Direito à Cidade - Revista de Administração Municipal - Edição 279 - IBAM

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REVISTA DE ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL

Revista de Administração Municipal – MUNICÍPIOS IBAM Janeiro/Fevereiro/Março 2012 Ano 58

Nº 279

MUNICÍPIOS DIREITO À CIDADE ARTIGOS Informalidade Territorial Reforma Urbana na Colômbia Dinâmica Urbana Habitação no Brasil Desenvolvimento Sustentável

E MAIS Finanças Municipais Pareceres e Jurisprudência Em Foco

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Editorial

Direito à cidade Os Editores

Quem trabalha com políticas públicas observa como alguns temas surgem, são enfrentados e perdem foco, às vezes desaparecendo, pelo menos da agenda de prioridades. Por outro lado, outros se tornam persistentes pela sua pertinência como problemas críticos de sobrevivência na sociedade, diante da falta de vontade ou de condições políticas para a sua solução. O tema do Direito à Cidade não é novo, mas a cada momento surge no debate com vigor crescente ou com novas abordagens. Sua persistência no tempo o torna irremediável para aqueles que vivem, pensam e governam a cidade. Mesmo diante de diiculdades políticas estruturais e de contexto, passamos do discurso à prática, tentando ir além das promessas e de meras diretrizes formuladas em políticas urbanas, em busca de novas atitudes e de instrumentos para a ação transformadora. A verdadeira conquista a contabilizar no tema é a criação, com avanços e recuos, de um espaço político e institucional mais favorável à airmação de direitos. Ainal, neste mundo que se urbaniza a taxas crescentes, deveria ser sem volta o caminho do Direito à Cidade para todos. Nisto, o tema se une a uma ampla agenda associada de lutas sociais, sobretudo urbanas, pela construção de espaços de vida mais justos e inclusivos. De fato, a democracia parece mesmo querer se airmar como forma geral de governo e de organização societária, mesmo onde governos ainda resistem a vozes insistentes e corajosas das ruas. Entretanto, a democracia só irá mesmo mostrar que vingou quando (e onde) o simples olhar sobre a cidade puder reconhecer

seus cânones expressos em cada bairro, em cada rua, em cada moradia e na vida de cada cidadão e cidadã. A Revista de Administração Municipal MUNICÍPIOS tem a satisfação de lançar este seu número com trabalhos de articulistas com extensa experiência em cidade e em habitação de interesse social. Para os municípios brasileiros, e para a Administração Pública em geral do País, o tema traz motivações renovadas. Além do dito acima, pelo enorme estoque de conhecimento acumulado no Brasil nesses assuntos, o que pode apoiar programas de governos consequentes; pelas competências do Município em questões estruturais para o desenvolvimento urbano e humano; pelas oportunidades atuais de ação federativa com os Estados e a União (conira o tema no próximo número da revista); e, inalmente, pelo reconhecimento – mesmo pelos mais conservadores – da importância da inclusão social para o desenvolvimento do País. Como a revista não tem o propósito de lançar números monotemáticos, completa esta edição um artigo sobre Desenvolvimento Sustentável em Áreas de Proteção Ambiental Municipais: um Estudo de Caso na Serrinha do Alambari. A sessão Finanças Municipais traz matéria sobre Despesas com a Educação. A sessão Em Foco noticia a realização de dois eventos internacionais ocorridos no Panamá, tratando de intercâmbio e de cooperação sobre melhores práticas de governo e desenvolvimento. Finalmente, a sessão Pareceres e Jurisprudência dispõe a um público maior de leitores respostas da Consultoria Jurídica do IBAM aos seus associados.

MISSÃO DA REVISTA A missão da Revista é ser um meio de difusão de informação, de estudos, de resultados de pesquisas inéditas e um fórum de debate sobre temas de interesse nacional e internacional relacionados ao federalismo, à descentralização, ao desenvolvimento da capacidade institucional dos governos municipais, à construção de uma sociedade democrática e à valorização da cidadania.

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Índice

EXPEDIENTE A Revista de Administração Municipal – MUNICÍPIOS é uma publicação do Instituto Brasileiro de Administração Municipal – IBAM, de periodicidade trimestral, depositada na Reserva Legal da Biblioteca Nacional e no Catálogo Internacional de Periódicos sob o n.° BL ISSN 0034-7604. Registro Civil de Pessoas Jurídicas n.° 2.215. Editores Editor Executivo – Alberto Costa Lopes Editor Técnico – Heraldo da Costa Reis Coordenadora Editorial – Sandra Mager Apoio Administrativo – Ana Kelly Rosa de Jesus Conselho Editorial Alberto Costa Lopes (IBAM), Ana Maria Brasileiro (UNIFEM/ONU/Washington/Estados Unidos), Celina Vargas do Amaral Peixoto (FGV/Rio de Janeiro/RJ), Emir Simão Sader (CLACSO/Buenos Aires/ ARGENTINA), Fabrício Ricardo de Limas Tomio (UFPr/Curitiba/PR), Heraldo da Costa Reis (IBAM), Jorge Wilheim (Consultor em urbanismo, São Paulo/SP), Paulo du Pin Calmon (UNB/CEAG/Brasília/DF) e Rubem César Fernandes (VIVA RIO/Rio de Janeiro/RJ).

ARTIGOS / ARTICLES

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O Registro Público do Título de Posse como fator inicial e essencial para a superação da Informalidade Territorial Urbana / The public registration of informal tenure statements as the first and key step towards regularizing urban informality Alberto M. R. Paranhos

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Por que fomos a Medellin e Bogotá? / Why we went to Medellin and Bogota?

Conselho Técnico Alberto Costa Lopes, Alexandre Carlos dos Santos, Heraldo da Costa Reis, Jaber Lopes Mendonça Monteiro, Maria da Graça Ribeiro das Neves e Marlene Fernandes.

Antônio Augusto Veríssimo

Esta publicação consta do indexador internacional Lilacs – América Latina e Caribe e as bibliotecas nas seguintes entidades: • FEA/USP - Departamento de Administração • FGV - Biblioteca Mário Henrique Simonsen • UNB - Biblioteca Machado de Assis • Biblioteca Nacional • Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia Catálogo Coletivo Nacional (CCN) • Association of Research Libraries • Latin Americanist Research Resources Project • Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine - Centre de Recherche et de Documentation sur l’Amérique Latine • Facultad de Ciencias Juridicas y Politicas - Universidad Central de Venezuela • HACER - Hispanic American Center for Economic Research

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Dinâmica urbana recente da cidade do Rio de Janeiro: considerações a partir da análise de dados dos censos do IBGE e do licenciamento urbanístico municipal / Recent urban dynamic of Rio de Janeiro city: considerations from the analysis of IBGE census data and from the urban municipal licensing Henrique Barandier

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A questão da habitação no Brasil: retrospectiva e momento atual / The question of housing: retrospective and present time Alberto Lopes

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Desenvolvimento sustentável em áreas de proteção ambiental municipais: um estudo de caso na serrinha do Alambari / Sustainable development in municipal environmental protection areas: a case study in Serrinha do Alambari José Ricardo Maia de Siqueira

ASSINATURAS Tel.: (21) 2536-9711/ 2536-9712 • revista@ibam.org.br Valor da assinatura anual: R$ 48,00 Tiragem: 2 mil exemplares REDAÇÃO Coordenação Editorial Edição 1 – Comunicação & Serviços Ltda. • Telefax: (21) 2462-1933 Jornalista responsável: Mauricio S. Lima (MTb 20.776) Jornalismo: Ana Cristina Soares Revisora gramatical: Lucíola M. Brasil Programação visual: Comunicação & Serviços Ltda. Foto de Capa: sxc.hu DEPARTAMENTO COMERCIAL Contato: (21) 2462-1933 Os artigos reletem a opinião de seus autores. É permitida a sua reprodução desde que citada a fonte.

IBAM – Edifício Diogo Lordello de Mello Largo IBAM, 1 – Humaitá – Rio de Janeiro, RJ CEP 22271-070 Tel.: (21) 2536-9797 www.ibam.org.br Conselho de Administração Edson de Oliveira Nunes (Presidente), Edgar Flexa Ribeiro, Edvaldo Brito, Henrique Brandão Cavalcanti, João Pessoa de Albuquerque, Luiz Antonio Santini Rodrigues da Silva, Maria Terezinha Tourinho Saraiva, Mayr Godoy, Paulo Alcântara Gomes, Tito Bruno Bandeira Ryff.

PARECERES E JURISPRUDÊNCIA / REPORTS AND JURISPRUDENCE

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Assistência Social e Princípio da Universalidade das Ações de Saúde Pública

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Incidência de ISSQN nos Serviços Cartorários, Notariais e de Registro

Conselho Fiscal Aguinaldo Helcio Guimarães, Paulo Reis Vieira, Raymundo Tarcísio Delgado, Roberto Guimarães Boclin, Willian Alberto de Aquino Pereira. Superintendência Geral Paulo Timm REPRESENTAÇÕES

SEÇÕES / SECTIONS

São Paulo Avenida Ceci, 2081 • Planalto Paulista, São Paulo • SP • CEP 04065-004 • Tel/Fax: (11) 5583-3388 • Ibamsp@ibam.org.br

68 – FINANÇAS MUNICIPAIS / MUNICIPAL FINANCES

Santa Catarina Rua Joinville, n.° 876 - sala 1 - Bairro Vila Nova - Ed. Empresarial Vila Nova - Blumenau - SC - 89035-200

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78 – EM FOCO / HIGHLIGHTING


Informalidade Territorial

O Registro Público do Título de Posse como fator inicial e essencial para a superação da Informalidade Territorial Urbana Alberto M. R. Paranhos — Economista Urbano. Consultor Internacional em Gestão Urbana e Municipal — almadaropa@gmail.com

RESUMO O ensaio argumenta em favor da necessidade de se regularizar a posse da terra e suas benfeitorias, nos assentamentos precários do Brasil, mediante os serviços dos Cartórios de Registro de Títulos e Documentos. Espera-se com isto mais agilidade, transparência e justiça no decorrer dos procedimentos de formalização da ocupação territorial, e especialmente nos casos eventuais de desapropriação para fins de utilidade pública, em que a mais-valia decorrente dos investimentos das famílias envolvidas deve ser computada no cálculo das indenizações. O texto comenta a estimativa do valor econômico dessa informalidade patrimonial e sugere um conjunto de iniciativas para consolidar e aperfeiçoar o processo já em andamento em algumas cidades. Palavras-chave: Informalidade. Regularização. Assentamentos Humanos. Registro. Patrimônio.

Introdução O propósito deste ensaio é motivar a relexão sobre a situação da informalidade no interior das cidades brasileiras e por extensão também as latino-americanas e caribenhas. Com critérios objetivos, o texto defende a prioridade a ser dada ao registro público do título de posse por ser um elemento inicial e essencial aos esforços para se obter uma regularização urbanística e jurídica socialmente justa para as famílias residentes em assentamentos precários. A contribuição está focalizada nos documentos oriundos

de normatização brasileira, especialmente aqueles derivados de compromissos internacionais assumidos pelo Estado Brasileiro (pelo governo da época). Adicionalmente, a contribuição articula esses documentos e outras pesquisas e informações, no intuito de apresentar um panorama que sustente a argumentação. Ao inal, as sugestões se referem a possíveis iniciativas, que com certeza permitirão mais agilidade operacional nos agentes afetos a este problema, nos três Poderes da República e em todas as instâncias territoriais de gestão, de modo a atender

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com mais rapidez e eiciência as aspirações de cidadania urbana desse segmento mais vulnerável da população. O texto está organizado em oito tópicos, a saber: • o primeiro trata a conceituação básica que norteia o assunto da informalidade territorial à luz de um processo de sustentabilidade urbana, partindo dos principais elementos que caracterizam as cidades brasileiras e latino-americanas em geral; • no segundo e no terceiro, comenta-se a plataforma brasileira do Estatuto da Ci-

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dade, que não apenas permite o processo de regularização como assegura a operacionalização de um direito constitucional; • o quarto recupera a informação dos compromissos internacionais da Agenda Habitat e das Metas de Desenvolvimento do Milênio, que todos os países membros do Sistema ONU se comprometeram a cumprir; • o quinto apresenta resumidamente o exercício de responsabilidade social do 6º RTD; • o sexto argumenta em favor da necessidade de consolidar e ampliar essa iniciativa; • o sétimo comenta a estimativa econômica do patrimônio informal urbano, feita por meio de pesquisa amostral do BID; • 0 oitavo apresenta considerações inais, que incluem um conjunto de sugestões de capacitação de agentes públicos envolvidos com o processo de regularização fundiária.

A Informalidade Territorial como Expressão da Desigualdade Está registrado em diversos documentos oficiais de governos e de agências internacionais que a região da América Latina e do Caribe (AL&C) 1 se caracteriza por três elementos bem marcantes, quando descrevem o seu estágio atual do processo de

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desenvolvimento: (1) é a região do mundo em desenvolvimento com a maior taxa de urbanização2 ; (2) é a região do mundo em desenvolvimento com a maior descentralização política e administrativa3; e (3) é a região com prevalência (e não só do mundo em desenvolvimento) das maiores brechas de desigualdade socioeconômica4. Nesse contexto, o desaio dos governos nacionais e subnacionais da região poderia resumir-se atualmente em “como obter vantagens da urbanização e da descentralização para reduzir as disparidades socioespaciais das cidades, contribuindo para diminuir a brecha de desigualdade”. Este desaio está intrinsecamente vinculado ao conceito de Desenvolvimento Urbano Sustentável, que poderia ser deinido da seguinte forma: “É o processo pelo qual todas as forças que interagem em um território, seja explorando-o ou transformando-o, sob a liderança da autoridade pública eleita para a gestão desse território, discutem as opções de crescimento e desenvolvimento do assentamento humano e da economia nele incidentes, e acordam iniciativas convergentes dentro de um contexto que permita a priorização dos interesses coletivos sobre os interesses individuais (e setoriais de cada força), tendo como eixo norteador o uso racional dos recursos naturais do território, o melhor aproveitamento de suas potenciali-

dades atuais e futuras, sabendo administrar e explorar as oportunidades disponíveis no momento, e reconhecendo as eventuais limitações existentes, sem prejudicar nem comprometer o potencial futuro desse território ou de sua população residente e usufrutuária5.” Uma das dimensões mais visíveis da desigualdade socioeconômica nas cidades grandes e médias da região (e muitas das menores) é a forma pela qual se procederam o uso e a ocupação de seu território. Não são raras as cidades em cuja composição do tecido urbano mesclam-se loteamentos convencionais com assentamentos precários, tais como favelas, loteamentos clandestinos, invasões de terrenos públicos e privados, ocupação de áreas ambientalmente frágeis ou protegidas, inclusive aquelas que apresentam risco de vida para quem ali constrói sua moradia, geralmente precária, afora a existência de ediicações de habitabilidade discutível, como cortiços e assemelhados. Neste ponto da argumentação, é bom alertar logo sobre a confusão e a dubiedade correntes ao tratarem-se os temas de informalidade, precariedade, carência e pobreza: mesmo referindo-se na maioria das vezes aos mesmos contingentes populacionais, eles não são sinônimos, embora haja muitos casos em que ocorre uma associação entre eles. A precariedade tem um


Informalidade Territorial

Não são raras as cidades em cuja composição do tecido urbano mesclam-se loteamentos convencionais com assentamentos precários, tais como favelas, loteamentos clandestinos, invasões de terrenos públicos e privados

viés mais jurídico e regulamentar, enquanto a pobreza se refere geralmente a renda e consumo, e a carência focaliza a falta de infraestrutura, de equipamentos e de serviços.

cidade e suas amenidades ambientais; essa ocupação caracteriza a informalidade pela precariedade jurídica, senão a ilegalidade, mas não os demais elementos.

Essas características coincidem quando se referem a um assentamento informal ocupado por famílias pobres em área sem equipamento nem infraestrutura nem serviços adequados, constituindo um gueto de excluídos dentro do espaço dito “urbanizado”. Também inexistem títulos de fé pública que garantam seus direitos territoriais. Por outro lado, não coincidem quando ocorre uma ocupação de alto padrão habitacional, invadindo uma área verde, ou uma reserva florestal, ou outro tipo de área geralmente com vista privilegiada em relação à

Também ocorrem abusos quando a área dita informal e precária se vê de repente em uma situação privilegiada na lógica do mercado imobiliário. O “processo de regularização” acaba sendo reduzido a uma estratégia de remoção desses habitantes originais para outros locais, nem sempre próximos, de modo a tornar aquela área disponível para novos investimentos públicos ou privados, dotando o lugar de serviços e de equipamentos de qualidade para atrair população de estratos socioeconômicos superiores, assegurando assim a mais-valia territorial. Esse procedimento

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não seria tão injusto se, ao menos, os moradores originais pudessem usufruir desse jogo capitalista normal, incorporando ex-ante uma parte dos ganhos advindos dessa operação urbanística. Entretanto, o que se observa na maioria das vezes é que, mesmo quando os habitantes recebem alguma indenização, esta é insuiciente para o seu reassentamento na mesma zona urbana. Isso signiica, ao im, que perderam patrimônio real, renda e possibilidade de uso de serviços públicos melhores, principalmente porque falta-lhes uma documentação jurídica, de fé pública, que comprove o seu direito à cidade.

A Oportunidade de Regularização Advinda do Estatuto da Cidade Depois de quase 20 anos circulando entre as comissões especializadas do Congresso Nacional brasileiro, e graças a uma grande pressão popular e de algumas agências de cooperação internacional – e com o apoio de algumas entidades federais que entenderam a prioridade e a urgência da proposta –, foi aprovada a Lei Complementar n.º 10.257, de 10 de julho de 2001. A lei regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, estabelecendo as diretrizes gerais da política urbana e deinindo a “função social da propriedade”. Também conhecida como o “Estatuto da Cidade”, essa Lei foi complementada pela Medida Provisória n.º 2.220,

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(...) o processo judicial no Brasil ainda é muito lento, agravado pela possibilidade de sucessivos recursos de apelação, quase independentemente da decisão em primeiro grau

de 4 de setembro de 2001, que dispõe sobre a concessão de uso especial prevista no parágrafo primeiro do artigo 183 da Constituição Federal, entre outros assuntos.

Municipal seja adotada para a aplicação do Estatuto no âmbito de cada Município, onde icarão estabelecidos os critérios locais para a aplicação.

Em seguida, o Governo Federal reorganizou sua estrutura administrativa interna de modo a concentrar os principais assuntos “urbanos” em um mesmo Ministério. Pela primeira vez na história, não se titula com alguma referência de cunho setorial, mas sim territorial. Criou-se o Ministério das Cidades, cuja denominação tornou muito claro o seu propósito e os objetivos de ação.

A Regularização Fundiária

Em síntese, o Estatuto da Cidade propõe uma série de instrumentos jurídicos inovadores, tanto no contexto brasileiro como latino-americano e das regiões em desenvolvimento. Adicionalmente, seguindo a característica regional de descentralização e a tradição municipalista brasileira, ele exige que uma Lei

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Nas cidades de porte grande ou médio do Brasil, e da maioria dos países da AL&C, uma parte da área considerada “urbana” não tem os serviços, equipamentos ou infraestrutura que permitam defini-la como “urbanizada”. Muitas vezes, a população residente nessas áreas ultrapassa 20% do total da cidade, e em alguns casos é até superior a 50%. Por diversas razões administrativas, legais e até ideológicas, os governos nacionais e locais desprezaram ou desconsideraram essas áreas, ao serem mencionadas como “subnormais” nos mapas dos planos diretores ou planos de desenvolvimento local, já que apresentavam ocupação com parâmetros inferiores

aos padrões usuais, especialmente no que tange às condições de conforto, higiene e habitabilidade definidos geralmente nas Leis Municipais de Uso e Ocupação do Solo. Por um lado, o Estatuto da Cidade veio preencher a lacuna jurídica que permite a ação governamental formal e focalizada, apesar de que diversos governos municipais encontraram brechas e outros expedientes para contornar essa lacuna e realizar a urbanização desses assentamentos informais às vezes de forma legalmente precária, expondo-se ao risco de enfrentar demandas de toda ordem na Justiça. Por outro lado, o volume crescente dos votos desses residentes associado ao aperfeiçoamento de sua educação e cultura cívicas forçaram as instâncias governamentais a não ignorar o Estatuto da Cidade, principalmente quando o Governo Federal aumentou as possibilidades de inancia-


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mento para esse processo de regularização.

Os Compromissos Internacionais dos Países

O processo tem, resumidamente, duas dimensões fundamentais: (1) a regularização urbanística; e (2) a regularização jurídica. A primeira decorre de responsabilidade municipal prevista na Constituição Federal e se refere ao fato físico. O lote, a parcela ocupada da terra, a ediicação, o loteamento, a infraestrutura: o Município tem por obrigação reconhecer o loteamento com a deinição de áreas públicas e privadas, aceitando o arruamento bem assim as reservas de área para futuros equipamentos de serviços públicos. A segunda, ou seja, a regularização jurídica, também é executada pelo Município em decorrência da abertura genérica dada pelo Estatuto da Cidade e completada pelo marco legal municipal pertinente, que trata de deinir e de reconhecer a posse da área e da ediicação ali existente. Nesses casos, alguma instância municipal desempenha o papel de um “cartório de registros” até que o processo avance e amadureça de tal forma que se possa alcançar a outorga de um Título de Propriedade, com averbação em um Registro Geral de Imóveis (RGI).

Em junho de 1996, o então Centro das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos, CNUAH (Habitat), organizou em Istambul a Segunda Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos, apelidada de “Habitat II”, dando seguimento à Primeira Conferência, realizada em junho de 1976, em Vancouver (Canadá), que provocou a criação do próprio CNUAH.

No entanto, cabe ressaltar que, na maioria das vezes, não se pode chegar à etapa da propriedade, considerada por muitos como “ideal” – apesar das controvérsias a este respeito – como pode ser visto a seguir.

A conferência teve como méritos principais: (1) chamar a atenção do mundo todo, tanto os países das regiões desenvolvidas como aqueles em processo de desenvolvimento, para o crescimento das áreas de ocupação informal nas cidades, especialmente nos casos em que essa ocupação se dá em zonas de risco; (2) envolver no seu processo a organização de Comitês Nacionais de Habitat, com a sugestão6 de que esses Comitês fossem constituídos em forma tripartite, incluindo representação do governo nacional, dos governos locais e de organizações da sociedade civil7; (3) impulsionar a convergência da representação municipal no mundo, fomentando a criação de uma entidade mundial que pudesse defender na ONU os interesses dos governos locais em forma independente dos governos nacionais 8; e (4) revitalizar a estrutura e o funcionamento do CNUAH,

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que foi promovido a um Programa Pleno do Sistema das Nações Unidas, com a nova denominação de Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-HABITAT, em inglês9). A Conferência Habitat II terminou com a adoção de um documento-compromisso global denominado “Agenda Habitat”, que foi negociado e aprovado em torno a dois eixos temáticos principais e complementares: (1) provisão de moradia adequada para todas as famílias, especialmente as mais vulneráveis; e (2) promoção do desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos10. A Agenda Habitat tornou-se o documento mandatório que norteia as atividades normativas e operacionais do ONU-HABITAT. Mais tarde, em 2000, a Assembleia Geral da ONU realizou a Sessão Especial do Milênio, durante a qual foi discutida e aprovada a “Declaração do Milênio”, para cujo monitoramento foram detalhados oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs). Esses objetivos foram subdivididos em 18 metas especíicas, para as quais foram propostos inicialmente 48 Indicadores de Monitoramento, agora em processo de revisão. Os Objetivos de números 1 a 6 têm um critério antropocêntrico, já que deinem ações voltadas ao desenvolvimento

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O fato de uma ocupação de território urbano e sua edificação não existirem legalmente perante os órgãos do Estado que administram esse território não significa que não tenham valor econômico no mercado imobiliário

pessoal do ser humano per si, quais sejam educação, saúde e pobreza. Já o de número 7 está revestido de um caráter territorial e se refere tanto ao ambiente natural (Meta 9) como ao construído (Metas 10 e 11), enquanto o Objetivo de número 8 tem um caráter vinculado aos arranjos institucionais para a cooperação internacional, mesmo incluindo indicadores temáticos de setores especíicos não decorrentes dessa cooperação (telefonia e comunicações, por exemplo). Cabe destacar, no contexto deste ensaio, que a Meta 11 incluída no Objetivo 7 estabelece “alcançar, para o ano 2020, uma melhoria substancial na qualidade de vida das pessoas que vivem em assentamentos precários”, o que reforça mais uma vez a necessidade de buscar-se a sustentabilidade das cidades e do desenvolvimento urbano. Este enunciado provocou muitas discussões para acordar mais precisamente o perfeito entendimento desta

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Meta11 e dos termos nela contidos, tais como “melhoria substancial”, “qualidade de vida” e, inalmente, “assentamentos precários”. A necessidade de esclarecer esses conceitos de forma a obter a concordância dos governos e demais entidades envolvidas no monitoramento das Metas do Milênio levou o ONU-HABITAT a uma série de consultas com autoridades nacionais e locais, bem assim entidades da sociedade civil, universidades e setor privado. O resultado foi um documento que trata de explicar o conteúdo da Meta 11 e seus indicadores específicos de monitoramento12. Um dos termos mais discutidos nesse processo foi o conceito de “posse segura”, incluído no entendimento de “qualidade de vida”. Alguns países insistiam na necessidade de assegurar a “propriedade” do imóvel ocupado pelas famílias que vivem em assentamentos precários, como resultado

inal do processo de regularização fundiária. Entretanto, este não era a inalidade do enunciado da Meta 11: o seu principal propósito é evitar a remoção forçada das famílias sem o devido processo jurídico que deina uma indenização justa pelas benfeitorias por elas realizadas. Daí a posição irme e constante por parte do ONU-HABITAT para o conceito de “posse segura” e, em consequência, a importância de se desenhar um processo de regularização que reconhecesse a posse, deinisse a benfeitoria, estimasse seu valor econômico e defendesse a família afetada contra remoções forçosas que desconsiderem seu direito adquirido.

O Papel da Responsabilidade Social no Apoio ao Processo de Regularização Fundiária Como visto, a partir da Meta 11 e do Estatuto da Cidade, icou clara uma janela de oportunidade para os Car-


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com referência às comunidades que não têm acesso aos serviços particulares de advocacia para fazerem-se ouvir na Justiça13.

O Brasil lidera os processos de Responsabilidade Social Empresarial para a melhoria substancial da qualidade de vida das famílias residentes em assentamentos precários

tórios de Registro de Títulos e Documentos (RTDs). Com efeito, se os Cartórios de Registro Geral de Imóveis (RGIs) lidam especíica e exclusivamente com “títulos efetivos de propriedade imobiliária”, os RTDs poderiam assumir a tarefa de registrar os demais, como é o caso da “posse”, uma vez que este tipo de Cartório registra qualquer título ou documento, servindo como iéis depositários do conteúdo dos mesmos e dando fé pública a essa informação. Exemplo modelar deste fato ocorre no Rio de Janeiro, onde o 6º Ofício (RTD) se propôs capitanear uma iniciativa de Responsabilidade Social Empresarial, apoiando algumas comunidades informais (Pavão, Pavãozinho, Manguinhos, entre outras), no levantamento topográico dessas ocupações e de cada uma das benfeitorias (casas,

barracos ou outro tipo de ediicação, quando houver). A ação de mobilização foi muito bem-aceita pelas comunidades interessadas e vem sendo mantida pela equipe cartorária com algum sacrifício pessoal. Ao contrário do que seria esperado, outros cartórios não replicaram este ato de solidariedade comunitária e inclusive se voltaram contra ela, alegando “criação de ilial”, argumento que dispensa qualquer comentário. A despeito desse fato, a iniciativa do 6º Ofício foi prontamente reconhecida e apoiada pelo Núcleo de Terra e Habitação da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, o que aumentou a qualidade dos procedimentos e reforçou o impacto dos resultados, já que a Defensoria Pública é o canal de defesa dos direitos individuais, coletivos e difusos, especialmente

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Na região da AL&C, o Brasil é um país que lidera os processos de Responsabilidade Social Empresarial, tanto no âmbito das grandes empresas nacionais e multinacionais14 como no caso de empreendimentos individuais e de menor âmbito, mas igualmente impactantes para a melhoria substancial da qualidade de vida das famílias residentes em assentamentos precários, tal como estabelece a Meta 11 dos ODMs. Informado dessa iniciativa, o Escritório Regional para a AL&C15 do ONU-HABITAT passou a acompanhar este processo e a difundi-lo para suas entidades parceiras. Chegou-se a estimular o 6º RTD a apresentar este caso no Concurso Mundial para o Prêmio de Melhores Práticas em Gestão Urbana, realizado no início de 201216 e patrocinado pela Prefeitura de Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. Infelizmente, porém, não foi possível atender a tempo o prazo de inscrição.

A Necessidade de Consolidar e Ampliar Essa Iniciativa No Brasil, a Justiça ordinária é um serviço prestado pelo Estado Federado e a regra geral quanto à interpretação da Lei segue a lógica – “cada

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cabeça, uma sentença”. Isto signiica que o mesmo caso pode ter resoluções e sentenças distintas, dependendo de quem o julgue; apesar de já existir o ato da súmula vinculante, a força da jurisprudência ainda é tênue. Outro elemento adicional a este contexto é que alguns Tribunais Estaduais incluem em sua estrutura organizacional Varas Especializadas para tratar assuntos especícos, a exemplo da Vara de Família. Em alguns Estados, uma Vara Especializada para Assuntos Fundiários julga os processos de regularização. A vantagem da existência dessa instância é que há maior probabilidade de que o mesmo assunto tenha a mesma resolução e sentença. Caso todos os Estados tivessem Varas Especializadas em Assuntos Fundiários no âmbito de seus Tribunais de Justiça, esse tema teria provavelmente mais agilidade e homogeneidade, acelerando a implementação do Estatuto da Cidade. De qualquer forma, é preciso considerar que, como em muitos dos países cujo arcabouço jurídico deriva do Direito Romano, a maioria das resoluções nos foros brasileiros tem evidente inclinação de cunho patrimonialista com apego total de respeito ao direito de propriedade e sua preservação, especialmente quando a propriedade é privada. Curiosamente, esse apego nem sempre se aplica

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à extensão desse conceito nos casos de regularização fundiária, talvez porque a maioria deles não resulte em “propriedade plena” senão apenas em “cessão de uso”. Ou, talvez, porque a maioria de quem ocupa a magistratura (assim como a maioria de outras proissões universitárias) vem de classes socioeconômicas superiores e acostumadas ao conceito clássico de propriedade e sua perpetuação. A esperança está em que a nova geração de juízes e de juízas, mais jovens e sensíveis às mudanças sociais, venha lançar novas luzes sobre este assunto, a ponto de equilibrar a tendência patrimonialista com uma preocupação social. Principalmente agora que já existe maior e melhor exposição do Estatuto da Cidade e outras leis de menor hierarquia. Entretanto, o processo judicial no Brasil ainda é muito lento, agravado pela possibilidade de sucessivos recursos de apelação, quase independentemente da decisão em primeiro grau. Tal situação leva a que muitos casos cheguem às cortes superiores, já sobrecarregadas com casos de outras índoles, atrasando ainda mais a inalização cabal do processo de regularização. Como já dito anteriormente, dado que o conceito de “súmula vinculante” derivada das decisões da Suprema Corte ainda não é uma Norma mandatória, aquela Corte se vê repetindo muitas vezes processos de

apelação com conteúdo já julgado. Assim, apesar de muitos avanços conceituais e tecnológicos já implementados pelo Poder Judiciário para acelerar suas operações, os processos de regularização fundiária ainda são, no mais das vezes, lentos e pouco práticos. Por isso, ainda requerem mais reforço político e instrumental, seja pela maior pressão pública, pela mobilização popular e dos setores comprometidos com a boa solução desse passivo social, por uma modernização mais rápida do processamento das demandas. Seja, enim, pela capacitação mais afinada e instrumental das pessoas que vão apresentar, defender e julgar esses casos, envolvendo aí o funcionalismo dos Tribunais Estaduais, das Varas Especializadas em Regularização Fundiária, das Defensorias Públicas e assim por diante.

A Estimativa de Valor do Patrimônio Construído nas Áreas de Ocupação Informal O fato de uma ocupação do território urbano e sua ediicação não existirem legalmente perante os órgãos do Estado que administram esse território não signiica que não tenham valor econômico no mercado imobiliário. Sabe-se que o chamado “mercado imobiliário informal” é tão ativo quanto o formal, inclusive com suas próprias regras e procedimentos.


Informalidade Territorial

O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) realizou uma pesquisa de campo em 12 países da AL&C para estimar o valor do patrimônio construído que não está registrado em nenhum documento oficial 17. Utilizando uma metodologia desenvolvida pelo ideólogo peruano Hernando de Soto, que considera o valor de mercado das benfeitorias e a estimativa do valor de terreno, aplicada aos diversos tipos de ocupação informal nos países pesquisados, o BID chegou ao impressionante valor total de USD 1,2 trilhões. Como o Brasil, por exemplo, não foi incluído nessa pesquisa de campo, e como suas áreas informais equivalem a pelo menos o total das áreas semelhantes detectadas nos 12 países pesquisados, o ONU-HABITAT / ROLAC ampliou para o universo de todos os países da região a estimativa dessa pesquisa amostral, chegando à conclusão de que o total do patrimônio informal urbano nas cidades de toda a AL&C pode ser estimado ao redor de USD 3 trilhões18. É importante frisar que, à exceção da República de El Salvador, todos os demais países latino-americanos cobram um tributo com base no patrimônio imobiliário19, geralmente com uma alíquota média em torno a 5% do valor de mercado. Nesse contexto tributário, aquele patrimônio informal poderia

gerar uma receita anual da ordem de USD 15 bilhões, o que reforçaria bastante os cofres municipais, já que na grande maioria dos países este tributo é da alçada dos governos locais. À guisa de comparação, o total da Contribuição Exterior para o Desenvolvimento20, ou seja, os recursos inanceiros entregues pelas agências internacionais de fomento aos países da AL&C, exceto os casos de emergência para desastres, chega a uma média anual de cerca de USD 5 bilhões. Ou seja, a terça parte daquilo que já temos. Em resumo, a região conta com um patrimônio imobiliário informal cujo “rendimento anual” é, em tese, muito superior ao que ela recebe a título de “ajuda inanceira” à custa de apelos políticos. Por estes dados, pode-se concluir que, mesmo não tendo todos os recursos inanceiros de que necessita, a região dispõe de recursos próprios consideráveis, mas seu território ainda é mal administrado. O Sr. De Soto, em sua teoria, estima que essa regularização deveria resultar na criação de uma garantia real (hipoteca, fundo inanceiro vinculado ou outra fórmula) que permitiria às famílias levantar recursos para melhorar sua moradia e seu hábitat, além de um crédito inicial para começar algum negócio. Mesmo no Peru, onde o governo impulsionou

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um esforço impressionante para regularizar a informalidade, e apesar de seu resultado positivo quanto à entrega de títulos de posse e de propriedade, essa teoria não se concretizou. De fato, esse possível “empreendedorismo familiar” baseado em levantar recursos dessa maneira não parece estar alinhado com a cultura comercial e inanceira das famílias latino-americanas. Entretanto, isso não invalida que se impulsione o processo de regularização e o devido registro desse patrimônio imobiliário, já que se trata, principalmente, do reconhecimento de um direito: o “direito à cidade”.

Considerações Finais Antes de encerrar este ensaio com algumas sugestões de iniciativas de reforço, é importante destacar que o “direito à cidade” implica igualmente em “deveres para com a cidade”. O processo de implantação do Estatuto da Cidade e da Meta 11 do Milênio tem sido tão bem sucedido quanto à promoção do direito à cidade que muitas pessoas e entidades se esquecem de complementar essa promoção, alertando que, para cada direito, existe um dever. O dever para com a cidade abrange tanto os indivíduos nela residentes, ou que dela usufruem, como as empresas e as entidades que ali mantêm seus negócios. O primeiro deles é respeitar

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as normas existentes e fazer um esforço junto com o Poder Legislativo para que o legal, o justo e o moral finalmente coincidam, já que nem sempre isso ocorre. Esse esforço se faz por meio de um engajamento cívico que começa nas rotinas simples do prédio onde se mora, do bairro onde se vive ou se trabalha, do uso dos espaços comuns, da convivência. Esse dever continua por meio da solidariedade comunitária, do apoio a quem precisa, lembrando sempre que a constância das pequenas ajudas diárias de toda uma vida tem mais impacto que uma única grande ajuda eventual. Daí a necessidade de que indivíduos e entidades somem esforços também no caso do apoio à regularização fundiária, como um exercício de solidariedade cidadã, visando à diminuição das disparidades da cidade onde se vive. Portanto, para seguir adiante aqui no Brasil com esse processo de regularização da posse e superação da informalidade urbana com justiça social e responsabilidade, é necessário desenhar e implementar um esforço nacional, somando as três esferas territoriais de Governo (federal, estadual e municipal) assim como os três Poderes da República, sem esquecer a ação capilarizadora, promotora e iscalizadora das organizações da sociedade civil, incluídos aí o setor privado

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e as próprias comunidades interessadas. Mesmo se visto apenas pelo aspecto econômico, o que seria limitado e míope, em países como o Brasil e a maioria dos vizinhos latinoamericanos, é impensável desprezar o imenso potencial de arrecadação de recursos ao desprezar este patrimônio imobiliário, apenas por não haver instrumentos jurídicos adequados e vontade política explícita, para que essas partes do território urbano sejam inseridas à cidade formal, mesmo que de forma gradativa. Esses recursos já seriam revertidos rapidamente em benefício dessa mesma população antes precária, para que deixasse de ser carente de serviços e de equipamentos. Com certeza, ações de melhora na educação formal e cívica da população, para que entendam melhor seus direitos e os correspondentes deveres para com a cidade, propiciarão melhores instrumentos para avaliar a factibilidade das promessas políticas, seu custo e a origem dos recursos para inanciá-los, fazendo da população urbana uma parceira essencial dos órgãos do Estado na administração do território ocupado. Entre outras atividades que podem fazer parte desse esforço nacional, com respeito à capacitação adicional do funcionalismo envolvido nos processos de regularização, podem-se destacar:

a) O cina de Varas Especializadas > informação e capacitação de agentes; b) Oicina de Defensoria Pública > informação e capacitação de agentes; c) Oficina de Desembargadores > discussão de marcos legais para avançar com segurança jurídica e mais velocidade operacional; d) Oicina de Procuradorias Municipais e Secretarias Temáticas (habitação, urbanismo, ambiente, fazenda, obras e serviços públicos) > informação e capacitação de agentes, tanto em cada um dos setores temáticos como na visão global do assunto; e) Promoção de adoção de “súmula vinculante” para os casos de regularização fundiária > instrumento para homogeneizar procedimentos e sentenças, agilizando os processos; f) Oficina de meios de comunicação > informação e capacitação de agentes, sem ideologismos ou interesses politiqueiros; g) Observatórios da sociedade civil para acompanhar casos estratégicos > instrumento para manter o ritmo operacional e a prioridade estratégica, fazendo da Regularização uma verdadeira política de Estado e não apenas um programa (por mais importante que seja) temporário de algum governo.


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GLOSSÁRIO DE SIGLAS E ACRÔNIMOS • AL&C - América Latina e o Caribe • BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento • CGLU - Organização Mundial de Cidades e Governos Locais Unidos • CNUAH - Centro das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (hoje, ONU-HABITAT) • FMCU - Federação Mundial de Cidades Unidas • IULA - União Internacional de Autoridades Locais • ODMs - Objetivos de Desenvolvimento do Milênio • ONU - Organização das Nações Unidas • ONU-HABITAT - Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos • RGIs - Registro Geral de Imóveis • RTDs - Registro de Títulos e Documentos • USD - Dólares Americanos

NOTAS 1 O glossário de siglas e acrônimos utilizados encontra-se acima. 2 Medida pela porcentagem da população total que vive em áreas urbanas, qualquer que seja o critério de “urbano”. 3 Medida pela quantidade de serviços públicos prestados pelas esferas subnacionais de governo (1.e Estados e Municípios). 4 Medida pelo Coeficiente de Gini ou outro indicador de concentração de renda. 5 Conceituação do Autor, a partir da conciliação e consolidação de conceitos já reconhecidos pela literatura especializada sobre o assunto. As palavras-chave que nortearam a conceituação proposta estão sublinhadas. 6 Nem sempre acatada pelos países, que a consideraram um “atropelo à soberania”. N.A. 7 Com efeito, essa abertura inédita para que tanto os governos locais como organizações da sociedade civil participassem do plenário da Conferência, ao serem membros da Delegação Nacional – que deveria ser extraída dos Comitês Nacionais de Habitat – provocou diversos atritos não apenas entre as agências do Sistema das Nações Unidas como entre algumas ONGs internacionais que preferiam manter seu status de “não somar-se a governos”. 8 O que foi concretizado a partir da fusão progressiva entre a IULA, a FMCU e a Metrópolis, entre 2001 e 2004, dando a origem à CGLU – Organização Mundial de Cidades e Governos Locais Unidos. 9 Aceita-se a sigla ONU-HABITAT para os idiomas espanhol e português. N.A. 10 É curioso que, em muitos países e idiomas, o termo “assentamento humano” ou simplesmente “assentamento”, inclui implicitamente a acepção cultural de que é um fato físico “fora do normal”. Muitas referências a “assentamento” são apenas um eufemismo mediático para não usar o termo “favela” ou similar, quando na realidade qualquer ocupação do solo feita pelo ser humano é um assentamento, no verdadeiro conceito etimológico do termo “assentar”. Também foi curioso notar que, durante a Conferência Habitat II, no âmbito do Diálogo 1 (As Cidades do Século XXI), houve um movimento, não registrado oficialmente, para que o nome da agência da ONU a ser revitalizada deixasse de lado o plural e se chamasse simplesmente Programa das Nações Unidas para o Assentamento Humano, implicando com isso uma visão mais global e planetária de um único assentamento humano; a ideia foi imediatamente rejeitada pelas delegações nacionais consultadas informalmente sobre sua possível adoção. N.A. 11 Á época, considerou-se que o único elemento objetivo do enunciado era “para o ano 2000” e tudo o mais requeria interpretação. Dado que o exercício de acompanhamento da Meta é mundial, as discussões tinham por propósito homogeneizar o entendimento da mesma para fins de comparação internacional. 12 Documento disponível em inglês e em espanhol no portal da Agência. 13 Pois nesse caso, a maioria delas coincide em ser informal, carente, precária e pobre, ou seja, uma flagrante desigualdade urbana. 14 Inclusive as multinacionais brasileiras, como Petrobras e Companhia Vale do Rio Doce. 15 Sediado no Rio de Janeiro desde 1996, com o patrocínio da Prefeitura carioca. 16 Este prêmio tem periodicidade bienal e ocorre nos anos pares. 17 Essa pesquisa foi um insumo importante para o Programa “Oportunidades para a Maioria”, em execução pelo BID em diversos países. 18 A partir da amostra de 12 países, fez-se uma expansão proporcional ao PIB com alguns ajustes dados por pesquisas pontuais em cidades específicas. 19 No Brasil, seria o IPTU. 20 Também conhecida pela sigla em inglês ODA – “Official Development Aid”.

RESUMEM El registro público del documento de tenencia de facto como paso inicial y esencial para la superación de la informalidad territorial urbana. El artículo presenta diversos argumentos a favor de la necesidad de regularizarse la posesión del suelo urbano y las mejoras invertidas en él, en los asentamientos humanos precarios del Brasil, por medio de los servicios de las oficinas de Registro Público de Títulos y Documentos. Con este procedimiento de precaución, se espera ganar más agilidad, transparencia y justicia durante el largo proceso de formalización de la ocupación territorial, muy especialmente en los casos eventuales de expropiación de esa posesión para fines de utilidad pública, cuando la plus valía derivada de las inversiones realizadas por las familias detentoras de dicha posesión debiera ser computada en el cálculo de las indemnizaciones. El texto comenta asimismo la estimación del valor económico de esa informalidad patrimonial y sugiere un conjunto de iniciativas para consolidar y perfeccionar el proceso de regularización jurídica y urbanística que diversas ciudades ya están implementando. Palabras clave: Informalidad. Regularización. Asentamientos Humanos. Registro. Patrimonio.

ABSTRACT The public registration of informal tenure statements as the first and key step towards regularizing urban informality. This essay presents a few arguments in favor of establishing a legal record in the Public Documents Registrar offices regarding the occupation of urban land, along with any improvements realized on it, in the informal settlements within Brazilian cities. This precautionary measure should provide more speed, transparence and justice during the usually long process for legal and urbanistic regularization of this territorial occupation, especially whenever cases of expropriation for public interest would occur. In those cases, the added value entailed by the investments made by the informal tenants should be included in the calculations of any financial compensation to be paid. The text also comments on the estimates for the economic value of this informal asset in urban land and suggests a set of initiatives to consolidate and improve the land regularization process that several cities are already carrying on. Keywords: Informality. Regularization. Human Settlements. Register. Land Asset.

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Reforma Urbana na Colômbia

Por que fomos a Medellin e Bogotá? Antônio Augusto Veríssimo — Arquiteto e Urbanista. Mestre em Planejamento Urbano e Regional. Coordenador de Planejamento e Projetos da Secretaria Municipal de Habitação da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro — verissim@ig.com.br

RESUMO Políticas públicas implementadas por cidades colombianas em segurança pública e desenvolvimento urbano tem servido de modelo para estados e cidades brasileiras. No entanto, muito pouco se sabe em nosso país sobre as bases históricas, sociais e institucionais que fundamentam essas experiências de sucesso. No intuito de suprir essa lacuna, este artigo pretende trazer informação sobre o processo evolutivo da legislação de reforma urbana vigente na Colômbia e seus efeitos sobre suas cidades. Palavras-chaves: Gestão municipal. Reforma urbana. Mercado de solo. Mais-valias.

Apresentação O presente ensaio foi escrito tendo como motivação uma viagem técnica realizada às cidades colombianas de Medellin e de Bogotá por uma equipe composta de integrantes da Secretaria Municipal de Habitação da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (SMH-PCRJ) e do Departamento do Rio de Janeiro do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ), em função dos trabalhos de implementação do Plano Municipal de Integração de Assentamentos Informais – Morar Carioca1, no âmbito do Convênio estabelecido entre a SMH e o IAB-RJ.2 O objetivo da viagem foi conhecer de perto os resultados das recentes realizações das duas cidades no campo das intervenções em melhorias nos meios de transporte, em equipamentos urbanos

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em habitação social e em melhoramento de bairros, que hoje servem como referência para muitas cidades latinoamericanas. Os relatos recentes sobre as experiências tendem a valorizar sobremaneira o papel de alguns líderes políticos empreendedores, sem dúvida essenciais, porém trazem pouca informação sobre as bases históricas, sociais, institucionais e legais em que se apoiam as conquistas, nem tão recentes assim. Dessa forma, o intuito do texto é trazer um pouco de informação sobre os processos sociais, políticos e institucionais que izeram da Colômbia um dos países detentores de uma das mais avançadas legislações urbanas da América Latina.

mas urbanísticos aos modelos europeus e norte-americanos, estejamos agora buscando em cidades colombianas padrões de atuação exemplares em políticas e em intervenções urbanas. Sobre esta situação, que pode parecer inusitada, vale a pena avaliar as palavras de Antanas Mokus, prefeito eleito por duas vezes da cidade de Bogotá, em evento realizado naquela cidade, em 2003.

Introdução

“A situação do Estado na Colômbia é particularmente curiosa: de uma parte, não alcançamos cumprir por completo as funções hobbesianas e, no entanto, de outra parte, estamos avançados no cumprimento de uma agenda que em muitos países somente chegou a cumprir-se historicamente com bastante posteridade.” (MOKUS, 2003)

Pode parecer estranho que nós, brasileiros, que sempre estivemos vinculados em te-

Mokus nos fala da situação peculiar de seu país, em que o governo central


cidades redundou na formação de grandes assentamentos periféricos sem infraestrutura adequada e na consequente ocupação de áreas de risco, sujeitas, especialmente nos casos de Bogotá e de Medellin, ao fenômeno dos escorrimentos de solo e a fortes processos erosivos, característicos das duas cidades. Gráfico representando as taxas geométricas de crescimento da população - Fonte: Wikipédia

não conseguiu ainda exercer efetivo controle militar sobre grande parte do seu território – dominado por grupos guerrilheiros, paramilitares e narcotraicantes –, mas no qual as administrações municipais parecem possuir condições efetivas para conduzir um processo de reforma urbana baseado em poderosos instrumentos legais para o planejamento, gestão e financiamento do desenvolvimento urbano.

guerra civil que causou a morte de mais de 180 mil pessoas e resultou na formação dos grupos guerrilheiros FARC3 e ELN4. Esses grupos, somados a outros de paramilitares e de narcotraficantes, dominam grandes áreas do interior e promovem conflitos entre si, ou com o exército nacional, provocando a expulsão de milhares de famílias que buscam nas grandes cidades condições de segurança e de sobrevivência.

A Colômbia possui hoje um arcabouço legal, fruto de mais de quatro décadas de debates sobre reforma urbana. Esta reforma foi motivada pela necessidade de dar solução aos problemas oriundos de um processo de crescimento acelerado e desordenado, exacerbado pela situação de conlito permanente, que assola o interior do país, e que provocou em diversas épocas um êxodo acentuado de trabalhadores do campo para as grandes cidades.

O gráico ilustra a evolução das taxas geométricas de crescimento populacional no período de 1912 a 2005. Observa-se que as principais cidades colombianas – Bogotá, Medellin, Cali e Barranquilla –, no período de 1938 a 1973, cresceram entre 4% e 8% ao ano, taxas muito superiores, por exemplo, à da cidade do Rio de Janeiro, que experimentou no mesmo período crescimento um pouco superior a 3% a.a.

No período de 1948 a 1958, a Colômbia vivenciou uma

Este intenso, permanente e desorganizado afluxo de pessoas dos campos para as

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As Leis de Reforma Urbana de 1989 e 1997 Após quase quatro décadas de tentativas frustradas, inalmente foi aprovada, em 1989, a denominada Lei 9ª, a Lei de Reforma Urbana da Colômbia. A lei introduziu no ordenamento legal colombiano uma série de novos e poderosos instrumentos para a gestão do solo urbano. Com a promulgação de uma nova Constituição, em 1991, houve a necessidade de sua adequação às novas normas estabelecidas: na Constituição, na Lei Orgânica do Plano de Desenvolvimento, na Lei Orgânica das Áreas Metropolitanas; e à lei que criou o Sistema Nacional Ambiental. Por este motivo, foi aprovada, em 1997, a Lei 388. Além das adequações aos novos diplomas legais, a lei tratou de aprimorar e de tornar mais efetivas as possibilidades de aplicação dos instrumentos criados. Como afirmou um líder empresarial do ramo da construção civil, antigo opositor e agora entusiasta da Lei de Reforma Urbana, inalmente se tinha uma “lei com

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As cidades de Bogotá, Medellin, Cali e Barranquilla, no período de 1938 a 1973, cresceram entre 4% e 8% ao ano, taxas muito superiores, por exemplo, à da cidade do Rio de Janeiro - Fotos de Ricardo Vilar

dentes” e com instrumentos fáceis de aplicar (BORRERO, 2003).

dentre outros os seguintes instrumentos que merecem destaque:

Principais Instrumentos da Lei de Reforma Urbana

Plano de Ordenamento Territorial (POT): é o instrumento básico para o desenvolvimento do processo de ordenamento do território municipal. Deine-se como um conjunto de objetivos, diretrizes, políticas, estratégias, metas, programas, atuações e normas adotados para orientar e administrar o desenvolvimento físico do território e utilização do solo. Este plano de ordenamento recebe

Podemos dividir de forma simplificada os instrumentos criados a partir da Lei de Reforma Urbana em três categorias: instrumentos de planejamento, gestão e inanciamento do desenvolvimento urbano. Na primeira categoria – planejamento – encontramos

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distintas nomenclaturas de acordo com o porte do município. Denomina-se Plano de Ordenamento Territorial quando se aplica a município com população superior a 100 mil habitantes; Plano Básico de Ordenamento Territorial quando se destina a município com população entre 30 mil e 100 mil habitantes e Esquema de Ordenamento Territorial quando elaborado para município com população inferior a 30 mil habitantes. Em todos os casos, o plano deve conter obrigatoriamente três componentes: um geral,


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A Lei de Reforma Urbana autoriza aos municípios estabelecer uma taxa de participação em mais-valias entre 30% e 50%, sendo esta variação função de parametros definidos pela lei

constituído pelos objetivos, estratégias e conteúdos estruturais de longo prazo; um urbano, composto pelas políticas, ações, programas e normas para direcionar e administrar o desenvolvimento físico urbano; e, por im, um componente rural, formado pelas políticas, ações, programas e normas para orientar e garantir a adequada interação entre os assentamentos rurais e a sede urbana do município, assim como a conveniente utilização do solo. O Plano de Ordenamento gera Programas de Execução que definem, com carater obrigatório, as atuações sobre o território previstas no POT. Estes estabelecem os programas e os projetos de infraestrutura de transporte e de serviços públicos que serão executados em prazos ixados pela Administração Municipal. Identificam os terrenos necessários para atender às demandas por habitação social e os assentamentos a serem urbanizados, estipulando os instrumentos para a sua execução, seja

por entidades públicas ou privadas. Na segunda categoria, temos os seguintes instrumentos de gestão: Declaratória de perímetros de urbanização e edificação prioritários: parte integrante do programa de execução, delibera em que prazo devem ser cumpridas as determinações estabelecidas para a área delimitada. Caso as determinações não sejam cumpridas, icam os terrenos sujeitos a processos de Alienação Compulsória mediante o processo de leilão público. O particular que adquire esses terrenos se compromete a cumprir imediatamente o deinido no programa de execução. Se não o izer, ica sujeito a processo especíico de desapropriação que impede qualquer tipo de ganho especulativo. Planos Parciais: são instrumentos mediante os quais se desenvolvem e complementam as disposições do plano de ordenamento para áreas determinadas do território municipal. Um plano parcial

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inclui a delimitação e a caracterização da área de operação urbana; a definição precisa dos objetivos e das diretrizes urbanísticas especíicas, que orientam a correspondente operação; os instrumentos de manejo do solo, captação de mais-valias, divisão de encargos e de benefícios; os procedimentos de gestão, a avaliação inanceira das obras de urbanização, bem como o programa de inanciamento. Os planos parciais podem ser propostos pela municipalidade, por comunidades organizadas ou por particulares, desde que de acordo com os parâmetros estabelecidos no Plano de Ordenamento Territorial. Atuação urbanística pública: corresponde a ações de parcelamento, urbanização e ediicação. Cada uma das atuações compreende procedimentos de gestão e formas de execução que são orientadas pelo componente urbano do POT. Estas atuações podem ser desenvolvidas por proprietários individuais de forma isolada, por grupos de proprietários

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associados voluntariamente ou de maneira compulsória por meio de Unidades de Atuação Urbanística (UAU); diretamente por entidades públicas ou mediante formas mistas de associação entre os setores público e privado. No caso das UAU, a urbanização de uma unidade implica a gestão associada dos proprietários dos terrenos que conformam a superfície da área de projeto, mediante sistemas de reajuste de terras ou integração imobiliária, ou cooperação segundo a determinação do correspondente plano parcial. A execução de uma UAU se inicia ao se deinirem as bases para a atuação, mediante o voto favorável dos proprietários que representem cinquenta e um por cento da área comprometida. Os imóveis dos proprietários restantes são objeto de processos de alienação voluntária ou de desapropriação a serem promovidos pelas administrações municipais que passam a fazer parte da sua associação gestora. Sempre que a urbanização de uma UAU requeira nova deinição do parcelamento do solo para melhor coniguração da gleba, ou quando esta seja necessária para garantir uma justa distribuição dos encargos e dos benefícios, a sua execução se realizará mediante o mecanismo de Reajuste de Terras ou Integração Imobiliária prevista na lei. Na terceira categoria temos os instrumentos de inanciamento ou de partilha

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dos custos e benefícios da urbanização. Participação em Mais-Valia5: são fatos geradores deste instrumento a incorporação de solo rural ao perímetro urbano; o estabelecimento ou a modificação de zoneamento; ou aumento dos potenciais de ediicabilidade que resultem em usos mais rentáveis para o solo. A Lei de Reforma Urbana autoriza os municípios a estabelecer uma taxa de participação em mais-valias entre 30% e 50%, sendo esta variação função de parametros deinidos pela lei. O produto arrecadado se destina à compra de terras ou de imóveis para o desenvolvimento de planos ou de projetos de habitação de interesse social; construção ou melhoramento de infraestrutura viária de serviços públicos domiciliares, áreas de recreação, parques e áreas verdes, recuperação e expansão dos espaços de uso público; inanciamento de infraestrutura viária e de sistema de transportes de massa; programas de renovação urbana; pagamento de indenizações por ações de aquisição voluntária ou de desapropriação de imóveis para programas de renovação urbana; fomento à criação cultural e conservação de patrimônio cultural do município.

Os Princípios em que se Fundamentam as Normas de Ordenamento Territorial na Colômbia Da função social da propriedade: a Constituição de 1991

consagrou este princípio no ordenamento jurídico colombiano (presente também em constituições anteriores)6, e adicionou o da função ecológica da propriedade7. Estes são princípios fundamentais do Direito Urbanístico e do Direito Ambiental, consagradores do conceito de que o direito de propriedade implica obrigações e deveres e é assegurado se houver harmonia entre o interesse do proprietário e o da coletividade, devidamente expresso em norma legal. A propósito de questionamento feito à Corte Constitucional com relação à aplicação destes princípios, vale conhecer um fragmento da Sentença C-006/93 emitida pelo magistrado Eduardo Cifuentes. “Como parte integrante do conteúdo do aludido direito à propriedade privada se devem incluir, ao lado das faculdades dominiais, os deveres e as obrigações estabelecidos na lei, que traduzem os valores, os interesses e as inalidades sociais que o titular deve cumprir como premissa da atribuição do correspondente direito e de seu exercício. Nesta perspectiva, o interesse social e o interesse individual, sob o módulo da função social, contribuem a conferir conteúdo e alcance ao direito de propriedade.” Da prevalência do interesse geral sobre o particular: resultante dos expostos anterior-


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Contribuição de Melhorias para as administrações locais colombianas, nos últimos dez anos apenas a Prefeitura de Bogotá arrecadou mais de U$ 1 bilhão que financiaram, ou ainda estão financiando, um conjunto importante de obras naquela metrópole

mente, este princípio embasa a formulação de um conjunto de instrumentos legais que condicionam o exercício da propriedade aos parâmetros limitadores estabelecidos no POT e seus instrumentos correlatos. Da distribuição equitativa de obrigações e benefícios: fundamenta os intrumentos mais inovadores e audaciosos da nova legislação colombiana vinculados com o inanciamento do desenvolvimento urbano a partir das rendas extraordinárias geradas pela sua própria dinâ-

mica (maisvalias). Esta inovação apoia-se, no entanto, em práticas já consolidadas, a exemplo da cobrança da Contribuição de Melhorias introduzida na legislação colombiana ainda nos anos 20 e que é de uso corrente nas administrações municipais daquele país. Sua inalidade é inanciar obras públicas a partir das contribuições provenientes dos beneiciados diretos dessas intervenções. É instrumento que goza de grande legitimidade, porque cobra de quem se beneficia diretamente das melhorias produzidas

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por certos investimentos públicos. Esta contribuição possui, no entanto, limitações legais, já que não pode cobrar senão um montante, no máximo, igual ao valor investido pelo Poder Público. Portanto, não estabelece equivalência entre a valorização experimentada pelo solo ou imóvel beneiciado e o montante investido pela coletividade (GONZÁLES, 2003). Para se ter uma ideia da importância da Contribuição de Melhorias para as administrações locais colombianas,

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nos últimos dez anos apenas a Prefeitura de Bogotá arrecadou mais de U$ 1 bilhão que inanciaram, ou ainda estão financiando, um conjunto importante de obras naquela metrópole. Outras oito cidades menores também arrecadaram recursos de mesma monta com este instrumento no mesmo período. Um exemplo é a cidade de Manizales, de 400 mil habitantes, que nos últimos três anos investiu U$ 24,6 milhões em obras rodoviárias e em projetos de desenvolvimento urbano com recursos captados por meio desta contribuição (BORRERO, 2010). A despeito de sua importância para a arrecadação municipal e aceitação social 8, reconhece-se que a Contribuição de Melhorias não alcança capturar a totalidade dos incrementos de preço adicionados ao solo, seja pelas ações do Estado seja por outras ações coletivas independentes dos investimentos realizados pelo proprietário. Apoiados no princípio legal de que a auferição de uma renda motivada por causas externas à ação do proprietário caracteriza um ganho imerecido, portanto passível legal e eticamente de ser reivindicado pela coletividade (por meio de sua representação legal – o Poder Público), é que o legislador impõe à legislação colombiana a figura da Participação em Mais-Valias, o mais efetivo instrumento para a captura de rendas extraordinárias geradas por fatores externos à propriedade.

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Instrumentos de captura de rendas extraordinárias não são novidade nas legislações de diversos países do mundo – Estados Unidos, Canadá, países europeus e latino-americanos, entre estes o Brasil – (SMOLKA, 2003). Porém, nenhum nos parece tão explícito e transparente quanto o caso colombiano. Um exemplo disso é o fato de este instrumento ter sofrido profundas contestações dos empreendedores privados (construtores e incorporadores) que inicialmente se aliaram aos proprietários de terras na contestação da lei de reforma urbana. A partir de uma experiência prática ocorrida na cidade de Cali, perceberam que os instrumentos aplicados induziam a entrada de solo a baixo custo no mercado, favorecendo a atividade da construção civil. A partir de então, passaram a ser defensores da reforma urbana e de seus instrumentos (BORRERO, 2003).

Conclusões O presente texto não tem a pretensão de esgotar todos os aspectos da Lei de Reforma Urbana da Colômbia, que possui uma série de outros instrumentos assemelhados aos já existentes em nossa legislação urbana. Destaquei aqueles que me pareceram mais inovadores e distintos da experiência brasileira. Ressalto, por exemplo, a importância dada ao plano, ao físico territorial, à gestão, e

aos meios de obtenção dos recursos financeiros para a implementação das ações planejadas. Os conceitos relativos às funções social e ecológica da propriedade; da separação do direito de propriedade do direito de construir; da ilegitimidade da auferição de rendas extraordinárias (mais-valias); da distribuição equitativa de custos e de benefícios da urbanização e da prevalência do interesse social sobre o particular estão muito claros e presentes em toda a formulação da lei e seus derivados. Também avançamos muito em termos de legislação e de instrumentos de gestão urbana, entretanto, observando a experiência colombiana, é possível perceber que ainda há espaço para ir além e conquistar cidades melhores e mais democráticas. Onde grandes eventos e investimentos em desenvolvimento urbano não sejam apenas mais uma oportunidade de auferição de rendas extraordinárias para segmentos restritos do mercado fundiário e imobiliário, mas sim de geração de riqueza coletiva a ser reinvestida na oferta de mais e melhor cidade para todos os cidadãos. Apesar da existência em nossa legislação de instrumentos eficientes para a gestão do solo urbano, muito poucas são as cidades que se dispuseram a utilizá-los,


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e, mesmo assim, de forma limitada. Alguns dos exemplos mais conhecidos são as cidades de São Paulo, com suas Operações Urbanas e venda das CEPACs 9, e a Cidade de Niterói, com a apliação da Outorga Onerosa do Direito de Construir (SALANDIA, 2011). A Cidade do Rio de Janeiro, embora conte com instru-

mentos inovadores desde a aprovação do Plano Diretor de 199210, apenas em 2010 se dispôs a utilizar o recurso da venda das CEPACs para viabilizar investimentos na área restrita de renovação do seu Porto. Por não aplicar os instrumentos disponíveis na legislação, deixa de aproveitar a oportunidade criada com o boom imobiliário derivado do anúncio das obras

e das realizações vinculadas aos grandes eventos que ocorrerão na cidade11. A sua adequada utilização poderia estar gerando para os cofres públicos municipais um volume fabuloso de recursos próprios que a desobrigaria, pelo menos em parte, da rotineira e desgastante busca de recursos nos organismos de inanciamento federais e internacionais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E OUTRAS FONTES DE CONSULTA BORRERO, Oscar. Evolução da posição dos gremios imobiliários e construtores ante as leis de reforma urbana. In Reforma Urbana e Desenvolvimento Territorial. Bogotá: LILP, 2003. GONZALES, Samuel Jaramillo. Notas sobre o mecanismo de participação em mais-valias. In ibiden. ISAZA, Fabio Giraldo. A Lei de Desenvolvimento Territorial – Lei 388/97 in ibiden. MOKUS, Antanas Mokus. Palavras de Antanas Mockus Sivickas. In ibinden. SMOLKA, Martim O. A Experiência e o Debate Colombiano no Contexto da América Latina. In ibinden. BORRERO, Oscar. Betterment levy in Colombia. Relevance, Procedures, and Social Acceptability. In Land Lines, LILP, April 2011. Constituição Política de Colômbia 1991. Lei 388 de 1997 SALANDIA, Luis Fernando Valverde, A experiência da Outorga Onerosa do Direito de Construir no município de Niteró (RJ). Wikpédia.

NOTAS 1 Este Plano, lançado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro em 27 de agosto de 2010, tem como meta promover a urbanização de todas as favelas do Município do Rio de Janeiro até o final de 2020. 2 Dessa visita técnica participaram, além deste autor, os arquitetos Pedro da Luz Moreira e Ricardo Villar. 3 Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. 4 Exército de Libertação Nacional. 5 Mais-Valia: aumento de preço que incide sobre o solo em função da realização de obras públicas ou pela alteração de índices urbanísticos (coeficiente de aproveitamento, taxa de ocupação) ou mudança de usos (de residencial para comercial, por exemplo). 6 O princípio da função social da propriedade foi introduzido na Constituição colombiana por inspiração de Leon Duguit, pensador francês, quando da elaboração da Reforma Constitucional de 1936 (ISAZA, 2003). 7 Ver artigo 58 da Constituição Política da Colômbia, de 1991. 8 Pesquisa realizada na cidade de Manizales indicou que a cobrança e a aplicação dos recursos da contribuição em melhorias naquela cidade contam com o apoio de mais de 90% do pagantes/ beneficiados. (in BORRERO, 2010) 9 Certificados de Potencial Adicional de Construção. 10 A exemplo do Solo Criado e do Imposto Progressivo. 11 Copa do Mundo em 2014 e Jogos Olímpicos em 2016, dentre outros.

RESUMEM Porqué fuimos a Medellin y Bogotá. Políticas públicas implementadas por ciudades colombianas en seguridad pública y desarrollo urbano sirven de modelo para estados y ciudades brasileñas. Sin embargo, muy poco se conoce en nuestro país sobre las bases históricas, sociales, e institucionales que fundamentan esas experiencias de éxito. Con el objetivo de llenar este vacio, este artículo intenta traer información sobre el proceso evolutivo de la legislación de reforma urbana vigente en Colombia y sus efectos sobre suas ciudades. Palabras clave: Gestión municipal. Reforma urbana. Mercado de suelo. Plus valías.

ABSTRACT Why we went to Medellin and Bogota? Public policies implemented by Colombian cities in public security and urban development have been models for Brazilian states and cities. Nonetheless, there is little knowledge in our country about the historic, social and institutional basis that are the foundations of these successful experiments. In order to fill this gap, this article informs you about the evolutionary process of the urban reform law in Colombia and its effects on their cities. Keywords: Municipal management. Urban reform. Land market. Added value.

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Dinâmica urbana recente da cidade do Rio de Janeiro: considerações a partir da análise de dados dos censos do IBGE e do licenciamento urbanístico municipal Henrique Barandier — Arquiteto e Urbanista.

Doutorando em Urbanismo e Mestre em Urbanismo (2003) pelo PROURB (Programa de Pósgraduação em Urbanismo – FAU/UFRJ). Consultor técnico do IBAM – henrique@ibam.org.br

RESUMO O presente artigo organiza e analisa um conjunto de dados relativos ao Rio de Janeiro com o objetivo de contribuir para reflexões sobre tendências da dinâmica urbana da cidade. A partir de informações do IBGE, em especial do Censo Demográfico de 2010 e do licenciamento urbanístico do Município, discute-se a distribuição espacial do crescimento populacional e o modelo de urbanização e reprodução da cidade. Trata-se de um artigo que traz contribuições para o debate mais amplo sobre a sustentabilidade urbana e sobre os instrumentos de regulação dos processos de expansão da cidade e controle do uso e ocupação do solo. Palavras-chave: Dinâmica urbana; Política urbana; Rio de Janeiro

Introdução A cidade do Rio de Janeiro, já há algumas décadas, apresenta baixas taxas de crescimento da população. Os dados do Censo Demográico de 2010 do IBGE, recentemente divulgados, conirmam tal tendência, ainda que indiquem pequena elevação da taxa média geométrica de crescimento anual na década de 2000, em comparação com a década anterior. Os dados dos últimos Censos Demográicos também demonstram o impressionante movimento da cidade em direção à zona oeste e o gradativo aumento da população residente em favelas, em termos absolutos e relativos. Apesar da

estabilidade do crescimento populacional, a cidade cresce muito, avançando a malha urbana, com descontinuidades, sobre as áreas com menos ou nenhuma infraestrutura. Esse quadro geral remete para a discussão sobre o próprio modelo de urbanização e de reprodução da cidade. Já há várias décadas que os números mostram que a expansão urbana carioca e o aumento da favelização1 não podem ser explicados pelo fenômeno da migração campo-cidade ou do nordeste para o sudeste, ainda que essas justiicativas permaneçam no imaginário coletivo. Com o objetivo de contribuir para relexões sobre as tendências da dinâmica urba-

na da cidade do Rio de Janeiro, este artigo foi concebido a partir de uma análise preliminar dos dados do Censo 2010. Tendo como foco principal a questão da distribuição espacial do crescimento populacional e a localização dos pobres na cidade, se buscou correlacionar as tendências indicadas pelas informações censitárias com dados do licenciamento urbanístico municipal que englobam: licenças de construção de unidades residenciais, concessão de “habite-se” para unidades residenciais e, mais especificamente, licenças de construção de unidades residenciais no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). A abordagem

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sobre o PMCMV é importante, pois se refere a um programa de produção de novas unidades residenciais que pretende atender às faixas de renda mais baixa e, no caso do Rio de Janeiro, o número de unidades licenciadas nos seus dois primeiros anos (20092011) é bastante expressivo. O exercício empreendido, de análise dos dados reunidos para este artigo, assumiu caráter exploratório, sem a pretensão de ser conclusivo sobre os aspectos abordados. Ainda assim, e mesmo considerando eventuais limitações dos dados disponíveis, os resultados obtidos indicam alguns processos que estão em curso, dentre os quais podem ser destacados: a) embora seja ainda muito forte o vetor de expansão da cidade em direção à zona oeste, na década de 2000 alguns bairros mais centrais ou de urbanização mais antiga voltaram a registrar aumento da população residente; b) assim como vem se veriicando ao longo das últimas décadas, as taxas de crescimento da população residente em favela na década de 2000 também foram muito maiores do que as da população total; c) o acréscimo de novas unidades ao estoque residencial continua se dando em ritmo acelerado, apesar da estabilidade do incremento demográico; d) a produção irregular de

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unidades habitacionais foi ampliada na década de 2000, correspondendo à maior parte das novas unidades agregadas ao estoque residencial no período; e) o PMCMV provavelmente resultará em novo movimento de direcionamento das populações mais pobres para as áreas mais distantes do território municipal, desprovidas de infraestrutura adequada, equipamentos e serviços urbanos. Todos esses aspectos parecem relevantes para compreensão da dinâmica urbana recente do Rio de Janeiro e para se pensar desafios desta década. Para melhor explicitá-los, este artigo está organizado em cinco partes: • os dados levantados: fontes, tratamento e limites; ฀ • características gerais da dinâmica demográica e domiciliar; ฀• favelas e produção irregular das moradias; ฀• o Programa Minha Casa Minha Vida e a dinâmica urbana do Rio de Janeiro; • Considerações nais A opção metodológica aqui adotada privilegiou a exploração de dados secundários, porém com o objetivo de produzir insumos que possam alimentar o debate mais amplo sobre a política urbana no Brasil, que, como expõe de forma contundente

Maricato, está num momento de grande impasse (Maricato, 2011). A autora argumenta que “apesar dos avanços as cidades pioraram” (Maricato, 2011, p. 76). Todo o arcabouço legal e institucional construído ao longo de anos, a partir dos movimentos pela reforma urbana, tendo como marcos mais emblemáticos a aprovação do Estatuto da Cidade e a criação do Ministério das Cidades, não conseguiu, ainda, interferir de modo mais intenso na lógica de reprodução das nossas cidades. E a análise de dados, tal como a aqui esboçada, pode ajudar a tornar mais clara essa questão. Por outro lado, cumpre esclarecer que este trabalho foi desenvolvido para subsidiar, especiicamente, a pesquisa de doutoramento do autor, em fase inicial, cujo tema de interesse é o da regulação urbana e os instrumentos de planejamento e gestão territorial. Rolnik faz crítica à legislação urbana tradicional, cujo modelo de concepção, aparentemente, permanece vigorando nos municípios brasileiros, mesmo após os processos de elaboração de planos diretores da década de 2000, que deveriam ter promovido a incorporação das diretrizes do Estatuto da Cidade ao planejamento municipal. Na visão da autora “mais do que efetivamente regular a produção da cidade, a legislação urbana age como marco delimitador de fron-


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O Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), do governo federal, que começou a operar em 2009, já apresenta impactos relevantes na dinâmica urbana do Rio de Janeiro.

teiras de poder”. E, ao “deinir territórios dentro e fora da lei, conigura região de plena cidadania e regiões de cidadania limitada” (Rolnik, 1999, p. 13). Nessa perspectiva, os resultados obtidos com este trabalho, ainda que preliminares, contribuem para, em seus desdobramentos, apoiar a compreensão das lógicas de produção da cidade, seja pelo lado do mercado imobiliário ou pela via da informalidade e, de modo mais amplo, discutir os instrumentos de regulação atuais. Os Dados Levantados: Fontes, Tratamento e Limites Os dados levantados e analisados no âmbito deste trabalho são provenientes de duas fontes principais: IBGE e Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (PCRJ). Do IBGE, foram extraídos dados sobre população e domicílios do Censo 2010 para a Cidade do Rio de Janeiro e comparados com os mesmos

dados referentes aos Censos anteriores. Para entender os grandes movimentos ocorridos internamente na cidade, no período entre 2000 e 2010, esses dados foram organizados por Área de Planejamento (AP)2. Além dos números gerais para a cidade, foram extraídos dos resultados dos Censos os dados especíicos de aglomerados subnormais, considerados, para ins deste trabalho, favelas 3. No caso dos aglomerados subnormais, porém, os dados divulgados até o momento de elaboração deste artigo estavam organizados apenas por assentamento, sem totalizações por bairro ou AP para o Rio de Janeiro, o que limitou um pouco as análises sobre diferenças internas da cidade. Da PCRJ, foram observados dados do licenciamento urbanístico gerados pela Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU), no período 2000 a 2010. A intenção principal era comparar dados relativos

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à concessão de “habite-se” para novas unidades residenciais com dados dos Censos que indicam o incremento de domicílios particulares permanentes. Embora sejam dados de fontes distintas, que envolvem conceitos que não são necessariamente coincidentes, o que representa um limite importante para qualquer análise, a comparação de números oferece elementos interessantes para discussão do fenômeno da irregularidade, como se verá mais adiante. Complementarmente, se buscou, no licenciamento urbanístico, os números sobre concessão de licenças para construção de novas unidades residenciais, o que é uma referência importante para se pensar sobre tendências futuras. E em relação às novas licenças, foram trabalhados de forma mais especíica os dados do PMCMV, pois representam signiicativo impacto no universo licenciado nos últimos anos. A ponto de a própria SMU ter organizado uma estrutura própria para licenciamento no âmbito desse programa e disponibilizar os dados correspondentes também em separado. Vale esclarecer, ainda, que a divulgação dos dados do licenciamento urbanístico, no sítio da SMU na internet, tem lacunas para o período abrangido neste trabalho. De 2000 a 2004, as informações mais detalhadas são muito parciais e constam de um relatório que analisa, para esses anos,

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Tanto os programas de regularização urbanística e fundiária de assentamentos informais de baixa renda como programas de produção de moradia com subsídios são necessários para o enfrentamento do complexo quadro urbano brasileiro

o licenciamento apenas da zona sul da cidade4. Por esta razão, os números indicados neste trabalho para o período 2000 a 2004, tanto de licenças para novas construções, quanto para concessão de “habite-se” foram estimados e arbitrados por este autor, a partir do conjunto de informações disponíveis para o período. Também foram identiicadas lacunas na consolidação dos dados relativos à concessão de licenças para nova construção em relação aos ano de 2006 e 2008, para os quais constam apenas dados mais gerais, sem especiicação das informações relativas às unidades habitacionais. Para o ano de 2008, porém, existe o detalhamento de informações para o primeiro semestre, o que facilitou as estimativas. Apesar das falhas identiicadas na série histórica dos dados do licenciamento urbanístico, acredita-se que os números adotados não invalidam os cálculos que alimentaram as análises propostas neste trabalho. Provavelmen-

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te, estão corretos na ordem de grandeza, pois têm como referência dados relativos à área total licenciada em cada ano, total de licenças concedidas, números do licenciamento anteriores e posteriores ao período com lacunas e diversos relatórios com análises sobre o licenciamento urbanístico produzidos pela própria SMU. Vale registrar que a prática da SMU de sistematizar e publicizar tais dados é relativamente recente e merece ser aplaudida. O corte em 2004/2005 refere-se justamente ao momento de alteração da metodologia de organização das informações que se consolidou na segunda metade da década de 2000. Características Gerais da Dinâmica Demográfica e Domiciliar As taxas geométricas de crescimento anual da população da cidade do Rio de Janeiro vêm se mantendo relativamente baixas e estáveis nas últimas décadas, apesar da ligeira tendência de elevação, conforme indicam os números abaixo (ver Tabela 01).

O ritmo de crescimento populacional da cidade, nesses últimos 30 anos, é dos menores entre as grandes capitais do país e permanece ainda menor que a média nacional, que vem caindo muito a cada década. Em tese, trata-se de quadro favorável ao planejamento. Porém, esses índices não se conirmam na escala metropolitana e, de forma alguma, são uniformemente distribuídos na escala intraurbana. A Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) teve, na década de 2000, taxa de crescimento da população de 1,45% ao ano. Excluído o Rio de Janeiro do cálculo, verifica-se que os demais municípios da RMRJ, em conjunto, tiveram crescimento da ordem de 2,20% ao ano, bem acima do registrado para a capital. Obviamente, ao menos parte desse crescimento tão superior está associado à dinâmica metropolitana, que inviabiliza a localização de famílias pobres nas áreas mais centrais da metrópole e até mesmo em áreas periféricas dentro dos limites geográicos do município do


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Tabela 1 - Taxas Geométricas de Crescimento Anual da População da Cidade do Rio de Janeiro entre 1980 e 2010

Fonte: IBGE, Censos Demográficos

Rio de Janeiro. Embora relevante para compreensão mais abrangente e completa dos processos em curso no Rio de Janeiro, a análise dos dados referentes à Região Metropolitana não será enfatizada neste trabalho. Optou-se por limitá-lo ao estudo da dinâmica mais interna do município do Rio de Janeiro, o que

já envolve questões bastante complexas. O fenômeno observado internamente no Rio de Janeiro é o de um gigantesco processo de transferência da população das áreas de urbanização mais antiga e com melhor infraestrutura instalada (APs 1, 2 e 3) para vasta área a oeste

do município (APs 4 e 5) onde se estruturaram os principais vetores de expansão urbana das últimas décadas. Nos anos 80 e 90, esse processo foi tão vigoroso que, conforme mostram os números (ver Tabela 02), as APs 1 e 2 perderam população e a AP 3 praticamente manteve-se estável, enquanto AP 4 e AP 5 absorveram mais de 100% do incremento demográico da cidade em cada período. O Censo 2010 revela algumas alterações nesse quadro que merecem destaques e re exões (ver Tabela 03). O primeiro aspecto a registrar é que apesar de, em termos

Tabela 2 - População e Incremento Demográfico do Município do Rio de Janeiro, por Área de Planejamento, no Período 1980 a 2000 e Participação das Áreas de Planejamento 4 e 5 no Incremento Total

Fonte: IBGE, Censos Demográficos

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Tabela 3 - População e Incremento Demográfico do Município do Rio de Janeiro, por Área de Planejamento, no Período 2000 a 2010 e Participação das Áreas de Planejamento 4 e 5 no Incremento Total

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010.

relativos, o crescimento populacional não ser tão expressivo, em números absolutos significa incremento de mais de 450 mil pessoas na última década. E cabe assinalar que apenas 44 dos 5.565 municípios brasileiros têm população superior a 450 mil habitantes... Por outro lado, observando os dados intraurbanos, veriica-se uma inversão signiicativa da tendência que vinha das últimas décadas, pois nos anos 2000 todas as Áreas de Planejamento tiveram acréscimo de população. As APs 4 e 5, que juntas vinham tendo incremento populacional absoluto superior ao da própria cidade, na década de 2000 tiveram sua par-

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ticipação reduzida a 81,20%. Ainda assim, a AP4 teve elevação de seu crescimento relativo, não sendo possível minimizar o significado do grande movimento da cidade em direção à zona oeste, até mesmo pelos números absolutos envolvidos: entre 2000 e 2010 essa região recebeu mais de 375 mil pessoas. O que aparece realmente como novidade, e até certo ponto surpresa, é o crescimento da população residente na AP1, área central da cidade. Há décadas, a diminuição da população residente na área central é tida como uma questão que mobiliza debates sobre a cidade. Apesar de projetos e ações empreendidas nos anos 80 e 90 na perspec-

tiva de revitalização da área central, houve diminuição da população nessas décadas. A nova tendência em direção a área central, provavelmente, tem múltiplas explicações, que merecem ser objeto de análises mais aprofundadas do que as conjecturas aqui trabalhadas. Mas, sem dúvida, houve, ao longo da década de 2000, principalmente na segunda metade, a oferta de novos produtos imobiliários que contribuíram para um movimento de famílias de classe média para a área central. Os grandes edifícios residenciais de São Cristóvão, viabilizados a partir da alteração da legislação urbanística que favoreceu ao mercado imobiliário, atraí-


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ram a classe média. Alguns empreendimentos no Centro conseguiram ser viabilizados mesmo dentro das APACs, seja pela identiicação de possibilidades de adensamento residencial, como o caso do empreendimento “Cores da Lapa” ou por retrofits de antigas construções, complementando o eixo de valorização imobiliária que vem de Botafogo, atravessando os bairros do Flamengo, Catete, Glória e chegando ao Centro juntamente com a projeção da Lapa como destino cultural e turístico. Mas é possível que a participação da população residente em favela também contribua para explicar o im-

portante crescimento populacional da AP1. O bairro da AP1 que teve o maior incremento relativo de população, por exemplo, foi o da Mangueira, cuja população residente em favela é a grande maioria. É necessário, entretanto, aguardar os dados consolidados de 2010 da população residente em favela para veriicar qual foi o real comportamento. Na década de 2000 houve também um movimento de ocupação de edifícios na área central do Rio de Janeiro, o que talvez possa também ter contribuído para o incremento populacional registrado. É possível considerar ainda, que parte desse cresci-

mento tenha se viabilizado a partir de programas habitacionais dirigidos às classes médias e baixas, em especial o PAR – Programa de Arrendamento Residencial da Caixa Econômica Federal e o Programa Novas Alternativas da própria Prefeitura. Porém não deve ser tanto, pois os resultados desses programas são, numericamente, bastante limitados5. A análise sobre o incremento de domicílios particulares permanentes, no mesmo período de 2000 a 2010 (ver Tabela 04), permite re exões adicionais sobre os movimentos internos da cidade do Rio de Janeiro indicados acima.

Tabela 4 - Incremento de Domicílios Particulares Permanentes no Município do Rio de Janeiro, por Área de Planejamento, no Período 2000 a 2010

Fonte: IBGE, Censos Demográficos

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O Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), do Governo Federal, que começou a operar em 2009, já apresenta impactos relevantes na dinâmica urbana do Rio de Janeiro

Há muito tempo já se vem observando o fenômeno de diminuição das famílias brasileiras. Evidentemente, os novos arranjos resultantes da diminuição do número de ilhos por mulher ou aumento de famílias de composição nucelar pressionam a demanda por domicílios. Ou seja, a demanda por novos domicílios não é determinada apenas pelo crescimento da população, mas também pelas mudanças na estrutura das famílias. Poderia se dizer, ainda, que ações dirigidas ao combate do déficit habitacional também resultariam na maior produção de novos domicílios num determinado período, o que talvez possa ter alguma relevância na década de 2000 no Rio de Janeiro. Apesar de tais fatores, que ajudam a explicar o signiicativo crescimento do parque residencial do Rio de Janeiro, os números do Censo 2010 impressionam. O estoque de unidades residenciais cresceu quase 20% em 10 anos. E, claramente, esse cresci-

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mento se dá com a expansão da malha urbana, como os dados do incremento populacional já indicavam. Ou seja, não se trata de intensiicar o aproveitamento de infraestruturas já instaladas. A AP4, por exemplo, teve ampliação de mais de 50% do total de domicílios particulares permanentes em 2000. Por outro lado, e até surpreendentemente, o ritmo de crescimento da AP5 diminuiu. Os dados mais gerais de população e domicílios indicam dois movimentos em curso na cidade do Rio de Janeiro: um de consolidação do vetor de expansão para a zona oeste, na última década com maior peso na ocupação da AP4, e outro de retorno aos bairros mais centrais da AP2 e AP1. Se num primeiro momento, o retorno aos bairros centrais parece ser algo positivo, análises mais detalhadas precisarão qualiicar melhor esse processo. Os novos produtos imobiliários ofertados

na zona sul e área central pelo mercado, a atuação muito restrita dos programas habitacionais na área central e a incrível alta dos preços dos imóveis desde 2008 podem ser indícios de radicalização do processo de segregação da cidade, que tradicionalmente tem empurrado para as favelas, para a zona oeste e para as periferias metropolitanas a população mais pobre. Nesse sentido, como se verá a seguir, as favelas cresceram na cidade do Rio de Janeiro ao longo da década de 2000 e a irregularidade “explodiu”. Favelas e Produção Irregular de Moradias no Rio de Janeiro Se a população total do Rio de Janeiro vem tendo crescimento relativamente baixo e estável nas últimas décadas, a população residente em favela na cidade apresenta crescimento extremamente elevado6. Em 30 anos, essa população quase duplicou e em 2010 ultrapassou a marca de um quinto da população total do Rio de Janeiro. São quase 1,4 milhões de pessoas vivendo em favelas, segundo dados do Censo 2010 7 (ver Tabela 05). Além da participação cada vez maior da população residente em favela no total da população, é importante observar que também a participação no incremento vem aumentando: na última década, praticamente 65% do crescimento populacional se deu em favelas (ver Tabela 06).


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Tabela 5 - População Total e População Residente em Favela no Rio de Janeiro, no Período 2000 a 2010

Fonte: IBGE, Censos Demográficos; PCRJ, Armazém de Dados

Tal quadro, provavelmente, é ainda mais agudo, pois os critérios adotados pelo IBGE para classificação de aglomerados subnormais podem excluir da contagem pequenos assentamentos de até 50 domicílios com características típicas de favelas. E, certamente, excluem parte signiicativa de loteamentos clandestinos e irregulares, que também abrigam grandes contingentes de famílias de baixa renda. Enquanto o IBGE registrou, em 2010, 763 aglomerados subnormais, o SABREN – Sistema de Assentamentos de Baixa Renda

– da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro indica a existência de 599 favelas8, 87 comunidades urbanizadas9 e 983 loteamentos clandestinos e irregulares. Pode-se dizer que a reprodução da cidade tem levado à expansão da irregularidade, o que afeta de modo mais evidente a população pobre. Tanto pelas razões objetivas associadas à precariedade da urbanização e das habitações, quanto pelas conseqüências desse modelo que coloca parcela cada vez maior da população à margem do sistema formal.

Para ilustrar a dimensão do fenômeno da irregularidade no Rio de Janeiro, mostrando que abrange bem mais do que as favelas, apresenta-se, a seguir, uma comparação entre dados dos Censos do IBGE e dados do licenciamento urbanístico do município. Embora os resultados de tal comparação devam ser vistos com algum cuidado, pois os dados são construídos segundo conceitos e metodologias que não são necessariamente coincidentes, contribuem para reforçar o argumento de que há enorme distância entre o sistema formal

Tabela 6 - Incremento Total da População e da População Residente em Favela no Rio de Janeiro, no Período 2000 a 2010

Fonte: IBGE, Censos Demográficos; PCRJ, Armazém de Dados

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preconizado pela legislação urbanística e a produção da cidade real10. A tabela a seguir sintetiza os números referentes à produção de novas unidades residenciais nos períodos entre os Censos de 1991 e 2000 e entre os de 2000 e 2010 (ver Tabela 07). Para tanto, foram calculados o incremento de domicílios particulares permanentes (IBGE)11, o incremento de domicílios particulares permanentes em favelas (IBGE) e o total de unidades residenciais que receberam a certidão de “habite-se” da Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU). A concessão de “habite-se”

corresponde ao procedimento inal do processo de licenciamento urbanístico, sendo condição para caracterizar a regularidade administrativa do imóvel. Pode-se, assim, airmar que o imóvel que não recebeu “habite-se” possui algum tipo de irregularidade12. O total de unidades residenciais irregulares acrescidas ao estoque refere-se apenas ao que foi produzido nos períodos analisados e não a todo o passivo acumulado historicamente. Essa informação é interessante justamente para discussão dos processos em curso na dinâmica da cidade. De acor-

do com a metodologia de cálculo adotada, as unidades irregulares correspondem à diferença entre o incremento de domicílios particulares permanentes e o total de “habite-se” concedidos. Como os Censos do IBGE também informam o total de domicílios particulares permanentes em favelas, é possível distinguir duas categorias de irregularidade: a que se refere a unidades localizadas em favelas e a que se refere a unidades não localizadas em favelas. O resultado é impressionante: na década de 2000, 67,08% das novas unidades residenciais são irregulares.

Tabela 7 - Total de Unidades Residenciais Irregulares Acrescidas ao Estoque do Rio de Janeiro, nos Períodos 1991-2000 e 2000-2010, Segundo Comparação Entre Dados dos Censos Demográficos do IBGE e do Licenciamento Urbanístico do Município

Fonte: Tratamento do autor sobre dados dos Censos Demográficos do IBGE e da SMU/PCRJ

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Dois aspectos se destacam na estimativa da produção informal da moradia esboçada no quadro acima: o crescimento da irregularidade como um todo e o signiicativo crescimento da irregularidade em áreas não caracterizadas como favelas (ou aglomerados subnormais para o IBGE). São números coerentes com a observação anterior de que, no Rio de Janeiro, os loteamentos clandestinos e irregulares cada vez mais se constituem, juntamente com as favelas, como padrão de moradia popular, ainda que esse tipo de assentamento também seja comum para classes médias e até altas. Os mapas de favelas e de loteamentos clandestinos e irregulares da PCRJ mostram

que se as favelas são o padrão de assentamento popular das zonas sul, norte e subúrbios do Rio de Janeiro, os loteamentos clandestinos e irregulares se reproduzem intensamente na zona oeste, região que abriga a maior parte do crescimento da cidade, conforme demonstrado anteriormente. O Programa Minha Casa Minha Vida e a Dinâmica Urbana do Rio de Janeiro O Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), do governo federal, que começou a operar em 2009, já apresenta impactos relevantes na dinâmica urbana do Rio de Janeiro. Dados do licenciamento urbanístico

sugerem que o programa é responsável por parte signiicativa do expressivo crescimento na emissão de licenças de novas construções nos últimos anos. O quadro abaixo apresenta o total de unidades residenciais licenciadas por área de planejamento na última década (ver Tabela 08). É possível veri car a ordem de grandeza do total de licenças concedidas, que pode ser considerado um indicador das tendências da produção imobiliária formal na cidade. Obviamente, os projetos licenciados podem ser executados em horizontes temporais bastante variáveis e até mesmo nem serem efetivamente construídos. Ainda assim, o

Tabela 8 - Total de Unidades Residenciais Licenciadas no Rio de Janeiro, por Área de Planejamento, no Período 2000-2010

Fonte: SMU/PCRJ *Dados estimados pelo autor a partir de informações disponibilizadas pela SMU que permitem adoção de número indicativo das unidades residenciais licenciadas.

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quadro permite considerações relevantes para compreensão da dinâmica do mercado imobiliário e suas implicações sobre a distribuição espacial da produção residencial. A análise do quadro permite constatar, inicialmente, o grande aumento de unidades residenciais licenciadas em 2009 e 2010. Já havia uma tendência de crescimento desde 2006, mas em 2009 o salto foi bastante grande, passando de cerca de 20.000 unidades licenciadas em toda a cidade entre 2006 e 2008, para quase 40.000 em 2009. No período recente, pode ser veriicada a tendência de maior produção da indústria

da construção civil no Rio de Janeiro. Porém os dados de licenciamento indicam mais claramente uma mudança de padrão em relação à AP5. É essa área da cidade, que os números dos Censos do IBGE registraram signiicativa diminuição do ritmo de crescimento na década de 2000, que o licenciamento está indicando que receberá o maior número de unidades residenciais nos próximos anos. Em 2009 e 2010, cerca de 50% das unidades residenciais que receberam licença para construção na cidade integram empreendimentos localizados na AP5. Certamente, tal mudança está diretamente relacionado com o PMCMV. A nal, em 2009

foram licenciadas cerca de 13.000 unidades no âmbito do programa para a AP5 e em 2010 cerca de 20.000 unidades, como se pode ver no quadro a seguir (ver Tabela 09). Embora o PMCMV cumpra o importante papel de alocar vultosos recursos para a produção de moradia e consiga, de algum modo, atender a famílias com renda de até 3 salários mínimos13, as condições de sua implementação direcionam, no caso do Rio de Janeiro, a localização das novas unidades habitacionais, em especial da população mais pobre, para a AP5. Trata-se da região com piores condições de oferta dos

Tabela 9 - Total de Empreendimentos e Unidades Licenciadas no Âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida no Município do Rio de Janeiro, por Área de Planejamento, no Período 2009 a 2011*

Fonte: SMU/PCRJ * Dados referentes ao período de setembro de 2009 a agosto de 2011

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serviços urbanos essenciais, mais distantes dos centros de emprego, com carências de equipamentos urbanos e infraestrura e com as piores condições de transporte. Mas é também onde a terra é mais barata. E essa é uma das questões de fundo importante, pois com os preços das unidades previamente ixados pelo programa, a localização dos empreendimentos onde a terra é mais barata permite maiores ganhos ao empreendedor, que no caso do PMCMV recebe recursos diretamente. Por outro lado, a não aplicação de mecanismos de controle do preço da terra, ou pelo menos de recuperação de parte da valorização fundiária, como preconiza o Estatuto da Cidade, faz com os que os preços dos terrenos se elevem no momento em que há ampliação do crédito e subsídios que garantem a venda dos imóveis produzidos, inviabilizando, muitas vezes, a construção de uni-

dades residenciais em áreas melhor localizadas. Os dados referentes aos empreendimentos do PMCMV no Rio de Janeiro, organizados por faixa de renda, ilustram o problema aqui enfocado. As duas tabelas a seguir (ver Tabelas 10 e 11) sintetizam informações dos empreendimentos por faixa de renda, conforme o enquadramento adotado no PMCMV, e devem ser analisadas conjuntamente. A primeira indica os totais de empreendimentos e de unidades por faixa de renda e a seguinte os números de empreendimentos por área de planejamento em cada faixa de renda. Como se observa nos números da Tabela 10, quase metade dos empreendimentos do PMCMV no Rio de Janeiro são para a faixa de renda de 3 a 6 salários mínimos. Porém, o maior número de unidades licenciadas é para a faixa de 0 a 3 salários mínimos. Sem

dúvida, é interessante constatar que o maior número de unidades seja dirigido à faixa de renda mais baixa, onde se concentra o déficit habitacional brasileiro, ainda que a proporção seja tímida diante do tamanho do problema para essa classe social. Além disso, pode se deduzir que para a camada mais pobre o padrão predominante é o dos grandes conjuntos habitacionais, cujos exemplos históricos da própria cidade do Rio de Janeiro estão relacionados com baixa qualidade urbana ambiental e difíceis condições de manutenção. Ainda que o programa imponha limite ao número de unidades por conjunto, a proximidade dos mesmos poderá resultar em grandes áreas ocupadas sem os serviços necessários e amenidades urbanas. A Tabela 11 mostra que 2/3 dos empreendimentos licenciados no âmbito do PMCMV são localizados na AP5. Em

Tabela 10 - Total de Empreendimentos e Unidades Licenciados no Âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida no Município do Rio de Janeiro, por Faixa de Renda, no Período 2009 a 2011*

Fonte: SMU/PCRJ * Dados referentes ao período de setembro de 2009 a agosto de 2011 ** Os dados disponíveis no sítio da SMU na internet indicam 266 empreendimentos licenciados, mas para quatro deles não há a informação sobre a faixa de renda correspondente. Porém, esses empreendimentos, que juntos totalizam 545 unidades, foram computados no total da cidade nos cálculos que geraram esta tabela.

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Tabela 11 - Total de Empreendimentos Licenciados no Âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida no Município do Rio de Janeiro, por Área de Planejamento, e por Faixa de Renda, no Período 2009 a 2011*

Fonte: SMU/PCRJ * Dados referentes ao período de setembro de 2009 a agosto de 2011. ** Os dados disponíveis no sítio da SMU na internet indicam 266 empreendimentos licenciados, mas para 4 deles não há a informação sobre a faixa de renda correspondente. Porém, esses empreendimentos foram computados no total da cidade nos cálculos que geraram esta tabela.

relação ao total de unidades, a proporção é similar. Somente os empreendimentos para a faixa de 6 a 10 salários mínimos não estão predominantemente localizados na AP5. Apenas 15 empreendimentos foram licenciados na AP1 e AP2, menos de 6% do total. A partir desses números, se pode considerar que mesmo subsidiadas por um programa governamental, é ainda muito difícil para as famílias de até 6 salários mínimos acessarem a moradia bem localizada14. Até mesmo nas AP3 e AP4, é bastante limitada a atuação do PMCMV e quando há, predominam os empreendimentos para famílias de

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maior poder aquisitivo, de 6 a 10 salários mínimos.

demonstrar na parte inicial deste artigo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A breve caracterização do que está já anunciado como efeitos do PMCMV na cidade do Rio de Janeiro contribui para explicar e conirmar por que a produção informal das unidades residenciais da cidade, estimada neste trabalho nos limites dos dados disponíveis, tende a ser altíssima e a crescer. Porque se não for pela informalidade de favelas e loteamentos clandestinos e irregulares, é muito difícil o acesso à mordia pelas classes mais pobres, mesmo quando há um programa governamental atuando

Com o PMCMV, o vetor de expansão da cidade na parte norte da zona oeste parece estar sendo revigorado, o que, em termos gerais, não é algo positivo. Significa a ampliação da ocupação da região com menos condições de infraestrutura e serviços. E com o agravante de ser desnecessário numa cidade com áreas subaproveitadas ou mesmo vazias na parte de urbanização mais consolidada e cujo crescimento populacional é relativamente baixo e estável, como se procurou


Dinâmica Urbana

com volume expressivo de recursos. Tanto os programas de regularização urbanística e fundiária de assentamentos informais de baixa renda como programas de produção de moradia com subsídios são necessários para enfren-

tamento do complexo quadro urbano brasileiro. Porém não são suicientes em si mesmos. Precisam estar ancorados e articulados em estratégias de gestão que pretendam reverter padrões de reprodução da cidade. Para isso, as diretrizes do Estatuto da Cidade parecem ser as referências

essenciais e a implementação de instrumentos de promoção do acesso à terra urbanizada e de gestão social da valorização de terra condições essenciais. Do contrário, corre-se o risco desses programas agravarem problemas que aparentemente pretendem enfrentar.

NOTAS 1 O termo favelização aqui é utilizado como uma forma genérica para designar o processo de urbanização precária baseada, sobretudo, na autoconstrução. 2 O Rio de Janeiro é dividido, para efeitos de planejamento municipal, em cinco Áreas de Planejamento (APs). A AP1 pode ser entendida como a área central da cidade, envolvendo o Centro propriamente dito e os bairros pericentrais até São Cristóvão, incluindo a zona portuária e o bairro de Santa Teresa. A AP2 abrange a zona sul, área mais nobre da cidade e Rocinha, e as Regiões Administrativas da Tijuca e Vila Isabel na zona norte. A AP3 corresponde a grande região dos subúrbios do Rio de Janeiro. A AP4 é onde está a Barra da Tijuca e Recreio, vetores de expansão da zona sul ao longo da orla marítima, bem como os demais bairros da Baixada de Jacarepaguá. A AP5 integra, junto com a AP4, a região conhecida como zona oeste. Porém é onde estão localizados os bairros afastados do Centro, nos quais se verifica os índices mais baixos de renda familiar. 3 O IBGE classifica aglomerado subnormal como sendo: “conjunto constituído por no mínimo 51 unidades habitacionais (barracos, casas etc.), ocupando – ou tendo ocupado – até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular); dispostas, em geral, de forma desordenada e densa; e carentes, em sua maioria, de serviços públicos e essenciais.” 4 COMPANS, Rose. “A Zona Sul do Rio de Janeiro em Números: o Licenciamento de Novas Construções no Período 2000-2004. 5 Segundo dados divulgados no sítio da antiga Secretaria Municipal de Habitat (atual Secretaria Municipal de Habitação) na internet, das 8.303 unidades comercializadas e entregues até fevereiro de 2009 no Rio de Janeiro, no âmbito do PAR, apenas 65 eram localizadas na AP1, todas no bairro Centro. Porém, para o ano de 2009, era prevista a comercialização de mais 496 unidades na AP1, nesse caso, todas no bairro Mangueira. Em relação ao Programa Novas Alternativas, de acordo com informações fornecidas pela coordenação do mesmo, até 2010 foram concluídas 125 unidades. 6 Apenas como registro, vale mencionar que o crescimento muito superior da população em favela não se deve ao crescimento vegetativo eventualmente mais alto desse segmento. Há, de fato, uma lógica de reprodução da cidade que conduz parte da população, cada vez maior, para se localizar em favelas. 7 Considera-se favela aqui o que o IBGE classifica como aglomerado subnormal, conforme explicação da nota 3. 8 É importante observar que na classificação adotada pela PCRJ as favelas podem ser dos tipos “isolada” ou “complexo” que reúne duas ou mais comunidades. 9 São as favelas que receberam programas de urbanização recentemente. 10 A lógica de organização dos dados baseia-se na adotada em estudo anterior, intitulado “Projeto Caracterização da Irregularidade Urbanística Edilícia e Fundiária: Subsídios para a Regularização na Cidade do Rio de Janeiro”, do qual este autor participou da elaboração (AGRAR, 2002). 11 De acordo com o IBGE, domicílio particular permanente “é o domicílio construído para servir exclusivamente à habitação e que, na data de referência, tinha a finalidade de servir de moradia a uma ou mais pessoas”. 12 É importante observar que é muito difícil dimensionar a natureza das irregularidades. A princípio, é possível admitir que parte dos imóveis irregulares apenas não cumpriram procedimentos burocráticos, tais como pagamento de taxas, o que não implicaria, necessariamente, em divergência entre o imóvel construído e a legislação urbanística vigente. Porém, os dados sugerem que esse sistema de regulação, absolutamente complexo, não dá conta da dinâmica urbana tal como se apresenta atualmente. 13 Cerca de 90% do déficit habitacional no Brasil refere-se a famílias de até 3 salários mínimos, que nunca tiveram condições para acessar os programas de produção de habitação. 14 E cabe observar que neste trabalho nem houve preocupação de se analisar a qualidade dos empreendimentos do PMCMV, que já vem sendo alvo de muitas críticas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E OUTRAS FONTES DE CONSULTA AGRAR / LE COCQ, Sonia (Coord.). Projeto Caracterização da Irregularidade Urbanística Edilícia e Fundiária: Subsídios para a Regularização na Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Agrar Consultoria e Estudos Técnicos, 2002. (Relatório) ANDRADE, Luciana da S. & LEITÃO, Gerônimo E. de A. Transformação na Paisagem Urbana: favelização de conjuntos habitacionais. In: Silva, Rachel C. M. da. A Cidade pelo Avesso: Desafios do Urbanismo Contemporâneo. Rio de Janeiro: Viana &.Mosley/PROURB-UFRJ, 2006. p. 113-132. BONDUKI, Nabil. Política habitacional e inclusão social no Brasil: revisão histórica e novas perspectivas no governo Lula. In: arq.urb. Revista eletrônica de Arquitetura e Urbanismo. Nº1-2008. p. 70-104. http://www.usjt.br/arq.urb/numero_01/artigo_05_180908.pdf COMPANS, Rose. A zona sul do Rio de Janeiro em números: o licenciamento de novas construções no período 2000-2004. Rio de Janeiro: SMU/PCRJ, s/d. (Relatório). http://200.141.78.79/dlstatic/10112/1634856/DLFE-222245.pdf/zrel20002004.pdf COMPANS, Rose & CURI, Claudia de Melo. Relatório sobre o licenciamento de construções no ano de 2005. Rio de Janeiro: PCRJ/SMU, 2006. http://200.141.78.79/dlstatic/10112/1641390/DLFE222225.pdf/relatorio_2005.pdf LOUREIRO, Eugênia; DIAS, Maria Cristina; CORREIA, Pedro. Relatório Anual de 2007 – Concessão de Habite-se. Rio de Janeiro: PCRJ/SMU, 2008. http://200.141.78.79/dlstatic/10112/1641384/ DLFE-222219.pdf/RelatorioHabitese_ano2007.pdf LOUREIRO, Eugênia; DIAS, Maria Cristina; CORREIA, Pedro. Relatório Concessão de Habite-se em 2008. Rio de Janeiro: PCRJ/SMU, 2009. http://200.141.78.79/dlstatic/10112/1639190/DLFE221874.pdf/relatorio_habitese4trim_anual_2008.pdf MARICATO, Ermínia. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. RIO ESTUDOS. Análise do licenciamento imobiliário na cidade – 2007. Rio de Janeiro: Rio Estudos, no 284, 2008. http://200.141.78.79/dlstatic/10112/1641375/DLFE-222218.pdf/rioestudos284.pdf ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. 2ª Ed. São Paulo: Studio Nobel : FAPESP, 1999. (Coleção cidade aberta). SECRETARIA MUNICIPAL DE URBANISMO. Licenças e Habite-se no ano de 2006. Rio de Janeiro: PCRJ/SMU, 2006. (Relatório). http://200.141.78.79/dlstatic/10112/1641385/DLFE-222243.pdf/AnaliseLicencasehabitese2006.pdf SECRETARIA MUNICIPAL DE URBANISMO. Análise preliminar acerca das informações de Licenças e Habite-se em 2008. Rio de Janeiro: PCRJ/SMU, 2009. (Relatório). http://200.141.78.79/dlstatic/10112/1639189/DLFE-221847.pdf/analise_preliminar_2008.pdf SECRETARIA MUNICIPAL DE URBANISMO. Relatório: licenças concedidas em 2009. Rio de Janeiro: PCRJ/SMU, 2010. http://200.141.78.79/dlstatic/10112/1634873/DLFE-221951.pdf/analise_total_licencas_2009.pdf

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RESUMEM Dinámica urbana reciente de la ciudad de Río de Janeiro: consideraciones a partir del análisis de los datos de los Censos del IBGE y de la concesión de licencias urbanas municipales El presente artículo organiza y analiza un conjunto de datos relativos a Río de Janeiro con el objetivo de contribuir a reflexiones de las tendencias en la dinámica urbana de la ciudad. A partir de información del IBGE, en particular del Censo 2010, y de la concesión de licencias urbanas municipales, se discute la distribución espacial de crecimiento de la población y el modelo de la urbanización y de la reproducción de la ciudad. Este es un artículo que trae contribuciones al debate más amplio sobre la sostenibilidad urbana y sobre las herramientas para regular el proceso de expansión de la ciudad y controlar el uso y ocupación del suelo. Palabras Clave: Dinámica Urbana. Política Urbana. Rio de Janeiro

ABSTRACT Recent urban dynamic of Rio de Janeiro city: considerations from the analysis of IBGE census data and from the urban municipal licensing This paper organizes and analyzes a set of Rio de Janeiro’s data aiming to allow reflections on the trends of the town urban dynamics. We discuss the spatial distribution of the population growth and the model for urbanization and reproduction of the city based both on IBGE’s 2010 Demographic Census and the municipal urban licensing data. This article intends to contribute to a wider debate on urban sustainability including the tools to regulate the city expansion process and the tools to control use and occupation of the urban land. Keywords: Urban dynamic, Urban policy, Rio de Janeiro

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Habitação no Brasil

A questão da habitação no Brasil: retrospectiva e momento atual Alberto Lopes — Urbanista, pesquisador e assessor técnico do IBAM – alberto.lopes@ibam.org.br

RESUMO O artigo busca situar o momento atual da questão da habitação de interesse social no Brasil a partir de uma retrospectiva de mais de 120 anos. O assunto é examinado em períodos demarcados pelo processo de formação territorial e urbana do País, segundo contextos políticos, expressões econômicas e sociais do fenômeno, marcos legais e políticas públicas que vieram sendo adotadas em cada período. Palavras-chave: Habitação. Desenvolvimento Urbano. Políticas Púbicas.

Retrospectiva A trajetória da questão habitacional e das respectivas políticas públicas em habitação no Brasil pode ser compreendida em cinco fases. A primeira, ainda de gênese da questão urbana, no período de um Brasil eminentemente rural; a segunda, identiicada com o populismo, e com as primeiras iniciativas, até então tímidas e incipientes, do Estado no assunto; a terceira, marcada pela atuação centralizadora e contundente do Banco Nacional da Habitação (BNH) no setor; a quarta, pós-BNH, de incertezas da ação do Governo Federal após a dissolução do seu grande banco estatal de fomento na questão; e, a quinta, de refortalecimento das políticas nacionais, num contexto de protagonismo federalista dos governos locais no assunto. A fase da gênese da questão habitacional urbana

(1888-1930) cobre o período que vai da Abolição da Escravatura ao m da República Velha. Do ponto de vista político, o período foi marcado pelo coronelismo identiicado com a força dos proprietários rurais. Na verdade, a Lei de Terras, de 1850, já havia consagrado as primeiras frentes de concentração (diga-se irregular e especulativa) da terra, sobretudo no que considerávamos o interior do Brasil. Do ponto de vista econômico, esse foi um período marcado por certo ruralismo e pela primeira onda de industrialização. A Abolição contribuiu decisivamente para esvaziar o campo, expulsando mão de obra desqualiicada e sem terra para as cidades. A industrialização forjou a emergência do operariado assalariado, carente de alojamento em padrões urbanos. A aglomeração urbana criou economias de escala para comércio e serviços, aprofundando a dependência da

cidade em relação ao campo. Por outro lado, a política de estímulo à imigração europeia no Brasil gerou pressão extra sobre a demanda por terra e por alojamento, sobretudo no Sul e no Sudeste do País. Escravos libertos, operariado urbano emergente, comerciários e imigrantes europeus formarão os novos contingentes de pressão da demanda habitacional nos primórdios da urbanização brasileira. A incipiente urbanização do período esteve identiicada com esse conjunto de fatores, todos eles tendentes à indução da aglomeração populacional nas cidades, sobretudo nas capitais, então mais atrativas do País. Para se ter uma ideia, em 1910 apenas 9,6% da população do País foi recenseada como urbana e, em 1920, este percentual não passou de 10,7%. Se, do ponto de vista do campo, se veriicava uma expulsão de população das áreas

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propor explicitamente a sua eliminação, como no Código de Obras do Rio de Janeiro. Na mesma época, na região metropolitana de Recife atuava a Liga Nacional Contra o Mocambo.

Cortiço, em São Paulo

rurais, do ponto de vista das cidades, as maiores delas, notadamente o Rio de Janeiro, a capital do Brasil, tem início o combate aos cortiços, às cabeças de porco e às estalagens como saída sanitária para as formas de moradia que entravam em xeque nas grandes cidades. O agravante era a restrição de alternativas viáveis de acesso à terra. Não por acaso, a primeira favela reconhecida como tal no Brasil surge em 1897, no Morro da Providência, na cidade do Rio de Janeiro. A fase do populismo (1930-1964) abrange o período que vai da ascensão da República Nova à criação do Banco Nacional da Habitação (BNH). A Grande Depressão americana, de 1929, suas consequências na desarticulação dos fracos laços inanceiros internacionais e a Segunda Guerra Mundial deram ânimo aos nacionalismos

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latino-americanos e à busca de soluções autóctones para a economia e o desenvolvimento nacionais. Começa a fase da segunda industrialização brasileira, pela via da substituição de importações. A Revolução de 1930 assinala a ascensão de Getúlio Vargas ao Poder, no qual permanecerá até o im da guerra (e de sua ditadura marcada pelo Estado Novo), em 1945. A explosão de favelas e de cortiços nesse período coincide com a aprovação, em 1937, de um ato legal federal (um decreto-lei) tratando dos loteamentos urbanos. No entanto, esse decreto se mostrou mais preocupado em regular as transações imobiliárias urbanas nos loteamentos do que propriamente nas questões urbanísticas, habitacionais e ambientais neles implicadas. Assim como no caso dos cortiços, as políticas para as favelas começam a

Em todo o País, o mercado formal de habitação popular começa a ser atendido pelas Carteiras Imobiliárias das Caixas e dos Institutos de Aposentadorias e Pensões, por empreendimentos industriais promovidos pelo setor privado e pelo Governo Federal em seus investimentos na criação da indústria de base. São dessa época, por exemplo, a Vila Operária de João Monlevade (MG), da Companhia Belgo-Mineira; a Vila Operária integrante do projeto da cidade industrial de Volta Redonda (RJ), que abrigou a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN); e instalações da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), essas duas últimas estatais. É importante observar que as iniciativas iriam se inspirar no ideário nascente da arquitetura e do urbanismo modernos, buscando novas soluções de projetos de moradia. São dessa época os chamados Parques Proletários da Gávea e do Pedregulho, no Rio de Janeiro. Politicamente, nesse período do início da década de 1940, marcado pelo populismo urbano, o Governo Federal oferecerá medidas adicionais de proteção popular no domínio da habitação, como a Lei do Inquilinato. Em 1940,


Habitação no Brasil

No ano de 1961, o Governo Federal ainda lançaria o Plano de Assistência Habitacional com prestações calculadas em 20% do salário mínimo, uma invenção de Vargas. Vale observar neste período uma alternância cíclica do centralismo (1937), passando pelo municipalismo emergente na nova Constituição (1946), e daí a um novo ciclo centralista inaugurado pelo golpe militar de 1964, quando foi criado o Banco Nacional da Habitação (BNH). Pedregulho, Rio de Janeiro

37,24% da população no País é recenseada como urbana. Em 1946, foi criada a Fundação da Casa Popular, destinada a organizar e a fortalecer a capacidade de provisão de habitação e infraestrutura aos mais pobres. As décadas de 1940 e de 1950 serão marcadas pela explosão de loteamentos que irão expandir as periferias, sobretudo das grandes capitais, acentuando o processo de metropolização do País. O segundo Governo Vargas (1950-1954) implantará uma nova geração de empresas estatais no Brasil, notadamente a Petrobrás e a Eletrobrás, que contribuiriam indiretamente para acentuar o processo de urbanização. A ascensão de JK ao Governo Federal, em 1956, com seu Plano de Metas e o bordão de realizar “50 anos em 5”, será responsável pela implantação da indústria automobilística

e a construção de Brasília, inaugurada em 1960. Naquele ano, 45,08% população foi recenseada como urbana, indicando aceleração mais signiicativa do crescimento da taxa de urbanização do País. Apenas como exemplo, é possível perceber que no momento a inadequação habitacional é de 1/3 no Rio de Janeiro (RJ) e de 2/3 em Recife (PE). No caso de Recife, é lagrante a herança escravista, latifundiária e monocultora (canavieira) na exclusão tamanha da população de seu direito a uma moradia digna. Talvez não por acaso é em Pernambuco também, em Cajueiro Seco, que surge, em 1963, uma experiência, emblemática para a época, de pré-fabricação de casas com taipa (uma técnica de construção tradicional no meio rural) para aplicação urbana de mais larga escala nas cidades.

Habitação no Brasil

A fase BNH (1964-1986) será marcada pelas políticas e pelo inanciamento oicial exclusivo, centralizador e contundente das iniciativas de habitação de interesse social e saneamento, mas com enfoque de mercado, de forma abrangente em todo o País. O BNH, além do inanciamento habitacional, se dedicará, por intermédio do Plano Nacional de Saneamento (Planasa) e dos Programas FIs e Reis, ao inanciamento do saneamento básico, apoiado na estadualização induzida dos serviços de água e esgoto, até então com titularidade municipal e prestação direta operada pelos Municípios. Foi criado também o Serviço Nacional de Habitação e Urbanismo (Serhau), dedicado à promoção do planejamento urbano integrado com os municípios brasileiros. No âmbito dos transportes urbanos, foi instituída uma forte

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estrutura de promoção do transporte de massa, apoiada sobretudo no Geipot e na EBTU. Nos Estados, e mesmo em alguns Municípios, são estabelecidas ou se expandem as companhias de habitação (Cohabs). A questão metropolitana foi objeto de criação, em 1974, de entidades estaduais vocacionadas ao assunto. Fechava-se assim uma poderosa estrutura de implementação de políticas urbanas com vultosos inanciamentos apoiados no Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e em empréstimos externos, mas que com o tempo foram se mostrando incapazes de atender às demandas genuínas da população mais pobre do País. O FGTS foi estabelecido em 1966, sob a gestão do BNH, para constituir fonte segura de inanciamento das ações do banco. Os inanciamentos, antes contraídos por mutuários individuais, passaram

Conjunto habitacional, Curitiba

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a ser feitos para Prefeituras. Os bancos privados, por meio do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE), tornaram-se agentes do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), produzindo imóveis destinados às classes médias. A tônica da política habitacional do BNH operada via FGTS, nos seus primeiros programas, foi a erradicação de favelas e a construção de grandes conjuntos habitacionais nas periferias. Observe-se que essas favelas foram erradicadas, muitas vezes, de áreas centrais das cidades valorizadas para os empreendimentos implantados com recursos do SBPE. De fato, as favelas se constituíram, antes de tudo, pela excepcionalidade das localizações onde se implantaram. É comum encontrar favelas que surgiram ou se desenvolveram como localizações estratégicas de trabalhadores

vizinhas de grandes obras urbanas. A proximidade permitia eliminar o custo de transporte para o trabalho. Além disso, pelo menos até algumas décadas atrás, em muitas cidades, como não se valorizava a natureza, tampouco os ativos ambientais a ela associados, foi comum surgirem favelas no alto de morros antes florestados, em matas ciliares de rios, em manguezais, em baías e em lagoas e mesmo nas beiras de praias. Não por acaso, até hoje em dia, são comuns os embates entre os movimentos de luta pela moradia e os movimentos de luta pelo meio ambiente. Na verdade, no nosso entender, um falso dilema. Nesse processo, favelas, cortiços, ocupações precárias e loteamentos irregulares e clandestinos acabaram por constituir frentes de resistência e, ao mesmo tempo, enormes passivos urbanísticos e sociais encravados nas grandes metrópoles brasileiras. Esse passivo deve ser entendido tanto pelas condições mais ligadas à materialidade dos meios de vida urbanos (moradia, infraestrutura, serviços, mobilidade) quanto pelas condições humanas da população (saúde, educação, trabalho e renda). Depois de estancada a política oficial radical de remoções, sobretudo das décadas de 1960 e de 1970, como dissemos, muitas vezes para requaliicação valorativa


Habitação no Brasil

dos próprios locais visados pelo mercado habitacional das classes médias, as favelas acabaram por constituir fortes demandas dirigidas ao setor público. Porém é preciso reconhecer que os maiores investimentos ainda hoje encontrados em muitas favelas brasileiras foram feitos pelos próprios moradores dessas áreas, criando solo urbano (antes não assumido ou preparado para tal) e construindo, mesmo que precariamente, suas próprias moradias, acessos e alguns serviços. Ocorre que os investimentos requeridos por essas áreas ao setor público se expressam por meio de forte apelo ao subsídio. O “retorno” desses investimentos, durante muito tempo e numa visão meramente economicista, foi visto pelas políticas públicas como baixo, não justiicando, portanto, o direcionamento de recursos maiores e além da tática de simplesmente conter tensões sociais por meio de obras episódicas ou emergenciais. Se as favelas começaram na indigência, tendendo a consolidarem-se progressivamente no tempo, os cortiços refletiram o caminho contrário, surgindo em bairros e em ediicações residenciais decadentes que acabaram formando-se, em primeira avaliação, como demanda qualitativa, mas logo a seguir como demanda quantitativa. Por isso mesmo, o fenômeno do slum americano deve ser

mais associado ao cortiço do que à favela, como se costuma fazer na literatura estrangeira traduzida para o Brasil. Os loteamentos populares vieram constituindo um processo muito especíico, no qual a irregularidade, a clandestinidade e a falta de infraestrutura acabaram por instituir a marca dos empreendimentos. A explosão dos loteamentos ocorreu nas periferias metropolitanas, coincidindo com o pico das migrações para as grandes metrópoles. A clandestinidade (implantação à revelia da lei e do conhecimento prévio da Prefeitura) e a irregularidade (implantação no terreno em desacordo com o projeto aprovado na Prefeitura) dos loteamentos populares formam faces da mesma moeda. Oferecem lotes na qualidade que somente a irreverência à lei permite atender os mais pobres. Alguns processos associados a esses loteamentos, via de regra localizados em periferias distantes, foram, pelo menos em décadas passadas, ilustrativos. De um lado, para atrair as primeiras frentes de ocupação, chega-

Favela da Rocinha, Rio de Janeiro

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ram a ser oferecidos lotes, mais do que de graça, a custo negativo, ou seja, os lotes eram doados com milheiros de tijolos para estimular as primeiras ediicações. Assim, começava-se o processo de adensamento do local a criar pressões políticas para que o setor público começasse a implantar as infraestruturas e os serviços que os loteadores não implantavam. Com isso, se incrementar o valor dos lotes remanescentes que depois seriam vendidos. Nesse processo, a valorização gerada pelo setor público era incorporada, como mais-valia, pelos empreendedores imobiliários. As condições de resistência dos movimentos sociais a estes processos excludentes foram sendo minadas pouco a pouco. A Constituição Federal de 1967 e a sua substituta de 1969 cuidaram de estabelecer as condições de sustentação do regime, acentuando-se o centralismo nos Governos Estaduais, nas capitais e nos Municípios considerados de Segurança Nacional, estes em geral abrigando grandes instalações industriais e, portanto, com forte pressão de demanda habitacional e

Ocupação em Macapá

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Loteamento Jardim Catarina, São Gonçalo

também forte concentração política operária. A repressão política às diversas representações parlamentares formais ou comunitárias impedia diálogo que pudesse oferecer canal de expressão ou de mediação a desejos, vontades ou insatisfações dos interessados a serem reletidos nas políticas públicas. Tanto o movimento de luta pela moradia quanto o movimento ambientalista, não por acaso, assumem vigoroso protagonismo na década de 1970. Na verdade, já se constituía uma reação mais abrangente da sociedade brasileira à ditadura e suas múltiplas consequências na vida do País. É importante observar que em 1964, conforme estudo da época atribuído ao Instituto de Economia do Rio de Janeiro, o déicit habitacional quantitativo no Brasil foi calculado em cerca de oito milhões de moradias. Desde já, pode-se adiantar que esse mesmo valor aproximado do déicit habitacional nacional

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foi o mesmo calculado no ano de 2006. Apesar das prováveis diferenças metodológicas de cálculo, em momentos separados por 42 anos no tempo, são inúmeras as inferências possíveis sobre este fato. A despeito do quadro geral das políticas habitacionais então vigentes no País, verificam-se em algumas cidades brasileiras experiências emblemáticas daquilo que viriam a ser mais tarde as ideias inspiradoras das políticas recomendadas para o setor. No Rio de Janeiro, a urbanização da favela de Brás de Pina, promovida pela Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (Codesco), entre 1968 e 1969, se mostraria precursora de outras experiências no Brasil e também do programa Promorar, do BNH. O quadro geral das políticas de Governo mostra-se altamente indutor de forte aceleração do processo de urbanização no País, gerando

a formação de um território cada vez mais heterogêneo, de uma rede urbana cada vez mais assimétrica e de uma sociedade cada vez mais desigual. No plano macroeconômico, as políticas estiveram claramente identiicadas com a expansão dos serviços financeiros, com a ampliação da infraestrutura urbana como atributo de valor para as localizações imobiliárias e com a utilização vigorosa do setor da construção civil como suporte da geração de empregos urbanos. É a época do chamado ‘milagre econômico’, do boom imobiliário, da verticalização de edifícios nas grandes cidades (inanciados pelo SBPE) e também da ameaça crescente aos ativos ambientais urbanos, seja nas áreas centrais programadas para a classe média seja nas periferias invadidas pelos que não tinham acesso ao mercado formal de imóveis. Por outro lado, surgem os condomínios exclusivos, oferecendo aos de maior renda cidadelas cada vez mais exclusivas, sublinhando a progressiva perda de sociabilidade nas cidades. Na verdade, as localizações urbanas vieram se estruturando segundo equação na qual os custos sociais de morar eram os mais altos, os custos econômicos eram os mais baixos, e vice-versa. Dito de outro modo, onde se estava muito distante dos locais de trabalho, do comércio e de amenidades, e não havia infraestrutura mínima esperada para uma inserção urbana


Habitação no Brasil

Urbanização Favela Bras de Pina, Rio de Janeiro

Urbanização da Favela, Santo André

digna e cidadã, eram pagos custos tendentes a zero. Ao contrário, aqueles que estivessem nas zonas mais centrais, servidas pelo que havia de melhor a oferecer em termos de moradia e de amenidades, pagariam os maiores valores de mercado para morar.

Acelerada (Cura), lançado em 1972, previa investimentos múltiplos e combinados de infraestruturas em áreas carentes para rápida recuperação. A adesão dos municípios ao projeto, no entanto, implicava a adesão ao Planasa e a automática entrega da operação dos serviços de água e esgotos à respectiva companhia estadual. Entretanto envolvia também a obrigatoriedade, por parte das administrações municipais, de taxação progressiva dos lotes vagos que seriam valorizados pelos investimentos gerados pelo projeto Cura no local. Este princípio da recuperação de mais-valias, aliás, foi precursor da introdução do IPTU progressivo no Estatuto da Cidade, em 2001.

De qualquer modo, a eicácia das políticas atrativas de migrações para as grandes cidades não parava de aumentar o contingente de demanda – ou não atendida ou mal atendida – pelas políticas públicas. De fato, em 1970, o censo demográfico registra 56% de população urbana no Brasil, um crescimento de cerca de 10% da taxa em relação a 1960, que viria a se repetir nas duas décadas seguintes, até o censo de 1991. A população da cidade de São Paulo, que em 1900 era cerca de quatro vezes menor do que a população do Rio de Janeiro, agora, tornada o principal lócus inanceiro e industrial do País, a ultrapassa. O projeto Comunidades Urbanas de Recuperação

Como o projeto político da época enredava não superar, mas aprofundar as condições de pobreza e de exclusão social, durante todo esse período, as políticas habitacionais não poderiam mesmo ir muito além dos parcos resultados que apresentaram. Na

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segunda metade da década de 1970, em que pese os investimentos maciços do BNH no setor de habitação, pesquisas realizadas pelo Centro de Pesquisas Urbanas do IBAM, e patrocinadas pelo próprio banco por intermédio do seu Departamento de Pesquisas, revelavam uma eicácia muito limitada dos resultados em face dos propósitos anunciados pelas políticas que os inspiravam. As limitações eram tanto de ordem quantitativa quanto qualitativa. Soluções tentadas de remoções provisórias de favelados para as chamadas Casas de Triagem (provisórias) se revelaram para aqueles moradores condições deinitivas de moradia. Do ponto de vista quantitativo, a demanda se expressava de modo concentrado nas grandes cidades, pela via da intensa migração, e, segundo perfil social e de renda que não conseguia ser atendido em massa, gerando déficits quantitativos cada vez maiores. Esse saldo negativo era agravado pela intensa política de erradicação das favelas, o que abrangia assumir déicit qualitativo como déicit quantitativo. Do ponto de vista qualitativo, as soluções habitacionais oiciais, além de pecarem pela má localização, via de regra em periferias de difícil acesso aos locais de trabalho, pecavam também pela má qualidade arquitetônica e construtiva das moradias. A política de oferecer casa nova a todos,

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como solução final acabada de moradia, além de envolver custos inais maiores para os moradores, limitava a adequação das famílias aos projetos fechados e indiferenciados que eram oferecidos a todos. No caso das soluções dos conjuntos habitacionais verticais, com apartamentos, a limitação era ainda maior, mostrando-se mesmo uma falácia, sobretudo para as famílias que precisavam gerar renda nas suas próprias residências. Com o tempo, a necessidade se mostrou tão vital, mesmo para moradores de edifícios de apartamentos, como na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, que os projetos acabaram sendo dramaticamente modiicados e adaptados a expansões que viabilizassem a realização de atividades econômicas nas residências. Além do mais, sem experiências anteriores de administração de condomínios, as áreas e as instalações comuns desses conjuntos se deterioravam rapidamente. Grande parte da oferta de empreendimentos da época foi incluída recentemente na cota da demanda (como déficit qualitativo), exigindo investimentos em recuperação, em reformas, em melhorias ou mesmo em regularização urbanística e fundiária, uma vez que a própria iniciativa oicial costumou produzir irregularidade. John Turner, conhecido especialista inglês, convidado oicialmente a vir ao Brasil para ver o que se consideravam os problemas (favelas) e as soluções (conjuntos) habitacionais oferecidos pelas

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políticas governamentais do período, chegou a dizer que o que lhe mostraram como problemas pareciam soluções e o que lhe mostraram como soluções pareciam problemas. Outro agravante é que as políticas do BNH, pela própria natureza de instituição inanceira, que utilizava apenas recursos retornáveis, sem subsídios, contemplaram somente investimentos na materialidade dos empreendimentos por ele financiados (residências e infraestruturas urbanas). Ações de caráter social, cultural ou econômico associadas à habitação estiveram quase totalmente ausentes das políticas públicas. Quanto à questão ambiental, dada a extraordinária expansão do setor imobiliário promovida nas cidades brasileiras, seja pela ação direta do governo, para os mais pobres, seja pela iniciativa privada, para as classes médias, aquele foi um período de lagrantes perdas para o meio ambiente urbano. As lições no assunto foram acompanhando o próprio processo político e de redemocratização do País, uma vez que as demandas sociais precisam se expressar como compromissos programáticos e orçamentários nos programas de Governo. Além da discussão sobre as próprias soluções de moradia oferecidas, foram se mostrando como limitados os investimentos feitos exclusivamente na construção ou na melhoria dos espaços

habitacionais. Mais do que isso, a valorização dessas moradias, novas ou melhoradas, muitas vezes acabava por atrair novos compradores mais capitalizados, expulsando aqueles a quem os investimentos originais se propunham a atender. O aprendizado da época sobre os assuntos da chamada habitação de interesse social, extraído também da experiência internacional, que adotava réplicas nos mais distintos países, foi decisivo para uma reviravolta na formulação dos programas habitacionais do BNH que sucederam os programas precursores. Em 1975, o BNH lança o Programa de Financiamento de Lotes Urbanizados (Profilurb), inspirado em outro do Banco Mundial conhecido como “site and services”. Este programa foi emblemático para responder à crítica do período, pois de fato assumia o princípio de que o problema da habitação não era propriamente de “casa”, mas de uma localização adequada e de infraestrutura mínima urbana, num quadro de legalidade e de inserção das famílias na ordem urbana. A “casa” poderia ser construída pelos próprios moradores no seu lote urbanizado, gerando demanda de materiais e de insumos para a criação no próprio bairro, com efeitos diretos capilares na economia dos respectivos bairros. Houve mesmo quem propusesse utilizar as lojas de ma-


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teriais de construção como canais ou associadas do circuito de inanciamento da habitação. O princípio veio inspirar, muito mais tarde, um programa semelhante ao do Governo Federal para inanciamento de materiais de construção. Houve também experiências das chamadas habitações evolutivas, oferecidas em loteamentos urbanizados a um custo menor do que o das casas completas e com possibilidades de variações na forma inal das residências. A solução previa um núcleo básico de cômodos de serviços e residência, programados para receberem quartos e mesmo outros andares a partir da edi cação original. Em 1979, o BNH lança o Promorar, para urbanização de favelas. É importante notar que novas modalidades de ação habitacional acabaram por gerar também enorme interesse na pesquisa e na difusão de alternativas tecnológicas e de métodos construtivos para a habitação popular. Num outro front, depois de mais de dez anos de discussão, foi aprovada a Lei Federal n.º 6.766, de dezembro de 1979, sobre parcelamento do solo urbano, buscando regular os processos e os padrões de ocupação do solo nas cidades brasileiras. A lei, inspirada e muito festejada sobretudo por juristas e por planejadores urbanos atuantes nos assuntos urbanos, estabeleceu exigências

mínimas de qualidade urbanística e ambiental para os loteamentos. O resultado, como um tiro que sai pela culatra, pelo impacto das novas exigências no custo inal dos lotes, foi um visível estancamento da oferta dessa modalidade imobiliária em todo o País, senão pela via da ilegalidade fundiária e da irregularidade urbanística. Uma vez que se acentuava a pobreza, a demanda efetiva por lotes com um mínimo de qualidade não correspondia às condições da oferta formal, realimentando os processos de ocupação irregular do solo. Enfim, a questão habitacional apresentava-se cada vez menos como demanda setorial e cada vez mais como ponto estrutural do desenvolvimento do País.

O saldo da atuação do BNH, até a sua extinção, em 1986, foi o financiamento de 4,3 milhões de moradias, sendo 2,4 milhões com recursos do FGTS e 1,9 com recursos do SBPE, uma distorção em relação ao perfil da demanda maciçamente concentrada nas famílias de mais baixa renda. Enquanto isso se estimava que a autoprodução de moradias em todo o País, no mesmo período de 22 anos de existência do banco, foi de cerca de quatro vezes a produção do BNH. Era como enxugar gelo. Estudos da época registraram também cerca de 350 mil mutuários do SFH inadimplentes e 454 mil unidades habitacionais não comercializadas. Ocorre também a quebra de muitas instituições inanceiras e a insolvência do BNH como segurador do sistema que comandava.

O censo de 1980 aponta 65,10% de população urbana no Brasil. Neste inal da década de 1970, os sinais de esgotamento do regime já são visíveis. O quadro geral de recessão econômica, de endividamento externo, de inflação, de desemprego, de consequente queda da arrecadação do FGTS e de crise de inanciamento do Estado, vai gerando seu contraponto no processo de redemocratização reclamado nas ruas pela sociedade civil e pelo fortalecimento dos movimentos sociais, que desembocam, em 1984, na Campanha das “Diretas Já”.

A crise habitacional provocada pela crescente dissociação entre a oferta oicial e a demanda global por habitação inspira, em Goiás, uma iniciativa radical que veio a se tornar emblemática para o aprendizado sobre habitação no País. Em 1983, o Governo de Goiás realiza o Mutirão da Moradia. O projeto consistiu na mobilização de cerca de 20 mil pessoas que, a partir de um enorme planejamento, construíram mil casas em apenas dez horas de um único dia. As chamadas “casas de placas” (de cimento) icaram marcadas como uma metáfora desesperada da crise habitacional do País. Pode-se aqui adiantar que, pela má

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qualidade das casas construídas, a oferta habitacional gerada pelo projeto é hoje, naquele estado, considerada nova demanda qualitativa para melhorias ou demanda quantitativa, sujeita a substituição das antigas unidades habitacionais. Foi lançado também o Programa Nacional de Autoconstrução/Projeto João de Barro, apoiado em ações de massa nas grandes metrópoles. Na verdade, ideias oriundas dos meios acadêmicos e de proissionais atuantes no assunto vieram sendo apropriadas para apoiar certa dinâmica política que visava estender a vida útil do regime por meio de iniciativas de cunho mais midiático e triunfalista do que comprometido de fato com as causas sociais. A criação do Ministério do Desenvolvimento Urbano (MDU), em 1985, não traria nenhum alento àqueles que dependiam das políticas públicas para acesso a alternativas habitacionais no mercado formal de moradia. O fato relevante é que, nos meados da década de 1980, muitos prefeitos brasileiros, aliados das frentes populares que buscavam alternativas genuínas para as políticas públicas fracassadas na esfera federal, arregaçaram as mangas e começaram a mostrar melhores práticas e soluções. Em 1985, a volta das eleições para os Executivos das capitais e de Municípios de segurança nacional abriu espaço

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para que as grandes cidades do País, onde a questão habitacional havia mostrado sua maior contundência, servissem de laboratórios vivos e de vitrines de novo ideário de ação no campo da habitação e das políticas sociais em geral. Pode-se adiantar que boas práticas de políticas urbanas e habitacionais do período vieram mais tarde, na primeira década do Século 21, inspirar as políticas do Ministério das Cidades. Não por acaso, em 1983, um Projeto de Lei do Desenvolvimento Urbano foi elaborado e submetido, sem sucesso, ao Congresso Nacional, inspirando, por sua vez, a redação futura do Estatuto da Cidade, aprovado em 2001 como regulamentação do capítulo sobre a política urbana da Constituição Federal. Diante dos fatos e do esgotamento irremediável do regime ditatorial, em 1986 foi extinto o BNH, sendo seu espólio, seus recursos e sua missão assumidos pela Caixa Econômica Federal. A dissolução do BNH, e de toda a superestrutura governamental do desenvolvimento urbano, encerra um ciclo e inaugura outro, já sob plena inluência do neoliberalismo global. A fase das incertezas (1986-2003), pós-BNH, será marcada ora por políticas cambiantes ora pela ausência delas. De fato, entre 1991 e 1995 chegou a haver total paralisação dos inanciamentos habitacionais no Brasil. Observe-se ainda que, num curto período

de anos, o tema da habitação esteve atribuído sucessivamente ao Ministério do Interior (Minter), ao Ministério do Bem-Estar Social (MBES) e ao Ministério da Ação Social (MAS). Nesse momento também a regulamentação do crédito imobiliário passa para o Conselho Monetário Nacional. O fato político mais relevante foi a aprovação da Constituição Federal de 1988, mais um ajuste redemocratizante com o passado do que um projeto propriamente de futuro, dada a enorme profusão de Emendas Constitucionais que lhe impuseram modiicações. O processo constituinte havia animado as forças políticas mais progressistas da sociedade brasileira, apontando no rumo de uma abertura, embora sob grande inluência dos que poderiam ser, ingenuamente, apontados como vencidos. O neoliberalismo global cumpre sua agenda básica de enfraquecimento das funções do Estado Nacional. De qualquer modo, a criação de alguns fundamentos macroeconômicos para a esperada estabilização monetária e a imposição de maior rigor na gestão das contas públicas às três esferas de Governo, por meio da Lei de Responsabilidade Fiscal, favoreceu a retomada posterior do planejamento governamental. O advento da reeleição, por sua vez, admitindo um segundo mandato para os chefes dos Executivos, fez estender o horizonte de tempo político para


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um prazo de oito anos. Como a Constituição Federal também havia inaugurado novo ciclo municipalista, a esfera local de Governo, legitimada pelo voto popular e com mais autonomia administrativa e financeira, irá se fortalecer como espaço privilegiado das políticas urbanas no País. O Censo de 1991, atrasado em um ano devido a turbulências em várias frentes, na institucionalidade política do País, aponta 75% de população urbana no Brasil. Ou seja, pelos critérios vigentes de contagem censitária, três em cada quatro habitantes viviam em áreas urbanas, atestando uma hipertrofia das cidades em relação ao campo, este cada vez menos identificado como rural e mais com o agrário produtor de commodities. Por outro lado, a partir daí, a população das periferias metropolitanas cresceu mais do que a das áreas centrais. A das favelas aumentou mais do que a dos bairros oiciais das cidades. Nessa época é criado o Fórum Nacional pela Reforma Urbana (FNRU), buscando uniicar e fortalecer diversos movimentos sociais urbanos. Por esta via são elaborados e apresentados ao Congresso Nacional, já sob inspiração da nova Constituição, alguns projetos de iniciativa popular. Dadas as contingências econômicas e inanceiras às quais se subordinava o Governo Federal, a nova unidade responsável pelos assuntos

da habitação, a Secretaria de Política Urbana (SPU, depois Sedu) foi vinculada ao Ministério do Planejamento e Orçamento. O principal programa da vez foi o Habitar Brasil BID, lançado em 1999 com um componente de Urbanização de Assentamentos Subnormais e outro de Desenvolvimento Institucional. A maior novidade seria o Programa de Arrendamento Residencial (PAR), modalidade de leasing imobiliário oferecida como aluguel com opção de compra ao inal do prazo de contrato. Se, por um lado, este artifício procurava combater o mecanismo do “passa-se uma casa”, comum desde a década de 1960, por outro, mantinha a Caixa como mantenedora do patrimônio privativo e comum dos moradores dos empreendimentos até a transferência da propriedade para o interessado inal. No ano 2000, o Censo apontou 81% de população urbana no Brasil, enquanto o de 2010 mostrou uma elevação dessa taxa para 84%. Em 2012, a Lei Federal n.º 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) completa 11 anos de vigência. Como medida regulamentadora dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal, o Estatuto deiniu o Plano Diretor como “instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”, colocando à disposição dos agentes públicos locais novos instrumentos legais capazes de inspirar o aperfeiçoamento

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da legislação urbana de milhares de municípios brasileiros. O Estatuto da Cidade viria regulamentar e ampliar o marco jurídico instituído pela Constituição Federal para a gestão da cidade. As novidades foram a consolidação de antigos e de novos instrumentos da política urbana à disposição dos Municípios e a elaboração de mecanismos obrigatórios de gestão democrática da cidade por parte dos agentes públicos. De fato, o Estatuto da Cidade veio coroar um longo processo de mobilização da sociedade civil que, organizada em torno do Fórum Nacional de Reforma Urbana, foi decisivo para a sua formulação e aprovação pelo Congresso Nacional. O objetivo era claro: promover o direito à cidade para todos, airmando direitos de cidadania sobre o domínio do solo urbano. O ano de 2003 assinalou o início de uma fase federativa das políticas habitacionais (2003- ...), formuladas e implementadas a partir de vigorosa assunção da questão urbana como política de Estado no Brasil. A criação do Ministério das Cidades, por si só um sinal de prioridade inédita para a questão, é sucedida pela formação de um aparato institucional e inanceiro consistente para as ações de governo neste campo. Pela Lei Federal n.º 11.124/2005, regulamentada pelo Decreto n.º 5.796/2006, foram criados o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), o Fundo

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Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e o seu Conselho Gestor, além do Conselho das Cidades com representações dos diversos interessados nas questões urbanas e habitacionais. Foi lançada também a série de Conferências das Cidades, com edições nacionais, estaduais e municipais nas quais vieram sendo discutidas e encaminhadas demandas e proposições da sociedade civil para as políticas públicas urbanas. Em alguns poucos Estados, as conferências estaduais contaram com capítulos metropolitanos. Do ponto de vista prático, duas frentes de ação promovidas pelo Governo Federal geraram intensa mobilização nacional nas cidades. A campanha para a realização dos Planos Diretores visou, antes de tudo, introduzir instrumentos previstos no Estatuto da Cidade na legislação urbanística local, legitimada por amplos processos de participação, culminando em Audiências Públicas. No campo da habitação, foram realizados Planos de Habitação de Interesse Social para Estados e para Municípios que, aderindo ao Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, puderam aceder aos recursos do fundo nacional. Em que pese avanços verificados em algumas cidades, o balanço nacional dos resultados da aplicação do Estatuto da Cidade ainda é crítico em relação às expectativas. A questão fundiária, do

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acesso à terra, é difícil como limitação a ser enfrentada politicamente. Mas muitos Planos Diretores também resultaram leis genéricas, sem regulamentações, não sendo autoaplicáveis pelas equipes técnicas dos Municípios. O Estatuto continua, assim, representando oportunidade pendente para mudar as cidades brasileiras. Do ponto de vista das políticas, foi recuperado o aprendizado acumulado nas décadas passadas para novo ciclo de políticas urbanas, agora sob a égide do Estatuto da Cidade, articulando planos diretores, planos habitacionais com participação popular e outras iniciativas e políticas de Governo de caráter social. O inanciamento habitacional passa a ser dirigido mais à demanda (cidadãos) do que à oferta (empresas). O período será marcado também por maior favorecimento das condições de articulação programática entre a União, os Estados e os Municípios. A aprovação da Lei Federal n.º 11.107, de 6 de abril de 2005, estabeleceu as condições para a formação de Consórcios Públicos, indo além da igura dos consórcios horizontais, somente entre Municípios, podendo envolver dois ou mais entes da Federação. A fase federativa das políticas habitacionais, que ainda não pode ter precisado o seu im, caracteriza-se pelo fortalecimento vigoroso das políticas federais, num ambiente de busca da cooperação sob forte

protagonismo municipal. As diiculdades estritamente políticas (sobretudo, partidárias) presentes na cultura política do País, no entanto, costumam limitar o alcance dos consórcios públicos. De qualquer modo, o refortalecimento do Estado Brasileiro foi uma resposta ao rescaldo do pós-neoliberalismo, num esforço de Governo mais comprometido com as causas sociais. O federalismo cooperativo irá se apoiar, antes de tudo, no reconhecimento irremediável da importância estrutural assumida pelos municípios brasileiros na implantação de uma verdadeira agenda de desenvolvimento para o País. Para as políticas de habitação de interesse social, as lições assimiladas em tantas décadas mostravam claramente o papel dos instrumentos de gestão do uso do solo na regulação do mercado imobiliário nas cidades. Não por acaso, a aplicabilidade prática do Estatuto da Cidade dependeria decisivamente da iniciativa política, técnica e legislativa dos Governos Locais para a consecução dos seus objetivos. A Campanha Nacional dos Planos Diretores Participativos, coordenada pelo Ministério das Cidades, contribuiu para o enquadramento da questão habitacional nas políticas urbanas locais, favorecida por processos participativos muitas vezes inéditos em grande quantidade de Municípios. Algumas políticas de habitação foram


Habitação no Brasil

A série de estudos e de pesquisas patrocinada pelo Ministério das Cidades tem sido a fonte oficialmente aceita como referência para os estudiosos, planejadores e gestores públicos sobre déficit habitacional no Brasil.

também focadas em grupos sociais especíicos, como os quilombolas. Vale destacar neste período a aprovação da Lei Federal das Incorporações (Lei n.º 10.931/2004), garantindo mais segurança jurídica para o mercado privado, e a Resolução n.º 460 (seguida da Resolução nº 518) do Conselho Curador do FGTS, tratando dos subsídios à habitação de interesse social. Na sequência foi aprovada a Lei Nacional de Saneamento (Lei Federal n.º 11.445/2007). Mais recentemente, o Programa Minha Casa Minha Vida, do Governo Federal, lançado em 2009, é o que concentra o maior volume de recursos ao setor, dirigido a duas faixas de renda (R$ 1.600,00 e R$ 5.000,00), onde há o maior percentual do déficit quantitativo do País. O programa está apoiado em forte parceria

de grandes acordos programáticos propostos aos países no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), desde a conferência do Habitat I, em Vancouver (1976), até o Habitat II, em Instambul (1996), houve grande avanço na compreensão da questão habitacional, que deve envolver ações além da moradia. No ano 2000, a proposição dos Objetivos do Milênio (ODMs) incluiu uma redução substancial do déicit habitacional, já relacionada à questão do acesso à água e ao meio ambiente. Está prevista para 2016, no âmbito do ONU-Habitat, a edição do documento do Habitat III, estabelecendo novo marco conceitual e programático global no assunto.

federativa com os estados e os municípios, além de empresas e de organizações sociais. Conta também com aumento do subsídio governamental, redução dos custos do seguro residencial e acesso a um Fundo Garantidor que financia parte das prestações caso o comprador ique desempregado. O principal fator de agilização do programa, no entanto, é a existência do fundo misto onde entram recursos privados e públicos via Orçamento Geral da União (OGU), permitindo contratar sem licitação. O futuro, no entanto, dirá se tais estímulos são suicientes para incentivar a participação, de fato, das empresas privadas do setor da construção civil na oferta de habitação para as famílias de mais baixa renda.

Momento Atual

Finalmente, é importante enfatizar as diretrizes globais que vieram norteando as políticas para os assentamentos humanos no mundo. Da série

O momento atual é de contabilização de grandes conquistas e de grandes pendências e limitações (quem sabe mesmo retrocesso) em

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algumas frentes de luta por melhores condições de moradia popular no Brasil. Por um lado, a política de garantias e de subsídios oferecidos pelo Governo Federal para aquisição da casa própria animou a demanda. Por outro, os efeitos esperados da aplicação efetiva dos princípios e mecanismos instituídos pelo Estatuto da Cidade na esfera local de Governo, combinados à vigorosa iniciativa do Ministério das Cidades no campo das políticas urbanas e habitacionais, criou expectativa de resultado muito além do alcançado até o momento. A precariedade e a informalidade habitacional no Brasil refletem uma questão estrutural no contexto da urbanização incompleta e excludente brasileira (e latino-americana). Em toda a América Latina, estima-se que cerca de 40% do solo urbano seja ocupado de modo informal. É essencial observar que o percentual corresponde, aproximadamente, na média, aos indicadores de pobreza na região. Os fundamentos da questão devem ser buscados na construção histórica de valores sociais relacionados à inclusão/exclusão (igualdade/desigualdade) da população no processo de desenvolvimento desses países, de origem colonial, e do seu próprio processo de inclusão/ exclusão na dinâmica global do desenvolvimento. E se os períodos de ditadura serviram para acentuar exclusões, a emergência da democracia

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não tem sido suiciente para garantir, de modo decisivo e abrangente, a inclusão irreversível dos mais pobres e vulneráveis na vida das cidades brasileiras. No extremo dos fundamentos da questão restam estigmas arraigados a respeito dos lugares de moradia (mesmo aqueles já objeto de muitas melhorias) e também dos moradores, limitados no sentido do pertencimento à cidade.

oferta de habitação no País. Sobretudo nas grandes cidades brasileiras, veriica-se um padrão de oferta que não corresponde ao da demanda. Mais especiicamente, observa-se oferta em quantidade e em qualidade um tanto superior ao que os extratos de renda mais altos podem ter acesso, diante da quantidade e da qualidade inferiores do que as camadas de renda mais baixas necessitam.

O acesso à terra continua sendo o nó górdio da questão da moradia stricto sensu, uma vez que a maior parte do dé cit (cerca de 83%, na faixa de 0 a 3 SM) está concentrada justamente nas regiões metropolitanas onde a disponibilidade, o preço e as formas de controle do acesso à terra se exacerbaram. Estoques de terra feitos em anos passados pelas empresas imobiliárias nas grandes cidades provavelmente não irão se destinar ao mercado popular. Novas frentes de urbanização vêm demandando terra no interior do País por indução das grandes obras de infraestrutura implantadas pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC I e II). Mas, como sempre, esses empreendimentos não costumam apoiar Prefeituras para que se antecipem aos problemas.

Isto faz com que, enquanto a parte da população com menor renda não tem acesso ao mercado formal de imóveis, este produz maciçamente para os grupos de renda médios e superiores da demanda. O efeito disso é que, enquanto a falta de alternativas formais induz à informalidade dos mais pobres, a oferta exacerbada de imóveis formais para os de rendas superiores costuma empurrar os preços gerais dos imóveis para cima.

A questão central da equação entre demanda e oferta habitacional no Brasil tem sido a forte dissociação (ou mesmo inversão) entre o perfil da demanda e o da

A melhor abordagem é, no nosso entendimento, a que considera a oferta habitacional um extenso continuum, que vai da mais absoluta indigência e precariedade à mais completa e soisticada resolução das condições de moradia a que uma pessoa humana poderia aceder. No extremo inferior desse continuum estaria, na verdade, uma não solução habitacional que as metodologias de pesquisa aceitas no momento classiicariam ou incluiriam na conta do déicit quantitativo, uma vez que, pela sua total


Habitação no Brasil

falta de qualidade, não comportariam ou não justiicariam melhorias qualitativas. No extremo superior desse continuum estaria alguma solução habitacional com qualidade e atributos muito além das necessidades básicas humanas. Persiste, porém, um debate que busca responder as diiculdades conceituais e metodológicas na abordagem demanda/oferta habitacional, no sentido de contornar as subjetividades. Ainda do ponto de vista da oferta habitacional, é possível reconhecer pelo menos quatro grupos classiicatórios referentes às iniciativas no setor que respondem ao continuum sugerido acima: iniciativas de mercado, iniciativas governamentais, iniciativas não governamentais (privadas, mas sem ins lucrativos diretos) e iniciativas autônomas da população. O mercado privado, mais identificado com a formalidade (apesar de nem sempre cumpridor de suas exigências), é dirigido essencialmente à demanda com maiores rendas. Enquanto isso, no extremo da pobreza são as iniciativas autônomas da própria população que permitem acesso a algum tipo de abrigo. A série de estudos e de pesquisas patrocinada pelo Ministério das Cidades tem sido a fonte oficialmente aceita como referência para os estudiosos, planejadores e gestores públicos sobre déicit habitacional no Brasil. Em

que pese a persistência dos debates conceituais e metodológicos sobre o assunto, de fato, a série favorece a sistematização progressiva de uma estrutura de planejamento habitacional no País, como política de Estado, mais do que como política de Governo. O aprendizado desse processo vem sendo enorme. Concentrar investimentos na redução do déicit quantitativo sem combater o qualitativo, por meio de melhoria e de formalização das condições de moradia, implicaria realimentar este, uma vez que a progressiva degradação das condições habitacionais acabaria por exigir substituições e não mais simples melhorias. Por outro lado, a prevenção da informalidade permitiria estancar a expansão dos déicits, não se realimentando a informalidade. Quanto às responsabilidades no enfrentamento da informalidade/precariedade das condições de moradia no Brasil, conirma-se o que já se sabia. A esfera local de Governo, incluindo Executivos (Prefeituras) e Legislativos (Câmaras Municipais) assume papel estrutural nas políticas urbanas onde se inscrevem as políticas habitacionais. A estrutura institucional existente na esfera nacional deve se desdobrar nos Estados e nos Municípios, respeitada a autonomia constitucional de cada um, apontando para desejável organização federa-

Habitação no Brasil

tiva da gestão urbana e habitacional no País. Na verdade, o que se quer desenvolver e fortalecer é o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), de modo a estruturar políticas, instituições e recursos financeiros para apoiar a ação federativa dos agentes públicos no setor. A União veio assumindo um papel relevante e estratégico nos assuntos da habitação de interesse social. Os Municípios mostraram avanços nos últimos anos e costumam ser mais atuantes nas capitais e nas cidades médias. Quantos aos Estados federados, em geral parecem mais competir com os Municípios do que apoiar, favorecer e complementar a sua ação. Isto sugere dizer que ainda há necessidade de um enorme esforço político, técnico e administrativo para articular as esferas de Governo. Uma vez que as iniciativas, as ações e os projetos habitacionais costumam demandar forte componente legal, é de se esperar também medidas do sistema do Judiciário, incluindo Ministério Público, e serviços cartoriais que possam responder com qualidade e com agilidade aos processos que envolvem direito de propriedade e outras questões comumente envolvidas na produção imobiliária, na regulação fundiária e na disciplina urbanística e edilícia das cidades. A assunção do setor da construção civil como vetor

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de dinamização de cadeias produtivas e de crescimento global da economia é positiva, por promover o incremento dos bens de raiz e do capital ixo no País. No entanto, projetos vinculados ao programa Minha Casa Minha Vida vem tendo diiculdades de garantir atividades de comércio e de serviços na área dos empreendimentos. De fato, o valor estratégico do setor habitacional para a economia do País não se esgota no momento em que as famílias recebem as chaves das casas nos empreendimentos. Ou seja, não depende somente da produção em si dos bairros e das moradias. É preciso que os projetos facilitem e estimulem as funções, as oportunidades e a dinâmica econômica das famílias e dos bairros que vão sendo conformados pelo programa. O enfrentamento multissetorial do tema da habitação está a exigir forte e complexa ação matricial das esferas de Governo no sentido de encarar a habitação de interesse social como campo privilegiado da ação na sua política de desenvolvimento do País. Houve avanços na implantação de políticas multissetoriais direcionadas não

exatamente às moradias, mas aos moradores. Conirma-se o aprendizado, já de décadas, sobre a necessidade de irmos além das simples políticas de urbanização e de habitação no sentido de articulá-las a uma efetiva política de desenvolvimento para o País, com foco na promoção humana. Do ponto de vista teórico, estamos diante de enorme desafio epistemológico, no qual devem ser associadas as condições da materialidade dos meios de vida (moradia, infraestrutura, meio ambiente e amenidades do entorno) e as de exercício pleno das capacidades humanas (serviços públicos básicos, oportunidades sociais, seguridade, renda). Do ponto de vista prático, precisamos coordenar, de modo matricial, diferentes frentes de ação das políticas públicas. Autores como Amartya Sen, laureado em 1998 com o Prêmio Nobel de Economia, apontam a privação de capacidades dos mais vulneráveis, mais do que a pobreza em si, como a questão central a ser objeto das políticas de desenvolvimento. Isto implica considerar as liberdades humanas, simultaneamente, como im e meio

do desenvolvimento. Seu livro Desenvolvimento como Liberdade 1 é referência irremediável sobre o assunto, distinguindo cinco tipos de “liberdades” como decisivas para as políticas de desenvolvimento. Mais do que isso, se dispôs ao diálogo com planejadores urbanos no sentido de ajudá-los a estabelecer novo marco conceitual para as políticas urbanas. O coroamento do esforço foi o colóquio realizado com Amartya Sen na London School of Economics (LSE), em julho de 2003 (do qual participou o autor deste artigo), e a publicação de um livro 2. Conforme airmamos em outro trabalho 3 , não se trata, no entanto, de privilegiar a ação sobre a materialidade da construção da cidade ou sobre os processos sociais, mas sobre ambas simultaneamente. As dificuldades de cada momento, para se levar adiante a luta pelo direito à moradia digna e pelo direito à cidade, exigirão mais do que reflexão crítica e boa vontade de quem planeja e decide. Exigirão, ao im e ao cabo, o compromisso genuíno com a democracia e com a sua expressão na cidade e no território.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 2 KHOSLA, Romi, SAMUELS, Jane. Removing Unfreedoms: citizens as agents of change: sharing new policy frameworks for urban development”. London: ITDG, 2002. 3 LOPES, Alberto. La ciudad más allá de la forma: libertad como fundamento de la (re)forma urbana. Urbanización y Medio Ambiente, Buenos Aires: IIED-AL, Año 21, nº 61, Febrero 2005, p. 85-95.

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Habitação no Brasil

RESUMEM La Cuestión de la Vivienda: Retrospectiva y Momento Actual Este artículo intenta precisar el momento actual de la cuestión de la vivienda de interés social en Brasil a partir de una retrospectiva de más de 120 años. El asunto es analizado en períodos definidos por el proceso de formación territorial y urbana del País, según contextos políticos, expresiones económicas y sociales del fenómeno, marcos legales y políticas públicas impulsadas en cada período. Palabras claves: Vivienda. Desarrollo Urbano. Políticas Públicas.

ABSTRACT The question of housing: retrospective and present time This article intends to offer a comprehensive understanding of the actual social housing question in Brazil in face of an overview of more than 120 years. The theme is analyzed in periods defined by the process of territorial and urban formation of the country, considering political contexts, economical and social expressions of the phenomena, legal frames and public policies implemented in each period. Keywords: Housing. Urban Development. Public Policies.

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Desenvolvimento sustentável em áreas de proteção ambiental municipais: um estudo de caso na serrinha do Alambari José Ricardo Maia de Siqueira — Doutor em Engenharia de Produção pela COPPE-UFRJ. Mestre em Administração pela COPPEAD-UFRJ — jrms@facc.ufrj.br

RESUMO O palmito é um alimento muito apreciado no Brasil e em diversos lugares do mundo. Para atender a esta demanda foi montada uma forte atividade extrativista com parte considerável elaborada à margem da lei, não sendo ambientalmente sustentável. Esta atividade extrativista se dá através da derrubada da palmeira, para a retirada de seu miolo macio, o que tem levado ao risco de extinção, notadamente, da palmeira Juçara devido à alta qualidade de seu palmito. Para que a árvore alcance seu tamanho de corte há a necessidade de uma espera de sete anos, contudo, com a demanda crescente, árvores cada vez mais novas tem sido derrubadas. Todavia, na região da Serrinha do Alambari, tem se desenvolvido uma exploração diferenciada da palmeira Juçara, que consiste da retirada dos frutos, favorecendo o crescimento da árvore para a continuidade da atividade extrativista. A polpa do fruto é então extraída e comercializada. Este artigo tem por objetivo analisar a percepção dos moradores da região em relação a esta nova modalidade extrativista. A coleta de dados se deu através de entrevistas realizadas junto com os moradores e constatou-se o apoio a esta atividade por parte da população favorecida. Palavras-chave: Sustentabilidade. Palmito. Florestas.

Introdução O palmito é um prato muito apreciado no Brasil e no exterior, e isso faz com que seja iguaria muito procurada. Com frequência esta atividade econômica se desenvolve à margem da lei, muitas vezes pela extração dentro de áreas de preservação ambiental. A intensidade do movimento extrativista fez com que a palmeira Juçara, muito procurada pela qualidade de seu palmito, fosse declarada em risco de extinção. No entanto, na região da Serrinha do Alambari, localizada no município de Resen-

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de (RJ), tem se desenvolvido uma atividade extrativista diferenciada, envolvendo a palmeira Juçara, que consiste na retirada dos frutos, preservando-se a árvore. A polpa do fruto é então extraída e comercializada. Este artigo tem por objetivo analisar a percepção dos moradores da região da Serrinha do Alambari em relação aos impactos ambientais e sociais da nova modalidade extrativista.

Devastação e Mata Atlântica Ao longo dos séculos, as florestas ao redor do globo vêm sofrendo um processo de

deterioração. Existem sinais do uso do fogo para ins de desmatamento na Floresta de Kalambo, na Tanzânia, que datam de 60.000 a.C.. Platão, em 400 a.C., já deplorava o desmatamento, e a consequente erosão, na região da Ática, para ins de expansão da área de pasto e pelo corte de árvores para lenha. No século X, a construção de navios para o império Bizantino, Gênova, Veneza e para outros estados italianos, causou a redução da lorestas costeiras do Mediterrâneo (BURSZTYN; PERSEGONA, 2008). Na América Latina obviamente não foi diferente.


Prado Júnior (1962, p.26) destaca que o Brasil nasceu sob o signo da agressão ambiental, já que sua primeira atividade econômica – a extração do Pau-Brasil – “era uma exploração rudimentar que não deixou traços apreciáveis, a não ser na destruição impiedosa e em larga escala das florestas nativas, donde se extraía a preciosa madeira”. Tal comportamento não apresentou mudanças signiicativas ao longo da história do Brasil, já que o País se manteve como típica colônia de exploração de Portugal, marcada por uma atividade econômica imediatista e ambientalmente devastadora. Tal exploração se deu inicialmente pela destruição dos ecossistemas existentes e, posteriormente, pela inclusão de espécies exóticas que se multiplicavam descontroladamente (PÁDUA, 2002, p.72). O avanço do nível de desmatamento em termos globais fez com que o combate ao desflorestamento fosse uma das preocupações externalizadas na Agenda 21, tendo como alguns dos objetivos associados a este tema: garantir a produção e a utilização sustentável de serviços e de bens florestais; manter as lorestas e expandir as áreas lorestais; aperfeiçoar as indústrias de processamento de recursos oriundos das lorestas; e promover o uso de bens lorestais alternativos à queima para geração de energia, entre outros (BARBIERI, 1997, p.101-102).

Apesar da importância da Agenda 21 para a regulamentação das relações ambientais globais, com seus referenciais sobre mecanismos de gerenciamento dos recursos naturais, o reconhecimento da relevância das comunidades locais e da participação da sociedade civil, houve baixa mobilização política para a obtenção dos recursos necessários e, consequentemente, pouco se obteve (RIBEIRO, 2005, p.128). O efeito da baixa mobilização política pode ser visto em um bioma muito especíico: a Mata Atlântica. O território da Mata Atlântica brasileira ocupava toda a zona costeira brasileira. Segundo dados de 1990, a Mata Atlântica ocupa pouco menos de 9% de sua área original, abrangendo um território inferior a 95.000 km2 (CAPOBIANCO; LIMA, 1997). Infelizmente, este número representa uma redução brutal. Segundo Fornari (2001, p.157), esta floresta de alta diversidade e com condições isiográicas peculiares, que ocorre nas encostas orientais e atlânticas da Serra do Mar, no litoral leste brasileiro, já ocupou uma área de cerca de um milhão de quilômetros quadrados e aproximadamente 12% do território nacional, está circunscrita, hoje, a uma porção próxima de 0,3% da área do Brasil. Tal devastação assegura à Mata Atlântica uma posição de destaque na lista das dez

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lorestas mais ameaçadas do mundo, divulgada pela ONG Conservação Internacional. A Mata Atlântica situa-se em quinto lugar, ficando atrás apenas das florestas da Indo-Birmânia, Nova Zelândia, Sunda e Filipinas (GRANDELLE, 2011). A Mata Atlântica possui alta biodiversidade. Tal riqueza é tão signiicativa que os dois recordes mundiais de diversidade botânica para plantas lenhosas foram observados em duas de suas regiões – 454 espécies em um hectare no sul da Bahia e 476 espécies em uma área de dimensão similar ao norte do Espírito Santo. Das cerca de 10.000 variedades de plantas, metade são endêmicas, ou seja, não podem ser encontradas em nenhum outro lugar. Apresenta ainda grande variedade de pássaros, de anfíbios e de mamíferos, sendo que para os primatas o endemismo alcança 2/3 das formas. Apesar de toda esta variedade, a situação é grave já que das 202 espécies animais ameaçadas de extinção no Brasil 171 são de Mata Atlântica, o que aumenta ainda mais a relevância da preservação (CAPOBIANCO; LIMA, 1997). Visando salvaguardar a Mata Atlântica foram criadas diversas unidades de conservação, mas existem dados preocupantes. Levantamento feito por Fernandes (1997) só conseguiu obter os instrumentos legais de criação (ILC) para apenas 350 destas

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do presidente Getúlio Vargas, por meio do Decreto n.º 1.713, datado de 14 de junho, nascendo assim o primeiro parque nacional brasileiro.

O projeto Amável, criado em 2008, nasceu da percepção de que os palmitais nativos vinham sendo devastados intensamente a partir do século XX para fins de extração do palmito, o que leva necessariamente à derrubada da árvore

unidades, pouco menos da metade do total. Quando se busca o mapeamento das unidades, a situação é ainda mais crítica, uma vez que vários são os impedimentos, dentre os quais se destacam: a) os ILCs não têm coordenadas; b) as coordenadas apresentam erros; c) não possuem ponto de amarração do perímetro; e d) falta de acesso às bases cartoriais. A consequência desta situação é que a maior parte das unidades de conservação não pode ser mapeada coniavelmente. No Estado do Rio de Janeiro existem importantes áreas de preservação de Mata Atlântica, incluindo dois dos primeiros parques nacionais do país: o Parque Nacional de Itatiaia e o Parque Nacional da Serra dos Órgãos.

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O Parque Nacional de Itatiaia (PNI) foi o primeiro criado no País, datando de 1937. Em 1908, a Fazenda Federal adquiriu do Visconde de Mauá terras no maciço do Itatiaia, encravado na Serra da Mantiqueira, localizado no sudoeste do Estado do Rio de Janeiro. A inalidade era a criação de núcleos coloniais que, contudo, não tiveram sua implantação bem-sucedida. Em função do fracasso do processo de colonização, as terras retornaram ao controle da União, sendo destinadas ao Ministério da Agricultura, que lá criou uma Estação Biológica. Já no início dos anos de 1910, surgiu um forte movimento para a criação de um parque nacional na região, fato que só se concretizou em 1937, durante o Governo

O Parque Nacional da Serra dos Órgãos (Parnaso) foi criado em 30 de novembro de 1939, igualmente no Governo Getúlio Vargas, pelo Decreto-Lei n.º 1.822, com uma área aproximada de 9.000 hectares, que abrange os municípios de Petrópolis, Teresópolis e Guapimirim. Trata-se do terceiro parque mais antigo do País, sendo precedido apenas pelos Parques Nacionais de Itatiaia – em 1937 – e Iguaçu – também em 1939. Os parques foram formados dentro do espírito de preservação da fauna e da lora, de defesa dos mananciais e de proteção das belezas cênicas dos monumentos naturais (Ibama, 2007a). A Serra dos Órgãos foi considerada pelo Ministério do Meio Ambiente como área de extrema relevância para conservação da lora, apresentando grande variedade de espécies que englobam a embaúba, a faveira, o jequitibá-rosa, o ouriceiro, a canela e a canela-santa. Além de conter grande concentração de bromélias e orquídeas acima de 1.500 metros (Ibama, 2007b). O Parque Nacional da Serra dos Órgãos, em uma área que representa apenas 0,001% do território nacional, abriga 18% das espécies de vertebrados terrestres do Brasil. A grande


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A Mata Atlântica já ocupou grandes extensões do território brasileiro. Devido à sua grande biodiversidade e ao elevado número de espécies endêmicas – e por ser considerado um dos ecossistemas mais ameaçados do planeta – tem despertado a atenção dos mais distintos movimentos ecológicos no mundo

variação altitudinal faz surgir uma grande diversidade de ambientes e de fauna, não estando esta ainda totalmente catalogada. Entre as espécies encontradas no Parque destaca-se o muriqui, o maior macaco das Américas, que se encontra no rol das espécies mais ameaçadas do planeta (Ibama, 2007c). Próximo ao Parnaso acha-se outra unidade de conservação de extrema relevância: o Parque Estadual dos Três Picos. Sua criação, pelo Decreto Estadual n.º 31.343, de 5 de junho de 2002, busca assegurar a preservação dos remanescentes de Mata Atlântica da porção fluminense da Serra do Mar; preservar espécies endêmicas, raras ou em risco de extinção; e preservar os mananciais que abastecem os municípios circunvizinhos; entre outros objetivos (RIO DE JANEIRO, 2007c). Esta unidade de conservação é a maior do grupo de

proteção integral do Estado do Rio de Janeiro, englobando os municípios de Silva Jardim, Cachoeiras de Macacu, Guapimirim, Nova Friburgo e Teresópolis. Possui 46.350 hectares de área total. Forma um contínuo ecológico com o Parque Nacional da Serra dos Órgãos e com a Estação Ecológica do Paraíso, crescendo em importância seu papel na preservação de diversas espécies animais, notadamente os grandes mamíferos e aves, como a jaguatirica, o gavião-pega-macaco e a lontra. A diversidade de altitudes gera uma lora variada, encontrando em seu interior desde a loresta ombróila densa até os campos de altitude (IEF, 2007). O número de unidades de conservação no Rio de Janeiro é signiicativo. Considerando-se apenas as federais e estaduais – ou seja, sem analisar aquelas criadas por

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ato municipal e as reservas particulares de patrimônio natural – somam um total de 37 unidades, sendo cinco parques nacionais (Parque Nacional de Itatiaia, Parque Nacional da Serra dos Órgãos, Parque Nacional da Tijuca, Parque Nacional da Serra da Bocaina e Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba), seis parques estaduais, doze áreas de proteção ambiental, duas áreas de relevante interesse ecológico, uma loresta nacional, uma reserva extrativista, duas estações ecológicas e oito reservas biológicas (INEA, 2010). Contudo, todo o esforço de conservação tem um grande inimigo: o desmatamento. A cobertura de Mata Atlântica abrange, segundo dados de 2000, somente 16,73% do território do Estado do Rio de Janeiro, mas já cobriu originalmente 97% da área desta unidade da Federação.

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As causas do desmatamento são múltiplas, mas na Região Serrana do Estado o maior vilão é a expansão imobiliária, que vem dizimando a vegetação nativa, inclusive áreas de proteção permanente (GAZZANEO, 2006).

Extrativismo, Preservação e a Palmeira Juçara Uma das opções para se alcançar a preservação das lorestas existentes é por intermédio do extrativismo não predatório, que busca retirar os produtos da natureza sem trazer desequilíbrios ao ecossistema. Um dos grandes defensores desta prática preservacionista foi Chico Mendes. Chico Mendes nasceu em 1944, ilho do cearense Francisco Alves Mendes, que deixou seu estado natal em 1925, junto com sua família para viver no Acre. Em 1962, com 18 anos e analfabeto, ele conhece Euclides Távora, ex-tenente que participou da revolta comunista de 1935, que se torna seu grande mestre, ensinando-lhe a ler e escrever e despertando em Chico a consciência política e social (MOREIRA, 2010). Em 1975, já atuando nas Comunidades Eclesiais de Base, funda com seu amigo Wilson Pinheiro o primeiro sindicato de trabalhadores rurais do Acre, em Brasiléia. Já no ano seguinte efetua o seu primeiro empate no seringal Carmen. O empate consiste em um movimento de resistência não violento, onde os seringueiros, acom-

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panhados de seus familiares, ocupam a área que está tendo as árvores derrubadas e convidam os peões dos fazendeiros a não desmatar e a se associar à luta, adotando o modo de vida dos seringueiros (PORTO-GONÇALVES, 2009, p.152).

ou impedidas de nelas entrarem para coletar os produtos lorestais de que sempre dependeram consideram isso uma violação do seu direito à vida. Reagem, invadindo essas reservas, que, deste modo, tornam-se (...) presa fácil da pilhagem”.

Ao falar do primeiro empate, Chico Mendes se recordava que, em 10 de março de 1976, três seringueiros vieram denunciar que a área estava sendo devastada. Reunidos, 70 homens e mulheres fizeram uma trincheira para impedir que o desmatamento ocorresse. A lógica do empate envolvia a comunidade – homens, mulheres e crianças – que era espalhada por entre as árvores e argumentavam sem parar, até convencer os madeireiros. Estima-se que mais de 1,2 milhão de hectares de lorestas foram salvas da devastação pelo uso do empate (RUPPENTHAL, 2010).

Tal integração vai ao encontro do conceito de desenvolvimento sustentável, que é aquele que “obedece ao duplo imperativo ético de solidariedade com as gerações presentes e futuras, e exige a explicitação de critérios de sustentabilidade social e ambiental e de viabilidade econômica” (SACHS, 2008, p.36). Na avaliação de Sachs (2008), o desenvolvimento sustentável, por combinar crescimento econômico com impactos positivos ao meio ambiente e à sociedade, é o único que pode receber, inequivocamente, a denominação de desenvolvimento.

Chico Mendes valorizava o modo de vida dos seringueiros, que usava uma pequena área ao redor da cabana para fazer uma plantação e criar pequenos animais, além de se valer da loresta para a retirada de frutos e de resina. “Para os seringueiros, o objeto de trabalho não é a terra e, sim, a mata, a loresta” (PORTO-GONÇALVES, 2010).

Esta prática extrativista pode ser um ensinamento importante a ser aplicado na área de Mata Atlântica, que tem como uma das árvores típicas a palmeira Juçara.

Tal modo de vida se encontra em consonância com o postulado por Sachs (2000, p. 68), que prega a integração dos habitantes das regiões preservadas, uma vez que “as pessoas retiradas das reservas

A família Arecaceae (palmeiras) apresenta ampla diversidade de espécies, oferecendo grande variedade de derivados, tais como sucos, polpas, óleos, frutos, ceras e palmitos. Podem ser utilizadas na construção, fornecendo tábuas, ripas, calhas e cobertura para moradias. Muitas têm seus produtos consumidos ao redor do mun-


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do, como o dendezeiro (Elaeis guineensis Jacq), o coqueiro (Cocos nucifera L.), o açaí (Euterpe oleracea Mart.), a pupunha (Bactris gasipaes Kunth) e a juçara (Euterpe edulis Mart.). A família se concentra predominantemente na região tropical do planeta (FAVRETO, 2010). A palmeira Juçara fornece um alimento muito difundido e apreciado mundialmente: o palmito. Esta iguaria da culinária mundial é retirada do centro da palmeira e, infelizmente, seu processo de extração implica na morte a árvore. Por ser muito apreciada, a exploração da palmeira juçara vem sendo feita de forma acelerada e ilegal, sem o uso adequado de manejo lorestal, o que fez com que a ONG Fundação Biodiversitas a classiicasse na categoria de “Perigo de Extinção” (CARDOSO; LEITE, 2010).

Metodologia Esta pesquisa se classiica, segundo a tipologia proposta por Raupp e Beuren (2003), quanto aos objetivos como exploratória; quanto aos procedimentos ela é, simultaneamente, pesquisa bibliográica, estudo de caso e pesquisa documental; e, quanto à abordagem do problema, ela é qualitativa. Segundo Gil (2008, p.27), as “pesquisas exploratórias têm como principal inalidade desenvolver, esclarecer e modiicar conceitos e ideias, tendo em vista a formulação

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de problemas mais precisos ou hipóteses pesquisáveis para estudos posteriores”. Como este trabalho, busca desenvolver o conhecimento de segmentos da sociedade sobre tema ambiental especíico, visando ao maior aprofundamento em pesquisas posteriores, ela se classiica como exploratória. Em relação aos procedimentos, ela é bibliográica, porque tem “como objetivo recolher, selecionar, analisar e interpretar as contribuições teóricas já existentes sobre determinado assunto” (MARTINS, 2007, p.35). Trata-se de estudo de caso, pois “se caracteriza como um tipo de pesquisa cujo objeto central de análise é o exame detalhado de um determinado fenômeno que é investigado em profundidade” (GODOY, 2007, p.359). Seguindo Lopes (2006, p.220), esta pesquisa se classifica como documental, porque se baseia em entrevistas como documentação direta e porque tem como base informações oriundas de publicações privadas como documentação indireta. É qualitativa, pois esta pesquisa busca estudar “a realidade em seu contexto natural (...) e procura dar

sentido ou interpretar os fenômenos de acordo com os signiicados que possuem para as pessoas implicadas nesse contexto” (MARTINS; CAMPOS, 2004, p.22). Quanto às técnicas utilizadas, além da consulta à bibliograia e documentos, foi utilizada a observação e a entrevista formal, onde, segundo Martins (2006, p.88), “há a organização de um roteiro de questões, cujas respostas atendam ao objetivo especíico de coletar dados para determinado assunto da pesquisa”. Os depoimentos encontram-se relacionados aos entrevistados segundo a identiicação constante na terceira coluna do Quadro 1. Visando obter a expressão mais original e genuína das declarações dos entrevistados, foi mantido o tom coloquial e eventuais desvios do bom uso da língua nos relatos transcritos nesta pesquisa.

Serrinha do Alambari e o Juçaí: Análise do Caso A Área de Proteção Ambiental da Serrinha do Alambari (Apasa) se localiza no município de Resende, no Estado do Rio de Janeiro, a oeste da RJ-163 que liga Pe-

Quadro 1 - Relação dos Entrevistados - Fonte: Elaborado pelos autores

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Projeto Amável

O Parque Nacional da Serra dos Órgãos é um dos primeiros parques nacionais do país com áreas de preservação de Mata Atlântica

nedo à Visconde de Mauá. Trata-se de uma APA com área total de 4.500 hectares, criada pela Lei Municipal n.º 1.726, de 1991, que abrange as comunidades de Serrinha e Capelinha (AMAR, 2010). Segundo o artigo 1º da Lei n.º 1.726, de 16 de agosto de 1991, que criou a Apasa, seu objetivo é “proteger os ecossistemas locais, preservar o potencial hídrico da região e compartilhar o desenvolvimento socioeconômico” (RESENDE, 2010a). A região é rica em recursos hídricos, sendo cortada por três rios principais – Santo Antônio, Pirapitinga e Alambari – que, junto com seus aluentes, formam uma rede de córregos e poços, ainda pouco explorada turisticamente (SIQUEIRA, 2011). O Plano Diretor da Apasa a dividiu em seis tipos de zoneamento. A Zona de Vida Silvestre é destinada a garantir a perenidade das belezas

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cênicas, da biodiversidade e dos recursos hídricos, não sendo permitido nenhum tipo de construção, e tem visitação restrita. A Zona de Conservação da Vida Silvestre (ZCVS), subdividida em ZCVS-1 e ZCVS-2, tem severas restrições para ocupação humana. Na ZCVS-2, que apresenta regras de ocupação do solo um pouco menos rígidas, a área mínima dos terrenos é de 15.000m2 com taxa de ocupação máxima de 5%. Na Zona Residencial de Recreio os terrenos chegam a ter uma área mínima de 2.500 m2 com 15% de ocupação máxima. Na Zona Residencial de Apoio e na Zona de Via Coletora são permitidas a existência de atividades comerciais não poluentes ou que não causem incômodo. Por im, as atividades agrícolas ou pecuárias ocupam a Zona Agropecuária, sendo vedadas práticas predatórias dos recursos naturais (RESENDE, 2010b).

O projeto Amável, criado em 2008, nasceu da percepção de que os palmitais nativos vinham sendo devastados intensamente a partir do século XX para ins de extração do palmito, o que leva necessariamente à derrubada da árvore. Visando reverter esta situação, o Projeto Amável se propôs a realizar uma atividade econômica alternativa relacionada à palmeira Juçara: a extração do fruto da palmeira. Tal abordagem leva, obrigatoriamente, à preservação da palmeira, visando à continuidade da atividade extrativista (AMÁVEL, s. d.). O fruto da palmeira Juçara, chamado juçaí, é 70% mais rico em ferro e com níveis de potássio 63% maiores do que o apresentado pelo açaí. Segundo estudo do Instituto de Tecnologia de Alimentos, o nível do antioxidante natural antocianina é também quatro vezes superior (KIFFER, 2010a). O projeto é composto por cinco etapas: 1) levantamento do potencial produtivo da Área de Proteção Ambiental da Serrinha; 2) obtenção do licenciamento ambiental e construção do centro de processamento de frutos; 3) elaboração do plano de manejo, visando à sustentabilidade do projeto; 4) contratação de pessoal e sua capacitação; 5) colheita do fruto e obten-


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ção da polpa, bem como dos demais subprodutos lorestais (AMÁVEL, s.d.). O projeto nasceu por acaso, quando o empreendedor George Braile começou a observar que jacus e tucanos apareciam na região da Serrinha para se alimentar dos frutos da palmeira Juçara. Isto o levou a buscar a tecnologia tradicional de despolpamento do açaí no Norte do País. Foi quando descobriu a existência de projetos em São Paulo e em Santa Catarina com a mesma fruta (KIFFER, 2010a). O Projeto Amável apresenta os seguintes objetivos: • promover a preservação e o repovoamento das lorestas da região da Serrinha do Alambari com a palmeira Juçara, que está sob risco de extinção; • gerar renda para a população local; e • produzir sementes de Juçara, visando auxiliar o relorestamento (AMÁVEL, 2010). Uma fábrica de pequeno porte, apoiada pelos editais Rio Inovação 2008 – Difusão e Inovação Tecnológica e Apoio ao Desenvolvimento de Modelos de Inovação Tecnológica Social da Faperj, retira a polpa da fruta, que é comercializada para a produção de sucos e de sobremesas, e separa as sementes que são colocadas à sombra e regadas todo dia, para que possam ser utilizadas para ações de relorestamento com a palmeira Juçara (KIFFER, 2010b).

Além disso, na pequena fábrica ainda são produzidos três tipos de sorvete de baixa cremosidade, cuja base é o juçaí, comercializados a R$ 4,00 o potinho.

Impactos Sociais Para Corsino, o projeto de beneiciamento da palmeira Juçara “vai dar ocupação ao pessoal da terra”. Este aumento no nível de emprego já é uma realidade, segundo Silva que trabalha no projeto Amável, pois já “deu mais emprego para as pessoas”. Silva acrescenta ainda que atualmente trabalham sete pessoas, sendo três mulheres no beneiciamento propriamente dito e quatro na coleta dos frutos. Lenz segue a mesma linha e destaca que o projeto “está trazendo impacto de geração de alguns empregos, tanto para a coleta quanto para o beneiciamento”. Contudo, ele acredita que não vai parar por aí, já que há uma tendência de “aumentar o impacto ao gerar empregos para a venda e a comercialização” dos produtos. Silva sinaliza que os benefícios para a região não vêm apenas de uma maior quantidade de emprego para os moradores, mas também de um aumento na renda das pessoas empregadas. Situação vivenciada por ela. Este não é o único ganho sentido por Silva. Ela destaca ainda a melhoria em sua qualidade de vida, oriunda de uma maior proximidade de suas ilhas, possibilitada pelo novo emprego.

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Corsino, no entanto, relativiza a geração de empregos diretos pelo empreendimento. Segundo ele, “a fábrica tem uma dimensão pequena. Eu acho que não vai ter esse impacto todo na região”. Todavia, ele acredita nos benefícios indiretos de um empreendimento desta natureza para o turismo da região. Segundo ele, a Serrinha terá uma maior atratividade turística, fazendo com que o turista de Penedo se desloque mais alguns quilômetros até chegar à região. Muitos icarão interessados em um empreendimento com apelo ecológico, que ajuda na preservação da Mata Atlântica. “Essa fábrica naturalmente vai causar um impacto não só ao empregar parte da população da Serrinha como também ao trazer turismo para cá”, declara Corsino. Corsino destaca ainda um benefício mais intangível. Ele acredita que a fábrica vai dar aos moradores uma visão diferente da vida, oriunda da possibilidade de desenvolver um trabalho mais especializado.

Impactos Ambientais A frequente ilegalidade nas atividades dos palmiteiros, e seu consequente impacto ambiental, aparece em cores fortes no discurso de Corsino. Trata-se de um problema já enfrentado na Serrinha do Alambari. “O palmiteiro (...) ele trabalha à noite. Ele chega,

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monta um acampamento muito rústico. (...) Ele tem (...) duas a três noites. Aí é uma devastação”. Segundo Corsino, a ação da Prefeitura de Resende foi importante no combate aos palmiteiros. “A Prefeitura, por intermédio da Secretaria de Meio Ambiente, conseguiu que a Guarda Municipal também tomasse parte nesta repressão”. Tais embates com a Guarda Municipal foram, muitas vezes, marcados pela violência. “Teve um [guarda municipal] até que foi ferido no pórtico”. Mas, segundo Corsino, tais situações fazem parte do passado. “Hoje em dia não tem mais palmiteiro na Serrinha”. Para Lenz, a fábrica de beneiciamento do juçaí terá papel fundamental em uma maior conscientização preservacionista em relação à palmeira, pois o papel “gera uma maior consciência da importância dessa árvore e uma consciência diferenciada, porque até então a palmeira só era vista como fonte do palmito, que requer que a gente derrube a árvore”. Lenz acrescenta ainda que a extração não traz impacto para a fauna, que se alimenta dos frutos, pois apenas parte deles é retirada. Além disso, como o trabalho é rústico, há perdas de frutos no processo, que permanecem na loresta.

Considerações Finais A Mata Atlântica já ocupou grandes extensões do

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território brasileiro. Devido à sua grande biodiversidade e ao elevado número de espécies endêmicas – e por ser considerado um dos ecossistemas mais ameaçados do planeta – tem despertado a atenção dos mais distintos movimentos ecológicos no mundo. A urgência na preservação da Mata Atlântica fez surgir diversas unidades de conservação no País, muitas delas localizadas no Estado do Rio de Janeiro. Só para citar dois exemplos, no Rio de Janeiro encontram-se dois dos três primeiros parques nacionais criados no Brasil: o Parque Nacional de Itatiaia e o Parque Nacional da Serra dos Órgãos. Ambos dedicados à preservação desse ecossistema. Não se pode esquecer quão significativo é o número de unidades de conservação no Rio de Janeiro. Considerando-se apenas as federais e as estaduais, são encontradas 37 unidades, sendo cinco parques nacionais e quatro deles dedicados à preservação da Mata Atlântica. Além dos dois mencionados no parágrafo anterior, tem-se ainda o Parque Nacional da Tijuca e o Parque Nacional da Serra da Bocaina. Como a ameaça ao ecossistema é ainda significativa, qualquer esforço que desperte o sentimento das populações no sentido do

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conservacionismo é bem-vindo, principalmente se consegue aliar à variável ecológica a fundamental componente social. Este é possivelmente um dos principais méritos do Projeto Amável. É na sustentabilidade econômica que residem as principais dúvidas em relação ao projeto. Afinal, a logística para a distribuição de produtos, notadamente os perecíveis como polpa de fruta e sorvete, a preços competitivos é um desafio que não é fácil de ser vencido. Além disso, o preço de R$ 4,00 por um potinho de sorvete de baixa cremosidade não pode ser rotulado como barato, apesar da inegável agregação de valor decorrente da associação a um projeto com cunho de preservação ambiental. Mesmo com seu porte restrito e com possíveis dúvidas quanto à sua viabilidade, a esperança de um efeito multiplicador se encontra presente na fala dos entrevistados. Efeito multiplicador com que se espera atingir as dimensões social, econômica e ambiental, tripé fundamental para o desenvolvimento sustentável. Tudo isto é parte de um esforço considerável para impedir que esta exuberante loresta, com sua impressionante diversidade de fauna e de flora, se perca para as futuras gerações.


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RESUMEM Desarrollo Sostenible en Áreas de Protección Ambiental Municipales: Un Estudio de Caso en la Serrinha do Alambari El palmito es un alimento muy popular en Brasil y en muchos sitios del mundo. Para satisfacer esta demanda se ha reunido una fuerte actividad de extracción que no es ambientalmente sostenible y en parte es fuera de la ley. Esta actividad de extracción se lleva a cabo a través del derrocamiento de la palma para la retirada del cogollo tierno. Debido a la alta calidad del palmito, la palma juçara está en peligro de extinción. Para el árbol llegar a su tamaño de corte es necesario esperar siete años, sin embargo, con la creciente demanda, los árboles más y más nuevos han sido cortados. Pero, en la región de la Serrinha do Alambari se ha desarollado una explotación diferente de la palma Juçara, que consiste de la remoción de los frutos, lo que favorece el crecimiento del árbol y la continuación de la actividad de extracción. La pulpa del fruto es removida y vendida. En este artículo se pretende analizar la percepción de los residentes locales en relación con este nuevo modo de extracción. La recolección ha sido hecha a través de entrevistas con los residentes y se encontró evidencias de apoyo por la población beneficiada. Palabras Clave: Sostenibilidad. Palmito. Bosque.

ABSTRACT Sustainable development in municipal environmental protection areas: a case study in Serrinha do Alambari The palm heart is a very appreciated dish in Brazil and in several places in the world. To meet this demand it has assembled a strong extractive activity, considered not environmentally sustainable and partially working outside the law. The palm heart is obtained through the cutting down of the palm for the withdrawal of its soft core. It has led to the extinction risk the Juçara palm, due to the high quality of your palm heart. For the tree reaches its cut size is needed an waiting of seven years, however, with demand growing more and more trees have been cut down earlier. However, in the region of the Serrinha do Alambari, it has developed a differentiated exploration of the Juçara palm, which consists of the removal of the fruits, permitting the growth of the tree and reaching to suistanable the extractive activity. The flesh is then extracted and marketed. This article aims to analyze the perceptions of local residents about this new extraction method. Data collection was through interviews with residents and it has reached to the conclusion the populations support this activity. Keywords: Sustainability. Palm Heart. Forests.

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Finanças Municipais

Despesas com a Educação Heraldo da Costa Reis — Professor da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis da UFRJ. Coordenador do Centro de Estudos Interdisciplinares de Finanças Municipais ENSUR/IBAM – heraldo.reis@ibam.org.br

Preliminarmente, conirase o que dispõe o art. 212 da Constituição da República aqui transcrito: Art. 212 – A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. Do conteúdo do dispositivo constitucional, surgem os seguintes entendimentos:

Recursos financeiros para a Área da Educação Os recursos inanceiros a serem aplicados na área da Educação resultam das seguintes fontes: a) de impostos de competência do ente federativo, no caso, do Município, convertidos em receitas; e b) das transferências constitucionais. Esses recursos financeiros são complementados pela União com a transferência do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Pro ssionais da Educação (Fundeb). O reconhecimento das receitas mencionadas dependerá do regime contábil

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adotado pela Contabilidade do Município, que, no caso, é o regime de caixa, conquanto os impostos podem ter os seguintes fatos geradores: c) do próprio tributo, que incide na matéria tributável, de acordo com o Código Tributário; e d) da receita, cujo lançamento prévio é feito pela Administração do ente federativo, para reconhecimento dos direitos sobre valores recebíveis de tributos sujeitos ao lançamento direto ou de ofício e ao lançamento por homologação, também de acordo com o Código Tributário Nacional e com os artigos 39, 52 e 53 da Lei n.º 4.320/64. Como se adota atualmente o regime contábil de caixa para o reconhecimento das receitas, independentemente da sua origem, o parâmetro para medir as despesas na área da Educação é a receita efetivamente em caixa. Entretanto, com as mudanças em vista de procedimentos no sistema de informações contábeis na Administração Pública, que incluem o reconhecimento de receitas e de despesas no regime de competência, observando as regras da legislação pertinente1, as receitas de impostos e de transferências constitucionais e outras que

porventura forem destinadas à área da Educação serão consideradas neste regime.

As aplicações em Educação As aplicações (despesas) de recursos na Administração são analisadas sob os seguintes enfoques: • no sentido amplo, como aquisições de bens e serviços para utilização nas atividades meio e im da organização; e • no sentido estrito, como consumo efetivo dos bens e serviços naquelas atividades. O dispositivo constitucional, no que se refere às aplicações e consumos efetivos de recursos na área da Educação para o ensino, emprega dois conceitos distintos, quais sejam: manutenção e desenvolvimento do ensino. Por manutenção deve-se entender as aplicações dos recursos destinados a dar condições efetivas de operacionalização ou de funcionamento das atividades de ensino; e por desenvolvimento deve-se entender as aplicações dos recursos para dar condições efetivas de execução das atividades de ensino e de assistência ao aluno. Em realidade, as aplicações efetivas em um e em outro,


de que trata o dispositivo constitucional, refletem as conversões de receitas em despesas, as quais podem ser consideradas as seguintes2: 1. Remuneração e aperfeiçoamento do pessoal docente e demais proissionais da Educação: trata-se de despesa com pessoal docente e demais proissionais da Educação. Deve-se entender como proissionais da Educação aqueles cujas atividades estão voltadas diretamente para a área da Educação, ainda que não estejam executando atividades docentes. 2.Aquisição, manutenção, construção e conservação de instalações e de equipamentos necessários ao ensino: há dois tipos de aplicações, quais sejam: a) com manutenção e conservação de instalações e equipamentos. Estas aplicações são classiicadas como Despesas Correntes; e b) aquisição ou construção de instalações, que serão qualiicadas como Despesas de Capital. 3. Uso e manutenção de bens e serviços vinculados ao ensino: a inclusão deste item, sem dúvida alguma, veio esclarecer ou solucionar deinitivamente o problema relacionado com o reconhecimento da Depreciação3 como despesa ou como custo de utilização ou de uso de um bem tangível qualquer vinculado ao ensino. Assim, são sujeitos às Depreciações bens móveis, equipamentos, veículos, imóveis e outros tangíveis que estejam vinculados ao ensino.

4. Levantamentos estatísticos, estudos e pesquisa visando precipuamente ao aprimoramento da qualidade e à expansão do ensino: são despesas classificáveis como Despesas Correntes. 5. Realização de atividades meio necessárias ao funcionamento do sistema de ensino: o que se pode avaliar como atividade meio necessárias ao funcionamento dos sistemas de ensino? Podem ser consideraradas a Secretaria de uma unidade operacional de ensino e o setor de planejamento do ensino. 6. Concessão de bolsas de estudos a alunos de escolas públicas e privadas. 7. Aquisição de material didático escolar e manutenção de programas de transporte escolar. As despesas acima devem ser, em primeiro lugar, empenhadas, o que não signiica que houve realização de despesa. O que houve, realmente, foi apenas a concretização de um ato condição exigido pela lei, o de empenhar a despesa na dotação que lhe fora reservada no orçamento, para poder executar os contratos, cujos implementos de condição executados darão origem às despesas efetivas, ou, ainda, realizar despesas obrigatórias por lei. Uma vez empenhada a despesa, o empenho passa a integrar o contrato em razão do que dispõe o art. 55, V, da Lei n.º 8.666/93 (Lei de Licitações

e Contratos), não podendo ser cancelado, a não ser em casos excepcionais, tais como o descumprimento do que trata a cláusula do implemento de condição e por expiração de prazo, para citar apenas estes exemplos. Assim, tomar a despesa apenas empenhada e reconhecê-la como realizada é equívoco de interpretação do que dispõe o art. 35, II, da Lei n.º 4.320/64, o que nos leva a entender que não houve efetivamente aplicações na área da Educação para cumprir as exigências da legislação. As aplicações de recursos, cujo sentido é custear os programas de Educação e, consequentemente, gerar benefícios em favor do cidadão, no caso, do estudante, podem ser classiicadas nos dois seguintes grupos, com os seus respectivos conceitos: • Despesas Correntes – refletem aplicações e utilizações de recursos de consumo imediato, tais como pessoal, energia elétrica, água, telefone, giz, apagadores, material didático, gasolina, e outros do gênero; e • Despesas de Capital – reletem aplicações e utilizações de recursos de consumo a longo prazo, a exemplo de edifícios, equipamentos escolares, computadores, softwares, veículos e outros. Esses bens representam os meios materiais e tecnológicos necessários ao desenvolvimento do ensino. Esse consumo pode ser

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reletido pelas depreciações calculadas sobre esses bens que se vinculam ao ensino. Diante dos conceitos dos dois grupos apresentados, chega-se à conclusão de que as aplicações se dividem em recursos de consumo imediato e de consumo em longo prazo. Estes reletem os ativos imobilizados (meios materiais e tecnológicos, também classiicados como não circulantes) necessários ao desenvolvimento do ensino, conforme já airmado. Para que as depreciações possam ser calculadas, é preciso que inicialmente se processe ao inventário dos bens, no qual serão identiicados as datas e os valores correspondentes às aquisições, construções e recebimentos em doações sem ônus, a partir do que se processarão às reavaliações, aos ajustes monetários e, posteriormente, às depreciações. A depreciação é a redução de valor dos bens tangíveis que integram o patrimônio da entidade, como decorrência de desgaste ou de perda de utilidade pelo uso, ação da natureza ou obsolescência. Em realidade, o que se pretende é saber o quanto esses bens contribuíram para a geração dos benefícios na área para a qual foram alocados.

O encargo de depreciação poderá ser computado, como custo ou como despesa de manutenção e de funcionamento da atividade de ensino, conforme a utilização do bem. A metodologia de cálculo da depreciação dependerá da atividade em que o bem está a serviço, devendo ser considerada a sua vida útil. Várias são as metodologias, tais como linha reta, com ou sem valor residual; horas trabalhadas, unidades produzidas, dígitos crescentes e/ou decrescentes, exponencial ou outro, desde que atenda às necessidades da administração. Por exemplo: se o bem tem uma vida útil de 5 (cinco) anos, o seu valor inicial de compra é igual a R$ 5.000,00 (cinco mil reais), e o método de depreciação é o dos dígitos crescentes, o cálculo se processa como se indica a seguir: No exemplo, o bem foi totalmente depreciado, sem deixar resíduo. Se, entretanto, é desejo da Administração local ixar um valor residual ao inal da sua vida

útil, como 20% (vinte por cento) do valor original, basta apenas calcular este valor e subtraí-lo do valor original, e a depreciação será calculada sobre o valor de R$ 4.000,00 (quatro mil reais). Assim, a depreciação, como despesa efetiva por utilização do bem tangível, pode ser utilizada para compor a soma de todas as despesas com o ensino fundamental, indicando que o seu valor consumiu as receitas destinadas àquela atividade, e que formará um fundo especíico para garantir a reposição do bem depreciado ao inal da sua vida útil. A Contabilidade do Município poderá, por meio de segregações, abrir contas específicas para os ativos, as receitas, as despesas e as obrigações vinculados à área da Educação, a im de possibilitar informações mais claras e, evidentemente, ensejar melhor controle sobre os recursos aportados para o ensino.

NOTAS 1 Ver REIS, Heraldo da Costa, Regime de Caixa ou de Competência: eis a questão, in Revista de Administração Municipal nº 260, out./dez. 2006, p.37-48, Rio de Janeiro, IBAM. 2 Ver REIS, Heraldo da Costa. Gestão e Controle na Área da Educação, Ed. IBAM, 1997 – p.11 e 42. 3 Ver: a) REIS, Heraldo da Costa. Custos e Controle Gerencial na Administração Municipal, in Revista de Administração Municipal, n° 276, jan/março 2011, p.5-18, Rio de Janeiro, IBAM. b) ____ . A Depreciação na Administração Pública, in Revista de Administração Municipal, nº 276, jan/março 2011, p.53-54, Rio de Janeiro, IBAM. c) Conselho Federal de Contabilidade, NBCT 16.9, aprovada pela Resolução n° 1136/08, de 2008.

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Pareceres e Jurisprudência

Assistência Social e Princípio da Universalidade das Ações de Saúde Pública Jaber Lopes Mendonça Monteiro — Assessor Jurídico do IBAM – jaber.monteiro@ibam.org.br

CONSULTA A consulente indaga, resumidamente, o seguinte: 1) A qual Pasta pertenceriam as seguintes ações, por exemplo, fraldas, óculos, suplementos alimentares, etc., se pertencem, por excelência, à Secretaria de Ação Social ou à Secretaria de Saúde em face do art. 22 da LOAS (Lei n.º 8.742/93), do art. 9º do Decreto n.º 6.307/2007 e da Resolução CNAS n.º 39/2010? 2) Se os benefícios forem da alçada da Secretaria de Saúde, mas estiverem sendo administrados e custeados pela Assistência Social, qual o prazo máximo de transição, segundo a Resolução CNAS n.º 39/2010)? Seria necessário realizar a transição até 31/12/2011? 3) Se os benefícios continuarem sob a alçada da Secretaria de Assistência Social, isso poderia ser um problema com o Tribunal de Contas? 4) Se os benefícios forem custeados com recurso municipal, poderiam ficar na Pasta da Secretaria de Assistência Social?

Resposta Cumpre registrar que não é raro, ao se tratar de questão relativa à Saúde Pública, ter-se a falsa impressão de que o Serviço Único de Saúde (SUS) é destinado aos carentes e/ou aos necessitados, fato que não corresponde à realidade do SUS. Com certeza, a equivocada premissa de que o usuário SUS deva comprovar a sua hipossuiciência inanceira decorre da “lógica” aplicada antes da atual Constituição

Brasileira, quando ao Estado competia direcionar a Saúde Pública para, em síntese, ao trabalhador, ao carente e à gestante. Contudo, com a edição da Constituição Federal de 1988, o legislador instituiu um modelo social de seguridade baseado em um tripé distinto: a Saúde, a Previdência e a Assistência Social. Assim, cada uma dessas áreas é regrada por instrumentos, princípios e diretrizes próprias, cabendo, aqui, a diferenciação entre a Saúde

e a Assistência Social. Sob o prisma legislativo, primordialmente, cada uma dessas áreas é regida por leis próprias, a saber: Saúde – Lei n.º 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde (LOAS)) e Lei n.º 8.142/90, Emenda Constitucional n.º 29/00; e Assistência Social – Lei n.º 8.742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS)). Esses textos legislativos podem ser analisados sob a ótica do público alvo: (1) Saúde tem como beneiciário todo e qualquer brasileiro e/ou estrangeiro

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residente no Brasil; e (2) Assistência Social tem como beneiciário toda e qualquer pessoa que se enquadre nos parâmetros da LOAS, por meio da análise da sua condição socioeconômica. Portanto, verifica-se que a condição econômica da pessoa é parâmetro única e exclusivamente para a concessão de benefícios da Assistência Social, nunca da Saúde, razão pela qual se diz que os benefícios de Saúde são universais. O princípio constitucional da universalidade da Saúde pressupõe atendimento indistinto a todo cidadão, não condicionado a nenhum parâmetro financeiro, patrimonial ou econômico, bastando a opção de ingressar no sistema por uma de suas portas de acesso, encontrando previsão no Art. 196 da Constituição Federal, que assim dispõe: “Art. 196. A Saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” Por seu turno, a Lei n.º 8.080/90 também contempla o princípio da universalidade em seu art. 7º, I, dispondo: “Art. 7º As ações e serviços públicos de Saúde e os serviços privados contratados ou

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conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS) são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no artigo 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: I - universalidade de acesso aos serviços de Saúde em todos os níveis de assistência;” Ora, por acesso universal entende-se aquele garantido às ações e aos serviços de Saúde para toda a população, em todos os níveis de assistência, sem a possibilidade de imposição de nenhum preconceito ou privilégio. A universalidade, como Saúde de todos e dever do Estado, é um princípio que trata da possibilidade de atenção à saúde a todos os brasileiros, conforme a necessidade, de forma que a administração pública possa adotar instrumentos técnicos de planejamento de tal modo que sejam realizados estudos epidemiológicos situacionais e apresentadas propostas concretas de solução dos problemas existentes em cada comunidade. Já os benefícios assistenciais devem tão somente ser concedidos àqueles em situação de hipossuiciência ou de miserabilidade comprovada. Com isso, qualquer lei ordinária (federal, estadual ou municipal) que vá de encontro a esses princípios constitucionais estaria irremediavelmente maculada pelo vício da inconstitucionalidade.

Para definir o campo da assistência social em face das medidas de saúde, o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) editou a Resolução n.º 39, de 09/12/2010, dispondo sobre o processo de Reordenamento de Benefícios Eventuais no âmbito da Política de Assistência Social em relação à Política de Saúde. Conira-se: “Art. 1º Afirmar que não são provisões da política de assistência social os itens referentes a órteses e próteses, tais como aparelhos ortopédicos, dentaduras, dentre outros; cadeiras de roda, muletas, óculos e outros itens inerentes à área de Saúde, integrantes do conjunto de recursos de tecnologia assistida ou ajudas técnicas, bem como medicamentos, pagamento de exames médicos, apoio inanceiro para tratamento de saúde fora do município, transporte de doentes, leites e dietas de prescrição especial e fraldas descartáveis para pessoas que têm necessidades de uso. Art. 2º Recomendar aos órgãos gestores e Conselhos de Assistência Social das três esferas de Governo que promovam e aprimorem o reordenamento da prestação dos benefícios eventuais afiançados na Assistência Social, referentes às provisões da Política de Saúde citadas no Art. 1º. Art. 3º Recomendar aos órgãos gestores e aos Con-


selhos de Assistência Social das três esferas de Governo que o reordenamento tratado nesta resolução se dê por meio de um processo de transição construído de maneira planejada e articulada com gestores e Conselhos de Saúde nas respectivas esferas de Governo, com definição das necessidades, estratégias, atividades e prazos. Art. 4º Recomendar a observância dos marcos regulatórios quanto às provisões da Política de Saúde, dentre outras, as abaixo relacionadas: I – Política Nacional de Saúde da Pessoa Com Deiciência (Portaria Ministério da Saúde – MS n.º 1.060, de 05 de junho de 2002); II – Concessão de Medicamentos (Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990 Art. 6º e Decreto n.º 3.298, de 20 de dezembro de 1999 – Art. 20); III – Concessão de Órteses e Próteses (Decreto n.º 3.298, de 20 de dezembro de 1999 – Arts. 18 e 19; Portaria MS n.º 116, de 9 de setembro de 1993; Portaria MS n.º 146, de 14 de outubro de 1993; Portaria MS nº 321/2007); IV – Alimentação e Nutrição (Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990 – Art. 17); V – Saúde Bucal (Política Nacional de Saúde Bucal – Programa Brasil Sorridente); VI – Concessão de Óculos (Portaria Normativa Intermi-

nisterial Ministério da Educação – MEC/MS nº 15, de 24 de abril de 2007 – Projeto Olhar Brasil) e Portaria MS nº 254, de 24 de julho de 2009). Art. 5º Fortalecer a articulação com o Conselho Nacional de Saúde, visando aprofundar o debate e elaborar agenda conjunta para a construção de ações intersetoriais, resguardando o campo especíico de atuação e as responsabilidades de cada política. Art. 6º Apoiar os Conselhos Estaduais, Municipais e do Distrito Federal de Assistência Social na promoção do reordenamento normativo dos benefícios eventuais de que trata o Art. 2º desta Resolução. Art. 7º Dar continuidade, em conjunto com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, ao processo de discussão sobre as provisões referentes aos benefícios eventuais da Assistência Social, visando delimitar o campo de proteções da Assistência Social, aprofundando o debate sobre outros itens da Saúde e das demais políticas públicas, de modo a qualiicar e a consolidar o processo de reordenamento deinido nesta resolução”. Sendo assim, eventuais gastos com fraldas, óculos, suplementos alimentares, etc., não podem ser caracterizados como gastos de Assistência Social. Ao recriar

assistencialmente benefícios de Saúde que já são concedidos no âmbito do SUS, o Município acaba por violar o princípio constitucional da universalidade de acesso aos serviços de Saúde, que afasta a possibilidade de criação de benefício ou oferta de serviço em situação de privilégio. Ou seja, que não esteja disponível a toda a coletividade, criando uma categoria de munícipes mais favorecida ou privilegiadas por essas medidas. Respondendo objetivamente às indagações: 1) o Art. 1º da Resolução CNAS n.º 39/2010 exclui a concessão de fraldas, óculos, suplementos alimentares, etc. do âmbito das provisões da Política de Assistência Social; 2) sim, apesar de a Resolução CNAS n.º 39/2010 não mencionar prazos, tem-se que, conforme informa a própria consulente, a Diretoria Regional de Assistência Social já informou que essas despesas não serão incluídas no Plano Municipal da Assistência para o ano de 2012. Assim é necessário que se realize a transição até 31/12/2011 ( nal do exercício 2011); 3) sim, uma vez que se trata de benefícios de Saúde, isso pode originar eventual glosa por parte da Corte de Contas; e 4) não, os benefícios não se enquadram em Assistência Social. Trata-se de benefícios de Saúde, não podendo permanecer, nem sendo custeados com recursos municipais, vinculados à Secretaria de Assistência Social.

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Pareceres e Jurisprudência

Incidência de ISSQN nos serviços cartorários, notariais e de registro Juliana Albuquerque Omena Alves — Consultora Técnica – julianaomena@bol.com.br

CONSULTA Versa a presente consulta acerca da base de cálculo do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), de competência municipal, tratando-se de serviços cartorários, notariais e de registro. Indaga-se: 1- sobre a aplicação das alíquotas fixas, previstas no Decreto Lei n.º 406/1968; 2- sobre a existência de sucessão tributária nesta espécie de serviço; e 3- sobre a constitucionalidade da multa por infração à legislação tributária municipal, fixada no percentual de 200% do valor do tributo.

Resposta Os serviços de registros públicos, cartorários e notariais têm por inalidade precípua conferir publicidade, autenticidade e eicácia aos atos jurídicos. São remunerados mediante a cobrança de emolumentos, cuja ixação foi regulamentada pelo Poder Público, por meio da Lei n.º 10.169/2000. De acordo com o Art. 236 da Carta Constitucional, trata-se de atividade exercida por particulares mediante delegação do Poder Público. Não obstante a relevância pública de tais serviços, o Supremo Tribunal Fede-

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ral, no julgamento da ADI 3089, publicado no DOU, de 21/08/2008, reconheceu inequivocamente a constitucionalidade da incidência de ISSQN sobre os serviços cartorários, notariais e de registro, uma vez que se trata de atividade econômica privada, exercida por particular, ainda que por delegação do Poder Público. Outrossim, os serviços concedidos ou permitidos são passíveis de tributação, inexistindo razão para não o serem os serviços delegados. Em regra, de acordo com o que dispõe o Art. 7º, da LC n.º 116/2003, o ISS é calculado em razão do preço do serviço prestado. Contudo, excepcionalmente, os trabalhadores autônomos e

as sociedades de proissionais legalmente regulamentados podem ser tributados por alíquotas ixas, de acordo com o previsto nos §§ 1º e 3º, do Art. 9º do DL n.º 406/68. No que concerne à base de cálculo do ISS na hipótese, muito embora ainda persista alguma controvérsia em sede doutrinária, o Superior Tribunal de Justiça ixou o entendimento de que os serviços notariais, cartorários e de registro devem ser tributados pela regra geral. Ou seja, não se aplica a tributação xa do DL 406/68, devendo ser calculado o tributo em razão do preço dos serviços prestados. Neste sentido seguem alguns julgados:


O Art. 9º, § 1º, do DL n.º 406/1968 (que dispõe sobre o regime de tributação ixa do ISS) não se aplica aos serviços de registros públicos, cartorários e notariais, por não se tratar de prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, mas de atividade empresarial. Embora tais serviços sejam exercidos em caráter privado por delegação do Poder Público (Art. 236 da CF/1988), e esta seja feita em caráter pessoal, intransferível e haja responsabilidade pessoal dos titulares de serviços notariais e de registro, isso por si só não autoriza concluir que tais atividades sejam prestadas pessoalmente por eles, uma vez que têm a faculdade legal de contratar, para o desempenho de suas funções, escreventes, dentre eles escolhendo os substitutos, e auxiliares, como empregados (Art. 20 da Lei n.º 8.935/1994). Por essas razões, não se mostra razoável conferir a benesse do § 1º do Art. 9º do DL n.º 406/1968 aos serviços cartorários. (Resp 1.185.119SP, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 10/8/2010. Publicado no Informativo de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça n.º 0442). “Processual Civil e Tributário. ISS. Serviços de Registros Públicos Cartorários e Notariais. Base de Cálculo Art. 9º, § 1º, Do DL 406/1968. Tributação Fixa Matéria apreciada pelo STF. Adin 3.089/DF. 1. Hipótese em que se discute a base de cálculo do ISS

incidente sobre serviços de registros públicos, cartorários e notariais. A contribuinte defende tributação ixa, nos termos do Art. 9º, § 1º, do DL 406/1968, e não alíquota sobre o preço do serviço (Art. 7º, caput, da LC 116/2003). Ou seja, sobre os emolumentos cobrados dos usuários. 2. O Supremo Tribunal Federal reconheceu a incidência do ISS, in casu, ao julgar a Adin 3.089/DF, proposta pela Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg). Na oportunidade, ratiicou a competência municipal e afastou a alegada imunidade pretendida pelos tabeliães e cartorários (i) ao analisar a natureza do serviço prestado e, o que é relevante para a presente demanda, (ii) ao reconhecer a possibilidade de o ISS incidir sobre os emolumentos cobrados (base de cálculo), mesmo em se tratando de taxas. 3. O acórdão do Supremo Tribunal Federal, focado na possibilidade de os emolumentos (que são taxas) servirem de base de cálculo para o ISS, afastou, por imperativo lógico, a possibilidade da tributação ixa, em que não há cálculo e, portanto, base de cálculo. 4. Nesse sentido, houve manifestação expressa contrária à tributação fixa no julgamento da Adin, pois “descabe a analogia – proissionais liberais, Decreto n.º 406/68 –, caso ainda em vigor

o preceito respectivo, quando existente lei dispondo especiicamente sobre a matéria. O Art. 7º da Lei Complementar n.º 116/03 estabelece a incidência do tributo sobre o preço do serviço”. 5. Ademais, o STF reconheceu incidir o ISS à luz da capacidade contributiva dos tabeliães e notários. 6. A tributação ixa do Art. 9º, § 1º, do DL 406/1968, é o exemplo clássico de exação ao arrepio da capacidade contributiva, porquanto trata igualmente os desiguais. A capacidade contributiva somente é observada no caso do ISS, na cobrança por alíquota sobre os preços, conforme o Art. 9º, caput, do DL 406/1968, atual Art. 7º, caput, da LC 116/2003. 7. Finalmente, o STF constatou que a atividade é prestada com intuito lucrativo, incompatível com a noção de simples “remuneração do próprio trabalho”, prevista no Art. 9º, § 1º, da LC 116/2003. 8. A Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg), quando propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade, pretendia afastar o ISS calculado sobre a renda dos cartórios (preço dos serviços, emolumentos cobrados do usuário). 9. A tentativa de reabrir o debate no Superior Tribunal de Justiça, em Recurso Especial, reflete a inconfessável pretensão de reverter, na seara infraconstitucional, o

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julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade, o que é, evidentemente, impossível. 10. De fato, a interpretação da legislação federal pelo Superior Tribunal de Justiça – no caso a aplicação do Art. 9º, § 1º, do DL 406/1968 – deve se dar nos limites da decisão com efeitos erga omnes proferida pelo STF na Adin 3.089/DF. 11. Nesse sentido, inviável o benefício da tributação ixa em relação ao ISS sobre os serviços de registros públicos, cartorários e notariais. 12. Recurso Especial não provido” (Resp n.º 1.187.464/ RS, Rel. ministro Herman Benjamin, DJe de 7/7/2010). Ultrapassada a primeira questão, passa-se à análise da existência de sucessão tributária na hipótese. O Art. 133 do CTN prevê que “a pessoa natural ou jurídica de direito privado que adquirir de outra, por qualquer título, fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial ou profissional, e continuar a respectiva exploração, sob a mesma ou outra razão social ou sob irma ou nome individual, responde pelos tributos, relativos ao fundo ou estabelecimento adquirido, devidos até à data do ato”. Observa-se, portanto, que a sucessão tributária tem por pressuposto a transferência de um fundo de comércio ou

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estabelecimento comercial, industrial ou proissional. Os cartórios, contudo, são serventias extrajudiciais não se enquadrando com perfeição nos conceitos anteriormente destacados. Outrossim, quando um novo titular assume o cartório há aquisição originária de direitos, uma vez que esta titularidade é obtida por intermédio de aprovação em concurso público. Quando há concurso para a titularidade de um cartório extrajudicial, o Estado recebe de volta a sua titularidade, antes delegada a outro particular, para ulterior delegação ao novo concursado. Surge novo vínculo, não havendo transferência de direitos ou de obrigações. Neste sentido, é o entendimento dos Tribunais, como se demonstra a partir dos julgados que seguem colacionados. Execução Fiscal. Embargos. Titular de Cartório. Sucessão. Hipótese não conigurada. Não incidência do Art. 133 do CTN. 133 CTN – O Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais não tem personalidade jurídica para igurar em polo passivo de execução iscal. O atual oicial de cartório, devidamente investido nas funções por meio de concurso público, não pode responder por dívidas tributárias do antigo titular, por não se configurar a sucessão tributária

prevista no Art. 133 do CTN. 133 CTN. (120490 RS 2000. 04. 01. 120490-4, Relator: Vivian Josete Pantaleão Caminha, Data de Julgamento: 21/09/2005, Primeira Turma, Data de Publicação: DJ 26/10/2005 PÁGINA: 413). “registre-se que se tratando de delegação por concurso público, toda a titularidade na serventia é originária, não podendo ser adquirida ou transferida por qualquer forma. Por consequência, não há sucessão na responsabilidade tributária (Art.113 do Código Tributário Nacional) e Trabalhista (Art. 448 da Consolidação das Leis do Trabalho). (...) Destarte, o cartório não possui capacidade processual, uma vez que todas as relações estão concentradas na pessoa do tabelião, que detém completa responsabilidade sobre os serviços. Do contrário, a legitimidade dos cartórios apenas estenderia a responsabilidade para os tabeliães sucessores para atos pretéritos, porquanto somente eles teriam patrimônio para arcar com os resultados da demanda. Esses sucessores, entretanto, não adquiriram fundo de comércio ou foram transferidos em todos os direitos e obrigações, mas apenas assumiram delegação diretamente efetuada pelo Poder Público, estando infensos aos prejuízos ou aos lucros auferidos pelo seu antecessor”. (STJ, 4ª Turma, Resp. n.º 545.613/MG,


rel. ministro Asfor Rocha, j.16.10.2003, m.v..) “(...) nessa linha de raciocínio, é de se ter presente que só poderia mesmo responder como titular do cartório aquele que efetivamente ocupava o cargo à época da prática do fato reputado como lesivo aos interesses dos autores, razão pela qual não poderia tal responsabilidade ser transferida ao agente público que o sucedeu”. (STJ, 3ª Turma, Resp n.º 696.989/ PE, rel. ministro Castro Filho, j.23.05.2006, v.u..) Por fim, no que concerne ao terceiro questionamento, esclarecemos que o princípio constitucional do não conisco, previsto no Art. 150, IV da Constituição Federal, aplica-se às multas tributárias. Embora a finalidade da multa seja impor um gravame ao contribuinte pelo descumprimento de um dever decorrente de lei, a sua ixação não pode ultrapassar limites que afrontem o direito de propriedade constitucionalmente assegurado. Assim, o valor deve ser razoável para o im a que se destina, não sendo admitidas multas exorbitantes. Neste sentido: Ação Direta de Inconstitucionalidade – Lei n.º 8.846/94 Editada pela União Federal. (...) A Tributação Coniscatória é vedada pela Constituição da República. É cabível, em sede de controle normativo abs-

trato, a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal examinar se determinado tributo ofende, ou não, o princípio constitucional da não coniscatoriedade consagrado no Art. 150, IV, da Constituição da República. Hipótese que versa o exame de diploma legislativo (Lei n.º 8.846/94, Art. 3º e seu parágrafo único) que instituiu multa scal de 300% (trezentos por cento). - A proibição constitucional do conisco em matéria tributária – ainda que se trate de multa iscal resultante do inadimplemento, pelo contribuinte, de suas obrigações tributárias – nada mais representa senão a interdição, pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da iscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade proissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais básicas. O Poder Público, especialmente em sede de tributação (mesmo se tratando da definição do “quantum” pertinente ao valor das multas fiscais), não pode agir imoderadamente, pois a atividade governamental acha-se essencialmente condicionada

pelo princípio da razoabilidade que se qualiica como verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais. (...) STF - ADI-MC 1075 / DF - DJ 24/11/2006 PP-00059. Destaque-se, contudo, que a veriicação do excesso do valor ixado a título de multa deverá ser analisada diante de cada caso concreto. Na presente hipótese, em que a multa scal é xada em 200% sobre o valor do tributo devido e não pago, parece-nos estar configurado o efeito confiscatório, vedado pela Carta Constitucional. Diante das considerações anteriores concluímos que: 1. Segundo entendimento ixado pelo Superior Tribunal de Justiça, o ISS incidente sobre os serviços cartorários, notariais e de registro deve ser calculado pela regra geral, não lhe sendo aplicáveis as alíquotas ixas previstas no Decreto Lei n.º 406/1968; 2. aos titulares de cartório não se aplica a sucessão tributária prevista no Art. 133 do CTN, haja vista que a aquisição da serventia se dá de forma originária, mediante a aprovação em concurso público; 3. o princípio do não conisco, previsto no Art. 150, IV da Constituição Federal, aplica-se às multas, parecendo-nos coniscatória a multa ixada em 200% sobre o valor do imposto devido e não pago pelo contribuinte.

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Em Foco

Intercâmbio e Cooperação em Melhores Práticas Dois eventos importantes foram voltados ao intercâmbio e à cooperação sobre melhores práticas para o desenvolvimento: a Feira Regional de Cooperação Sul-Sul Saber do Sul: Intercâmbio Regional de Soluções e a Reunião Anual do Fórum Ibero-americano e do Caribe sobre Melhores Práticas.

Os dois eventos foram realizados, respectivamente, de 8 a 10 e de 11 a 12 de maio na Cidade do Panamá, Panamá. A Feira Saber do Sul (www.saberdelsur.org), organização conjunta do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e do Governo do Panamá, foi montada nas instalações da chamada Cidade do Saber, que está implantada em parte do local revertido a esse país desde que passou a administrar o Canal do Panamá. O mote do encontro foi apresentar experiências dos países do Hemisfério Sul e mecanismos utilizados para suas transferências. Houve exposições e debates em cinco áreas temáticas: • Programas Sociais e Sistemas de Proteção Social; • Políticas Fiscais para Fomentar a Equidade e o Investimento Social; • Participação Cidadã, Inclusão e Políticas Públicas;

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• Meio Ambiente e Redução de Riscos de Desastres; • Experiências das Agências do Sistema das Nações Unidas. O Fórum Ibero-americano e do Caribe sobre Melhores Práticas visa identiicar, sistematizar e promover a transferência de melhores práticas voltadas para o desenvolvimento. É constituído por uma rede de organizações da região, incluindo o IBAM, com a coordenação do Escritório para a América Latina e o Caribe do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat/Rolac) e o patrocínio do Ministério de Fomento do Governo da Espanha. A reunião do Panamá serviu para consolidar os resultados

alcançados em 15 anos de atividades do Fórum e para discutir novo plano de trabalho que norteará as ações do grupo até 2013. Outros temas tratados foram o processo de premiação da municipalidade de Dubai, nos Emirados Árabes, assessorado pelo Fórum; medidas para o fortalecimento do protagonismo do Fórum; entrada de novos sócios e aperfeiçoamento e divulgação da sua nova página na Internet (www.mejorespracticas.ning.com). Além disso, foram acertados detalhes para a realização de um evento especial do grupo no Fórum Urbano Mundial (WUF6), agendado por ONU-Habitat na cidade de Nápoles, de 1º a 7 de setembro de 2012.


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