Borges e a mecânica quântica

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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta

Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano

Coleção Meio de Cultura Comissão Executiva Marcelo Knobel (coord.) Andréa Guerra – Luiz Carlos Dias Peter Schulz – Sandra Murriello Conselho Consultivo João Schmidt – Luiz Davidovich – Miguel Nicolelis – Marcelo Gleiser Iván Izquierdo – Luisa Massarani – Sergio Pena – Antonio C. Pavão – Marcelo Leite Carlos Henrique de Brito Cruz – Carlos Nobre – José Antônio Brum – Carlos Vogt Leopoldo de Meis – Mauricio Tuffani – Alberto Passos Guimarães Mônica Teixeira – Ildeu C. Moreira

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alberto rojo

Tradução

Márcia Aguiar Coelho

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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação R638b

Rojo, Alberto. Borges e a mecânica quântica / Alberto Rojo; tradução: Márcia Aguiar Coelho. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2011.

1. Borges, Jorge Luis, 1899-1986. 2. Arte e ciência. 3. Divulgação científica. 4. Mecânica quântica. 5. Ensaios argentinos. 6. Poesia argen­ tina. I. Título. cdd 864.4 704.9495 070.4 530.12 861.4 isbn 978-85-268-0923-9 Índices para catálogo sistemático:

1. 2. 3. 4. 5. 6.

Borges, Jorge Luis, 1899-1986 Arte e ciência Divulgação científica Mecânica quântica Ensaios argentinos Poesia argentina

864.4 704.9495 070.4 530.12 864.4 861.4

Título original: El jardín de los mundos que se ramifican: Borges y la mecánica cuántica Copyright © by Alberto Rojo Copyright © 2011 by Editora da Unicamp 2a reimpressão, 2014 Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos. Printed in Brazil. Foi feito o depósito legal.

Direitos reservados à Editora da Unicamp Rua Caio Graco prado, 50 – Campus Unicamp cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br – vendas@editora.unicamp.br

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meio de cultura Nosso cotidiano é permeado de ciência e tecnologia. Mas o que é ciência? Como é feita? Quem a faz? E a tecnologia? A coleção Meio de Cultura traz textos que, em linguagem acessível a todos (e às vezes divertida), apresentam os caminhos e os descaminhos da ciência e da tecnologia. Neles encontramos histórias de sucessos e fracassos, contradições e embates, enigmas e polêmicas da ciência e da tecnologia na sociedade — uma bússola para explorar a cultura científica até as fronteiras do saber.

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sumário

prólogo ..................................................................................................................................................................... apresentação — o jardim dos mundos que se ramificam ...................................................................................................................................  

borges e o dólar........................................................................................................................ 

literatura e ciência ........................................................................................................... 

einstein,  ................................................................................................................................... 

o castigo no céu......................................................................................................................... 

teletransporte............................................................................................................................ 

aniversário do espaço..................................................................................................... 

retorno ao obscurantismo .................................................................................... 

aquarelas de galileu ........................................................................................................ 

o triunfo da luz ......................................................................................................................... 

 a verdade é simples...............................................................................................................   a parte e o todo .......................................................................................................................... 

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 humildade astronômica ..............................................................................................   desfolhando margaridas ..........................................................................................   acasos cotidianos ................................................................................................................  a falácia do promotor................................................................................................  física nos tangos ...................................................................................................................  física na bíblia...........................................................................................................................  diluição ou ilusão...............................................................................................................  cura quântica ............................................................................................................................  que o diga o gps........................................................................................................................  tertium organum ..................................................................................................................  a parábola do jorro de água ...........................................................................  doze coincidências ............................................................................................................

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prólogo

Três de minhas metáforas favoritas são de físicos: A primeira é a flecha do tempo, de Arthur Eddington. A segunda é o universo como livro, que já existia na Idade Média, mas que Galileu aperfeiçoou ao dizer que Deus escreveu as leis naturais em linguagem matemática. A terceira — talvez mais uma imagem poética que uma metáfora — é de Werner Heisenberg, um dos criadores da teoria quântica: “Luz e matéria são ambas entidades individuais, e a aparente dualidade emerge das limitações de nossa linguagem”. A citação é da introdução de Os princípios físicos da teoria quântica, onde Heisenberg esclarece sua teoria com um rigor matemático ditatorial. Não a encontrarão em pôsteres de entardeceres nem em marcadores de livros vistosos, mas na frase está a essência do diálogo entre física e poesia: a limitação da linguagem. A poesia existe porque a linguagem é limitada, porque as palavras esquadrinham uma realidade que é contínua e infinita. Para ir mais além desse esquadrinhar, para expressar o inexprimível, é necessário recorrer a per

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mutações que prolonguem o alcance da inteligência. Dessas permutações emergem ao mesmo tempo as microrrevelações da experiência estética e — talvez sejam a mesma coisa — as chaves inesperadas para entender o universo. Por isso, aquilo que, em mais de uma ocasião, começou como artifício da imaginação poética se converteu depois em síntese científica da realidade. O último círculo do “Inferno” de Dante tem a estrutura geométrica de uma esfera num espaço de quatro dimensões (a assim chamada “S”), antecipando a possível curvatura de nosso espaço tridimensional. E em “O jardim dos caminhos que se bifurcam”, que visito neste livro, Borges concebe um labirinto temporal chamativamente similar ao dos “muitos mundos” quânticos, proposto anos depois pelo físico Everett III. A beleza, o critério estético, a busca de uma correspondência das leis naturais com uma ordem preestabelecida, anterior inclusive à experimentação, são um princípio-guia em muitos outros avanços científicos. Claussius, Einstein, Dirac, Weyl, De Broglie decifraram chaves complexíssimas do universo perseguindo mais um horizonte de simetria e simplicidade do que a explicação de experimentos inexplicados. Assim tramaram os tecidos de um tapete coerente, de um mapa da realidade que estava implícito numa madeixa de metáforas, intuições literárias e extrapolações fantásticas. “Veja, meu filho, aqui o tempo torna-se espaço”, diz Wagner, em Parsifal. E Poe, em Eureka: um poema em prosa, propõe, em , a solução aceita hoje para o chamado paradoxo de Olbers, que comento no capítulo “Literatura e ciência...”. Os exercícios que apresento aqui habitam, alguns mais que outros, esse território comum entre a arte e a ciência e questio

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Prólogo

nam a ideia de que sejam opções antagônicas; a ciência é também criação e a arte é também descoberta. A maioria dos artigos foi publicada no diário Crítica de la Argentina, fundado por Jorge Lanata em . No final de , antes do lançamento do diário, propus a Jorge escrever uma coluna periódica e, para minha alegria, ele aceitou de imediato A experiência, em parte jornalística, foi um exercício inusitado para mim, sobretudo pelos comentários on-line dos leitores. Esses comentários foram orientando minha prosa em direção a uma linguagem divulgadora e a temas de interesse cotidiano. Dessa ida e volta, surgiram artigos como “Diluição ou ilusão”, em que argumento que a homeopatia não tem suporte científico, “Cura quântica”, no qual comento as aplicações pseudocientíficas da física quântica, ou “Que o diga o GPS”, onde comento uma das aplicações cotidianas da teoria geral da relatividade de Einstein. Jorge Luis Borges, o poeta mais citado pelos cientistas e o escritor que mais me tocou na vida, aparece com obstinação neste livro. Inclusive de maneiras satiricamente mágicas, como se sua literatura tivesse dado uma chave que a ciência ainda não decifrou, ou como se piscadelas de sua ficção habitassem nossa realidade. Em “Tertium Organum”, falo de um soneto inédito que encontrei (e destruí) a  de maio de , quando visitei a Biblioteca Nacional argentina em busca de anotações em livros que Borges tinha lido. Carlos Balseiro e Guilhermo Martinez tentaram explicar minha ação dizendo que o soneto, que ninguém conheceu, era ruim. Mais tarde, a  de agosto de , recebi um e-mail de Germán Álvarez, da Sala do Tesouro da Biblioteca Nacional. Álvarez e Laura Rosato tinham compi

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lado anotações de Borges em livros doados por ele em 1973. Na folha de guarda posterior do volume 11 do Compêndio de disputas religiosas, de Christian Wilhelm Franz Walchs, de 1773, havia aparecido um soneto desconhecido de Borges. Os primeiros versos, de duvidoso valor, são “a esperança / como um corpo de menina / ainda misterioso e tácito”. Finalmente, quero agradecer a Eric Rabkin e Alejandro García, coautores de uns artigos; a Susana Pedrosa, José Lorenzana, Pablo Amster, que leram e comentaram cordialmente alguns rascunhos; a Daniel Capalbo, editor de Crítica de la Argentina, que me encorajou a seguir com minhas colaborações periódicas, quando Jorge Lanata se retirou desse diário; a Marcelo Knobel, pelo convite para publicar o livro na prestigiosa coleção da Editora da Unicamp, bem como a toda equipe da Editora e a Márcia Aguiar Coelho, pelo arriscado trabalho de tradução entre dois idiomas tão próximos como o português e o castelhano. Ann Arbor, 17 de janeiro de 2011.

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apresentação

o jardim dos mundos que se ramificam: borges e a mecânica quântica

Entrada no labirinto A  de julho de , por puro acaso, troquei umas palavras com Borges. Recordo-me da data porque era um dia depois do meu casamento e, antes de partirmos para a lua de mel, minha mulher e eu tínhamos ido saudar meus pais, que estavam alojados no Hotel Dora, na Rua Maipu, . Minha mãe me pegou pelo braço e me levou ao restaurante. As mesas estavam vazias, exceto uma, e ali estava Borges, sentado junto de uma mulher, que provavelmente era Estela Canto, com quem ele falava às vezes em inglês e às vezes em castelhano. Diria que me senti diante de um personagem fictício e, paralisado pela fascinação de comprovar que sua aparência correspondia às imagens de publicidade, examinei-o como se olhasse as estátuas, que não nos podem devolver o olhar. Vestia um traje escuro, uma gravata ajeitada, e em seu prato havia um simples montinho de arroz branco. Meu pai me convenceu a irmos falar com ele. 

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Esperamos que terminasse de almoçar, e quando o garçom, que o tratava por “mestre”, lhe trouxe uma xícara com um saquinho de chá, nos aproximamos de sua mesa. Meu pai iniciou o diálogo, e Borges, que se mostrou encantado com a ideia de conversar, nos presenteou com algumas fábulas de sua erudição. Falou de Deus, do minotauro e criticou duramente Ortega y Gasset (“O conheci em sua visita à Argentina e me pareceu ser um zero à esquerda”). Minha única intervenção foi comentar-lhe que alguns textos de física faziam referências a sua obra. Nessa época eu estava terminando minha licenciatura no Instituto Balseiro e nessa ocasião aludi às citações de A loteria na Babilônia, onde Borges reflete sobre o acaso e o determinismo. Borges me falou de sua ignorância em matéria de física, com uma resposta desconcertante que eu haveria de mencionar até a exaustão em conversas informais com colegas. Um encontro pessoal com Borges é uma grande desculpa para a vaidade; todo mundo percebe que sua fama é um universo em constante expansão. Por exemplo: a biblioteca da Universidade de Michigan tem mais de  livros sobre ele, mas poucos sabem que era um homem acessível, que falava de maneira igual tanto com um notável como com um desconhecido. Desde esse dia encontrei várias citações de Borges em textos científicos e de divulgação científica: menções ao “A biblioteca de Babel”, para ilustrar os paradoxos dos conjuntos infinitos1 e a geometria fractal2; referências à taxonomia fantástica do doutor Franz Kuhn, em “O idioma analítico de John Wil-

1 Ver, por exemplo, R. Rucker, Infinity and the mind (Boston, Biirkhäuser, 1982). 2 F. Merrell, Unthinking Thinking, Jorge Luis Borges. Mathematics, and the New Physics (West Lafayette, Purdue University Press, 1991).

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Apresentação

kins” (um favorito de neurocientistas e linguistas)3; invocações a “Funes, o memorioso”, para apresentar sistemas de numeração4; e há pouco tempo me surpreendeu uma citação de “O livro de arena”, num artigo sobre a segregação de misturas granulares5. Em todos esses casos, trata-se de exemplos metafóricos que dão brilho à prosa opaca das explicações técnicas. No entanto, uma notável exceção constitui “O jardim dos caminhos que se bifurcam”, onde Borges propõe sem sabê-lo (não poderia ter sabido) uma solução para um problema da física quântica ainda não resolvido. “O jardim...,” publicado em , antecipa-se de maneira praticamente literal à tese de doutorado de Hugh Everett III, publicada em  com o título Formulação da mecânica quântica por meio de estados relativos 6, e que Bryce DeWitt haveria de popularizar como “A interpretação dos muitos mundos da mecânica quântica” (“The ManyWords interpretation of Quantum Mechanics”). A curiosa correspondência entre um conto e um trabalho de física é o objeto do presente artigo.

Os caminhos quânticos As leis da mecânica quântica descrevem o comportamento do mundo microscópico; um mundo no qual os objetos são tão 3 S. Pinker, How the mind works (Nova York, W. W. Norton, 1997). 4 P. Morrison, “The Physics of Binary Numbers”, Scientific America, fev. de 1996, p. 130. 5 H. A. Makse et al., “Dynamics of granular stratification”, Physical Review E., vol. 58, 1998, p. 3.357. 6 H. Everett III, Reviews of Modern Physics, vol. 29, 1957, p. 454.

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leves que a pressão de um raio de luz, por tênue que seja, pode ocasionar deslocamentos bruscos. Esses objetos — átomos e moléculas invisíveis a olho nu — se movem e interagem uns com os outros de uma maneira qualitativamente distinta da forma como se movem e interagem as bolas de tênis, os automóveis, os planetas e o resto da fauna do mundo visível. Vejamos como. Tanto na descrição do mundo microscópico como na descrição do mundo macroscópico é útil falar do estado de um objeto. Um estado possível de uma bola de tênis é: em repouso, ao lado da rede. Outro estado possível é: a um metro do solo e movendo-se para cima, a uma velocidade de um metro por segundo. Nesta linguagem, especificar o estado da bola de tênis em um momento dado é então indicar sua posição e sua velocidade nesse momento. As leis da mecânica clássica, enunciadas por Isaac Newton, permitem, dado o estado da bola de tênis em um instante inicial, predizer o estado da bola de tênis em todo instante posterior. A sequência de estados não é nada mais que a trajetória da bola de tênis. Em mecânica quântica essa descrição não funciona. Os átomos e outras partículas microscópicas não admitem uma descrição na qual indicar o estado da partícula em um momento dado corresponda a indicar a velocidade e a posição: em mecânica quântica, especificar o estado de uma partícula em um momento dado é indicar certa função que contém a probabilidade de que a partícula esteja em um certo lugar, com uma certa velocidade. As leis da mecânica quântica, enunciadas neste caso por Erwin Schrödinger e Werner Heisenberg, permitem calcular as mudanças temporais dessa função de probabilidade (ou, em termos mais técnicos, da função de onda). As mudanças de estado não são mudanças de posição, mas sim mudanças da função de onda. Deparamos, 

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Apresentação

assim, com uma das revoluções conceituais da mecânica quântica: a perda da ideia de trajetória em favor de uma descrição em termos das probabilidades das trajetórias. Mas a história não termina aí. Afinal de contas, frequentemente, em nosso mundo cotidiano, deparamos com situações nas quais o acaso joga um papel crucial e cuja descrição requer uma linguagem probabilística. Com o objetivo de comparar duas visões, a clássica e a quântica, consideremos o mais simples dos experimentos aleatórios do mundo macroscópico: Alicia atira ao ar uma moeda e a retém em sua mão fechada. Maria deve predizer se a moeda que Alicia oculta em sua mão traz cara ou coroa voltada para cima. Do ponto de vista de Maria, o estado da moeda (esqueçamos neste momento sua velocidade) poderia descrever-se por uma função de probabilidade (clássica) que indica que cada estado possível, cara ou coroa, tem uma probabilidade de . Embora Maria tenha que esperar que Alicia abra a mão para saber se a face da moeda voltada para cima é cara ou coroa, é “óbvio” que ocorreu uma, e somente uma, das duas possibilidades, e que a descrição probabilística neste caso quantifica a ignorância que Maria tem do estado ou da posição da moeda. Quando Alicia abre a mão, Maria comprova que a moeda traz, digamos, coroa voltada para cima. Por um lado, podemos falar também da mudança de estado da memória de Maria, que passou da ignorância de como caiu a moeda para a comprovação de que caiu com coroa voltada para cima. Por outro lado, no processo de observação, o estado da moeda não mudou: a moeda havia apontado coroa e a observação somente revelou um resultado que existia de antemão. Comparemos esse experimento com seu equivalente microscópico. Ainda que não existam moedas microscópicas, existem sistemas (átomos) que podem estar em algum de dois estados 

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mutuamente excludentes. O leitor experiente reconhecerá que estou falando do spin de um átomo, que pode assumir dois valores: “para cima” e “para baixo”. Digamos que temos um átomo em uma “caixa” fechada (que faz o papel da mão de Alicia) e que sabemos que a função de onda do átomo corresponde a  para cima e  para baixo. Numa analogia com a moeda de Alicia, se abrirmos a caixa, veremos o átomo em uma das duas possibilidades, e se repetirmos muitas vezes o experimento, preparando o átomo no mesmo estado inicial, comprovaremos que aproximadamente a metade das vezes o spin está para cima e quase a metade das vezes, para baixo. Até aqui, as duas visões probabilísticas coincidem. No entanto, a mecânica quântica admite a possibilidade de que o átomo esteja em uma superposição de estados antes de ser observado e em um estado definido depois de ser observado. Digamos que Maria tem agora um detector capaz de abrir a caixa e observar o spin do átomo. Depois do processo de medição, não só muda a memória de Maria, mas também muda o estado do átomo. A diferença crucial baseia-se no fato de que antes que Maria o observe, o átomo está em uma superposição dos dois estados; e não tem sentido dizer que está ou para cima ou para baixo, porque o átomo está simultaneamente nos dois estados. Essa característica peculiar, que não cabe em nossa intuição, nos coloca diante de outra das revoluções conceituais da mecânica quântica: a perda da existência de uma realidade objetiva em prol de várias realidades que existem simultaneamente. Para Niels Bohr, cuja visão conhecemos como a interpretação de Copenhague e que representa a ortodoxia dominante, as entidades microscópicas diferem das macroscópicas em seu status ontológico; e o problema filosófico acaba aí. Em outras palavras, só tem sentido falar do estado de uma partícula microscópica se esta tiver interagido 

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Apresentação

com um aparato (macroscópico) de medição. Mas então a dificuldade se agrava, porque a teoria quântica pretende ser uma teoria do mundo completa e unificada; e se contém elementos alarmantes que desafiam a intuição num nível microscópico, não existe uma maneira de evitar que esses efeitos propaguem sua infecção no mundo macroscópico. A pergunta central, que resume o problema da medição, ainda hoje não resolvido, pode ser formulada no contexto de nosso exemplo da seguinte maneira: Se tanto Maria como o átomo estão submetidos às leis quânticas, e se o átomo está em uma superposição de estados antes da medição e num estado bem definido depois dela, qual é o mecanismo pelo qual o átomo “elege” um estado e não outro? O consenso generalizado é que a solução desse dilema vai além da mecânica quântica7, extravasando uma das teorias da física com maior poder explicativo e de predição. A única “solução” para o paradoxo estaria na teoria de Everett, que, ainda que proponha uma saída coerente, é demasiadamente rebuscada para o gosto de alguns físicos que a acusam de “placebo verbal”8, “extravagante”9 e de acarretar “uma

7 Ao contrário, no experimento clássico de Alicia e Maria, as leis de Newton são capazes de prever a trajetória da moeda desde o momento em que esta sai da mão de Alicia até o momento em que cai: embora seja um problema muito difícil, se soubermos com absoluta precisão (sobre o que a mecânica newtoniana não impõe restrições) o ângulo e a velocidade com que sairá, e as posições e velocidades das moléculas de ar que se chocarão com a moeda, poderemos em princípio predizer se a moeda cairá cara ou coroa. 8 A. J. Leggett, The Problems of Physics (Oxford, Oxford University Press, 1987, p. 172). 9 J. S. Bell, Speakable and unspeakable in quantum mechanics (Cambridge, Cambridge University Press, 1987, p. 133).

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bagagem metafísica exagerada”10. Chegamos à encruzilhada central do labirinto: ou aceitamos que a mecânica quântica é incompleta ou aceitamos a controversa teoria de Everett e DeWitt, na qual o mundo seria precisamente o labirinto de Ts’ui Pên, que: [...] acreditava em uma série de tempos, em uma rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cruzam ou que secularmente se ignoram abarca todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; em alguns, você existe e eu não; em outros, eu existo e você não; em outros, nós dois existimos. (Obras Completas I, p. )

As bifurcações de Ts’ui Pên e as ramificações de Hugh Everett III No prólogo de Ficções, Borges nos adverte de que “O jardim dos caminhos que se bifurcam” é um conto policial. Yu Tsun, espião e protagonista da história, deve transmitir o nome de uma cidade aos oficiais alemães. Acossado pelo implacável capitão Richard Madden, decide comunicar sua mensagem matando o sábio sinólogo Stephen Albert, porque seu sobrenome é igual ao nome da cidade que os alemães têm que atacar. Assim, quando os diários britânicos publicassem a notícia do assassinato de Albert por mãos desconhecidas, os alemães receberiam a mensagem. Yu Tsun encontra o endereço da casa de

10 Ver, por exemplo, A. Rae, “Chapter 5”, Quantum physics, illusion or reality? (Cambridge, Cambridge University Press, 1986).

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