CLB - Euclides da Cunha

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Não se trata de mais uma reprodução de um boneco de pano ou palha, “trivialíssimo, de todos os lugares e de todos os tempos”. Tampouco lhe basta o “manequim vulgar que satisfaz a maioria das gentes”. O trabalho criativo de seringueiros-escultores nos confins da Amazônia “lhes quebra tão de golpe a monotonia tristonha de uma existência invariável e quieta”. Nesse sentido, o narrador dá ao seringueiro o atributo de um artista, que seleciona o material e, pouco a pouco, vai moldando o corpo da estátua, pintando e desenhando o seu rosto, dando-lhe expressão e vida, a ponto de transformá-lo numa “obra-prima, a criação de seu gênio rude longamente trabalhado de reveses”. A arte do seringueiro – um monstrengo diferente dos demais – espelha, na expressão do rosto de pano, a dor e o desespero de quem o esculpiu. É como se a escultura fosse um duplo monstruoso do homem desvalido; este, por sua vez, ao acentuar no rosto esculpido “as linhas mais vivas e cruéis”, cria também uma máscara, cuja expressão de tortura reflete a tragédia do homem: o artista e o seringueiro. Aqui, o fazer artístico, trabalho essencialmente humano, é uma espécie de parênteses no sofrimento de uma vida inteira. Ao trabalho árduo, brutalizado e alienado, contrapõe-se o trabalho criativo do pintor e escultor que constrói aos poucos a sua arte, “expressão concreta de uma realidade dolorosa”. Para alcançar essa expressão concreta – a escultura – o narrador se refere aos retoques delicados, lentos, pacientes e cuidadosos do seringueiro durante a atividade laboriosa e inventiva do processo artístico. O resultado é uma “figura disforme”, que, mesmo sendo grotesca, não deixa de dar a impressão de um ser humano, pois no rosto esculpido o seringueiro “aviva um ríctus expressivo na arqueadura dos lábios” e “com dois riscos demorados abre-lhe os olhos, em geral tristes e cheios de um olhar misterioso”. O narrador busca, assim, uma “vista de conjunto, a impressão exata, a síntese de todas aquelas linhas” que tentam transmitir, pela linguagem, uma impressão da realidade. Depois da lenta transformação do monstro em ser humano feita pelo trabalho artístico – transfiguração insensível, segundo Euclides –, o objeto escultural revela uma “ilusão empolgante”. Essa expressão, usada em Os sertões, certamente faz parte de um ideal estético, ou seja, o da obra de arte

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