Trabalhadores na cidade

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Universidade Estadual de Campinas Reitor Fernando Ferreira Costa Coordenador Geral da Universidade Edgar Salvadori de Decca

Conselho Editorial Presidente Paulo Franchetti Alcir Pécora – Arley Ramos Moreno Eduardo Delgado Assad – José A. R. Gontijo José Roberto Zan – Marcelo Knobel Sedi Hirano – Yaro Burian Junior Comissão Editorial da Coleção Várias Histórias Silvia Hunold Lara (coordenadora) Alcir Pécora – Claudio Henrique de Moraes Batalha Margarida de Souza Neves – Sueann Caulfield Conselho Consultivo da Coleção Várias Histórias Sidney Chalhoub – Maria Clementina Pereira Cunha Robert Wayne Andrew Slenes – Michael Hall Jefferson Cano – Fernando Teixeira da Silva

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Organização

Elciene Azevedo Jefferson Cano Maria Clementina Pereira Cunha Sidney Chalhoub

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ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação T67

Trabalhadores na cidade: cotidiano e cultura no Rio de Janeiro e em São Paulo, séculos XIX e XX / Elciene Azevedo... [et al.]. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2009. 1. História social. 2. Trabalhadores – São Paulo (sp). 3. Trabalhadores – Rio de Janeiro (rj). 4. Cultura. I. Azevedo, Elciene. II. Título. cdd 309.1 301.4442098161 301.4442098153 301.2

isbn 978-85-268-0860-7 Índices para catálogo sistemático: 1. 2. 3. 4.

História social Trabalhadores – São Paulo (sp) Trabalhadores – Rio de Janeiro (rj) Cultura

309.1 301.4442098161 301.4442098153 301.2

Copyright © by Elciene Azevedo et al. Copyright © 2009 by Editora da Unicamp

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COLEÇÃO VÁRIAS HISTÓRIAS

A Coleção Várias Histórias divulga pesquisas recentes sobre a diversidade da formação cultural brasileira. Ancoradas em sólidas pesquisas empíricas e focalizando práticas, tradições e identidades de diferentes grupos sociais, as obras publicadas exploram os temas da cultura a partir da perspectiva da história social. O elenco resulta de trabalhos individuais ou coletivos ligados aos projetos desenvolvidos no Centro de Pesquisa em História Social da Cultura do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (www.unicamp.br/cecult). VOLUMES PUBLICADOS 1 – Elciene Azevedo. Orfeu de carapinha. A trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. 2 – Joseli Maria Nunes Mendonça. Entre a mão e os anéis. A Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. 3 – Fernando Antonio Mencarelli. Cena aberta. A absolvição de um bilontra e o teatro de revista de Arthur Azevedo. 4 – Wlamyra Ribeiro de Albuquerque. Algazarra nas ruas. Comemorações da Independência na Bahia (1889-1923). 5 – Sueann Caulfield. Em defesa da honra. Moralidade, moder nidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). 6 – Jaime Rodrigues. O infame comércio. Propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). 7 – Carlos Eugênio Líbano Soares. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). 8 – Eduardo Spiller Pena. Pajens da casa imperial. Jurisconsultos, escravidão e a Lei de 1871.

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9 – João Paulo Coelho de Souza Rodrigues. A dança das cadeiras. Literatura e política na Academia Brasileira de Letras (1896-1913). 10 – Alexandre Lazzari. Coisas para o povo não fazer. Carnaval em Porto Alegre (1870-1915). 11 – Magda Ricci. Assombrações de um padre regente. Diogo Antô nio Feijó (1784-1843). 12 – Gabriela dos Reis Sampaio. Nas trincheiras da cura. As diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial. 13 – Maria Clementina Pereira Cunha (org.). Carnavais e outras f(r)estas. Ensaios de história social da cultura. 14 – Silvia Cristina Martins de Souza. As noites do Ginásio.Teatro e tensões culturais na Corte (1832-1868). 15 – Sidney Chalhoub, Vera Regina Beltrão Marques, Gabriela dos Reis Sampaio e Carlos Roberto Galvão Sobrinho (orgs.). Artes e ofícios de curar no Brasil. Capítulos de história social. 16 – Liane Maria Bertucci. Influenza, a medicina enferma. Ciência e práticas de cura na época da gripe espanhola em São Paulo. 17 – Paulo Pinheiro Machado. Lideranças do Contestado. A for mação e a atuação das chefias caboclas (1912-1916). 18 – Claudio H. M. Batalha, Fernando Teixeira da Silva e Alexandre Fortes (orgs.). Culturas de classe. Identidade e diversidade na formação do operariado. 19 – Tiago de Melo Gomes. Um espelho no palco. Identidades sociais e massificação da cultura no teatro de revista dos anos 1920. 20 – Edilene Toledo. Travessias revolucionárias. Idéias e militantes sindicalistas em São Paulo e na Itália (1890-1945). 21 – Sidney Chalhoub, Margarida de Souza Neves e Leonardo Affonso de Miranda Pereira (orgs.). História em cousas miúdas. Capítulos de história social da crônica no Brasil. 22 – Silvia Hunold Lara e Joseli Maria Nunes Mendonça (orgs.). Direitos e justiças no Brasil. Ensaios de história social. 23 – Walter Fraga Filho. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). 24 – Joseli Maria Nunes Mendonça. Evaristo de Moraes, tribuno da República.

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25 – Valéria Lima. J.-B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). 26 – Larissa Viana. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América Portuguesa. 27 – Fabiane Popinigis. Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca (1850-1911). 28 – Eneida Maria Mercadante Sela. Modos de ser, modos de ver: viajantes europeus e escravos africanos no Rio de Janeiro (1808-1850). 29 – Marcelo Balaban. Poeta do lápis: sátira e política na trajetória de Angelo Agostini no Brasil Imperial (1864-1888). 30 – Vitor Wagner Neto de Oliveira. Nas águas do Prata: os trabalhadores da rota fluvial entre Buenos Aires e Corumbá (1910-1930). 31 – Elciene Azevedo, Jefferson Cano, Maria Clementina Pereira Cunha, Sidney Chalhoub (orgs.). Trabalhadores na cidade: cotidiano e cultura no Rio de Janeiro e em São Paulo, séculos XIX e XX.

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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ............................................................................................ 11 1 COSTUMES SENHORIAIS ESCRAVIZAÇÃO ILEGAL E PRECARIZAÇÃO DA LIBERDADE NO BRASIL IMPÉRIO Sidney Chalhoub .......................................................................................... 23 2 A METRÓPOLE ÀS AVESSAS COCHEIROS E CARROCEIROS NO PROCESSO DE INVENÇÃO DA “RAÇA PAULISTA” Elciene Azevedo ............................................................................................ 63 3 NEGROS DO PORTO TRABALHO, CULTURA E REPRESSÃO POLICIAL NO RIO DE JANEIRO, 1900-1910 Erika Bastos Arantes...................................................................................... 107 4 RAPARIGAS E MEGANHAS EM SANTANA (RIO DE JANEIRO, 1905 ) Lerice de Castro Garzoni ............................................................................. 157 5 DOS USOS DA LEI POR TRABALHADORES E PEQUENOS COMERCIANTES NA CORTE IMPERIAL ( 1870 - 1880 ) Juliana Teixeira Souza .................................................................................... 189 6 A CIDADE DOS CORTIÇOS OS TRABALHADORES E O PODER PÚBLICO EM SÃO PAULO NO FINAL DO SÉCULO XIX Jefferson Cano ............................................................................................. 221 7 A GEOGRAFIA ASSOCIATIVA ASSOCIAÇÕES OPERÁRIAS, PROTESTO E ESPAÇO URBANO NO RIO DE JANEIRO DA PRIMEIRA REPÚBLICA Claudio H. M. Batalha .................................................................................... 251

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8 CLUBES RECREATIVOS ORGANIZAÇÃO PARA O LAZER U a s s y r d e S i q u e i ra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2 7 1 9 “ACONTECE QUE EU SOU BAIANO” IDENTIDADES EM SANTANA – RIO DE JANEIRO, NO INÍCIO DO SÉCULO XX Maria Clementina Pereira Cunha ...................................................................... 313 SOBRE OS AUTORES ..................................................................................... 357

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A P R E S E N TAÇ Ã O A série de livros à qual pertence mais este leva o título de “Várias histórias”, alcunha apanhada em coletânea de contos de Machado de Assis. Era próprio dele, Machado, inventar motivos para a decisão de juntar, numa lombada, escritos de origem diversa, ou que assim pareciam aos outros, se não a ele mesmo. Havia certa graça em tais introitos, que não custa revisitar. Em Papéis avulsos, o título negava unidade ao livro, impressão logo desfeita numa filigrana retórica: “a verdade é essa, sem ser bem essa”. Em seguida, diz-se que os textos reunidos são como “pessoas de uma só família, que a obrigação do pai faz sentar à mesma mesa”. Noutro volume, Várias histórias precisamente, consta a “advertência” de que as histórias ali coligidas “foram escolhidas entre outras, e podiam ser acrescentadas, se não conviesse limitar o livro às suas trezentas páginas”. Ademais, serviriam para “passar o tempo”. Já em Páginas recolhidas a variedade do que aparece justifica-se por meio de trecho de Montaigne: “Quelque diversité d’herbes qu’il y ayt, tout s’enveloppe sous le nom de salade” [“Qualquer que seja a diversidade de ervas, tudo se inclui sob o nome de salada”]. Aí temos, de fato, o mote que recobre os outros e explica tudo. Este livro que ora servimos ao leitor é uma salada, pois tal conceito contempla a ideia de unidade na combinação de ingredientes diversos em quantidade e proporção regradas. Unidade, diversidade, equilíbrio. O presente volume origina-se de pesquisas realizadas no âmbito de projeto coletivo sobre cotidiano e cultura de trabalhadores nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo de meados do século XIX às primeiras décadas do século XX. Em tempos idos, descrever-se-ia semelhante investigação como estudo da “transição da escravidão ao trabalho livre”. Se o fizéssemos nós, agora, reco-

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nheceríamos o que não se pretende negar, qual seja a precisão de enxergar esse processo histórico como um conjunto abrangente e estruturado de transformações que resultaram nas cousas tais como são, ou se dão a ver, em nossa contemporaneidade. Ao glosar a palavra “transição”, prática aliás generalizada na historiografia recente, convida-se a uma visada ajustada à observação da experiência de indeterminação pertinente aos sujeitos que viveram e testemunharam essas mudanças históricas, interpretando-as eles próprios de modos diversos e contraditórios. A noção de “cotidiano” remete ao que há de repetitivo nas atitudes e nos comportamentos de nossas personagens, assim como ao procedimento frequente por parte deste grupo de historiadores sociais de coletar fontes em série, mas que permitam também a leitura lenta dum ou doutro caso, em busca do detalhe inesperado ou imprevisto que às vezes ilumina aspectos abrangentes dos problemas abordados. “Cultura” é palavra mais esquiva no uso hodierno de historiadores, plasma que se ajusta a não importa o que se queira, desde que se queira. Neste volume, a palavra remete às formas de conceber e articular experiências coletivas em práticas e instituições específicas, que expõem os nexos de determinado processo histórico sem excluir a interpretação divergente deles: maneiras compartilhadas de lidar com o problema da polícia nas cidades; de reivindicar direitos à moradia e ao trabalho autônomo a partir de noções tradicionais de reciprocidade e obrigações paternalistas; de arremedar em canções a divisão simplista do mundo em trabalhadores e vadios, mulheres honestas e prostitutas, até em baianos e cariocas..., como se verá. As personagens que nos interessam são “trabalhadores”, vocábulo que cria alguns problemas no mesmo instante em que arreda outros. “Trabalhadores” são eles, todos, para baralhar de vez a separação rígida entre escravidão e liberdade, cativos e proletários. Movimento analítico tenso este, é forçoso reconhecer, pois diferentes eram eles, escravos e trabalhadores ditos livres. No horizonte da escravidão a ficção que fundamentava a exploração do trabalho era a dependência pessoal, enfeixada na condição de propriedade, de cousa tida e havida, conferida ao escravizado. No

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mundo sem escravidão, mas muita vez coetâneo dela, permeado de início por ideias e práticas incertas sobre como ordenar o trabalho, fincou-se aos poucos a fantasia da liberdade do trabalhador, livre para ir e vir ao sabor do mercado, deus caprichoso do desemprego e da precariedade em meio a estruturas supostamente impessoais de vigilância e controle social. Liminar muita vez a circunstância dos sujeitos, escravos, ainda que em liberdade condicional, homens e mulheres livres, porém detidos por suspeição de que fossem escravos, trabalhadores escravos e livres presos porque não se lhes apresentavam senhores ou patrões, fugitivos os primeiros, vadios os outros. Realidades imbricadas, confusas, essas da escravidão e da dita liberdade, que urge, pois, distinguir sem secionar. “Trabalhadores”, no plural, recurso retórico que mal esconde o desconforto de encapsular tanta complexidade numa palavra, criando omissões e silêncios que se nos impõem, apesar da desinência morfológica indicativa da possibilidade de dois gêneros e número ilimitado de membros. Trabalhadores e trabalhadoras, personagens definidas ou não, na circunstância, pelo mundo do trabalho ansiosamente imaginado por autoridades, patrões. Esta coletânea decerto se ocupa de gente de vária espécie em momentos diversos de suas vidas, flagrada ou não na labuta diária, supostos vadios, prostitutas, criminosos, talvez alguns doudos, sambistas e sambeiros, pândegos aos magotes, pobres em geral. Gente, enfim, que, para ver de outra perspectiva, analítica e política, se divertia, transgredia, namorava, brigava, dançava, até trabalhava, pois que se vivia também na passagem entre prazeres e afazeres de múltiplos tipos. Decorre daí a prática nossa, dos historiadores aqui reunidos, de ver política na organização de trabalhadores em sociedades de resistência, na sua presença em comícios, greves, mas não menos em clubes dançantes, carnavalescos, esportivos, até mesmo em atos individuais ou de pequeníssimos grupos que exprimiam maneiras coletivas de ver determinadas situações — oportunidades de recurso às leis, por exemplo, ou estratégias de negociação ou confronto com a polícia. Trabalhadores “na cidade”, pertinentes a espaços urbanos particulares, Rio de Janeiro e São Paulo; em tempo de larga dura-

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ção no conjunto, meados do século XIX até as primeiras décadas do século XX, mas circunscrito no varejo, em cada capítulo. Nos primórdios do projeto coletivo de pesquisa que resultou neste livro, imaginávamos delimitar a análise a lugares específicos, à freguesia de Santana no Rio, ao Bexiga em São Paulo. Estratégia gorada por razões atinentes ao percurso da investigação empírica, obstaculizada às vezes por motivos burocráticos alheios à pesquisa histórica, e ainda que Bexiga e Santana, em especial Santana, apareçam de modo conspícuo em alguns dos capítulos da coletânea, ou em parte deles. Lograda ademais por problemas de intelecção do grupo de pesquisadores, que logo percebeu a artificialidade do procedimento de secionar por ruas, bairros ou freguesias espaços muitíssimo interligados no cotidiano dos homens e mulheres estudados. A localização das personagens na cidade imprime dinâmica própria aos seus movimentos, em passagem contínua do trabalho ao botequim, deste à moradia, de volta à jornada de trabalho, esticada em rega-bofe no clube dançante ou em assembleia de sociedade operária, mais visita noturna ao terreiro de candomblé — muito disso realizado em caminhada por meia dúzia de ruas ou quarteirões, se tanto. Por fim, Rio de Janeiro e São Paulo, cidades com histórias singulares e destino comum, imagens simplificadoras da presença negra numa, imigrante noutra, para dar tudo no mesmo universo de injustiça social, espaços urbanos segregados e desigualdade racial constitutivos de ambas hoje em dia. Resta-nos apresentar aos leitores os capítulos do livro e a lógica da sequência deles. A coletânea abre com texto de Sidney Chalhoub, que revisita o problema da política de domínio numa sociedade escravista, em particular quanto às suas especificidades na Corte imperial nas décadas de 1830 a 1850. O período em tela é marcado pela prática do tráfico negreiro ilegal, que acarreta a difusão do costume de reduzir à escravidão pessoas livres, originando por consequência uma série de artifícios senhoriais cotidianos para dar aparência de legalidade à propriedade escrava adquirida ao arrepio da lei. O autor argumenta que tal situação condiciona em grande medida a experiência de liberdade possível a pretos e pardos, cujos movimentos na cidade se pautavam pelo risco de

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detenção sob pretexto de serem escravos fugidos, caminho que poderia levá-los de volta ao cativeiro ou ao recrutamento forçado, se provada a liberdade alegada, mediante ausência de padrinho capaz de prestar proteção. Na cidade escravista da primeira metade do século XIX, a alternativa à escravidão, para os negros pobres, era a liberdade precária, possível apenas na órbita da dependência pessoal, sob pena de estada no xilindró por vadiagem — e vadios viravam recrutas às pencas. Esse panorama da dominação senhorial em meio urbano numa sociedade escravista, escrito em grande medida pelo recurso à análise de fontes policiais, oferece contraponto proveitoso aos três capítulos seguintes, que também se debruçam sobre papéis da polícia, porém referentes a período posterior, para abordar segmentos profissionais ou populacionais específicos — a saber, cocheiros e carroceiros, trabalhadores do porto, mulheres pobres detidas sob alegação de vadiagem. No segundo capítulo do livro, Elciene Azevedo estuda cocheiros e carroceiros na cidade de São Paulo nas últimas décadas do século XIX, no intuito de desvendar aspectos de uma memória racializada da história da classe trabalhadora paulista. A autora parte da constatação de que até ao menos a década de 1870 havia uma predominância acentuada de trabalhadores negros no setor de transportes da cidade, a ir e vir pelas ruas em atividade frenética que se tornava cada vez mais objeto de preocupação das autoridades municipais. Nas décadas seguintes, os ofícios ligados ao transporte urbano foram objeto de regulamentação detalhada, buscando-se coibir a autonomia e a desenvoltura dos trabalhadores em sua faina diária, submetendo-os para isso ao controle de fiscais e policiais. Disseminou-se a visão de que os modos de atuação dos escravos e libertos no setor eram responsáveis pelos supostos maus serviços prestados, o que se combinou com a chegada maciça de imigrantes a partir da década de 1880 para produzir a exclusão praticamente total dos negros desse ramo de atividade econômica, fato consumado já no início dos anos 1890. No terceiro e quarto capítulos, voltamos à cidade do Rio de Janeiro, agora no início do século XX, em textos que convergem

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para as relações entre populares e polícia numa região delimitada da cidade, em torno do Campo de Santana, espraiando-se até a zona portuária. Erika Bastos Arantes observa a heterogeneidade existente entre os trabalhadores do porto do Rio, sem deixar de confirmar a forte tradição de presença negra nele ao longo de todo o século XIX, e ainda em vigor na primeira década do século XX, período o qual estuda. A maneira como se organizava o trabalho desses homens, muito marcado pelo seu caráter ocasional e incerto, acarretava a circulação intensa deles nas ruas adjacentes ao porto, revezando-se entre botequins, sociedades de resistência, clubes, rodas de samba e terreiros de candomblé. Por conseguinte, a imagem que emerge das relações com a polícia é bastante conflituosa, pois os meganhas pareciam adotar conceito bastante abrangente de vadiagem, encarcerando transeuntes por dá cá essa palha. Todavia, os trabalhadores do porto encontravam brechas nas tensões entre autoridades policiais e judiciárias, safando-se às vezes de prisões e inquéritos decorrentes de rixas com a polícia local. O capítulo seguinte, de Lerice de Castro Garzoni, prossegue na senda de comprometer de vez a possibilidade de generalizações olímpicas quanto aos padrões de interação entre populares e autoridades policiais e judiciárias, pois deixa ver a complexidade e a variedade das situações encontradas nas fontes históricas coligidas. A autora fecha mais o foco da análise, ao compilar inquéritos e ocorrências policiais referentes à freguesia de Santana apenas para o ano de 1905, no intuito de investigar as relações entre mulheres pobres e agentes encarregados da ordem pública nas redondezas. Aqui também se verifica a tendência da polícia em esgarçar bastante o conceito de vadiagem na abordagem às mulhe res, contudo parece haver maior disponibilidade dos meganhas em negociar a sua autoridade, explicitando em certas ocasiões o seu compartilhamento de valores com as vítimas potenciais de suas ações de vigilância e repressão. Outrossim, Garzoni salienta as ambiguidades na lógica de atuação da polícia à época, pois ela aparentava alternar atitudes pautadas pelo favorecimento ou perseguição pessoal com estratégias mais impessoais de suspeição.

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Os capítulos quinto e sexto abordam o problema de como determinadas políticas públicas interferiam na vida dos trabalhadores, que ao lidar com as contingências criadas por elas forjavam jeitos de se constituírem sujeitos de sua própria história e da cidade na qual viviam. Juliana Teixeira Souza volta-se para questões de lazer e abastecimento, ao acompanhar a concorrência entre estabelecimentos comerciais de diferentes tipos que tinham uma clientela majoritariamente constituída por setores mais pobres da população da Corte na década de 1870. Proprietários de botequins, quiosqueiros e vendedores volantes disputavam a primazia de servir aos fregueses, ao solicitar à Câmara Municipal licença para estender as horas de funcionamento, colocando-se à disposição de boêmios e madrugadores enquanto os concorrentes permaneciam em repouso. A questão do horário de funcionamento de estabelecimentos que tais dividia Câmara Municipal e polícia, a primeira interessada em conceder licenças para recolher taxas, a segunda associando atividade noturna a vadiagem, bebedeira, desordem. Não obstante o caráter da documentação utilizada, toda ela constituída por requerimentos e papéis diversos da Câmara que descrevem rivalidades e disputas entre comerciantes e quiosqueiros, a demanda por serviço em horário estendido e a preços acessíveis é pressuposto dela, firmando a pressão de trabalhadores feito notívagos por direitos básicos de consumidores numa cidade que bulia noite adentro já àquela época. Jefferson Cano, por seu turno, ao relembrar o crescimento assombroso da cidade de São Paulo na virada do século XIX ao XX, focaliza implicações desse processo acelerado de transformações urbanas no que tange às condições de salubridade e à oferta de habitações populares. O autor analisa com minúcia série documental relativa à cobrança de tributos sobre cubículos em cortiços, descobrindo que imigrantes eram proprietários de parte significativa desses estabelecimentos na São Paulo da década de 1890. Em contraste com a situação do Rio de Janeiro no mesmo período, em que se atribuía à presença negra aliada às ruins condições de salubridade a dificuldade para atrair imigrantes de países europeus “civilizados”, em São Paulo os imigrantes chegavam aos montes e logo pareciam assimilados à

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lógica da pobreza urbana, sofrendo com suas epidemias e moradias precárias, porém muitos deles já engajados em tirar partido da situação ao explorar cortiços. Nos capítulos sétimo e oitavo, o tema é a vida associativa dos trabalhadores, seja para o protesto e a reivindicação de direitos ou para o lazer e a pândega. Claudio Henrique de Moraes Batalha estuda os modos como os trabalhadores e respectivas organizações de classe se apropriavam de espaços da cidade do Rio, nas primeiras décadas do período republicano, para realizar seus protestos, comícios e cortejos, atribuindo a tais territórios valores específicos e se apropriando deles segundo lógica singular que o autor denomina “geografia associativa”. Vê-se então que o Campo de Santana, e seu entorno, se constituía lugar mui apreciado para a política operária, pois a repercussão do que lá acontecia no início da República reforçava-se pela presença de ministérios e da própria Presidência da República na área. A situação torna-se mais complexa e variada em decorrência da reforma de Pereira Passos (1903 a 1906), que descentraliza o locus do poder na capital ao valorizar outras regiões do centro da cidade. O autor repara ainda em outros elementos constitutivos do teatro político dos trabalhadores, como o jeito domingueiro de se vestir para a ida a comícios e cortejos, reafirmando-se, assim, a sua disposição para utilizar linguagem e rituais da política estabelecida, porém invertendo-lhe os significados. Em relação ao capítulo que o precede, Uassyr de Siqueira desloca duplamente o tema do associativismo dos trabalhadores, ao nos levar a São Paulo na virada do século XIX ao XX, ao buscar organizações para o lazer e o divertimento. Impressiona a diversidade de atividades patrocinadas por essas associações, que promoviam espetáculos de teatro, festas dançantes e jogos de futebol, mas também conferências sobre temas do momento, além de incentivar a leitura por meio da criação de bibliotecas. Se Claudio Batalha nota divisões entre as correntes operárias quanto aos festejos do Primeiro de Maio, por exemplo, Uassyr de Siqueira observa divergências respeitantes à conveniência da prática do futebol e da frequência a festas dançantes, costumes vistos por alguns como

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conducentes à “imbecilização” dos jovens e à “libidinagem”. De qualquer maneira, os trabalhadores uniam-se para o divertimento e a solidariedade segundo critérios variados, que poderiam ser nacionais ou raciais, atinentes à vizinhança ou a interesses compartilhados — esportivos, dançantes, carnavalescos —, circulando ademais entre sociedades sindicais e recreativas sem ver nisso contradição ou problema, ao contrário do que aparecia certas vezes em pronunciamentos de líderes operários. O último capítulo, da lavra de Maria Clementina Pereira Cunha, fecha a coletânea ao perpassar e articular vários dos temas presentes em capítulos anteriores, atravessando-os no mote da música e da constituição de identidades em torno do samba carioca no início do século XX. A autora vira a lupa para o universo das rivalidades entre músicos populares nas origens míticas do samba no Rio de Janeiro. Míticas, decerto, no sentido de se haver estabelecido a versão heróica de que o samba surgira no Rio de Janeiro na esteira da resistência popular e apoiado nos laços de solidariedade de velhos baianos radicados na cidade, que agiriam em defesa de tradições estruturadas em torno de terreiros de santo e casas de tias festeiras. A crítica a essa visão — tributária dos esforços da intelectualidade da época para produzir símbolos da nacionalidade, popularizada pela cultura de massas e tornada “oficial” na era de Getúlio Vargas — desemboca em análise detalhada de ocorrências policiais referentes à freguesia de Santana no início do século XX, para permitir acompanhar o contingente egresso da diáspora baiana que circulava nas ruas e nos quarteirões da cidade do Rio comumente associados às origens do samba. Descobre-se então que a presença baiana era muito rarefeita, em tudo desproporcional à importância a ela atribuída no imaginário religioso e musical que, apesar de surgido à época, se robusteceu desmesuradamente depois. Ao recorrer às letras dos sambas do período, que comentavam muita vez as tensões entre músicos “cariocas” e “baianos” — categorias simbólicas que pouco tinham a ver com o lugar de nascimento dos indivíduos —, a autora deixa ver também a complexidade dos modos de vida de homens e mulheres pobres daquele tempo e lugar, a construir eles próprios

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reflexões abrangentes sobre seu cotidiano e sua cultura. Assim, por exemplo, a aglomeração de gente nas moradias populares e os rolos provocados por tal situação viram tema de samba antológico de João da Bahiana; a confusão entre seresteiro e capadócio, cara às autoridades, torna-se outro assunto para reflexão, forçando nossas personagens a recorrer às representações do mundo do trabalho, a “viração”, para não passar por vadio e terminar em visita compulsória à “chácara” (Casa de Detenção)1. Chamar “viração” ao trabalho é tique interessante, pois torce o sentido esperado das cousas ao descentralizar a ideia de existências ordenadas por esse conceito, supostamente capaz de conferir narrativa mestra, logo unívoca, à história de nossas personagens. Por conseguinte, restabelece a instabilidade das denominações, a indeterminação do futuro e a luta por significados no centro da vida deles e de nossas narrativas: por um lado, João da Bahiana reconhecia que entre eles, sambistas, “todos nós trabalhávamos”, noção que se completa, ou contradiz, em Dudu das Neves, “trovador da malandragem”, que declarava gostar “do samba gostoso... mas do trabalho... isso não!”. A condição de trabalhador é circunstância de quem existencialmente se diz sambista. De fato, as versões coexistem e permitem reafirmar dois horizontes de interpretação constitutivos deste livro, que lhe conferem unidade na diversidade, para retomar a alegoria da salada, da qual partimos. Primeiro, se chamamos “trabalhadores” às nossas personagens, é por reconhecer a realidade da coação que sofriam para se definir enquanto tal, ao mesmo tempo em que constatamos as formas de eles lidarem com semelhante situação, apropriando-se do conceito de trabalho para se contrapor aos seus algozes, fossem patrões ou autoridades, ou arrebatando-lhes o dito para exposição debochada em cantorias diversas. Se o “trabalho” se constitui nexo de muitas vidas, não o é sem enfrentamentos e incertezas, o que desautoriza narrativas unívocas desses homens e mulheres, trabalhadores que sejam, a contragosto, até mesmo a contrapelo. Segundo, não tratamos de “transição” entre mundos, nem sequer de histórias lacunares ou incompletas. Os sujeitos das histórias contadas neste livro se pautam por experiências próprias, desconhecem razões

TRABALHADORES NA CIDADE.indb 20

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