Revista Lupa #2

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Entrevista a Bruna Hercog | Foto Bruna Hercog

Maria Betty Coelho Silva, natural de Salvador, é contadora de histórias e autora de livros voltados para o público infantil, como “Foi Um dia, Um dia Foi” e de títulos sobre o ato de contar histórias, como “Contar histórias: uma arte sem idade”, sua primeira obra. Aos 83 anos e considerada uma das maiores contadoras de história do Brasil, Betty esbanja alegria e vontade de viver. Bem pequenina, é uma mulher enorme. Fomos cúmplices dos instantes em que passamos juntas, com o mar logo atrás de nós. Silencioso. Atencioso. Será que Betty conta histórias para o mar? Não sei. O que sei é que quando essa mulher linda começa a falar, seus olhinhos brilham e pronto: entramos em um conto de fadas...

Por que contar histórias? Porque gostamos de ouví-las, independente da idade e das circunstâncias. Crianças enfermas nos hospitais ouvem com agrado. Detentos na casa de detenção ouvem com muito gosto. Toda arte tem um fundamento teórico e “porque gostamos de ouví-las” é o fundamento básico da arte de contar histórias. E por que gostamos de ouví-las? A história é o alimento da imaginação e o ato de contar histórias é muito antigo.

Algum momento marcante na sua trajetória de contadora de histórias? Um dia, quando estagiava para me formar em professora, houve um eclipse do sol e as professoras tinham ido para a varanda da escola apreciar o fenômeno. Nós, estagiárias, ficamos nas salas de aula. Você imagine! Eu era muito jovem, com aquela farda azul e branca de normalista. Entro na sala e levo um susto, porque eram 60 crianças pequenas sozinhas. Eles atiravam tamancos uns nos outros. Eram tamancos no ar! Eu parei, diante deles, sozinha, baixa que sempre fui. Apenas um pouquinho mais alta do que as crianças. Tinha levado um plano de aula muito caprichado, só que meus professores não tinham me dito o que fazer em uma situação daquelas. De repente, veio assim como um estalo: Betty, conte uma história, disse pra mim mesma. Eu ouvia muito contar histórias em casa. Adorava contar histórias para meus irmãos menores e para meus primos. Era muito intuitiva. Então, diante daquelas crianças, eu contei uma história: a do rabo do macaco. É uma história acumulativa, muito interessante. Começa quando o macaco pede para o barbeiro para cortar seu rabo. As crianças foram aquietando-se. Não me sai da memória visual o silêncio que se fez, a atenção, o olhar, a expressão das crianças e a participação delas cantando comigo: “Barbeiro me dê o meu rabo, o rabo que o barbeiro me deu”. Nesse dia, eu aprendi minha verdadeira lição: contar histórias é muito importante. Lembra de outra situação inesquecível? Essa mesma história do rabo do macaco foi contada por uma professora que tinha sido minha aluna. Ela estava trabalhando no Centro de Educação Especial da Bahia (CEEBA), voltado para crianças que têm algum tipo de dificuldade de aprendizado. Havia uma menina na turma que tinha cerca de 9 anos e não falava. A menina já sabia ler e escrever, mas parou de falar quando viu a mãe morrer queimada. Um trauma que trancou sua voz. Faziam-se muitas coisas para que a menina voltasse a falar. Um dia, a professora decidiu contar uma história para a turma e contou a do rabo do

CIRCO URBANO

vai começar!

macaco. Os meninos gostaram tanto, que ela decidiu contar outra no dia seguinte. Aí a tal menina que não falava levantou e apontou com o dedo para a história do macaco. Toda vez que a professora anunciava que ia contar uma história, a menina apontava para o livro e pedia aquela. É muito importante repetir uma história quando a criança pede e elas pedem muito. Se pedem, é porque houve inconscientemente alguma identificação. E lá pela sexta ou sétima vez, na hora em que a professora disse: “Padeiro me dê o meu cesto”, a menina completou: “Cesto que o cesteiro me deu”. A menina voltou a falar. A menina perdeu a mãe - uma perda terrível - e parou de falar. O macaco foi perdendo as coisas, primeiro o próprio rabo que ele pediu ao barbeiro para cortar, mas ele falava: “Quero meu rabo, quero porque quero”. O barbeiro não tinha rabo nenhum pra dar a ele, deu uma navalha e, assim, ele vai trocando, trocando. Mas, cada perda que tem, exige aquilo de volta e como a pessoa não tem para dar a ele, dá uma coisa nova. No fim, ele ganha uma viola e com esta viola na mão a história acaba, porque o macaco sobe numa árvore bem alta e começa a dedilhar tudo o que ele perdeu: “Perdi meu rabo, ganhei uma navalha...”. A viola tem cordas. Nós, para falarmos, usamos as pregas vocais, que também chamamos de cordas. De tanto a menina ouvir aquela história, inconscientemente ela se identificou com o macaco, porque ele ia perdendo as coisas, mas reclamava. O macaco não parou de falar. Claro que a garota não teria a mãe de volta, mas ela tinha uma professora que contava histórias e não adiantava ela ficar calada. É claro que ela não ficava calada porque quisesse, foi um trauma. Enfim, são episódios muito marcantes e são centenas deles... O que é contar histórias? É um momento indescritível. Só quem conta histórias pode perceber. É um sossego. Mas não um sossego imposto, é um sossego desejado.

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a história

Acreditam os antropólogos que as pessoas quando começaram a falar, conversavam ao redor da fogueira e contavam o que tinham feito no dia, como tinha sido a caçada. Aquele que contasse com mais detalhes, seria o melhor ouvido. A prática de contar e ouvir histórias se transmite de geração para geração. As histórias permitem uma identificação com os personagens.

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