CLB - Euclides da Cunha

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secundária, que observava os protagonistas e os acontecimentos a partir de uma posição periférica, enquanto absorvia opiniões alheias. Na obra de Conrad, O coração das trevas tem-se destacado, até mudando de lugar na estima da crítica, vindo a ser considerada a mais importante de todas as suas ficções. Uma edição barata e popular como a da Penguin, tirada nos anos 1990 e vendida a 1 dólar, transcreve a opinião da 15ª. edição da Enciclopédia Britânica, que reza ser esta, dentre as estórias de Conrad, “a mais famosa, a mais fina e a mais enigmática”. E isso apesar de pertencer aos primeiros cinco anos da produção do escritor; mesmo nesses anos, nem de longe chegando ao requinte do foco narrativo múltiplo e caleidoscópico que já se verificara, por exemplo, em Lord Jim74. Mas é uma das estórias “de Marlow” – apesar de não ter foco único, porque o narrador reporta visões de Kurtz veiculadas por outras pessoas e até por um discípulo seu, que muito o admira – que permite adensar as contradições ou inconsistências com que personagens e eventos são delineados. Trata-se de uma investigação pessoal de Marlow a propósito de uma experiência que, tarimbado homem do mar, teve na África. É ele mesmo, e não por interposta pessoa como em outras narrativas de Conrad, quem sofre as agruras de ser marinheiro naquele rincão, enquanto procura desvendar o que e quem é alguém chamado Kurtz, a quem acaba encontrando rapidamente, embora já esteja há mais tempo intrigado pelo homem. Uma das razões da subida de cotação de O coração das trevas – afora sua insuperável qualidade literária – é que não se equipara a uma fantasmagoria conjuradora dos poderes infernais à maneira de Edgar Allan Poe. Nem uma só vez Conrad fornece o nome do grande rio em forma de serpente com o corpo arqueado, cujo curso Marlow remonta. Nem o da capital européia – a que confere o epíteto bíblico de “sepulcro caiado” – que comanda aquela região. Nem o nome da região. Porém o tempo não desmentiria que aludia ao Rio Congo, a Bruxelas e ao Congo Belga, um caso ímpar de cupidez capitalista aliada a genocídio dentre os do imperialismo do final do século XIX, quando as potências européias, na Conferência de Berlim (1883-5), partilharam entre si, no mapa, a África.

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