Voando com asas rasgadas

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“ Inclusão

é o que quero, é o que vivo. ”

RAPHAEL MÜLLER

Voando com asas rasgadas Um autista com muito a dizer



Voando com asas rasgadas



RAPHAEL MÜLLER

Voando com asas rasgadas UM AUTISTA COM MUITO A DIZER

1ª edição Tradução: Doris Körber

Curitiba 2015


Raphael Müller

Voando com asas rasgadas Um autista com muito a dizer

Coordenação editorial: Walter Feckinghaus Tradução: Doris Körber Revisão: Josiane Zanon Moreschi Edição: Sandro Bier Capa: Sandro Bier Editoração eletrônica: Josiane Zanon Moreschi Titel der bei Fontis - Brunnen Basel erschienenen deutschen Originalausgabe: “Ich fliege mit zerrissenen Flügeln” von Raphael Müller ©2014 by Fontis - Brunnen Basel Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Müller, Raphael Voando com asas rasgadas : um autista com muito a dizer / Raphael Müller ; tradução Doris Körber. -- 1. ed. -- Curitiba : Editora Esperança, 2015. Título original: Ich fliege mit zerrissenen Flügeln. Bibliografia. ISBN 978-85-7839-124-9 1. Autismo 2. Autistas - Autobiografia Raphael I. Título 15-07715

3. Müller, CDD-920

Índices para catálogo sistemático:

1. Autistas : Autobiografia

920

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É proibida a reprodução total e parcial sem permissão escrita dos editores. Editora Evangélica Esperança Rua Aviador Vicente Wolski, 353 - Curitiba - PR - CEP 82510-420 Fone/fax: (41) 3022-3390 comercial@esperanca-editora.com.br - www.editoraesperanca.com.br


Para meus pais

Para vocês Voar – posso fazer isso em sonhos. Andar – nem mesmo na vida diária. Falar – fui privado disso. Sou mudo, ainda que nem sempre esteja quieto. Mas tenho algo a dizer. Quem quiser me ouvir, precisa ler, pois minha comunicação acontece no texto escrito. Escrever é meu elixir da vida, minha porta para a liberdade, minha ponte entre os mundos. Minha linguagem é a poesia. Quem conhece o caráter das letras e dos números entende a dança das palavras e sente sua alegria. Sim, sou incomum. Não importa o quanto você tente: nenhum rótulo serve em mim. Graças a Deus!



Sumário

Prefácio..................................................................................11 Glossário...............................................................................13 1. Diferente do esperado...................................................15 Sete anos de mudez.........................................................15 Meu castelo – minha família..........................................25 A cada dia, um pequeno milagre – a terapia com golfinhos.............................................29 Em conflito – autismo.....................................................33 Minhas especialidades: leitura fotográfica, sinestesia e aprendizado autodidata.........................40 Minha fala é escrita!........................................................45 2. O difícil é fácil, e o fácil, tão difícil!...........................49 Desvios – meu histórico escolar....................................49 O atalho – o salto para o nível II...................................57 Praticamente melhores amigos – meus acompanhantes na escola e cuidadores nas horas livres........................................67 Não quero viver em um gueto! – Inclusão..................70 Participar é tudo! – Um pedaço de normalidade.......76 Os pontos altos – visitas de amigos..............................77


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3. Mudo, mas cheio de palavras.......................................81 O país das letras e a linguagem dos números.........81 Histórias de anões...........................................................87 Pensamentos coagulados – a poesia...........................89 Alegres festas de letras: prosa......................................95 Alimento intelectual e espiritual – minhas leituras........................................................107 4. Raios de esperança.......................................................115 Um retorno valioso: concursos..................................116 Matinê no Palácio Bellevue.........................................118 Contato com a imprensa – workshop de jornalismo.........................................121 Apoio musical: textos musicados...............................128 5. O reverso da medalha.................................................137 O freio da cirurgia e outras adversidades................139 Terapias e terapeutas....................................................147 Experimentar e compreender? – sofrimento e dor......................................................149 6. Razão e objetivo...........................................................155 Pensamentos são livres!................................................155 O Universo numa casca de noz – Deus tem lugar nele?.............................................160 A âncora salvadora – minha fé...................................164 “Ser um milagre” – motivação e exemplos.............171 Quero construir pontes! – perspectiva, visão...........173 7. Olhando de fora............................................................177 Pacote supresa com pérola (ponto de vista da mãe, dra. Ulrike Müller)..........177 Um espelho (ponto de vista de Bernhard Kamm).......................191


11 Encorajamento para trilhar caminhos desconhecidos (Gerhard Haunschild, diretor do DHG)..................192 O que você faria? (perspectiva da profª Katharina Dollinger)...........193 Já na expectativa de passar mais tempo com você! (Tanja Spencer, acompanhante)...............................195 Nosso poeta (comentários dos colegas)........................................196 Meus bons votos para o livro de Raphael! (Dr. Pius Thoma)........................................................198 Não o que parece ser (ponto de vista da dra. Cornelia Rehle, docente da Universidade de Augsburg).................200 Profundamente tocada! (Antonia Huppertz, estudante da Universidade de Augsburg)..............................................................202 Bibliografia.........................................................................205 Links........................................................................................................207 Filmes...............................................................................................207



Prefácio

Agradeço diariamente a Deus pela FC1, este método de apoio à comunicação que me permite digitar meus pensamentos, a fim de registrá-los por escrito antes que me dilacerem por dentro. Escrever é a minha válvula de escape, minha ponte para o mundo exterior e, por isso, simplesmente essencial. Para mim foi um enorme prazer escrever este livro. Durante semanas, investi nele cada minuto em que não tinha escola nem terapia. Minha mãe foi forçada a passar o mesmo tempo que eu nesta atividade, pois ela, pacientemente, sustentou meu braço durante 228.390 movimentos de digitação. Não tenho como agradecer-lhe o suficiente! Durante todas estas semanas na época do Natal de 2013, meu pai e Hannah tiveram que ceder e abrir mão da mamãe para que este projeto pudesse se realizar. Deus sabe que tenho a melhor família do mundo! Verena Weich teve a gentileza de ler meu primeiro rascunho. Suas observações me ajudaram a organizar os capítulos. Muito obrigado! Quero agradecer de coração ao dr. Pius Thoma, à drª. Cornelia Rehle, a Bernhard Kamm, ao reitor Haunschild, 1

Sigla em inglês para “Comunicação Facilitada”. Técnica em que um auxiliar apoia o braço ou a mão da pessoa com prejuízo na capacidade de comunicar-se, ajudando-a a digitar as palavras desejadas em um teclado. (N. de Tradução)


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à sra. Dollinger, a Antonia Huppertz, Tanja Spencer e aos meus colegas de classe pelas fantásticas contribuições ao meu livro! O melhor manuscrito não será lido, pois não encontramos uma editora que o publicasse. Por isso, minha máxima gratidão a Christian Meyer, Vera Hahn e Ulrich Parlow, meus revisores, e a Dominik Klenk, editor da Fontis, além de toda a sua equipe, por sua espantosa confiança em um adolescente. Isso significou muito para mim! A cooperação com a editora foi revigorante e agradável, de maneira que a Editora Fontis faz jus ao seu novo nome. Meu respeito! Desejo a vocês, leitores, horas de boa leitura e ideias novas e valiosas. Oro para que este livro seja uma bênção e realmente colabore para construir pontes. Que ele encoraje outras pessoas na mesma situação, para que encontrem caminhos mais fáceis para a inclusão. Desejo a todos uma fé que persista, mesmo quando as asas falharem e a vida parecer perder o chão. Que Deus o abençoe com sua luz e presença perceptível!


Glossário

Atácticos → desordenados, desajeitados, com padrões desorganizados Autismo → forma diferente de percepção e processamento Dolphin Aid e.V. → associação que promove a terapia com golfinhos. http://www.dolphin-aid.de/ Elecok → abreviação em alemão para o grupo de trabalho “Recursos eletrônicos e computadores para pessoas com deficiência física”. Epilepsia → convulsões desencadeadas pelo cérebro Facilitated Communication (FC) → Comunicação Facilitada, técnica de comunicação por escrito, em que um acompanhante oferece apoio físico e emocional. Feldenkrais, método → um método de aprendizado de orientação física, recebeu o nome de seu criador, Moshé Feldenkrais. Treina sobretudo a percepção corporal. Hidrocefalia interna ex-vacuo → ventrículos laterais aumentados no cérebro, mas sem aumento de pressão no líquor Hipoterapia → terapia com cavalos Integração sensorial → percepção do próprio corpo


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Osteopatia → conceito de tratamento integral, que usa as mãos tanto para o diagnóstico quanto para a terapia. O objetivo é corrigir limitações de mobilidade de estruturas e tecidos, para restabelecer o bem-estar físico e emocional. Criado por A.T. Still. Perinatal → em torno do momento do parto; pode, portanto, ter acontecido antes ou depois do nascimento. Proprioceptores → receptores da sensação de profundidade, que permitem registrar posição e movimentação do corpo no espaço; fusos musculares. Terapia com golfinhos → terapia realizada com ajuda de golfinhos.


1 Diferente do esperado Durante sete anos, praticamente todo mundo pensava que eu tinha alguma deficiência mental. É o que acontece quando você não fala e, por isso, não consegue responder diretamente. É como um computador com hardware e software intactos, mas um monitor defeituoso. Frequentemente, o diagnóstico acaba sendo: “completamente estragado”. Poucas pessoas cogitam a possibilidade de que, ainda assim, possa haver raciocínio claro e, dessa maneira, fica-se a um passo dos mal-entendidos. Em muitos aspectos, sou diferente do que se espera. No começo, meu diagnóstico causou grande decepção e, quando o ambiente à minha volta finalmente tinha se adaptado ao tema “deficiência”, as pessoas foram obrigadas a constatar que, a despeito de todos os prognósticos, eu era um ser pensante, uma pessoa com um cérebro funcional em um corpo rebelde. Mas vamos começar do princípio.

Sete anos de mudez Minha percepção é radicalmente diferente da sua, o que, possivelmente, decorre do autismo e da constituição do meu cérebro. Grande parte das minhas células cinzentas foi prejudicada por um infarto perinatal, que também causou um aumento significativo nos ventrículos laterais.


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O termo técnico é hidrocefalia interna ex-vacuo. Bem, se entendi corretamente, um AVC antes do nascimento destruiu partes do meu cérebro. O espaço que sobrou foi ocupado pelos ventrículos cheios de líquor. Como não havia sintomas de aumento de pressão, fui poupado de uma cirurgia na cabeça. A causa de tudo isso provavelmente foi um aneurisma, um ponto fraco em um vaso sanguíneo que se rompeu cerca de três semanas antes do meu nascimento durante uma colisão e acabou provocando essa devastação na minha cabeça. Nasci no dia 24 de setembro de 1999, três meses antes do Natal. Mamãe e a parteira concordam ao relatar que o parto foi simples e sem complicações. Durante o trabalho de parto, uma tempestade desabava sobre Aichach; quando nasci, caía uma chuva calma. Nem meus pais nem eu percebemos qualquer coisa do tal espetáculo da natureza, mas a parteira divertiu-se com a coincidência. Ao contrário da minha avó, até hoje não tenho medo de tempestades. Na verdade, apesar de ter ouvidos muito sensíveis a ruídos, amo ouvir o mundo desabando e trovejando, ventando e se agitando. Talvez porque eu mesmo não possa me esbaldar dessa forma. Seja como for, associo a tempestade com suspense, aventura e o começo de alguma coisa nova. Meus primeiros meses de vida foram normais. Eu não tinha sido diagnosticado e, por isso, tudo estava em ordem. Lembro-me da corrente com brinquedos que balançava no carrinho, da água fria no rosto ao ser batizado, da carícia tranquilizadora na testa para dormir, do vento tranquilizador do secador de cabelos na minha barriga, do aconchego da mamãe, da sensação de meleca no rosto, principalmente no nariz e da dança de cores gritantes em


Diferente do esperado

uma noite cheia de música. De quando já estava maior, lembro-me de tentar (sem sucesso) avisar que precisava fazer “pipi” e do banho em seguida, dos meus protestos no carrinho, que infelizmente eram incompreendidos porque eu só falava “rafaelês”, e da minha diplomática palavra “mapa” no banho, quando mamãe implorava que eu dissesse “mamãe” enquanto papai, ao mesmo tempo, me mandava falar “papai”. Depois de alguns meses, o mingau superdelicioso começou a me incomodar na língua. Explorar o quarto despertava um senso agudo de aventura. O que eu achava detestável era entender tudo e não ser entendido. Então tudo ficou nebuloso, meu mundo desabou. Olhando para trás, vejo os primeiros anos envoltos em neblina: separado e incompreendido pelo meu entorno, mas, ao mesmo tempo, cercado e cuidado pelo amor de Deus. Como uma ilha no meio do oceano. Aninhado em algodão, isolado da multidão, entendendo sem ser compreendido – era assim que eu percebia meu mundo. Não que eu me incomodasse muito por ser diferente. Eu não conhecia outra coisa e, de qualquer maneira, Deus estava bem próximo de mim. O que me irritava era a constante comparação com outras crianças da mesma idade e os inúmeros tratamentos, pois tudo isso só servia para destacar minhas incapacidades e me arrancar do meu próprio mundo. Meu refúgio corria perigo, meu oásis estava a ponto de secar! Essa sensação de nebulosidade era reforçada pela total ausência de percepções físicas do pescoço para baixo. Sou hipersensível na região da cabeça, mas, dependendo do tempo, em alguns dias não consigo determinar o contorno exato dos meus membros. É uma sensação horrível

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confundir-se assim com o ambiente. Onde estou e quem sou? Eu estaria me diluindo em dias assim? Levou algum tempo até que eu aprendesse a distinguir meu corpo do meu entorno. Em dias especialmente difíceis, a vibração nos lábios ao imitar o som do motor de um carro me dá a tranquilizadora sensação de ainda existir. Quem vive à minha volta enxerga isso de outro jeito. Eles sabem muito bem que, mesmo que eu não o perceba assim, nestes dias de dissolução estou presente física e, acima de tudo, acusticamente. Forçosamente, essa irritante falta de percepção nas minhas extremidades retardou meu desenvolvimento motor. Somente o exame U52, em meados de abril, revelou a extensão do desastre, manifesto na forma de movimentos atácticos. Primeiro examinaram minha cabeça com ultrassom, depois com ressonância magnética, e foi aí que encontraram o grande aumento nos ventrículos laterais, que são as câmaras que armazenam líquor no cérebro. Durante uma semana, fiquei na clínica infantil do hospital universitário de Munique, onde me giraram e viraram, cutucaram e puncionaram o tempo todo. Não tenho lembranças agradáveis dessa busca infrutífera por respostas. Por fim, meu metabolismo foi considerado inocente. Provavelmente um derrame teria sido responsável pela perda de massa cerebral e pelo acúmulo de líquor. Um jovem residente consolou mamãe, dizendo que usamos apenas 10% do nosso cérebro. Portanto, se eu aproveitasse o pouco que tenho da melhor forma, poderia levar 2

O U5 faz parte de uma série de exames preventivos gratuitos realizados na Alemanha em crianças de 0 a 17 anos, a fim de detectar precocemente eventuais problemas no desenvolvimento. O U5 é realizado entre o 6º e o 7º mês de vida, e dá atenção especial à forma como a criança percebe o entorno e reage a ele (visão, audição, movimentos). Fonte: http://www.babycenter.de/a8916/vorsorge-untersuchungen-f%C3%BCr-babys. Acesso em 6/3/2015. (N. de Tradução)


Diferente do esperado

uma vida normal. Bem, não cheguei totalmente lá, mas realmente tento obter o melhor com o que tenho. Vai saber – talvez, às vezes, menos realmente seja mais. Essa breve palavra do jovem médico foi um bálsamo e um salva-vidas para nossa família. A partir de então, minha agenda ficou cheia de terapias e consultas. Os prognósticos eram todos pessimistas. Logo desencadeou-se uma batalha de terapias – e eu estava bem no centro dela! Tudo mudou radicalmente com o diagnóstico constatado quando eu tinha sete meses de vida. Eu ainda era pequeno demais para gravar os detalhes, mas tenho lembrança dos numerosos tratamentos e terapeutas e, intuitivamente, sempre soube que isso não tinha sido assim desde o começo, que alguma coisa tinha se quebrado na nossa estrutura familiar e que isso tinha relação comigo. Demorou um pouco para eu descobrir o que era. Naquela época, a expressão “hidrocefalia interna ex-vacuo” ainda não tinha nenhum significado concreto para mim. Percebia a preocupação, o sofrimento não expresso, a desorientação nos olhos dos adultos, e me sentia impotente e triste. Eu queria muito consolá-los, mas não tinha como fazê-lo. Alguma coisa faltava, tinha se perdido: a alegria e a esperança. Era preciso primeiro procurá-las e reencontrá-las com muito esforço. E salva-vidas, como o mencionado acima, não são exatamente frequentes no meu caminho. Todos à minha volta tinham as melhores intenções, mas simplesmente não sabiam o que fazer. Cada especialista reconhecia meus déficits em sua área específica, e buscava combatê-los com todo empenho. Esta era a opinião geral, mas não contribuía para fortalecer minha autoestima. De uma hora para outra, além da natação infantil e do maternal,

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meu dia a dia passou a ser enriquecido com fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia, hipoterapia e osteopatia. Eu gostava da variação de atividades, mas não tenho ideia do que esse ritmo exigiu dos meus pais. Aos dez meses de idade mais um problema começou a me atormentar. Primeiro, o espaço parecia se ampliar infinitamente, como uma espiral gigante, e de um segundo para o outro, o movimento se invertia e a espiral apertava-se cada vez mais à minha volta. Mamãe percebeu espasmos nas minhas extremidades e meus lábios arroxeados e, assustada, ligou para o pediatra. Ela relatou o ataque epiléptico que tinha acabado de observar. Como ele não estava disposto a fazer uma visita, era melhor que ela me levasse até a clínica, e era melhor que ela não ignorasse a seriedade da situação! Portanto, de uma hora para outra, tive que me mudar para o hospital, onde nada mais foi feito naquela noite. Não entendi isso muito bem, e também não conseguia dormir direito. Várias vezes nos dias seguintes me ligaram a cabos enquanto me entretinham com luzes e bolhas brilhantes, sem qualquer progresso perceptível. Quando estavam a ponto de dizer a mamãe que ela tinha se enganado, tive uma nova convulsão durante uma dessas sessões de medição. Ah, tá! Parece que às vezes as mães têm razão. Medicaram-me com Orfiril3. Lembro-me muito bem das letras daquela embalagem detestável. Eu ainda não conseguia decifrar a escrita, mas minha memória fotográfica me permite guardar texto para leitura posterior. Para introduzir a medicação, mamãe foi orientada a abrir as cápsulas e a me dar a cada dia um número maior das bolinhas que ele 3

Nome comercial do antiepiléptico valproato. (N. de Tradução)


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continha. O troço tinha um gosto terrível, eu sentia de longe o cheiro do remédio na colher, e ele era ainda mais intenso enquanto a comida ainda estava quente. Mamãe quase se desesperou, pois, de repente, passei a aceitar a comida só depois que ela tinha esfriado. E, mesmo assim, eu sabia, sem olhar, quais eram as colheres que tinham remédio. Se ela não cantasse músicas infantis, eu nem abria a boca. Este remédio exigia exames regulares de sangue para controle de valores hepáticos. Eu achava isso muito mais interessante do que ruim, já que tenho pouca sensibilidade nas extremidades. Mas o pediatra não confiava muito em mim, por isso todas as vezes ele fazia com que várias pessoas me segurassem. Isso, por sua vez, me aterrorizava. Além disso, não gosto de ser segurado, principalmente quando estranhos fazem isso! Tentávamos este procedimento a cada três semanas, mas não adiantava: os valores caíam perigosamente. Trocaram a medicação por carbamazepina e topiramato4 – com sucesso moderado. Entrei em um estado de delírio permanente, desaprendi a engatinhar e balbuciar, e as convulsões ficaram antes mais frequentes do que antes. Os médicos recomendaram, então, aumentar ainda mais a dosagem do topiramato, que até então ainda nem tinha aprovação oficial para crianças menores de dois anos. Mamãe perdeu a paciência. Mandou realizar testes em alimentos, prescreveu-me uma dieta rotativa e começou a reduzir gradualmente a medicação. Bem lentamente, ao longo de meio ano. Nunca mais tentei me arrastar pelo chão nem balbuciar (“mamamam, papapap”), mas, pelo menos, conseguia pensar com clareza de novo! 4 Medicamentos usados no tratamento da epilepsia, entre outras indicações. (N. de Tradução)

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Os ataques epilépticos vêm irregularmente, mas ainda são frequentes demais para o meu gosto. Eles atingem braços e pernas, além da respiração. No jargão médico, são chamados de “Grande Mal” ou convulsão. Sinto sua aproximação e temo as dores violentas e o cansaço muscular subsequente. Na maioria das vezes, perco meu apetite, normalmente bom, antes de uma crise, e acabo recusando comida e bebida. O lado bom da epilepsia são as ideias absolutamente claras e geniais imediatamente antes da crise. Nestes momentos, penso entender o plano por trás de todas as coisas. É uma felicidade da qual não quero abrir mão! Para tê-la, aceito as dores. Por outro lado, para descobrir isso, foi preciso primeiro eliminar o cobertor pesado e paralisante da medicação constante, que impedia o raciocínio claro. 27/01/2014

Um fluxo de pensamentos absolutamente desimpedido me arrebata com seu encanto e me mostra, retumbante, do que é capaz. Rochas duras não poderiam pará-lo, é impossível superar sua rapidez. Com violência ele arrasta tudo consigo em direção a um lugar desconhecido. Borbulhante, espumante e também sonhadora, a corrente percorre seu caminho. A viagem parece uma busca por sentido. Passando por campos de trigos e prados verdes, há realmente muito para ver e para aprender com este mundo enorme


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e aquele que o segura em suas mãos. A corrente absorve pensamentos com sofreguidão, aceita contradições em seu turbilhão, cresce demais em direção ao mar, prospera belamente por onde passa. Então ela se mistura em amplidões infinitas a outros que acompanham sua busca por sentido, perde sua subjetividade limitada enquanto escolhe uma nova perspectiva e, de repente, passa a entender muito mais. (Ainda tenho ataques, mas muito menos frequentes do que antes, e eles passam sozinhos. Quando ficam especialmente violentos, me dão Valium e eu durmo algumas horas. Um dia perdido. Em compensação, nos demais dias meu raciocínio fica claro.) Meu pediatra declarou que eu, provavelmente, nunca frequentaria uma escola normal. Ele tinha poucas coisas gentis a dizer a meu respeito, e seus comentários eram mais perturbadores do que úteis para mim e para meus pais. Mamãe assistiu à palestra de um neurocientista, sr. Haffelder, que enfatizava o quanto nossos pensamentos influenciam os acontecimentos. A conselho dele, ela decidiu que evitaria, a todo custo, me reprimir em pensamentos, e trocou de pediatra. O sr. Haffelder mediu minhas ondas cerebrais e gravou um CD especial, que combinava música clássica e sons de baleias e golfinhos, a fim de otimizar a cooperação entre os dois hemisférios do cérebro. Infelizmente sabotei essa terapia, pois, aos três anos de idade, não estava disposto a deixar os fones de ouvido na cabeça.

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Eram muito duros os exames anuais no Centro de Tratamento e Aconselhamento da Fundação Hessing, em Augsburg, onde eu e meu desenvolvimento eram observados e analisados com olhos de águia. Como havia a firme convicção de que o desenvolvimento motor caminha de mãos dadas com o desenvolvimento cognitivo, eu ficava sentado em um canto, brincando, enquanto mamãe era confrontada com uma péssima notícia atrás da outra, sem suspeitar que eu escutava e entendia tudo. Mamãe me defendia com unhas e dentes e mostrava, assim, que acreditava em mim. Isso era um conforto tremendo! Infelizmente, durante muitos anos ninguém acreditou nela quando afirmava que eu entendia muito mais do que os médicos queriam fazer crer. Em uma dessas consultas, perguntaram para mamãe se eu conseguia separar os brinquedos pela cor, o que ela teve que negar. No dia seguinte, tirei apenas peças azuis da minha caixa de Lego, para mostrar a ela que eu sabia reconhecer as cores. Para desgosto de mamãe, não consegui me convencer a provar isso também para aqueles que não tinham acreditado em mim. Eu sou assim. Quem confia em mim, recebe provas e mais provas das minhas habilidades. Quem não confia, não recebe nada. Quanto mais velho eu ficava, mais me irritava o fato de que ninguém me entendia, uma vez que eu entendia todo mundo muito bem. Eu era fluente em “rafaelês”, como diz mamãe, mas isso não ajudava nada, já que não existem dicionários desse idioma exótico, o que é um grande empecilho para a comunicação. Assim, em alguns dias só me restava gritar, para deixar claro que alguma coisa não estava bem. Mas essa comunicação ruidosa é um tanto genérica, de forma que na


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maioria das vezes meus pais, avós e terapeutas não percebiam qual era realmente o problema. O volume dos gritos era proporcional à minha frustração. Isso, por seu lado, estressava não apenas meus pais, mas também os avós, todos preocupados com meu bem-estar. Um círculo vicioso. Essa situação só mudou quando finalmente comecei a me comunicar por escrito, aos sete anos.

Meu castelo – minha família Recebi os melhores pais do mundo, tenho certeza. Mesmo que nem sempre seja fácil conviver comigo, eles se empenham ao máximo para me apoiar e tornam o “impossível” possível. Papai já empurrou minha cadeira de rodas várias vezes até o topo do Rittner Horn5, para que eu pudesse ver a cruz no cume e desfrutar da vista das montanhas. Nossos “passeios de homem” são verdadeiros pontos altos para mim, ainda que, infelizmente, eu nem sempre consiga demonstrar isso. Comunico-me com papai por gestos. No começo, usava a mão direita para “não” e a esquerda para “sim”. Mas logo ficou claro que, na maioria das vezes, apenas essas duas opções não eram suficientes. Aprendemos com Veronika Raila, que está em uma situação parecida, a associar diferentes significados a cada dedo, de forma que, quando necessário, dispomos de até dez possibilidades de resposta. Infelizmente, às vezes demora até que eu consiga comandar minha mão rebelde e, por isso, meu interlocutor precisa estar bem concentrado para entender o significado de cada dedo. Na prática, isso funciona assim: por exemplo, o polegar representa “sim” e o indicador, “não”. Quando não é 5

Montanha nos Alpes italianos, com 2.260 m de altura. (N. de Tradução)

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possível responder uma pergunta com sim ou não, simplesmente uso o dedo do meio para indicar “pergunta errada”, “não sei” ou “nem uma coisa nem outra”. Ou então alguém me pergunta o que quero fazer: ler, escrever, fazer contas, descansar, passear… Papai estabelece os meus limites, volta e meia medimos forças ou vontades. Isso acaba lixando uma ou outra aspereza. Temo que eu – ou melhor, meu diagnóstico – tenha frustrado alguns de seus planos de vida. Sou muito feliz por ele me apoiar dessa forma. Ele é a rocha na arrebentação. Mamãe é minha voz, minha mediadora e meu apoio emocional. Se ela não confiasse em mim e não tivesse feito aquele curso básico de FC em novembro de 2006, até hoje provavelmente meu QI seria estimado em zero e eu estaria vegetando, permanentemente limitado a respostas entre sim e não. A FC funciona mais rapidamente e melhor quando mamãe me ajuda. Não é de admirar, pois já estamos treinando diariamente há cerca de sete anos, isto é, mais de 2555 dias. Graças ao tempo e ao esforço que ela me dedica, consigo levar uma vida humanamente digna apesar de todas as minhas limitações. Assim que se recuperou do primeiro choque, mamãe investiu muito tempo, energia e imaginação para ampliar e aplicar todos os conhecimentos adquiridos com terapeutas, livros e outros pais. Ela é ao mesmo tempo terapeuta, médica, enfermeira e mãe. Ela também não hesitou em derrubar montanhas de alpiste, ervilhas ou feijões no chão da sala, para me dar a experiência de “caixa de areia indoor”. Mas como sinto muito melhor com a boca do que com as mãos, logo comecei a colocar ervilhas e feijões crus na boca. Acho que isso gerou certo desconforto nela.


Eu no aniversário da vovó, em outubro de 2011.

2004: Eu e meu andador (NF-Walker).

Na natação para bebês, em 2001 (foto: Kathrin Dietrich).


Com mamãe no workshop de jornalismo (foto: Angelina Bürth, 2012).

Curaçao 2009: a terapeuta Heike quer conversar comigo. Usamos o tabuleiro de madeira, que eu tinha começado a usar naquela época. Mas primeiro preciso cumprimentar minhas amigas letras: eu as acaricio com a mão não apoiada.


Terapia com golfinhos em Curaรงao com a terapeuta Heike e o golfinho Mateo, 2009 (foto: CDTC).

Em cima do cavalo na hipoterapia. Atrรกs do cavalo estรก a terapeuta Heidi Leimbeck.


É possível um menino autista encontrar seu espaço no mundo? Ele não consegue se expressar através da fala, possui sérias difi culdades motoras, no entanto, sua percepção do mundo é totalmente diferente do que a maioria das pessoas conhece como “normal”. Desacreditado que pudesse aprender, com oito anos escreveu uma carta ao presidente, participou e participa de concuros literários e escreveu este livro aos catorze anos. Raphael Müller surpreende cada pessoa que o conhece, por sua força de vontade, determinação e capacidade de infl uenciar positivamente aqueles que o conhecem, convivem com ele ou leem seus textos.

“O que você faria se não pudesse andar? Se não conseguisse se comunicar com outras pessoas da mesma maneira que fluem seus pensamentos? Isto é, você se comunica, claro, mas os outros não o entendem. As pessoas à sua volta nem percebem que você está querendo dizer alguma coisa.” Profª Katharina Dollinger


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