova Iorque do pós-guerra, cheia de angústia e sujidade. A fotografia em 16mm de Ed Lachman recria na perfeição este ambiente, pontuado de alguma luminosidade nos momentos entre Therese e Carol. O seu amor, sob a direcção magistral de Todd Haynes, é contado através de olhares, gestos e silêncios, e cada palavra ganha um valor acrescentado. As interpretações de Cate Blanchett e Rooney Mara, delicadas e cheias de nuances, personificam na perfeição este amor, a rebentar de emoção mas contido, sempre mais perto do murmúrio do que do grito. Diana Cipriano

Prémios e Festivais: Festival de Cannes – Melhor Actriz (Rooney Mara), Queer Palm Golden Globes – Nomeado para Melhor Filme Drama, Melhor Actriz Drama (Cate Blanchett), Melhor Actriz Drama (Rooney Mara), Melhor Realizador, Melhor Banda Sonora Original


ESTREIAS CINEMA

MUSTANG

ESTREIA 25 FEV

MUSTANG

DE DENIZ GAMZE ERGÜVEN

Dur: 97 min

COM GÜNES SENSOY, DOGA ZEYNEP DOGUSLU, ELIT ISCAN

Mustang é uma primeira obra surpreendente, que nos encaminha para uma aldeia turca, onde as noções arcaicas do papel da mulher encontram resistência em cinco irmãs adolescentes. Mustang é uma palavra de origem espanhola que significa “sem dono”, e nomeia os cavalos selvagens dos Estados Unidos – breve apontamento etimológico que vale a pena relembrar, para melhor compreender a carga ocidental imprimida nesta fábula feminina. Primeira longa-metragem da turca Deniz Gamze Ergüven, Mustang tem ecos do igualmente primeiro filme de Sofia Coppola, As Virgens Suicidas, detendo um olhar, ao mesmo tempo, luminoso e trágico, sobre cinco irmãs órfãs que vivem numa aldeia da Turquia, bem longe de Istambul, muito perto do Mar Negro. Depois de uma tarde de euforia inocente, com brincadeiras no mar, furtos de maçãs numa horta alheia, o clã de beleza insubmissa, com longos cabelos rafaelitas, não mais será permitido aos olhares masculinos, excepto pelo tradicional casamento arranjado. A casa deixa de o ser para se transformar numa “fábrica de fazer esposas”.

MEDITERRANEA MEDITERRANEA

Dur: 107 min

DE JONAS CARPIGNANO COM KOUDOUS SEIHON, ALASSANE SY, PIO AMATO

As semelhanças com o filme de Coppola ficam-se pela base narrativa. Ergüven demarca-se dessa matriz honrosa de um certo cinema americano, e concretiza uma observação mais directa, sempre sensível, que resulta numa naturalidade envolvente. Nenhuma das actrizes é profissional, e talvez por isso sejam tão genuínas as suas gargalhadas, as suas conversas de miúdas, os seus silêncios que não querem significar nada. Sobretudo, Mustang dá-nos uma admirável crónica de bravio espírito ocidental, num Oriente que tranca a porta. Inês Lourenço

Prémios e Festivais: Festival de Cannes – Quinzena dos Realizadores Golden Globes – Nomeado para Melhor Filme Estrangeiro

European Film Awards – Prémio FIPRESCI

EXCLU

CINEMSIVO AS M

EDEIA

ESTREIA 14 JAN

Um filme de uma actualidade assombrosa, Mediterranea conta a história de dois refugiados africanos que partem para Itália em busca de uma vida melhor. Aquando da sua estreia no Festival de Cannes, Jordan Hoffman do jornal The Guardian referia: “poucas vezes a expressão ‘tirado das manchetes' me pareceu tão literal. Enquanto Mediterranea estreava mundialmente na Semana da Crítica, a primeira página dos jornais diários relatava detalhadamente a mais recente estratégia da União Europeia para lidar com o aumento da imigração vinda de África.” Os protagonistas deste filme poderiam ser apenas mais um dos milhares de casos que enchem os meios de comunicação. No entanto, a primeira longa de Jonas Carpignano não se limita à situação social que retrata nem manipula o espectador mostrando as condições de vida que levam os refugiados a arriscar a travessia para a Europa. Opta por mostrar, com um olhar quase documental, essa viagem, onde as condições climatéricas tornam tudo mais duro e onde os migrantes são agrupados como gado e explorados por traficantes e contrabandistas sem escrúpulos. Ao

chegarem a Itália, os dois imigrantes deparam-se com o racismo e o ressentimento dos jovens, aceitam trabalhos precários e enfrentam a tensão na sua amizade devido à forma como olham para a vida e para o futuro. Carpignano trabalha com o elenco, composto por vários actores não profissionais, de forma livre, dando naturalidade à sua interacção. David Rooney, da revista Hollywood Reporter, remata: “O realizador examina um encontro complexo de diferentes culturas sem ceder a dramatizações cheias de si. Em vez disso, faz um retrato do fluxo de população que se desloca num mundo globalizado onde a tecnologia permite uma ligação vital a casa e onde todos os anos mais pessoas deixam as suas raízes para seguir o seu sonho, por muito inóspito que este se venha a revelar.” Diana Cipriano Prémios e Festivais: Festival de Cannes – Semana da Crítica

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ESTREIAS CINEMA

OS OITO ODIADOS THE HATEFUL EIGHT

DE QUENTIN TARANTINO ESTREIA 4 FEV

Dur: 182 min

COM SAMUEL L. JACKSON, KURT RUSSEL, JENNIFER JASON LEIGH, WALTON GOGGINS, DEMIAN BICHIR, TIM ROTH, MICHAEL MADSEN

Com Os Oito Odiados, e após Django Libertado, Quentin Tarantino reincide na revisitação do western, o género americano por excelência, para voltar a questionar os fundamentos da nação americana.

Ambos os filmes estão assombrados por um período fulcral da história da América, a Guerra Civil. Django Libertado passa-se antes dela, abordando a questão que a despoletou, a escravatura, enquanto Os Oito Odiados se passa depois, indagando como a nação se ergueu a partir dela, através do estudo de oito personagens arquetípicas do western. Esses oito estranhos, de campos opostos do conflito e dos dois lados da lei, são obrigados a relacionarem-se entre si e a partilharem um mesmo espaço, um pequeno entreposto no meio das montanhas do Wyoming, devido a um intenso nevão. Servem como um espelho de todos os atritos e ressentimentos que perduraram após a violência dessa guerra. Com a acção sobretudo concentrada nesse décor fechado e durante as três horas do seu filme, Tarantino propõe ao espectador uma relação profunda com estas personagens e as suas duplicidades, tornando a empatia algo de convulso e ambivalente.

Essa claustrofobia e tensão são aumentadas pela escolha de filmar no formato mais largo que existe, o Ultra Panavision 70mm, usado em relíquias da indústria como Ben Hur. Essas antigas lentes grande-angulares permitiram a Tarantino pensar a composição dos planos usando dramaticamente não só a largura da imagem, tornando, por exemplo, como ele diz, “os grandes planos [dos rostos] muito íntimos”, mas também a profundidade de campo e o posicionamento dos actores no espaço.

“Um excelente divertimento e um statement político” Tim Roth

E é a um elenco estelar que Tarantino dá o elemento-chave, a acutilância e cadência dos diálogos: foi só após uma leitura pública duma versão do script que Tarantino decidiu fazer o filme, depois da divulgação na Internet duma versão anterior. “Um excelente divertimento e um statement político” (Tim Roth dixit), Os Oito Odiados, que tem banda sonora de Ennio Morricone, celebra a película e a experiência sensorial e social do cinema, e ecoa na América do presente: a tensão racial actual e a posse de armas. Fátima Castro Silva

Prémios e Festivais: Golden Globes – Nomeado para Melhor Argumento, Melhor Actriz Secundária e Melhor Banda Sonora Original

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ESTREIAS CINEMA

CAVALEIRO DE COPAS KNIGHT OF CUPS

DE TERRENCE MALICK ESTREIA 21 JAN

Dur: 118 min

COM CHRISTIAN BALE, NATALIE PORTMAN, IMOGEN POOTS, CATE BLANCHETT

No seu novo filme Terrence Malick transporta-nos para ambientes urbanos e toma como protagonista uma figura do universo de Hollywood: um argumentista em crise de identidade.

Em busca da identidade perdida Longe vai o tempo em que o compasso de espera para um novo filme de Terrence Malick era coisa que podia exigir anos de paciência ao espectador. E podemos lembrar que, entre Dias do Paraíso (1978) e A Barreira Invisível (1998) que foram, respectivamente, o seu segundo e terceiro filme, passaram vinte anos. O ritmo de produção mudou após o magistral A Árvore da Vida (2011), que venceu a Palma de Ouro em Cannes, fixou definitivamente uma linguagem autoral demarcada e, desde então, conheceu novos episódios em To The Wonder (filme de 2013 que entre nós estreou como A Essência do Amor) e O Cavaleiro de Copas, estreado em Fevereiro de 2015 em Berlim e agora a caminho das salas portuguesas. Para breve, a comprovar esta mais intensa agenda de trabalhos, está o documentário Voyage of Time (apontado para estrear em 2016 e, sabe-se já, com música de Ennio Morricone). E apenas à espera de entrar na fase de montagem, porque foi rodado ao mesmo tempo do que o filme que agora estreia entre nós, estará uma nova ficção centrada na cena musical da cidade de Austin, no Texas.

O Cavaleiro de Copas (filme cujo título corresponde ao nome de uma carta de Tarot) é um filme diferente e, de todos até aqui, não apenas o mais urbano da TERRENCE MALICK filmografia de Malick mas também aquele em que, pela primeira vez, ele se debruça sobre os espaços da indústria do cinema. A narrativa acompanha um momento de angústia na vida de um argumentista de Hollywood (interpretado por Christian Bale) que, apesar de criar inúmeras personagens de ficção, não sabe afinal nem quem ele é nem sequer para onde vai. Em busca de um sentido para a sua vida evoca ligações passadas e presentes, frágeis e curtas, recordando as mulheres que passaram pela sua vida cruzando-se personagens criadas por Cate Blanchett ou Natalie Portman. Entre cenas de hedonismo em mansões luxuriantes ou clubes de strip e tempos de fuga entre areais de praia ou a paisagem sem vivalma do Vale da Morte, a vida do protagonista esbarra no que vê e sente de imediato. A busca de sentido e de identidade acompanha-nos num contraste entre a tranquilidade aparente da sua expressão (inerte e desencantada) e o torpor de dúvidas que imaginamos por detrás dos seus olhos. Nuno Galopim

Prémios e Festivais: Festival de Berlim – Selecção Oficial Lisbon & Estoril Film Festival – Selecção Oficial, Filme de Encerramento

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ESTREIAS CINEMA

45 ANOS

EM EXIBIÇÃO

45 YEARS

DE ANDREW HAIGH

Dur: 95 min

COM CHARLOTTE RAMPLING, TOM COURTENAY, GERALDINE JAMES

Interpretações magníficas de Charlotte Rampling e Tom Courtenay premeiam o drama comovente de Andrew Haigh. Neste estudo dramático de Andrew Haigh, baseado num conto de David Constantine, Charlotte Rampling e Tom Courtenay interpretam um casal sem filhos, que vive confortavelmente numa zona rústica de Inglaterra, e que se encontra a uma semana de celebrar o seu 45º aniversário de casamento. No entanto, a placidez da sua existência é interrompida por uma carta que traz uma notícia que irá sacudir o seu casamento e levá-los a questionar a sua união e a sua existência. “45 Anos é o tipo de filme pelo qual sempre me senti particularmente sensível, filmes sobre a viagem que fazemos à nossa própria psique após acontecimentos que nos assombram”, revelou Charlotte Rampling em entrevista à Film4. Andrew Haigh, que tinha já abordado a dinâmica de casal em Amor de Fim-de-semana, um retrato íntimo de uma relação nos seus primeiros momentos, filma agora no extremo oposto. “Para mim fez sentido ter

um filme no início da relação, com as pessoas ansiosas pelo que virá e outro que nos mostra o olhar para trás, para a vida e para a relação”, referiu o realizador à Film4. A sua enorme sensibilidade é evidente na forma como dirige Rampling e Courtenay, ambos vencedores do Urso de Prata no Festival de Berlim pelas suas interpretações. Tom Robey, do jornal The Telegraph, afirma ainda que se trata de “um filme intencionalmente calmo, esculpido para fazer das conversas meros pontos de vista. Todas as pistas estão nas interpretações, nas pausas entre frases, e a câmara apenas lá está para registar os danos.” Diana Cipriano Prémios e Festivais: Festival de Berlim – Urso de Prata para Melhor Actriz e Melhor Actor Boston Society of Film Critics – Prémio Melhor Actriz

A RAPARIGA DINAMARQUESA THE DANISH GIRL

DE TOM HOOPER EM EXIBIÇÃO

Dur: 120 min

COM EDDIE REDMAYNE, ALICIA VIKANDER, AMBER HEARD

Baseado no romance The Danish Girl, de David Ebershoff, uma biografia ficcionada de Lili Ilse Elvenes, uma das primeiras mulheres transgénero a submeter-se à cirurgia de mudança de sexo, A Rapariga Dinamarquesa marca o regresso do realizador Tom Hooper após o sucesso de Os Miseráveis e O Discurso do Rei (filme que lhe valeu o Óscar de Melhor Realizador). No início do filme conhecemos Gerda e Einar Weneger, interpretados por Alicia Vikander e Eddie Redmayne, um casal de pintores a viver em Copenhaga na década de 1930, que aparentam ser perfeitos um para o outro. Ele é pintor paisagista e ela pinta retratos. Após posar como mulher para os retratos de Gerda, que se revelam enormes sucessos, Einar começa a viver a vida na forma de uma mulher chamada Lili, percebendo então que sempre fora uma mulher. A realização de Tom Hooper mantém-se subtil, num registo diligente e quase didáctico, usando mecanismos clássicos para contar uma história inovadora, deixando que a sua 14 JANEIRO | FEVEREIRO 2016

O novo filme de Tom Hooper é um drama íntimo sobre uma das primeiras pessoas a mudar de sexo, com interpretações admiráveis de Eddie Redmayne e Alicia Vikander. força, bem como a dos que a interpretam, sejam o foco central do filme. Eddie Redmayne demonstra mais uma vez o seu enorme talento para interpretar processos de transformação, tal como tinha feito em A Teoria de Tudo, pelo qual venceu o Óscar de Melhor Actor. Por sua vez, Alicia Vikander, como refere o New York Times, “interpreta de dentro para fora, com uma espontaneidade rara”, que ilumina o filme, e nos demonstra de forma exímia que nesta, tal como em tantas outras histórias de transformação, é tão difícil passar por ela como estar do lado de fora a testemunhá-la. Diana Cipriano

Prémios e Festivais: Festival de Veneza – Selecção Oficial, Em Competição, Queer Lion Golden Globes – Melhor Actriz Drama, Melhor Actor Drama e Melhor Banda Sonora Original


OUTRAS PROGRAMAÇÃO ESTREIAS

THE REVENANT: O RENASCIDO THE REVENANT

DE ALEJANDRO GONZÁLEZ IÑARRITU ESTREIA 21 JAN COM LEONARDO DICAPRIO, TOM HARDY, DOMHNALL GLEESON

Dur: 156 min

O entusiasmo em torno de The Revenant começou logo na altura em que o seu primeiro trailer foi divulgado, em Setembro passado. As primeiras notícias sobre o filme davam conta de uma rodagem polémica, com relatos de condições muito duras nas gélidas paisagens do Canadá, Estados Unidos da América e Argentina. Estes cenários que vemos no filme surgem, em primeiro lugar, pelo desejo do realizador Alejandro González Iñarritu (Birdman, Babel) utilizar o mínimo de imagens geradas por computador, e o facto de Emmanuel Lubezki, o director de fotografia, ter uma predilecção pela luz natural. São paisagens desabrigadas, expostas por completo aos elementos da Natureza as deste western passado em 1823. Leonardo Dicaprio interpreta Hugh Glass, um explorador, abandonado pelo seu amigo John Fitzgerald (Tom Hardy), após o violento ataque de um urso. Depois disso, inicia uma viagem de verdadeira sobrevivência na Natureza, e de vingança contra os que o abandonaram. O argumento de The Revenant é inspirado em acontecimentos reais: conta a história de Hugh Glass, um homem que sobreviveu ao ataque de um urso e deu início a uma incrível odisseia para encontrar os dois homens que o abandonaram. No filme, esta história é ficcionada e as circunstâncias pessoais de Hugh Glass são intensificadas por Dicaprio, assim como a motivação para a sua vingança.

ALEJANDRO GONZÁLEZ IÑÁRRITU

The Revenant, que conta com quatro nomeações para os Golden Globes – Melhor Filme, Melhor Actor, Melhor Realizador e Melhor Banda Sonora Original – é um dos fortes candidatos aos Oscars. Neste cenário, e depois de Leonardo Dicaprio ter sido considerado o Melhor Actor para a Boston Society of Film Critics e estar nomeado na mesma categoria para os Screen Actors Guild Awards, fica no ar a hipótese de o actor norte-americano levar para casa a tão cobiçada estatueta dourada. Renata Curado

Prémios e Festivais: Golden Globes – Nomeado para Melhor Filme, Melhor Actor, Melhor Realizador e Melhor Banda Sonora Original

JOY DE DAVID O. RUSSELL COM JENNIFER LAWRENCE BRADLEY COOPER, DONNA MILLS ROBERT DE NIRO Joy é a história de uma família vista através de quatro gerações, centrada na mulher que cria uma dinastia de negócios e se torna numa matriarca respeitada. Traição, falsidade, perda de inocência e desgostos amorosos marcam o caminho desta comédia intensa e emocional, sobre como se tornar numa verdadeira chefe de família e chefe da sua empresa num mundo implacável. Os aliados tornam-se inimigos e os inimigos tornam-se aliados, tanto dentro como fora da família, enquanto a vida íntima de Joy e a sua imaginação ajudam-na a atravessar as tempestades que enfrenta. O filme está nomeado para dois Golden Globes, nas categorias de Melhor Filme (Comédia ou Musical) e Melhor Actriz (Comédia ou Musical).

ESTREIA 7 JANEIRO

O CASO SPOTLIGHT DE TOM MCCARTHY COM MARK RUFFALO MICHAEL KEATON, RACHEL MCADAMS JOHN SLATTERY, LIEV SCHIEBER Quando a equipa de repórteres denominada "Spotlight" começa a investigar as alegações de abuso no seio da Igreja Católica, acaba por descobrir décadas de encobrimento aos mais altos níveis das instituições de Boston - religiosas, legais, e mesmo do governo, desencadeando uma onda de revelações por todo mundo. O filme marcou presença na Selecção Oficial do Festival de Veneza, no Festival de Toronto, e está nomeado para três Golden Globes (Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Argumento), para além de cinco nomeações nos Independent Spirit Awards.

ESTREIA 28 JANEIRO

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