Mares de Sesimbra nº 37

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MARES de SESIMBRA 29 de Janeiro de 2017 – nº 37

Director: João Augusto Aldeia

A Informação que conta Administrador: José Gabriel

M a ri a d a G l óri a Ch ag as


29 de Janeiro de 201 7

Foto: João Augusto Aldeia

M a ri a d a G l óri a Ch ag as Pode dar­nos alguns dados biográficos?

Sou lisboeta, nasci na freguesia de Santa Isabel, tenho 68 anos e vim para Sesimbra quando casei e comecei a trabalhar na escola primária de Sesimbra, em 1 970. Vim para Sesimbra em 1 969, quando ainda estava a terminar o curso, e conheci o João [professor João Chagas] na escola do Magistério Primário: era lá aluna, e ele também. Eu estava no 1 º ano

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e ele estava no 2º. Casámos em Julho de 1 969. Ele na altura tinha possibilidade de concorrer e, como era homem, tinha prioridade sobre todas as colegas, os homens tinham prioridade na colocação, portanto ficou logo em Sesimbra. Ele também tinha saído com uma nota agradável, e portanto ficou em Sesimbra a trabalhar. Casámos em Julho desse ano. Eu depois, em 1 969/70 fui fazer o meu 2.º ano do

Magistério, e também, nessa altura, quando acabei o curso, como era casada com um professor, tinha também prioridade sobre a colocação, ao abrigo da lei dos cônjuges, tal como tinham os funcionários públicos. Fiquei colocada em Sesimbra, a trabalhar o ano todo: trabalhei no ano lectivo de 1 970/71 , na escola de Sesimbra, na escola dos Centenários, como professora do 1 º ciclo, e de raparigas – as escolas estavam separadas. A escola das raparigas era aquela na avenida, em Sesimbra, a escola do plano dos Centenários, e a dos rapazes era aquela do jardim, que é a Conde Ferreira, que era só de rapazes. Depois, no ano lectivo 1 971 /72, vim aqui para a escola de Santana, e todo o resto do meu tempo de trabalho foi sempre aqui em Santana, nunca saí daqui.

teceu foi que eu ia na rua e toda a gente parava a olhar para mim, que eu era casada com uma pessoas muito conhecida de Sesimbra, ninguém estava à espera que ele casasse na altura, não era jovem nenhum, já tinha 30 anos e eu era uma menina de 21 . Toda a gente olhava para mim e eu ficava pior que estragada. Outra coisa que acontecia: eu costumava ir ao café, beber um café, e poucas senhoras estavam no café, e toda a gente olhava: não diziam nada, mas olhavam. Nessa época já havia turis­ mo em Sesimbra?

Nessa altura já havia turismo, eu vim para aqui em 1 969, já havia turismo, já as pessoas iam à praia, já se via muita senhora na praia, mas continuava a ser: as pessoas iam da casa para a praia, e da praia para casa. A única vida social que eu via era, ao E como correu esse 1.º domingo à tarde, toda a gente ano? Teve algum choque especial por vir para Sesim­ se sentava no muro da marginal, a ver passar as pessoas. bra? Lembro-me de andar na E era, à noite ao sábado, a rua, sobretudo ali na margi- elite sesimbrense que ia para nal, ver os pescadores a de- o Clube Sesimbrense. sempatar a pita, e não conseguia perceber uma úni- E a Maria Chagas também ca palavra do que eles dizi- tinha acesso a esse Clube? Tinha, o meu marido era am. Pensava eu: ou eu não sei falar, ou estou surda, ou estas pessoas falam um dialecto diferente. Outra coisa que me acon-

Alunas do Liceu Dona Amélia, em Lisboa. Maria da Glória Chagas está na última fila, 2.ª a contar da direita.


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dos sócios mais antigos de Sesimbra. Mas eu não gostava muito do ambiente e então poucas vezes ia lá. A propósito desse modo de falar típico de Sesimbra: não encontrou isso também nos alunos?

Sim. Uma das coisas que mais impressão me fazia, era: “Professora, eu ontem fui à da avó”. Eu emendava sempre e elas ficavam muito admiradas. E era a terminação das palavras, as palavras que terminavam em “o”, elas diziam em “e”: o “lade”, o “lade de lá da casa”U Era uma pronúncia muito semelhante à alentejana, sobretudo aqui no campo – como sabe, Sesimbra está dividida entre campo e vila – aqui no campo há um lugar chamado Almoinha que foi muito povoada pelos alentejanos que vieram em fins da década de 60 para aqui: iam trabalhar para as pedreiras, alguns iam trabalhar para o mar, mas muito poucos, trabalhavam mais nas pedreiras. Eram alentejanos, e o alentejano tem um dialecto muito próprio, e aqui as pessoas absorveram esse dialecto, misturaram com o dialecto sesimbrense e deu uma mistura assim para o esquisito.

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de Santana e da área aqui do campo, iam fazer exames, de 3ª e 4ª classe, à escola de Sesimbra, exames finais. odas as outras passagens de classe eram feitas dentro das suas salas de aula. Tínhamos um superior, que era o Delegado Escolar, cujo superior era o Director em Setúbal, que era a Direcção Regional de Setúbal.

quena, sem iluminação. Calhou­lhe essa sala, por ser a professora mais no­ va?

Como eu era a professora mais nova, não podia escolher. Naquela altura os professores mais novos não podiam escolher, nem sala, nem horário, nem classe. Era aquilo que a directora da escola lhes atribuía. A única coisa que era respeitado era que, se a pessoa Mas esse Delegado continuasse sempre no mesEscolar era um dos mo lugar, continuava sempre professores locais? Era professor, também – com os mesmos alunos, até era o professor Amável, nes- acabar o ciclo, que foi o que te caso. Não era eleito pelos me aconteceu a mim, a partir

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E eu tinha aprendido que deveria concretizar. Então arranjava material, para os meninos terem na sua própria carteira, e juntarem: uma pedrinha com mais 4 pedrinhas; 3 pedrinhas com mais 5 pedrinhas, fazia um ensino mais concretizado. Na leitura, tentava sempre ensinar os meninos a ler, a partir de coisas concretas, mostrava um boneco, escrevíamos o nome do boneco, manuseávamos as sílabas. No ano em que estive em Sesimbra, o primeiro ano, lembro-me perfeitamente que no primeiro dia em que cheguei à sala de aula, vi aque-

Nessa altura, onde é que morava?

Morava em Santana, sempre morei em Santana, nunca em Sesimbra. Depois, como comecei a trabalhar aqui em Santana, na escola do plano dos Centenários – que era a única que havia e que abrangia Santana, Cotovia, Venda Nova, Almoinha, Sampaio, Pedreiras (mas era apenas o princípio das Pedreiras, porque já havia uma escola nas Pedreiras, também do plano dos Centenários) e a Maçã, lá para o fundo, para o Pocinho. Também havia em Calhariz um posto, e os postos de escola não tinham professores diplomados, mas tinham Regentes, as quais depois nos anos 90, se não estou em erro, tiveram possibilidade de tirar o curso e ficar como professoras. Essas Regentes tinham autonomia, ou dependiam de algum dos professores oficiais? Tinham alguma autonomia dentro da sala de aula, mas depois os miúdos tinham que vir fazer exame às escolas do concelho. Também as escolas

Escola primária dos Centenários, em Sesimbra (fotografia do Arquivo Municipal). professores, era designado pelo Partido a que pertencia, na altura a União Nacional. Só depois de 1 974 é que começou a ser eleito, não pelos professores, mas designado pelo Director de Setúbal. Em Santana havia muitas crianças, as turmas eram grandes, quase de 40 alunos, e não chegavam as instalações físicas da escola. A escola tinha duas salas, trabalhavam, uma de manhã e outra de tarde, e tinha uma cantina, onde as crianças iam tomar o leite – e onde antigamente iam tomar a sopa. Como havia muitas crianças, resolveu-se fazer uma sala de aula no outro espaço livre da cantina, que foi onde eu trabalhei durante um ano, uma sala muito pe-

de 1 973, comecei sempre a acompanhar os meninos, desde a primeira até à quarta classe. Esses primeiros anos, co­ mo é que foram em termos pedagógicos.

Eu era uma professora nova cheia de ideias. Convencida de que domi­ nava tudo?

Convencida de que mudava o mundo! Eu vinha com as ideias, mais ou menos novas, do Magistério, e o ensino aqui em Sesimbra era muito convencional. Por exemplo, a matemática, era dada pela maioria dos professores que ensinava, 1 -2-3-45, os números, e depois fazia umas continhas e os meninos tinham que decorar como é que aquilo se fazia.

las menininhas todas pequeninas, tudo a olhar para mim, e pensei assim: “o que é que eu vou fazer com esta gente? Eu não sei trabalhar com esta gente!” Embora nós tivéssemos feito o nosso estágio no Magistério, com meninos, tínhamos a nossa professora orientadora ao nosso lado, que era uma coisa completamente diferente. Entrar numa sala de aula, com aqueles meninos todos que não nos conheciam, aqueles olhinhos todos a olharem para nósU “O que é que eu vou fazer com esta gente?” Depois das primeiras impressões, começamo-nos a habituar. Quando acabei o 1 .º


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ano, a directora da escola resolveu ser ela a fazer as provas finais dos meninos, e como era uma pessoa muito conservadora, todo o ano achou que eu não trabalhava como deve ser, e no final disse-me assim: “Se eu pudesse, eu chumbava estes meninos todos!” Os miúdos sabiam ler, sabiam escrever, sabiam contar, mas como não tinha sido da maneira como ela e as outras colegas mais antigas trabalhavamU Depois, no ano seguinte, vim para Santana. Santana era diferente. Ainda hoje o ambiente da escola de Sesimbra é diferente do ambiente das escolas cá de cima. No campo, as mães são muito mais abertas, são muito mais amigas de falar com os professores, enquanto em Sesimbra são mais amigas de criticar e de não ajudar, de deitar abaixo. Nessa época ainda se no­ tava uma certa rivalidade entre Sesimbra e o campo: isso também aparecia re­ flectido no ensino?

Sim. Por exemplo, as professoras de Sesimbra achavam que os meninos que vinham do campo, e que

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iam fazer os exames do 4.º ano lá abaixo, que eram burros e que não sabiam nada. E geralmente as perguntas que faziam – porque havia uma parte escrita e uma parte oral – eram sempre muito mais difíceis para os meninos do campo. Achavam que eram meninos mais burros, com mais dificuldades, porque eram meninos que tinham uma vida difícil, que não eram muito bem alimentados como os lá de baixo de SesimbraU Havia meninos do campo que nunca tinham ido a Sesimbra ver o mar, havia meninos desses. Mas isso eram ideias pre­ conceituosas…

Mas é uma coisa que ainda hoje as pessoas têm. Os preconceitos de vila e campo, ainda hoje é assim, embora já estejam muito mais atenuados. E se calhar as pessoas que moram aqui no campo, e que têm aqui a sua vida, sejam mais desempoeiradas do que as pessoas lá de baixo. Santana, nessa época, era quase a capital da zona ru­ ral de Sesimbra, tinha uma certa identidade, que pare­ ce ter perdido um pouco…

Santana agora é um eixo viário. Como naquela altura não havia tanto movimento, as pessoas andavam mais na rua, conheciam-se mais. Ha-

via o comércio local: eu lembro-me perfeitamente, havia a padaria, e havia a senhora Elisa, que tinha o lugar das hortaliças e das frutas. Havia o senhor Gualdino, que tinha a mercearia, onde além de comprarmos as coisas dávamos mais uma palavrinha, havia o João Petroleiro, tudo isso eram pequeninas casas em que as pessoas iam fazer as suas compras e estavam ali um bocadinho a conversar. Havia o Zé barbeiro, onde também se conversava muito, muitas vezes os homens nem iam cortar o cabelo, mas ficavam ali a conversar uns com os outros. E agora não há. Porquê? O comércio local acabou, praticamente, as pessoas saem daqui para ir ao Continente, e agora têm aqui o Aldi, ou então vão aos centros comerciais, portanto já não se encontram tanto. Há muito trânsito. Já não se vêm miúdos na rua a brincar. Lembro-me que uma vez a minha filha mais velha, tinha 5 anitos e eu tinha-lhe dito para ela ir comprar o pão, mas ali em frente, num baldio que havia ali, estava uma máquina, um tractor, e, coisa mais engraçada do mundo, ela saltou para o tractor e esteve a brincar lá. Podíamos mandar uma criança fazer um recado, não havia problema nenhum.

Aniversário de uma aluna: a Patrícia.

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Agora não. Por isso as pessoas estão muito afastadas, e não se dão. Foi professora durante quanto tempo?

Trinta e quatro anos.

Que mudanças é que ob­ servou no ensino, ao lon­ go desses anos?

Muitas mudanças. Enquanto eu fui professora, houve sempre, da parte de alguns professores, ou da maioria, uma necessidade de actualização dos seus conhecimentos. Os miúdos, à medida que vinham novas camadas de crianças para a escola, vinham com mais saberes: porque tinham televisão, porque ouviam mais música, sabiam mais coisas. Já não lhes chegava ouvir o professor, aborreciam-se estar com o lápis, a caneta e o papel e um livro, já precisavam de outras coisas. Começou a fazer-se um ensino mais à base de raciocínio. Contudo, até eu sair, o professor do ensino primário era um professor autónomo. Tinha um programa, emitido pelo ministério da Educação, que tinha que respeitar, mas esse programa era pla-


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neado e gerido pelo professor dentro da sua sala de aula, de acordo com o ritmo dos alunos. Até eu me vir embora, era assim. Agora não é. E eu estou mais ou menos dentro do ensino, porque tenho duas filhas professoras, e estou sempre mais ou menos a par. Agora, as escolas do ensino primário estão agregadas num agrupamento, dirigido por uma pessoa que nem sequer conhece os professores, e que três ou quatro elementos que fazem parte do grupo de direcção, decidem que o professor do ensino primário tem que dar isto, e isto, e isto, e em determinado tempo. Não respeitam o ritmo dos alunos. Não respeitam a idade dos alunos. É preciso ver que as crianças têm ritmos de crescimento que são diferentes uns dos outros e que, enquanto estão no ensino primário, esses ritmos têm que

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ser muito bem respeitados, senão eles não chegam lá. O que eu noto agora no ensino é que o professor primário é um elemento quase de preencher papéis, e que às vezes têm tempo para dar aulas. É muita burocracia e eles não têm tempo. O aprender é como falar. Como é que uma criança aprende a falar? Ouve muitas vezes dizer: “mãe, mãe, mãe” e ao fim de algum tempo ela repete. E a criança aprende porque se ensina uma vez, depois repete-se outra vez, depois vai-se ver onde é que ela está pior e repete-se. E com a repetição acaba por aprender – e agora não há tempo para repetir. Aquilo está tudo pegado com uma colinha deU cuspo. Antigamente a estrutura de ensino era muito hierárqui­ ca?

No início era muito hierárquica, porque era a senhora directora – eu tive uma directora que disse que era directora da escola pelas suas qualidades, porque normalmente quem era director era quase obrigado, porque não

havia remuneração para o trabalho que tinha, os aborrecimentos eram mais que muitos, o trabalho era a duplicar ou a triplicar. Ao princípio havia uma hierarquização grande. Com a Revolução, a coisa amainou. As pessoas juntaram-se mais, havia mais conhecimento, e havia outra coisa: havia muitas acções de formação, que eram dadas aqui no concelho: vinham cá pessoas dar formação. E isso acabou?

Sim. Ainda eu estava a trabalhar, já se notava muito uma diminuição. A meio da minha carreira fiz muitas formações: ou aqui, ou em Setúbal, ou em Almada, e nós conhecíamo-nos todas umas às outras e havia uma grande ligação. A saída fazia com que nos aproximássemos mais. E agora não. Nas escolas, todas se ajudavam umas às outras. Conhecíamos os meninos todos. Agora não. Cada uma está na sua sala, cada uma está com os seus meninos, e acabou. E eu acho que isso faz falta, a troca de ideias

Uma turma encenou a peça "O ratinho no campo".

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entre professores faz falta. E a insatisfação que se diz existir entre os professo­ res, nos últimos anos, que levou ao aumento do pedi­ do de reformas – isso tam­ bém se verifica no ensino básico?

Sim, verifica-se. E porquê? Porque não é reconhecido o esforço que cada um faz. Porque o professor ensina, tem as suas horas para ensinar, mas depois tem reuniões de três e quatro horas, e depois tem que fazer “grelhas”: a grelha do menino que se porta mal, dos conteúdos que dá, dos conteúdos que não dá, dos almoços que o menino comeu, do leite que o menino bebeu, tem que fazer grelhas para tudo. Portanto, depois daquelas horas de escola, depois das que tem de passar nas reuniões que são intermináveis, ainda têm esta burocracia toda para fazer, ao fim do ano ou do mês, o ordenado é igual. Em vez de trabalhar as 40 horas e ga-


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pais matam os professores. E superiormente o pai tem sempre razão. Uma vez estava num restaurante e estava lá um vizinho que tinham duas filhas nhar 35, acabam por fazer gémeas com 5 anos. Esta60 ou 70 horas por semana, vam a jantar e as miúdas essem reconhecimento ne- tavam a portar-se muito mal. nhum. Então o pai, alto e bom som, disse: “Eu pago um dinheirão A informação que é no jardim-escola para vos recolhida nessas grelhas, ensinarem a ter maneiras, e é depois trabalhada vocês chegam aqui e nem por alguém? sabem comer”. Apetecia perVai para uma plataforma, guntar ao pai se as meninas e vai para a tal parte superi- não jantavam em casa. or do agrupamento, mas não se sabe o que é que se faz A certa altura houve uma com essa informação, acho crítica ao ensino, que é mais para estatística. dizendo­se que havia muita Mas essa informação podia ser usada…

Para a melhoria do ensino. Mas não, não há. Depois há ainda ao problema da relação entre pais e professores, que é muito má. Até aos anos 90, os pais tinham respeito pelos professores e ajudavam os professores na educação dos filhos e agora não. Os meninos vêm para a escola para os professores darem educação e darem ensino, instrução. E se os professores se zangam e dizem que “o seu menino não sei quêU”, os

memorização. Depois isso mudou, e há quem diga que se foi para o extremo oposto. Agora há uma reflexão no sentido de que a memorização também é importante. Este diálogo também ocorreu no ensino primário?

Sim, sim. Ao princípio de eu estar a trabalhar, tinham que saber os rios todos, as terras, os caminhos-de-ferro. Aos poucos, isso foi tudo tirado do ensino: porque não era preciso decorar, bastava chegar ao mapa e saber onde era Portugal, onde era

Espanha e mais nada. A história de Portugal deixou de ser ensinada, de aprender como foi a evolução da história: havia o primeiro rei, e o último rei, que foi assassinado, depois a República. As datas importantes – 1 º de Dezembro, 5 de Outubro, 1 º de Maio – isso não era ensinado, foi tudo retirado. E não era porque os professores não quisessem ensinar: foi retirado do programa, e os professores têm que seguir o programa, que é feito lá em cima no ministério. E após essa oscilação entre muita memorização, e depois quase nenhuma, como é que está hoje?

Hoje o ensino é muito feito à base das redes de computador e a maioria das escolas tem computadores para os miúdos trabalharem, e procura-se fazer com que eles percebam várias coisas importantes na vida real, entre elas estas datas importantes na nossa vida pública. E também já se começa a voltar outra vez a pedir aos meninos para aprenderem uma poesia, para dizerem uma poesia, o que é muito importante para desenvolver a memória.

A última turma.

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Portanto, começou a sua carreira, casada com o pro­ fessor João Chagas, do mesmo nível de ensino. Como é que esta circuns­ tância se reflectiu na vida profissional de cada um?

Cada um de nós trabalhava de maneira diferente e não falávamos muito sobre o assunto. O problema da profissão ficava à porta de casa. Não discutíamos muito sobre o assunto. Eu era capaz de falar mais, sobre assuntos do ensino, com professores antigos que trabalhavam comigo, do que com o meu marido. Eu sabia que ele tinha uma maneira muito aberta de falar com os meninos, ensinava-lhes muita coisa. Eu vou contar uma história em que eu percebi como ele tinha sido um professor diferente. No dia em que ele faleceu e que foi lá para baixo para a capela, estava só eu na capela, entrou um rapaz, mais ou menos drogado, e que disse: “professor, tudo quanto eu sei, a ti te devo”. Depois virou as costas e foise embora. E eu percebi que ele, realmente, tinha sido uma pessoa que deu muito aos seus alunos.


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As suas filhas também estão no ensino primário?

Uma está no 1 º ciclo, e outra no 2º ciclo, em matemática. Sobretudo esta que está no 2º ciclo, tem uma inteligência acima da média e que se está a dedicar ao ensino através da astronomia e do espaço, e está a fazer coisas interessantíssimas. Ainda há quinze dias veio da Holanda, onde esteve numa formação sobre o ensino e o espaço e é uma pessoa muito aberta, não é nada deste tipo convencional, que se aprende o bê-a-bá, ou 2+3 – não, não é nada assim. A outra, que está a trabalhar agora no Zambujal, também é uma pessoa muito aberta, também é uma pessoa muito aberta, muito preocupada com os meninos não aprenderem, com o não ter tempo de ensinar, ter que fazer muitos papéis, muitos papéis, e não ter tempo para ensinar. Qual a sua opinião a criação da grande escola de Sampaio, e encerra­ mento de várias escolas de pequena dimensão?

Eu sou mais contra do que a favor. Argumentos a favor é que a grande escola tem mais possibilidades de ter mais material para as crianças trabalharem, de agru-

par mais pessoas com capacidades diferentes para alunos diferentes, e penso que era esse o pensamento primitivo sobre a formação dos agrupamentos. Enquanto eu estive na escola já se falava nisso e eu sempre lutei pelos agrupamentos horizontais: haver um agrupa- mento para o 1 º ciclo, haver um agrupamento para os outros ciclos. Isso não foi avante e fizeram agrupamentos verticais. O que é que acontece num agrupamento vertical? O professor do ensino primário sempre foi considerado uma pessoa que – coitado! – sabia ler e escrever e contar e não precisava de saber mais. E essa ideia, mais ou menos, mantém-se. Continua a haver um fosso muito grande entre o professor do 1 º ciclo e o professor do 2º e 3º ciclo. O professor do 2º ciclo, quando acaba o curso, também pode ser professor do 1 º ciclo, as habilitações são as mesmas, o curso é o mesmo, e então o que é que acontece nos agrupamentos? Quem faz parte da comissão administrativa é um professor do 3º ciclo e depois um representante de cada ciclo. O professor do 3º ciclo, que é o presidente, coordena todas as outras coisas. É uma espécie de uma pirâmide: as coisas vêm de cima para baixo, e cá em baixo está, não o 1 º ciclo, mas a pré-primária, então quando chega à pré-primária já não

há, já está tudo gasto lá pelos outros lados. Também se pensava, e eu fui das primeiras pessoas que pensei, que, como há meninos com necessidades educativas de terapia da fala, de terapia de surdos, cegos, crianças que têm dificuldades de movimentação, crianças com problemas de autismo, ou com deficiências motoras, com o agrupamento haveria maiores possibilidades – mas não há. Há, igualmente, quem de­ fenda que é melhor os alu­ nos terem contacto com mais crianças.

O que eu penso é que crianças de 1 8 e 1 7 anos, misturadas com meninos de 4 e de 5 anos, não é bom. É que, se houvesse um agrupamento horizontal, juntavam-se cinco ou seis escolas, muitos meninos, mas todos da mesma idade, e não esta disparidade de idades.

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que não conhecem as crianças. E agora, que ocupações tem, o que é que faz? Na verdade, estamos numa terra que não tem muitos recursos culturais.

Não tem muitos recursos culturais, não tem. Eu ainda continuo muito agarrada à minha Lisboa, e vou lá muito. Senti muito a falta da escola. Tenho momentos em que passo à porta das escolas para ouvir o barulho dos meninos no recreio. Sinto muito a falta da escola, a falta dos meninos. O que eu faço? Frequento aulas – não aqui, mas num concelho próximo – faço ginástica, e pronto. Também viajo muito. Tenho vários grupos de amigos e um dos grupos é para fazer viagens. No ano passado fui à China, gosto muito de viajar, de andar por aqui e por acolá. Também podíamos falar da poesia?

A poesia é uma paixão.

Há igualmente a vantagem de ser um edifício novo?

É novo, mas se for ali à escola de Sampaio, é que fizeram uma escola nova, só para o 1 º ciclo, ao lado da escola secundária, mas quem fez a escola não pensou nos meninos, porque fez salas muito pequeninas, com corredores enormes em que os meninos se perdem, frios, gelados, sem vida. E as salas são pequeninas. Quem faz as escolas são pessoas

E também escreve. Porque é que nunca publicou?

Porque não tenho categoria para publicar poesia, porque eu não escrevo poemas: faço rabiscos. Andei até ao ano passado numa aula de poesia, em Lisboa. Ainda hoje, se for ao Facebook, tenho lá um texto meu.

Escola Primária de Santana (fotografia do Arquivo Municipal de Sesimbra).

João Augusto Aldeia


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