O porco de Erimanto

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O PORCO DE ERIMANTO E OUTRAS Fテ。ULAS


Título: O porco de Erimanto e outras fábulas © A.M. Pires Cabral e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2010 Todos os direitos reservados ISBN: 978-972-795-299-1


A.M. Pires Cabral

O porco de Erimanto e outras fรกbulas

Cotovia


Cotovia


Índice

Memória justificativa

p. 9

Os degraus da morte

11

O porco de Erimanto ou Os perigos da especialização

87

O homem que vendeu a cabeça

100

Homens e sombras

116

Catarse

140

As visitas do senhor director

159

Desidério

175

Nunca fiando

223

Senhor da sua morte

235

O tio Florindo ou Os malefícios da poesia

244


Cotovia


Memória justificativa

Quase todos os contos reunidos neste volume e sob este título foram publicados em 1985 num livro intitulado O homem que vendeu a cabeça. Acontece que esse livro, editado pela Nova Nórdica, uma editora efémera, praticamente não chegou a entrar nos circuitos comerciais, pois a editora logo desapareceu sem ter providenciado, ao que julgo, a distribuição, e a tiragem de 2.500 exemplares deve ter apodrecido nalgum armazém, sido guilhotinada ou vendida a peso — não fui informado de qual terá sido o seu destino. Acresce que todos os contos de O homem que vendeu a cabeça foram reformulados, sempre de forma considerável e em alguns casos de forma profunda. Acresce ainda que juntei aos contos de então três novos contos. Todos estes factores reunidos autorizam a considerar o presente volume como uma obra independente de O homem que vendeu a cabeça, e consequentemente a alterar-lhe o título. Para marcar bem as diferenças, escolhi o título de um dos contos que não estavam presentes na edição de 1985: O porco de Erimanto e outras fábulas.


Cotovia


Os degraus da morte La cabro de moussu Seguin, que se battégue touto la neui emé lou loup, e piei lou matin lou loup la mangé. Alphonse Daudet, Lettres de mon moulin

SOU DESDE NOVO grande frequentador e cliente de alfarrabistas. O cheiro do papel velho dos livros embriaga-me, e com esta doce embriaguez lhe perdoo as alergias que me causa. Mas devo prevenir, por uma questão de honestidade, que não são tanto os alfarrábios em si mesmos que me atraem — embora sempre tenha cobrado grande prazer da leitura do bom Português de outras eras — mas aquilo que é possível encontrar entre as suas páginas. Isto é, tudo o que há ou pode haver — e a incerteza sobre se haverá ou não reduplica o prazer do jogo — lá dentro, para além do texto do autor e da parte puramente mecânica, isto é, aquela que coube à tipografia. Refiro-me, por exemplo, a anotações à margem, feitas a propósito ou a despropósito por alguém que leu aquele livro, discordou ou concordou, e registou os seus comentários ao lado das frases que lhos inspiraram. Tenho encontrado apostilas deliciosas, como a que se me deparou num tratado breve de teologia de 1865: Este auctor é bastantemente asno. 11


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Mas não me refiro apenas a esse tipo de notas destinadas a iluminar, corroborar ou corrigir o texto. Também simples apontamentos de ocasião, que nada têm a ver com o teor do livro, rabiscados nalguma página à falta de haver outro papel à mão: um endereço, por exemplo, ou um número que pode ser de telefone, uma soma de várias parcelas, uma sigla enigmática, ou mesmo uma assinatura de posse simples ou mais arrevesada, como esta de 1812 que descobri numa Nova Grammatica da Lingua Ingleza de Agostinho Neri da Silva: Este Livro hé de Joaquim Jozé Ribeiro da Villa da Torre de Mon.vo roga a q.m lho achar ou furtar que lho torne a entregar alias ao Inferno o irá pagar. É também para mim fonte de grande expectativa poder encontrar, perdidos entre as páginas dos velhos livros, papéis de diversa ordem, fotografias, restos de flores, geralmente violetas — o mesmo é dizer, restos de paixões —, bem como outros testemunhos menos convencionais, como alfinetes ou então aqueles inconfundíveis pêlos púbicos que encontrei certa vez numa vetusta Imitação da Vida e me fizeram imaginar que alguém — quem sabe se uma freira na solidão da sua cela —, com aquele livro na mão, deve ter vivido momentos de desejo intenso, acaso satisfeito pecaminosamente. Num velho sermonário do séc. XVIII, de título quase tão extenso e indigesto como o próprio conteúdo — obra do Venerável Padre Jerónimo de 12


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São Rosendo, da Companhia de Jesus — apareceu-me certa vez um papel deveras interessante. Era uma folha de costaneira dobrada em quatro, há já tanto tempo que, quando a abri, se rasgou pelos vincos da dobra. Estava manuscrita num bastardinho muito regular, que inculcava mão ilustrada, provavelmente a do próprio padre que adquirira o livro e apusera no frontispício, a tinta sépia, o seu nome — P.e Joaquim de Lima Catalão — e uma data, decerto a da aquisição — 6 de Março de 1834. A folha continha o que me pareceu ser uma minuta, ou melhor, alguns tópicos desgarrados para um sermão. Li-a de uma ponta à outra, com esta minha balda de voyeur insaciável. Ali se faziam piedosas considerações sobre a morte, estado ao qual se ascende por uma escada de muitos e mui trabalhosos escaloens, isto é, degraus. E quando li isto, Basílio, lembrei-me de ti.

SITUEMOS OS ACONTECIMENTOS NO TEMPO: 12 de Janeiro de 1969. Acabas de levantar na tipografia as primeiras provas da edição amável que sempre te decidiste a fazer dos poemas do Louco e dispões-te a corrigi-las com os resíduos de visão que te restam, os óculos grossíssimos assestados, assustados de prazer sobre as folhas que seguras a quinze centí13


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metros dos olhos — doutra forma não poderias ler — e mergulhas de cabeça no mel ensanguentado, na lâmina quente-fria de versos como estes: setenta cargueiros não transportam tanta dor a dor vitrificada no silêncio das esferas agudas garanto-vos o céu está superpovoado é frio e não vem longe o dia da emigração maciça rumo a lugares mais quentes ou seja, o génio do Louco que te cabe revelar ao mundo num grande boom!, assim o esperas. Nunca antes tinhas visto provas tipográficas, são estas as primeiras, e ama-las com os resíduos de amor que te restam, assim mesmo cheirando ainda à tinta gorda do prelo, sujas de insensatas dedadas do tipógrafo. E impacientas-te contra as gralhas que sobrevoam, pousam, besuntam de guano, debicam o texto digno de melhores bicos. Gralhas soezes, Pyrrhocorax pyrrhocorax, em poemas que parecem falar de outras aves mais nobres, ainda que as não nomeiem, aves mais nobres e rapaces, águias-de-bonelli, milhafres, falcões, coisas assim, aves heráldicas e ríspidas: treme a asa não de misericórdia treme de fome de justiça treme o membro dotado de estratégia de sangue há um rumor de voo picado sobre a presa a milhares de pulsações num único minuto 14


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Estás no teu quarto, sentado à secretária onde tu próprio escreveste alguns poemas, oh nada disto que agora lês, nada desta força cósmica e desta gloriosa insensatez, e forças a esperança, com os resíduos de força que te restam: os jornais e revistas da especialidade hão-de falar de ‘acontecimento editorial do ano’. E serás tu, pobre poeta menor, que estarás então no olho do furacão, darás entrevistas, serás admirado. Apetece perguntar como manténs o fogo, apesar de tudo. Responderias, eu sei, eu sei, que há algures uma brasa oculta que guarda latente no seu interior o princípio do fogo, brasa de que fias, com os resíduos de fé que te restam, a tua redenção. Assim responderias, eu sei: os costumados pólos das nossas discussões de algum dia. Que não repetirei aqui. Porque antes me apetece recordar, e assim

A VIDA CORRIA, BASÍLIO? A vida corria. Isto é: a vida correria. Não fosse aquele estúpido apalpão nas coxas possantes da criada, ela correria mansa e sempre igual como até. Repara: nem sequer estarias agora indisposto contra um tipógrafo inocente, ilustrado de menos para poder cortar a eito na caligrafia caprichosa do Louco, muito menos nas suas sinuosidades interio15


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res. Sim, a vida correria, insípida talvez nos seus sabores quotidianos, mas doce e meiga e nunca diferente, a paz antecipada do caixão. Mas tentou-te a coxa da criada. Impulso mais absurdo! Pois não tinhas ao alcance da mão, Basílio, dois quarteirões mais adiante, o busto contente de Maria Clara todas as noites até às dez, hora do recolhimento e do boa-noite formal, e, nos dias de os pais irem ao cinema, depois de vendares com uma nota de cinquenta os olhos malévolos do mano Carlinhos, vigilante venal, até um pouco mais do que o busto? Precisavas de trincar outra maçã? Que amarela cobiça te tentou nas coxas da Emília — de resto a criada menos apetecível de quantas a Dona Dulce tivera ao seu serviço? E a Dona Dulce tinha dedo para escolher camafeus, se tinha! Lembras-te bem: viúva precoce, por necessidade e vocação vira-se forçada a receber hóspedes na sua casinha de três andares da Rua Fernandes Tomás. Mas a memória impoluta do defunto Elias, grande rezador e frequentador de cursos de cristandade, — memória nunca assaz carpida — presidia a cada momento vivido naquela casa. Dona Dulce envelhecera recebendo hóspedes, gente solitária e tantas vezes, sabe Deus, precisada de uma atenção extra de uma criada. (Não era o teu caso, que tinhas a Maria Clara para as precisões ligeiras de cada dia e frequentavas mensalmente uma casa na Rua Escura para as precisões mais severas.) Ah, mas a 16


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patroa ufanava-se de que a sua casa era de respeito, jamais tolerara atrevimentos e, conhecedora dos ardis com que Satanás acomete as virtudes, contra eles se precavia. Como? Escolhendo sabiamente as empregadas. De algumas só ouviste falar, estiveram antes de te vires hospedar, mas tinham deixado fama. O elemento masculino da pensão recordava ainda a Alice, estrábica e de lábio leporino; a Sância de rosto felpudo como um ursinho de peluche; a Glória e os seus oitenta e sete quilos. Do teu tempo, recordas a Assunção, sem dentes incisivos, toda ela caninos e baba. E depois veio a Emília, a Emília robusta como um hipopótamo, a cara de hipopótamo também. Com estas escolhas criteriosas, curava a Dona Dulce da castidade das próprias e da dos senhores hóspedes, certa de que a maldade, ela dizia a maldade, dos homens para com as mulheres decresce ao mesmo passo que sobe a fealdade das ditas. Escolhidinhas a dedo. E depois uma vigilância! A Dona Dulce era muito lida na Bíblia. Vigiai, porque o demónio, como um leão que ruge, anda à volta de vós. Além do robusto conselho da Bíblia, tinha pés de gato e uma suspicácia sem fundo: era ubíqua, rondava sempre silenciosa como um fantasma, tudo presenciava, e criada abusada era criada despedida, porque um dos seus axiomas era que a culpa dos atrevimentos masculinos era sempre delas. A Emília, causadora involuntária da tua perdição, viera tomar o lugar da Assunção, uma pobre 17


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rapariga de Tarouca, que foi despedida quando a Dona Dulce surpreendeu o Sr. Sales a tentar violá-la, indiferente ao resfolegar desdentado dela — resfolegar que parecia de aflição mas afinal se veio a apurar, por ulteriores e insuspeitos testemunhos, que resfolegava sempre que se encontrava naquelas situações, devia pois ser de gozo e não de resistência ou súplica, de modo que aquilo assim nem se podia chamar bem uma violação. Lembras-te? Chamaste porco na altura ao Sales, e andastes de relações frias durante uma semana. Dão vontade de rir os teus escrúpulos de então; não passavam de hipocrisia, como depois se provou com a Emília. Logo a Emília, que, francamente, Basílio, só com doses cavalares de afrodisíacos. Porquê então? Seria talvez a tentação do fruto proibido pelo próprio aspecto. Ou o engodo pelo insólito. Talvez as duas coisas; talvez tenhas pensado “que gosto terá uma gaja horrenda e tão ciosamente vigiada?” Ou talvez fiasses da sua fealdade insuspeitadas culminâncias eróticas; pois não é verdade que donde se não espera salta a lebre? Segue-se que lhe apalpaste as coxas, na sequência de um breve namoro em que a infeliz foi cedendo, talvez mais da honra, da surpresa e do sentido do dever do que de puro agrado. Na manhã fatídica, pediste uma toalha lavada, pretexto para a atrair ao quarto, e ainda ela não transpunha o limiar da porta, já tu, zás, lhe mandavas um senhor apalpão pream18


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bular ao coxame. A rapariga torceu-se, regougou brevemente, como que disposta a tudo. Mas — teriam rangido nos gonzos os portões de Citera? Porque a Dona Dulce rondava e, de olho de lince, não lhe escapou a proeza, e logo ergueu um dedo expulsador para a desgraçada, que protestava “foi ele que me acometeu, senhora Dona Dulce, eu não queria, foi ele que me acometeu”. Debalde, pois a patroa era inflexível em tais pontos: ele não a teria acometido se ela não lhe tivesse dado licença para tanto, e por isso não convinha ao serviço. — Rua! Imediatamente! E, voltando-se para ti: — E o senhor Basílio, com franqueza! Esta leve admoestação significava que estavas perdoado. Ora, se havia coisa que o teu amor-próprio não consentia eram admoestações, mesmo justas, como no caso. E — ainda hoje te pesa disso a consciência — em vez de defenderes a rapariga, chamando a ti a responsabilidade do lance, vociferaste, defendeste o carácter salutar de apalpões e similares, insinuaste que o que a Dona Dulce tinha era dor de cotovelo por não ter sido ela a levar o apalpão — coitada da senhora, com sessenta e sete anos, Basílio, que maldade! —, acusaste em tua fúria a santa mulher de usar cinto de castidade mental desde o passamento do devoto Elias, enfim, despejaste o saco. E a Dona Dulce não teve remédio senão, debulhada em lágrimas de vexame, te apontar tam19


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bém a porta da rua. Se não estavas bem, mudasses-te. Expulso tu também, atrás da criada, imagina, Basílio, daquele estupor. E eis-te, bom homem, a braços com o problema imediato: arranjar nova pensão. Que atrás não voltarias, nem pedirias perdão, nem ficarias mais um dia debaixo daquele tecto puritano, eras orgulhoso demais para isso. Foi então a hora do arrependimento: caro te estava o apalpão! Porque melhor aposento do que em casa da Dona Dulce não encontrarias em parte nenhuma: mimos de mãe fracassada, chá e torradas com mel às vezes ao serão que eram de enlouquecer… Ah, não se repetirão. O inferno confunda a criada! E aí te temos, de mala na mão, é um modo de dizer, interrogando-te sobre um novo lugar. — Ainda hoje venho levantar as minhas coisas — disseste secamente, e saíste para o trabalho. Para cúmulo, na repartição, onde a notícia já chegara pela boca desbocada do Seabra, entraram contigo. O Teodoro, o Santos, o Bernardo, o Lucas, detrás das suas secretárias atafulhadas de carimbos e papelada em impasse, cobriram de ridículo os teus assomos eróticos. “Inveja, dor de corno”, contrapunhas tu, e sorrias, entre lisonjeado e aflito. Valeu-te o Godinho, um camaradão, que conhecia a cidade de ponta a ponta, lugares suspeitos e tudo, e a quem constara que na Rua da Constituição, número tantos — ele sabia mesmo o número — 20


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uma tal Dona Rosalina também recebia hóspedes, com geral satisfação dos utentes. Casa também de respeito, boa cama e pequeno-almoço no quarto, querendo o hóspede. — O preço? Ó pá, isso não sei, só telefonando. E o telefone? Vejamos, deve vir na lista. Trrrim. Do lado de lá, a Dona Rosalina em pessoa confirma que tem um quarto vago, mas — É melhor passar por cá.

O MAS SALTAVA À VISTA, na verdade. Era um buraco na parede — como é que diabo um buraco daqueles aparecia ali assim naquele lugar? —, um buraco perfeito, completo, que varava a parede de lado a lado, do tamanho aproximado de uma moeda de cinquenta escudos — ou seja, suficientemente grande para se poder espreitar através dele, um buraco mesmo a matar para um voyeur. Se ao menos no quarto do lado morasse uma gaja boa… Enfim, a seu tempo se veria, e esta simples expectativa era por si só aliciante. Mas o caso é que estranhaste o buraco em tal lugar e interpelaste sobre ele a Dona Rosalina. — Pois é — disse ela, com vontade de mudar de conversa. — Aquilo não é nada. Foi um hóspede que cá tive em tempos que o fez. E só não deitou 21


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a parede toda abaixo, porque eu me pus a pau. Era meio doido. Para te distrair do buraco, chamou-te a atenção para os confortos: as vistas desafogadas da janela, a proximidade do quarto de banho, a Praça do Marquês a cinco minutos a pé. Mas o que tu querias mesmo era saber mais sobre o buraco e já agora sobre o tal sujeito que era meio doido — sempre tiveste uma curiosidade danada por loucuras, paranóias, desaparafusamentos mentais, comportamentos desviantes. Razão por que franzias o cenho, e julgava a Dona Rosalina que era de desagrado, quando era mesmo só de curiosidade. — Era meio doido — tornou ela. — Ou doido inteiro. Um dia meteu-se-lhe na cabeça pendurar uma… uma coisa na parede e, para espetar o prego, fez para ali aquele buracão. Estas paredes antigas de tabique, já se sabe, esfarelam com facilidade… Era doido. Os últimos três meses, ficou-mos a dever. Desapareceu sem dizer água-vai. Ainda tenho no sótão dois caixotes cheios de papéis dele, papéis e outras bugigangas. O diabo o leve. Agora aquilo — falava do buraco — não lhe dê cuidado. Querendo, põe-se-lhe uma rolha. Mas com toda a franqueza lhe digo que não vale a pena. O senhor do quarto ao lado (“Bolas, é um macho!”, pensaste com desalento) é uma jóia de pessoa. Não é criatura para andar a espiolhar a vida de ninguém, acredite. Por esse lado, pode o senhor ficar tranquilo. 22


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Afadigava-se em te sossegar, porque temia o teu cenho carregado, sem poder saber que o carregavas de entusiasmo e que os olhos que punhas no buraco não eram carrancudos, não, mas deslumbrados e gulosos. — Diz então a senhora que o tal sujeito era meio doido… — Doido completo! — proferiu com convicção. — Senão veja: para espetar um prego… Se ele nem dormia de noite! — Ah, não? — Não cerrava olho, só escrevia, escrevia… — Diz que tem os papéis dele no sótão. Podem-se ver? — Se fizer questão… — Pode ser que interessem, quem sabe. — Ora, borracheiras! Que há-de aquilo ser? Se eu lhe digo que era doido! Passava a santa noite a escrever. De repente, dava-lhe para ouvir música, punha o rádio aos berros, e já ninguém podia dormir. Outras vezes passeava no quarto, atrás e adiante, atrás e adiante, dando cada espirro que até parecia coisa má. Os outros senhores estavam-se sempre a queixar do barulho. E a luz que ele gastava? Olhe — tomava ares confidenciais, a coisa prometia, Basílio —, eu nunca contei outro tanto a ninguém, mas acho que ele devia ter pacto com o demónio! A esta voz, Basílio, demonólogo amador, deste um salto e disseste, para a espevitar: 23


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— Que me diz? — Contado não se acredita! Aqui para nós, que ninguém nos ouve, sabe o que é que ele queria pendurar na parede? Não sabias, claro, nem ias responder “um violoncelo, um draga-minas”, embora ela te concedesse tempo bastante para imaginares a coisa mais extraordinária. Mas como adivinharias? — Uma caveira, calcule! — Não pode ser! — Uma caveira. Costumava tê-la em cima da mesinha de cabeceira, ali, no lugar do candeeiro. Credo, eu até engalinhava com aquilo, coberta com panos pretos como a coca dum frade, os dentes arreganhados como a fazer caçoada da gente. Um dia, deu-lhe para a pendurar e, olhe, tanto martelou que fez aquele lindo serviço que ali está. — Uma caveira… — sonhaste alto. — É verdade. Que Deus me perdoe, que eu nem gosto de falar nisto, mas uma criada que cá tivemos jura que o viu por mais de uma vez, pelo buraco da fechadura, a adorar a caveira, com muitas vénias e rapapés. Outra vez foi visto com a caveira na mão, a arengar numa língua muito arrevesada. (“Hamlet!”, pensaste.) Pensando bem, até foi uma sorte ele ter-se ido embora, mesmo ficando a dever, como ficou, os três meses. Preferi ficar com o quarto vago. Só a luz que gastava! 24


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Uma vez mais, julgou ler desagrado na tua fronte. — Se calhar, assustei-o com esta história… — Qual! Essas coisas não me assustam. Se quer que lhe diga, até acho uma certa piada. E qual era o modo de vida do sujeito? — E quem o sabe? Parece que escrevia, pelo menos papéis deixou à farta. Uns hóspedes diziam que era poeta, outros que escrevia para os jornais. Mas escrever não é modo de vida para ninguém. Era raro sair do quarto, às vezes até queria que lhe trouxessem cá o comer. Era um martírio para lhe fazer a cama e arrumar o quarto. Às vezes, só à má cara. As criadas era serviço que até nem gostavam nada de fazer. Mas olhe, já se foi, o diabo o leve. “Se calhar até levou”, pensaste, mais tarde dirias disso que fora uma heresia, enquanto a Dona Rosalina se enxugava do muito calor, aquela pobre e ignorante Dona Rosalina que desprezou e insultou, ralhou para lhe poder fazer a cama, sabe Deus a que génio, e que no fim se dava por satisfeita por ele se ter ido embora, mesmo ferrando um calote de três meses — só porque incomodava os hábitos porcinos dos outros hóspedes, assarapantava as criadas com os seus bibelôs pouco convencionais, recitava Shakespeare arrebatadamente e gastava talvez um pouco de luz a mais. Doido? Doido, não. Louco, talvez — que é uma coisa muito diferente. Doido… Vai-se a ver e é bem capaz de ter sido um génio, des25


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tes que vivem à maneira de Kafka uma vida obscura, um génio escorraçado pela inospitalidade da pensão, pelo prosaísmo lorpa dos hóspedes demasiado ocupados com os assuntos pendentes nas respectivas repartições para lhe poderem sequer avaliar a envergadura, incapazes de todo de enxergar um centímetro fora da secretária. Também tu eras funcionário público, é certo, mas que diferença! Via-se nos teus versos o espírito limpo e sonhador, oh! nada de refocilar trinta e seis horas semanais em torno de circulares e portarias, para exigir depois, no quarto de pensão, o aconchego e o repouso que o Louco perturbava com os seus usos que não eram daquele mundo. A Dona Rosalina, enxugada do suor, insistia não sei em que passo do que já dissera anteriormente, completando: — Com respeito ao buraco, se o quarto lhe agrada, não lhe dê cuidado. Põe-se-lhe uma rolha. Que, de resto, como eu digo ao senhor, não vale a pena. A minha casa, toda a gente sabe. Pois, pois, era de respeito e limpa, a comida caseira, nada de ovos e frangos de aviário, as criadas honestas, nada desse gado que às vezes por aí se vê, prontas a enfiar-se na cama do primeiro hóspede que as catrapisque, pois, tudo isso, tu sabias, costuma ser sempre assim, mesmo que depois se verifique que afinal é tudo exactamente ao contrário, merda e desmandos por todo o lado, comida enla26


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tada, criadas putas como galinhas. Que te importava afinal tudo isso? Estavas habituado a esse discurso e Meu grande tonto, mais te importava a viagem alucinada que já fazias, pé quedo e fantasia móvel, ao mundo sideral do Louco, seduzido pelo buraco, pelos papéis milagrosamente salvos de algum destino menos limpo, pela atmosfera irreal do quarto — não, jurarias que não era alucinação: respirava-se ali, sim, algo de religioso, um ar como temperado pelo hálito místico do anterior ocupante. Que admiração, nem todos os dias um espírito fraterno topa com vestígios de alguém que se furta à rotina, escrevendo, dormindo de dia, viajando à noite à roda do seu quarto, como tu, Basílio, tanta vez, interrogando caveiras (— E a caveira, também está no caixote? — Credo, não! A caveira, levou-a com ele. Só lá tem papéis, cartas e alguns objectos miúdos: um isqueiro, uma esferográfica, coisas assim. — É pena.), revelando-se inábil para a tarefa rasteira de espetar um prego, consumindo luz que baste para escandalizar uma dona de pensão, o que até nem é difícil, convenhamos, fazendo erguer coros de protestos vis dos outros quartos, oh, cala-te, velhota, não gabes mais o quarto, não é por tu gabares o quarto, a comida, as criadas, que eu fico; já decidi, fico mas é pelo Louco e pela sua grandeza e pelos seus papéis, nem ponhas nenhuma rolha no buraco, qual o quê, assim mesmo testemunha eloquente e viva é que eu o quero e quererei. 27


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Meu pobre amigo. Como podias, em hora de tanto júbilo e transporte, saber que o buraco viria a ser a tua perdição, a mastigação fria e desapiedada de ti, o afundares-te num pélago sem nome nem idade, o fim, como podias? Combinaste com a Dona Rosalina algumas miudezas, pediste uma estante para os livros, exigiste que os caixotes do Louco fossem trazidos para o quarto, condição sine qua non, recomendaste uma vez mais do buraco, prometeste vir dormir já nessa noite e vieste.

A DONA DULCE AFINAL era só repentina. Tinha aqueles assomos, mas logo lhe passavam, era uma excelente senhora, à parte lá as manias com as criadas. À hora a que foste recolher as tuas coisas já estava arrependida. Trabalhou ali também o seu fraco por ti, que podias ser seu filho, e quem sabe se lá por dentro não eras mesmo, porque também há filhos que não saem das entranhas, ou donde julgas que provinham as torradas com mel ao serão? Veio à fala contigo, disposta a contemporizar com as tuas fraquezas (com as da criada não). — A gente às vezes diz coisas. Eu também podia estar ofendida. 28


OS DEGRAUS DA MORTE

— Quem lhe pega? Ofenda-se — disseste, escusadamente grosso, recebendo troco na liquidação da conta. — O que lá vai, lá vai — disse ela, água ao canto do olho. — O senhor fique e não se fala mais nisso. Coitada da Dona Dulce. Uma tão óbvia e ansiosa bandeira branca, agitada assim tão defronte dos teus olhos, esteve a ponto de te enternecer. Seria aliás a atitude mais conforme ao teu coração de água. Mas havia o buraco, Basílio, e o bafo do Louco, e os seus papéis e cartas. Que podias fazer? Recusaste as tréguas. Dona Dulce enxugou diversas lágrimas muito fungadas ante a tua obstinação e pressa, e fez questão de não receber o dinheiro do telefonema com que chamaste o táxi, um último, desesperado agrado de mãe. De táxi tinhas de ir, que a mala pesava toneladas, e havia aquela coisa dos livros, quatro caixotes deles, com que contavas impressionar os demais hóspedes da Dona Rosalina e atrair para ti a fama de intelectual, juntamente com a admiração invejosa de quem não lê, nunca leu mais do que decretos e despachos e portarias, e quando muito novelas de Corín Tellado e os casos do dia dum matutino qualquer. Havia ainda o relógio de mesa, velho sonho de infância pago com o primeiro ordenado de escriturário-dactilógrafo, e a estatueta. Isto é: os teus tesouros, as primeiras conquistas da tua independência económica. Que em casa de teu pai não havia um só 29


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livro, nem relógio. Guiava-se o velhote pelo sol no pegar e no despegar de cada dia de trabalho e pela barriga na hora de comer, e até foi uma alegria quando lhe saiu um relógio, meio escangalhado, numa rifa; só então soube ao certo às quantas andava, e isto enquanto o relógio não se escangalhou de todo. Quanto a livros, verdadeiramente talvez nem sequer soubesse o que eram ou para que serviam. Pobre homem, o seu filho mais tarde compraria metodicamente um relógio de mesa, uma bonita peça de metal amarelo, adornado com uma figurinha feminina seminua de arco na mão e aljava ao ombro, mais uma corça e alguns galgos raivosos a persegui-la, adquirido em sete prestações mensais na relojoaria do bairro. E compraria também muitos livros, alguns dos quais ainda hoje por abrir, e vingaria desse modo a memória afrontada do pai, vá-se lá saber porquê. De táxi, portanto. O qual acabou por se perder nas malhas de um grande engarrafamento, para gáudio do motorista, que via o taxímetro tic-tic, e para consequente desespero teu, que também vias o taxímetro tic-tic e, sobretudo, ardias em apetites de rever o templo. Tanto assim que, mal chegado, pousada a mala e demais pertences, te roçaste com ternura pelo buraco e quase o beijavas. — Quem te teria feito? — murmuraste, em pleno êxtase. — Que génio aqui morou, entre estas quatro paredes? Poeta? Místico? Filósofo? 30


OS DEGRAUS DA MORTE

Não avançaste mais nas conjecturas, porque, firmando a vista no buraco, deste com um olho friamente tranquilo a observar-te do lado de lá! Nem mais, nem menos: um olho, e esse olho olhava-te sem espanto, não obstante os teus êxtases caricatos, olhava-te simplesmente, como se tivesse sido posto ali justamente para olhar e nada mais. Ardias em apetites, disse eu há pouco? Pois permite que brinque, levando um pouco além o esforço retórico: esse olho foi o balde de água fria sobre a tua combustão. A qual, aliás, nenhuma água extinguiria, porque, eu não estava lá para ver, mas adivinho: vermelho de vergonha e raiva, ardias em maior incêndio agora. Quem seria o fulano? Tentaste ver de quem se tratava, encostando o teu próprio olho ao buraco, mas, fosse quem fosse, escapulira-se de tal forma rente e cúmplice com a parede, que nem sombra dele. Arfavas. — Com que então uma jóia, hã? — berraste, a boca colada ao buraco, a fim de te fazeres ouvir sem reservas no quarto contíguo. — Parece que começamos mal, meu caro senhor! Para o que não obtiveste resposta.

E A RESMUNGAR “uma jóia, uma jóia”, justamente como quem quer proclamar o contrário, te entre31


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gaste à tarefa de dispor as coisas a teu gosto e modo. O toque pessoal, em que sempre caprichavas, a vingar a solidão de um escalavrado galo de Barcelos, muito atrás na memória. Assim: o candeeiro, bonita peça, e o rádio de pilhas, sobre a mesinha de cabeceira, justamente onde, pensaste com enlevo, houvera em tempos uma caveira; os livros, por rigorosa ordem alfabética de autores, na estante que a Dona Rosalina recuperara de algures e mandara meter a um canto; a roupa nos gavetões da cómoda e no guarda-fatos; o relógio, toque máximo de requinte, sobre a mesma cómoda, juntamente com dois ou três passe-partouts de gosto duvidoso; os artigos da barba, mais o desodorizante, o after-shave e o shampoo, descobertas recentes, na estantezinha de vidro sobre o lavatório. Que mais? Ah, as aguarelas, restavam as aguarelas, pois. Aguarelas, Basílio? Bem, por aguarelas as tinhas, a essas folhas de papel almaço onde tu mesmo distribuíras umas pinceladas de cor barata, nervosas e abstractas, “com raça”, dizias, julgando teres produzido obras de arte. Então pois as aguarelas onde ficam? Vejamos: uma, representando presumivelmente um rosto e colo de mulher (Maria Fernanda, Maio de 1966), sobre o leito, como os crucifixos das velhas celibatárias; que no leito quiseras tu ter tido, e nunca tiveras, o original. Outras três, possíveis paisagens, na parede defronte, colocadas em degrau, muito giro, inspiração direc32


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tamente colhida de uma página da Schönen Wöhnen. Finalmente a marinha, ora bem, a marinha, — Eureca! Ideia genial. Porque o olho de há momentos, obsidiando-te a memória com a sua metálica frieza, te alterara um tanto as intenções com respeito ao buraco. Mesmo durante a arrumação das coisas, nunca te conseguiras furtar à incómoda sensação de estares a ser observado ou, pelo menos, de poder sê-lo a qualquer momento, a capricho do vizinho do lado. O buraco transformava-se afinal no periscópio da tua intimidade. Pois sim, mas ali tinhas o ovo de Colombo, a solução a um tempo prática e decorativa, o sucedâneo nobre da prosaica rolha alvitrada pela Dona Rosalina, o útil casado com o agradável: a aguarela, colada nos cantos com fita-cola, tapando o buraco, restituindo-te a privacidade ameaçada. — Mas que bem! — fez a Dona Rosalina, citada a que viesse ver a perfeição da obra. — Mas que boa ideia o senhor teve. Assim já não é preciso tapar o buraco. Sim senhor, está tudo muito bonito. Ena, tanto livro! — Alguns — condescendeste, com falsa modéstia. Mas o olho, pá, diz-lhe do olho. — Bom, Dona Rosalina, quando me conhecer melhor verá que não sou absolutamente nada do género de andar com queixinhas. Nunca fui. Mas não vejo maneira de ocultar que há pouco surpreendi o cavalheiro do lado a espreitar pelo buraco. 33


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Nada a poderia ter surpreendido mais. Aberta em espanto: — O senhor que me diz?! — A senhora ouviu. A bem dizer ainda não tinha pousado a mala, já havia um olho a coscuvilhar do lado de lá. — Não é possível! — Como não é possível?! — tornaste, abespinhado. — Não é possível, já lhe disse — repetiu, peremptória. — Mas se eu vi com os meus próprios olhos! — Já lhe disse que não é possível, senhor. O senhor Gusmão trabalha nos Correios até às oito horas. Nunca chega antes das oito e meia. Ainda não são sete horas. Já vê que não pode ser. — Então era o diabo por ele. Porque lá que alguém espreitou, disso não tenha dúvidas. — Fosse quem fosse, o senhor Gusmão é que não. Ainda não chegou a casa, isso lhe garanto eu. Quer ir verificar? E que tivesse chegado (que não chegou)? O senhor Gusmão, espreitar pelo buraco? Nem pense. O senhor viu-o, conheceu-o? — Vi um olho e presumo que, segundo todas as probabilidades, além do olho, o resto do corpo estivesse também. — O olho?! E reconheceu-o só pelo olho? O senhor, se calhar, ainda nem conhece o senhor 34


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Gusmão! Não pode ser, acredite. Se ele ainda não chegou… Procuraste ver as coisas com calma. Pensando bem, que provas concretas tinhas contra o empregado dos Correios, o qual, como a Dona Rosalina aventara, de facto nem sequer conhecias? Não poderia ter sido antes uma criada, que esta casta de gente é sempre amiga de coscuvilhar, mormente quando se trata de hóspedes novos, e tem, a favorecer-lhe o vezo, acesso às chaves de todos os quartos? — Vejamos. Se a senhora me diz que ele ainda não chegou, o caso muda de figura. Mas eu não sou atreito a alucinações. Que alguém espreitou, espreitou. A pergunta que ela foi fazer!: — De que cor era o olho? — Ora abóbora! — ribombaste, e adeus calma, adeus paciência. — Não é possível ver-se a cor de um olho que nos espreita do lado de lá dum buraco. Não se pode ser minucioso a esse ponto, Dona Rosalina! Vi um olho e basta, e posso garantir-lhe que não era, por exemplo, um nariz ou um calcanhar, essa não está má! — Calma, senhor, não se excite, nem fale alto, que ninguém é surdo, e aqui na pensão não temos o hábito de gritar. Voltando ao olho. Só se fosse alguma criada. Mas estranho muito, que elas Pois, pois, as criadas honestas, a comida caseira, a velha ladainha, bem sabias, bem sabias. E desta 35


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forma te vias de novo envolvido em percalços de criadas. Vê a ironia: por causa de uma criada, bateste com a porta ao sair de casa da Dona Dulce; por causa de outra criada, estás agora em vias de conflito com a Dona Rosalina. Logo no primeiro dia! Bolas para as criadas! E a patroa falava, falava: — Uma criada, ainda vá que não vá. Um hóspede novo, para mais um rapaz ajeitadinho como o senhor… Agora o senhor Gusmão, espreitar pelo buraco? Se ele soubesse que o senhor pensou sequer isso dele… — e calou-se, velhaca, deixando-te propositadamente na dúvida sobre o que faria o tal Gusmão, no caso de saber. — Seria bom, então, que advertisse as criadas. — Pois está visto. Lá nisso tem toda a razão. Agora o senhor Gusmão! Se ele soubesse… Ai, se ele soubesse…

COMESTE POUCO, BASÍLIO. Como comerias? Não que te assustassem por aí além as insinuações da Dona Rosalina sobre o mau génio do Gusmão, que aliás, limpavas tu a boca do derradeiro gole de vinho, ainda tiveste ocasião de ver entrar na sala de jantar; e, por Júpiter, era mesmo um gigante temível, seguramente mortífero contra quem quer que tivesse o 36


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infortúnio de o irritar. Mas, enfim, não era disso que o apetite te falecia; tinhas mesmo esquecido passageiramente o incidente. E a comida, reconheceste, não era má de todo, caseira e abundante, nisso não mentira a Dona Rosalina. O fastio procedia antes da ânsia de te encontrares de novo a sós no quarto, agora sim, a tombos com a papelada do Louco. Por isso comeste pouco, recusaste uma chávena de café e subiste as escadas duas a duas. Uma vez no quarto, trancaste-te por dentro, cioso da privacidade do ritual que apetecias e te havia de levar, noite fora, em amoroso diálogo com a verdadeira lucidez que, aos olhos do vulgo, é loucura estreme. Mas: horror! Olhando instintivamente o sítio do buraco, gelou-se-te o sangue, as pernas claudicaram, rolou sobre ti o horror rotundo dos grandes lances trágicos. E isso porque (horror horror horror!) imagine-se: do quarto do lado, alguém, servindo-se porventura de um lápis, de uma chave de parafusos ou apenas de um dedo longo, tinha perpetrado um rasgão na aguarela! A próxima coisa de que te lembras, Basílio, é de te veres na cozinha, a praguejar, lívido de cólera e espanto, sedento de sangue, alvoroçando patroa e criadagem: — Dona Rosalina! Venha ver! Ande, venha ver! A procissão que ali se armou! Porque não só a Dona Rosalina, como a cozinheira e a respectiva aju37


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dante, mais uma velhota que passava todos os dias pela pensão, depois do jantar, a recolher os restos de comida para os cães, um electricista que morava nas redondezas e estava a fazer um biscato num electrodoméstico, as duas criadas, a de dentro e a de fora, e ainda os hóspedes todos, incluindo o Gusmão dos Correios, toda esta gente foi ver, contigo à frente marcando a cadência militar, tremendo de indignação e tremendo. Mas foram ver o quê, se ninguém percebia nada? Foi preciso tu, Basílio, de dedo enérgico, designares a mutilação. Que ainda assim custou a ver, que o rasgão, na verdade, não era demasiado e como que se dissimulava na própria mancha da aguarela. Mas era um rasgão, bolas, e inutilizava uma obra de arte. E devassava uma alcova. Era um rasgão bárbaro e despótico, um duplo crime. Assim o não entendeu a Dona Rosalina, que exclamou, enxofrada: — Credo! E é preciso fazer tanto barulho por causa daquilo? Não garantes ter dito coisa sensata com que lhe rebatesses a leviandade, pois reconheces que estavas cego e gago demais para tanto. Mas crês ter tentado, aliás baldadamente, porque — Quem o ouvisse havia de julgar que tinha caído o tecto do quarto — proferiu ainda ela, tranquilamente, obviamente aliviada de outros legítimos temores. 38


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