Revista Justiça & Cidadania

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2 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2008


EDIÇÃO 97 • AGOSTO de 2008

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1o Prêmio tribunal de justiça do estado de são paulo

A IMPORTÂNCIA DA PROVA NO PROCESSO DO TRABALHO

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Foto de capa: Sandra Fado / STJ ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES Diretor jurídico ERIkA BRANCO SECRETÁRIA DE REDAÇÃO DIOGO TOMAZ DIAGRAMAÇÃO CLEONICE DE MELO ASSISTENTE DE EXPEDIÇÃO EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLI RIO DE JANEIRO - RJ - CEP: 20020-906 TEL./FAX (21) 2240-0429 SUCURSAIS SÃO PAULO RAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765 / 13°ANDAR SÃO PAULO - SP - CEP: 01311-200 TEL. (11) 3266-6611 PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO, 1038 / SL.1102 ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO CENTRO - Porto Alegre - RS CEP: 90010-272 TEL. (51) 3211-5344 SALVADOR FREDERICO DINIZ GONÇALVES RUA BARÃO DE ITAPUÃ, 60 / CONJ. 301 CENTRO EMPRESARIAL PORTO CENTER Salvador - BA - CEP: 40140-060 TEL. (71) 3264-3754 BRASÍLIA ARNALDO GOMES SCN - Q.1 – Bl. E / Sl. 715 EDIFÍCIO CENTRAL PARK BRASÍLIA - DF - CEP: 70711-903 TEl. (61) 3327-1228/29 CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL. (61) 9674-7569

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Menos uma dor de cabeça para lula

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CONSELHO EDITORIAL Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES Antonio Carlos Martins Soares Antônio souza prudente Arnaldo Esteves Lima arnaldo Lopes süssekind aurélio wander bastos Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso CESAR ASFOR ROCHA DALMO DE ABREU DALLARI darci norte rebelo denise frossard Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA Enrique ricardo lewandowski Eros Roberto Grau fernando neves Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins Jerson Kelman Joaquim Alves Brito josé augusto delgado JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO José Eduardo carreira Alvim luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello Massami Uyeda MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes nEY PRADO Paulo Freitas Barata Sergio Cavalieri filho Sylvio Capanema de Souza thiago ribas filho

TRANSPOSIÇÃO do rio são francisco

44 SUMÁRIO

A ruptura do Estado DE DIREITO

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O Defensor de um judiciário moderno

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O Poder Judiciário

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“JOINT VENTURe” – responsabilidade no fracasso do empreendimento

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Roubo contra passageiro embarcado – Responsabilidade Civil

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ORIENTE MÉDIO: A PAZ QUE SE IMPÕE OU A GUERRA SINISTRA

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2008 E O JUDICIÁRIO INDEPENDENTE: CRIAÇÃO E AFRONTA

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O direito constitucional de dirigir embriagado

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Alimentos gravídicos?

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Rioprevidência: os desafios do assessoramento jurídico de uma autarquia em reestruturação

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A ruptura do Estado DE DIREITO

“A população ordeira e trabalhadora, que vive nos morros e favelas, não pode continuar sujeita aos desmandos das súcias criminosas que comandam essas infelizes e desgraçadas comunidades.”

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eminente e consagrado jornalista Carlos Chagas publicou em sua coluna no Tribuna da Imprensa, uma verrinosa crítica à situação que se vivencia hoje no País; sobre a falência do Estado de Direito raiando o anarquismo, cujo teor principal transcrevemos, para conscientização e espanto dos nosso leitores. “Conclui-se ser desleal a concorrência entre o Estado de Direito e o crime organizado. Porque, se procurar emprego honesto, um jovem desfavorecido economicamente, com pouca ou nenhuma escolaridade, morador da favela, encontrará no máximo o salário mínimo de 415 reais por mês. Caso decida aderir aos bandidos que controlam e até infernizam sua vida, disporá de muito melhores opções. Para ingressar nas Forças Armadas, de preferência pará-quedista ou fuzileiro naval, a fim de preparar-se para transferir conhecimentos bélicos ao narcotráfico, além dos vencimentos e do apoio dado pelas corporações oficiais, receberá do crime organizado um abono de 300 reais por semana. Conseguindo inscrever-se numa quadrilha qualquer, seja como ‘instrutor’, ‘avião’, ‘soldado’ ou ‘fogueteiro’, sua remuneração poderá chegar a 1.500 reais, também por semana. Após obtida essa experiência, terá de ser aprovado em diversos ‘cursos’, como ‘guerra na selva’, ‘guerrilha urbana’, ‘natação em esgoto’ e similares. Depois, o céu é o limite, como ‘gerente’, ‘empresário’ e ‘controlador de ponto de venda de drogas’. 4 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2008

Dá para o humilhado, desprezado e indignado menino hesitar? Do Poder Público sofre apenas abandono e truculência, quando a Polícia sobe o morro. Do narcotráfico, proteção para ele e sua família, remédios, alimentação, até ajuda em dinheiro para velórios, e festinhas de aniversário. Seus valores são outros, ainda que o risco infinitamente maior. Mas o que tem a perder o indigitado jovem, senão a própria vida à qual dedica importância relativa? Esta realidade explica porque o crime organizado cresce, desce o morro e começa a dominar o asfalto. Fazer o quê, do lado de cá? Os policiais que não se corrompem ganham bem menos do que seus adversários. Sofrem mais, até porque boa parte deles obriga-se a morar na favela, mesmo escondendo sua condição profissional e sua farda. Em termos de armamento, perdem sempre. Para não falar na permanente intranqüilidade. Muitos ingressam nas milícias, engodo logo desvendado, pois eles utilizam os mesmos métodos dos criminosos, explorando as comunidades e submetendo-as a constrangimentos parecidos, tudo dependendo da altura em que se encontram os casebres: mais para cima, submetem-se ao narcotráfico; na subida do morro, às milícias. Solução que não dispõem sequer os candidatos a prefeito que insistem em fazer campanha nas favelas, a maior parte repelida ou sujeita a pedir licença aos dois lados. É a falência do Estado de Direito.”


Foto: Sandra Fado

O crime organizado já desceu o morro!

O que está acontecendo no Rio de Janeiro, com os bandidos descendo dos morros e enfrentando diariamente a Polícia, já não constitui caso isolado. É o enfrentamento contra o Poder constituído da Nação. Os ultrajes aviltantes cometidos à luz do dia ultimamente contra a Justiça Eleitoral, escorraçada, juntamente com candidatos das favelas, pelos chefes das quadrilhas de traficantes e milicianos, não podem continuar impunes sob pena da implantação permanente da desordem e do regime da anarquia. A brutalidade dos crimes cometidos já ultrapassou a delinqüência comum, impondo-se a tomada rápida, enérgica e fulminante de atitudes que ponham cobro a essa iniqüidade que afronta e denigre toda a nacionalidade brasileira. A população ordeira e trabalhadora, que vive nos morros e favelas, não pode continuar sujeita aos desmandos das súcias criminosas que comandam essas infelizes e desgraçadas comunidades. Os que, vez ou outra, se opõem e rebelam contra os criminosos correm o risco de serem acometidos por atos de barbárie, como terem seus corpos queimados ainda vivos. O mártir dos jornalistas, Tim Lopes, que teve a coragem

de subir ao morro para investigar e escrever sobre o tráfico, terminou cruelmente trucidado e queimado. Apesar das investidas da Polícia Militar e da vinda das tropas do Exército, a imprensa continua impedida de freqüentar e trabalhar nos morros e favelas, por ordem e determinação das chefias das quadrilhas. O preceito constitucional do direito de ir e vir é letra morta. A contundente matéria do jornalista Carlos Chagas reflete implicitamente que parte da culpa dos infortúnios, misérias e desgraças que ocorrem nos morros e favelas do Rio de Janeiro é também dos governos federal, estadual e municipal que, desde a abolição da escravatura e durante toda a vida republicana até os dias de hoje, descuraram no atendimento social e educacional dos forçados moradores dessas comunidades, com destaque especial à falta de condições de manutenção do emprego. As favelas cresceram desordenadamente, sem o mínimo de atendimento urbanístico, saneamento e outras necessidades pequenas, mas imprescindíveis. As vias de acesso praticamente inexistem, impossibilitando pelos estreitos caminhos entre os barracos a subida de uma ambulância, do Corpo de Bombeiros e até da Polícia. Essa pobre gente sempre foi esquecida, a não ser no período das eleições. E isto, infelizmente, vai continuar a piorar, com a descida do morro, pelo crime, cada vez maior. De nada adiantará o enfrentamento. Continuarão as mortes, o tráfico e as milícias, porque o crime continuará enquanto perdurar a falta de assistência social governamental ao mínimo necessário para redimir essa hecatombe bárbara que domina os morros e favelas, e recrudescem nas suas investidas violentas contra inocentes crianças, homens e mulheres que residem na parte melhor aquinhoada da indefesa sociedade. O município do Rio de Janeiro corre o risco de ver surgir um novo “Antônio Conselheiro” ou um “Lampião modernizado”, e aí, trágica e desgraçadamente, teremos uma guerra anárquica na cidade.

Orpheu Santos Salles Editor

* Em tempo: A série de artigos sobre acontecimentos ocorridos em 1964 continuará na próxima edição. 2008 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5


Foto: Sandra Fado

Presidente do STJ, ministro César Asfor Rocha

O Defensor de um judiciário moderno Em seus votos, o ministro César Asfor Rocha costuma calcular o impacto das questões no cotidiano do cidadão comum. Mais do que a letra da lei, observa princípios ao julgar.

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Pleno do Superior Tribunal de Justiça elegeu por unanimidade, o ministro César Asfor Rocha para a presidência da Corte e do Conselho da Justiça Federal, o ministro Ari Pargendler para ocupar a vice-presidência, e o ministro Gilson Dipp para o cargo de Corregedor Nacional de Justiça. César Asfor Rocha será o décimo-terceiro presidente do STJ. Advogado de carreira, integrante do STJ desde maio de 1992, indicado pelo Conselho Federal da OAB, exerceu desde junho de 2007, o cargo de Corregedor Nacional de Justiça. Especializado em Direito Civil e Público, integrou a Quarta Turma e a Segunda Seção – de Direito Privado. Magistrado de perfil dinâmico e inovador, César Rocha é defensor de um Judiciário moderno, que atenda prontamente aos anseios da sociedade, e de uma Justiça mais ágil e democrática. O Presidente eleito persegue a conciliação entre valores como a celeridade e a segurança, imprescindíveis na prestação jurisdicional. Como Corregedor-Geral eleitoral, durante as eleições de 2006, foi relator de processos que alteraram o quadro político nacional. Em um deles endureceu o jogo com candidatos que tiveram suas contas rejeitadas por tribunais


“Sempre entendi que devemos prestigiar as instâncias ordinárias, reconhecendo o grande valor dos colegas magistrados de primeiro grau. Estarei em contato permanente com as associações dos magistrados e dos servidores.”

de contas quando do exercício anterior de cargo público, prevalecendo no TSE o entendimento de considerar inelegível o candidato com pendências nesses tribunais. No final de 2006, foi relator da consulta que estabeleceu que o mandato dos parlamentares pertence aos partidos, e não aos eleitos. A decisão, tomada pela maioria do colegiado do TSE, e depois confirmada pelo Supremo Tribunal Federal, foi considerada fundamental para reforçar o princípio da fidelidade partidária e para reprimir o troca-troca entre os partidos. O ministro César Rocha foi um dos precursores no STJ, da luta contra a chamada “indústria da indenização do dano moral”, para impedir que ela ganhasse força no País. Em outro voto que influenciou a vida do cidadão, o Ministro julgou que o Código de Defesa do Consumidor (Lei no 8.078/90) é aplicável aos contratos firmados entre as instituições financeiras e seus clientes nos casos referentes à caderneta de poupança. Quando coordenador do Conselho da Justiça Federal, priorizou a instalação de juizados especiais e a implantação do processo eletrônico, em substituição ao processo-papel. Na Corregedoria Nacional de Justiça, César Rocha tem como uma de suas prioridades combater o desvio de conduta

de magistrados e dotar o Conselho Nacional de Justiça de diagnósticos precisos sobre a realidade do Poder Judiciário. Estão hoje em desenvolvimento na Corregedoria nada menos do que nove projetos que visam coletar informações sobre a situação dos tribunais, dos juízes, dos servidores, do julgamento dos processos e também de uma completa radiografia das serventias extrajudiciais – o Sistema Justiça Aberta. Mestre em Direito, o ministro César Rocha recebeu o título de notório saber pela Universidade Federal do Ceará. É autor dos livros “Clóvis Beviláqua em outras palavras”, - um estudo da obra do grande jurista; e “A Luta pela efetividade da Jurisdição”, no qual defende a utilização dos instrumentos processuais para uma Justiça mais célere e eficaz, adequando-os às necessidades da vida moderna. É co-autor das obras “O Novo Código Civil – Estudo em homenagem ao Professor Miguel Reale” e “Direito e Medicina – Aspectos Jurídicos da Medicina”. Foi eleito membro da Academia Cearense de Letras, na qual ocupará a cadeira 22, antes ocupada por Eduardo Campos. Em seus votos, o ministro César Asfor Rocha costuma calcular o impacto das questões no cotidiano do cidadão comum. Mais do que a letra da lei, observa princípios ao julgar. Em 2006, ao relatar na Quarta Turma um recurso especial no qual ex-empregados da Petrobras – todos com mais de 65 anos e em litígio com a empresa há mais de 15 anos – pleiteavam direito à aposentadoria complementar, o Ministro entendeu que, se aplicado nesse caso, o rigorismo processual resultaria em uma grande injustiça social. Dessa forma, conheceu e deu provimento ao recurso e restabeleceu a decisão proferida pelo juízo de primeira instância, determinando que a Petros desse cumprimento imediato à inclusão dos ex-empregados em seus quadros e pagasse suas aposentadorias. Agradecendo a distinção da eleição para a presidência do Superior Tribunal de Justiça, o ministro César Rocha externou aos seus colegas que a recebia “com a plena consciência de que se trata de uma escolha voluntária que muito me honra e mais ainda me dignifica, na salutar seqüência da antiguidade decrescente dos eminentes integrantes desta Casa” e continuou: “Procurarei, com o maior dos meus empenhos, estar à altura dessa investidura e envidarei todos os meus esforços para manter e ampliar a saudável convivência dos ministros, as boas, respeitosas e profícuas relações com o Congresso Nacional, com a Câmara dos Deputados e com o Senado Federal, de cujas lúcidas e patrióticas contribuições espero e confio obter constantes melhoras da nossa legislação processual, que possam conduzir o STJ ao verdadeiro caminho de suas funções constitucionais, apreciando as questões e as teses de maior relevo para a cidadania do País e fortalecendo a autonomia dos tribunais de justiça e regionais federais no que tange às matérias fáticas eivadas de controvérsias jurídicas, agindo sempre em sintonia com os mesmos elevados propósitos lançados pelo Supremo 2008 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7


Foto: Jose Cruz

“Não hesitarei em buscar conselhos e ponderações dos mais sábios deste Tribunal, os de ontem e os de hoje.”

Tribunal Federal. Sempre entendi que devemos prestigiar as instâncias ordinárias, reconhecendo o grande valor dos colegas magistrados de primeiro grau. Estarei em contato permanente com as associações dos magistrados e dos servidores, daí que sempre estarei com o espírito aberto para conversas com a Associação dos Juizes Federais do Brasil (Ajufe) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Minha experiência no Conselho da Justiça Federal como coordenador, no Tribunal Superior Eleitoral como ministro e corregedor-geral e no Conselho Nacional de Justiça como corregedor nacional deu-me a convicção de que o Brasil dispõe do melhor quadro de juízes do mundo, mas precisamos estabelecer um choque de gestão no Judiciário, afim de que possamos distribuir Justiça a caso concreto, a tempo de que o seu beneficiário desfrute da sua vitória. Manterei com o chefe do Poder Executivo da União e com os seus ministros respeitoso, harmônico e independente relacionamento de ordem institucional, como também com o Ministério Público e os advogados do Brasil, sempre destacando que sou integrante do chamado quinto constitucional, seguro de que este caminho de equilíbrio leva ao bom-senso, aplaina as ambições individuais e faz preponderar o espírito de construção de relações estáveis e elevadamente cívicas. Não hesitarei em buscar conselhos e ponderações dos mais sábios deste Tribunal, os de ontem e os de hoje, os que já se tornaram admiráveis pela prudência e pela magnitude espiritual com que enfrentaram e ainda enfrentam, serenamente, os desafios que são tão próprios da complexidade das funções que desempenhamos. Agradeço mais uma vez a todos e confio em Deus de que tudo nos ocorrerá por uma melhor Justiça.” 8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2008


Foto: CNC

O PODER JUDICIÁRIO Bernardo Cabral Consultor da Presidência do CNC Membro do Conselho Editorial

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s verdadeiros problemas do Judiciário não são, como se pretende apresentar às vezes, apenas a falta de verbas, de prédios, de funcionários, etc., mas também estar o Judiciário formado numa cultura difícil de entender a sociedade e seus conflitos, além de estar bloqueado para internamente discutir e permitir que setores e grupos sociais livremente discutam a efetiva democratização desse ramo do Estado. A nova organização mundial das relações humanas exige do Poder Judiciário o redimensionamento de seu próprio papel, comprometendo-se definitivamente como responsável por prestação jurisdicional mais ampla e eficiente, mais afinada com uma realidade afeita a vertiginosas mudanças. A esta altura, a ninguém se permite ignorar que – princípio básico elementar, sem o qual não sobrevive a mais incipiente democracia –, a Justiça deve ser acessível a todos. Mas a garantia de acesso e de exercício de direitos é responsabilidade também do Executivo e do Legislativo. É tempo, assim, de contar-se com o Estado suficientemente estruturado e aparelhado para tanto; é tempo de proporcionar-se aos menos afortunados, de maneira eficaz, a assistência jurídica integral e gratuita; é tempo, enfim, de as garantias constitucionais saírem do papel, revelando-se como instrumentos concretos e ao alcance de todo e qualquer cidadão. Ao Poder Judicário cumpre, por sua vez, ao interpretar a lei, ato de vontade, assumir a cota de responsabilidade que lhe cabe na promoção da cidadania e da justiça social. Convém estimular a mudança de atitude do Poder Judiciário que, em paralelo com a organização da sociedade civil, deve compreender a democracia participativa como o melhor e mais adequado meio para definição de novas diretrizes. O processo de democratização não se insere, portanto, somente na criação de controles democráticos das atividades que não sejam jurisdicionais, mas, também, de transparência e simplificação das suas atividades. Impõe-se, pois, a reorientação do Judiciário para exercer ativamente atribuições que possibilitem a realização do objetivo principal e último: a concretização inquestionável, e não apenas teórica, virtual, da garantia de acesso à Justiça a todos, indistinta e eficazmente, sem o que qualquer democracia não

passa de caricato arremedo ou mera utopia. Dessa forma, a democratização do Poder Judicário é pressuposto fundamental para que o mesmo seja reconhecido efetivamente pela sociedade civil como um eficiente distribuidor de justiça e, portanto, Poder Estatal. No caso brasileiro, a divulgação da informação crítica acumulada a respeito do Poder Judiciário, por meio de programas que informem a sociedade civil sobre o funcionamento dos órgãos do Judiciário, bem como a confecção e distribuição de jornais e cartilhas para fins de conscientização sobre procedimentos para reivindicação de direitos, são relevantes para a eficiência da atividade jurisdicional. Afinal, não há exercício de direito sem a consciência do Direito e não somos cidadãos se ignoramos a nossa cidadania. Como se vê, não é possível banalizar a discussão sobre o Judiciário, tão relevantes e abrangentes são as questões nela implícitas. Mesmo o afã de promover a tão demandada agilização não justifica a supressão e a ignorância de temas vitais para a verdadeira democratização. Da mesma forma, o ponto candente que é o do controle do Judiciário pela sociedade não pode ficar submetido a um órgão criado “soi disant” para tal fim, sob pena de se empobrecer a possibilidade de concretização de formas democráticas de participação popular na administração da Justiça. Isso porque a essência do regime democrático repousa na existência de uma Justiça forte, independente e livre. Não há registro em nossa história que diga o contrário. O enfraquecimento do Poder Judiciário, sem dúvida, somente estimula o arbítrio e a injustiça. 2008 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9


A IMPORTÂNCIA DA PROVA NO PROCESSO DO TRABALHO

Questões contemporâneas práticas e destacadas sobre a distribuição do encargo probatório no Processo do Trabalho

Aloysio Corrêa da Veiga Ministro do TST

“O Juiz, costumo dizer na escola, está no centro de um minúsculo círculo de luz, além do qual tudo é escuridão: atrás dele o enigma do passado, diante do enigma do futuro. Aquele minúsculo círculo é a prova.” (Francesco Carnelutti)

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Introdução

Estado, ao monopolizar a administração da Justiça, coloca à disposição da sociedade o método abstrato, ideal para solução dos conflitos de interesse. É o processo. O exercício do direito subjetivo de ação, mediante a utilização do procedimento adequado, provoca a jurisdição com fim de buscar o ato processual por excelência, que é a sentença. Nela se consagra a concretude do direito abstrato. O que se quer do juiz é que ele se posicione com relação à aplicação da regra jurídica ao caso concreto. Necessário se torna definir a atuação do juiz nas questões de direito e nas questões de fato. O processo cognitivo, como sucessão de atos na busca da entrega do bem da vida, dependerá sempre da análise do fato controvertido no sentido de formar o convencimento do juiz. A análise do fato dependerá, sempre, do acertamento da verdade. Por isso que, nas questões de direito a atuação do juiz está definida. Iura novit curia. Quanto maior for a cultura do juiz e maior for a quantidade de informações adquiridas pela 10 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2008

eterna pesquisa, melhor atuará. Nas questões de fato, para o acertamento da verdade, a atuação do juiz dependerá de fatores outros, exógenos ao seu conhecimento – que é a prova. Daí, a importância da prova na busca da verdade para chegar ao ato processual por excelência: a sentença que, regra geral, acolherá ou rejeitará o pedido. As sentenças terminativas, por extinguirem ex abrupto a relação jurídicoprocessual, devem ser exceção à regra geral. O espírito romântico, ditado pelo período renascentista, influenciando as Ordenações Filipinas, que vigeu entre nós, ao ressaltar sua importância, assim enunciava: “A prova é o farol que ilumina o juiz nas suas decisões”. A prova, na definição clássica de Laurent, é “a demonstração legal da verdade de um fato”. Sem ela não há convencimento capaz de fazer atuar a jurisdição. O Processo do Trabalho não difere dos demais ramos do Direito Processual. Na aplicação do direito social às relações do trabalho, qualificadas pela lide, para que o juiz possa fazer submeter a vontade da lei ao caso concreto, se torna indispensável que esteja ele convencido da verdade do fato controvertido e relevante para o processo.


Foto: Dirceu Arcoverde / ASCSTST

A prova é pertinente ao Direito Processual na medida em que se destina ao convencimento do juiz e não ao convencimento da parte. O direito material trata da prova do negócio jurídico, como demonstram os arts. 212 e ss. do Código Civil e diz respeito à prova legal. No Direito do Trabalho a regra do art. 464 da CLT estabelece o meio de prova do pagamento de salários, tratando da prova no campo do direito material. O instituto da prova tem prevalência no Direito Processual, em face da provocação da jurisdição, com o fim de solucionar o conflito de interesses segundo a lei. Prova e verdade O juiz no processo tem o dever de buscar a verdade. É através da verdade que o juiz forma o seu convencimento e estará apto a solucionar o conflito de interesses. A descoberta da verdade, portanto, dá ao juiz os elementos indispensáveis para a composição do conflito. Melhor seria que a descoberta da verdade não fosse um ato isolado apenas do juiz. Para as partes existe o dever de colaboração e lealdade, firmando o compromisso na busca da verdade. Da descoberta da verdade surge a certeza. Não existirá mais motivos contrários, de modo que o juiz está apto a julgar. Mittermaier afirma que para existir a certeza, uma das condições essenciais é de que haja “... um esforço sério e imparcial, aprofundando e afastando os meios que tenderem a fazer admitir a solução contrária. Quem quer obter a certeza não fecha a porta à dúvida; pelo contrário, aproveita todos os indícios que o possa conduzir a ela; e é só quando

completamente a tem feito desaparecer que sua decisão se torna irrevogável, e que assenta na base indestrutível da convicção afirmativa”. É necessário, contudo, que se faça a distinção entre certeza e probabilidade. “Certeza”, novamente utilizando Aurélio, é o “conhecimento exato”, e “probabilidade” se traduz no “motivo ou indício que deixa presumir a verdade ou a possibilidade de um fato; verossimilhança”. Conceituando a “probabilidade” Mittermaier se manifesta no sentido de que “...dá-se ‘probabilidade’ quando a razão, apoiando-se em graves motivos, considera um fato verdadeiro, sem que, entretanto os motivos sérios em contrário estejam completamente aniquilados. Resulta ela de que as provas, que deveriam por si mesmas estabelecer a verdade, se não apresentam na espécie com todas as condições requeridas, ou que, em face dos motivos que fornece, outros se erguem em sentido inverso e também muito fundados, ou, enfim, de que a convicção repousa apenas sobre dados, que, apesar de sua reunião, não são ainda bastante poderosos para gerar a certeza...”. A verdade, portanto, gera a certeza formando a convicção do juiz para a sentença. A verdade, no entanto, não é regra absoluta. Muitas vezes, para a eficácia da sentença, é bastante a verossimilhança dos fatos. Objeto da prova Provam-se os fatos controvertidos, já dizia Eduardo Couture, com a excepcionalidade contida no art. 334 do 2008 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11


“Se o ordinário se presume, o extraordinário se prova: eis o princípio supremo para o ônus da prova; princípio supremo que chamamos ontológico, enquanto encontra seu fundamento imediato no modo natural de ser das coisas.” Código de Processo Civil. Não havendo controvérsia sobre o fato não haverá, ipso facto, necessidade da prova. A busca da verdade dá ao juiz a liberdade para determinar os meios de prova que irão formar o seu convencimento. É o que consagra o art. 765 da CLT, ao estabelecer que: “Os Juízos e Tribunais do Trabalho terão ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo andamento rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento delas”. Cabe a ele, por ser o destinatário da prova, dirigir o processo na descoberta da verdade, indeferindo os meios de prova que forem inúteis ou desnecessários. Colaboração das partes O processo inicia-se com a provocação das partes, desenvolve-se por impulso oficial, dispõem os arts. 2º e 262 do Código de Processo Civil. Ne procedat iudex ex officio, repetese o velho brocardo latino. Uma vez, no entanto, iniciado desenvolver-se-á, preferencialmente com a colaboração das partes. Os atos processuais se sucedem rumo à sentença. No desenvolvimento da relação jurídico-processual, a cada um dos litigantes competirá a prática de atos processuais, distribuindo-se, quanto a demonstração da verdade das suas alegações, a responsabilidade pela produção dos meios que levarão ao convencimento do juiz. Valoração da prova O Direito moderno consagra, quanto à valoração da prova, o princípio da persuasão racional, isto é, o do livre convencimento motivado de que trata o art. 131 do Código de Processo Civil ao estabelecer, verbis: “O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.” 12 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2008

Na evolução do sistema probatório estiveram presentes cinco fases a justificar a teoria da apreciação da prova pelo Juiz, como nos conta François Gorphe, no célebre “De la apreciacion de las pruebas”, tendo a primeira a fase étnica, das sociedades primitivas, onde as provas davam lugar à experiência das impressões pessoais e, em matéria penal, estava constituída pelo flagrante delito; depois veio a fase religiosa, dos Juízos de Deus que se utilizavam das ordálias; a fase legal, onde somente a lei fixava os meios de prova e a força de cada um desses meios – é desta fase que a confissão é tida como a rainha das provas e, para obtê-la poderia se recorrer até mesmo à tortura. Surge a fase sentimental de apreciação da prova, na qual o juiz a aprecia livremente, segundo, tão-somente, sua íntima convicção, e, por fim; a fase científica de apreciação da prova que é fundada no livre convencimento motivado – o juiz é livre na apreciação da prova, desde que fundamente a sua decisão. Com o livre convencimento motivado retira-se do juiz o subjetivismo absoluto, o arbítrio, a incerteza e o perigo de equivocar-se. O juiz e a prova O juiz tem uma ligação muito estreita com a prova, diante da importância na formação da sua convicção. É dela que extrairá os elementos necessários de adequação do fato controvertido ao direito objetivo. É imperioso, por isso, se fazer a distinção entre o juiz que colhe a prova e o juiz que decide a causa. Na formação da convicção, para se chegar à maturidade do processo, a fase probatória reveste-se de especial importância. Cabe ao juiz obter os meios necessários ao julgamento. Não poderá, jamais, se omitir de julgar por falta de convencimento. No curso da relação processual a fase se estenderá desde a propositura da ação. Ao atingir o grau de maturidade apto estará o processo a ser decidido. Juiz que colhe a prova, por isso, é aquele ideal para decidir a causa. Nem sempre o ideal é possível, diante da realidade da vida. Ônus da prova Ônus é “aquilo que sobrecarrega; carga, peso” define Aurélio. Numa definição livre, para o processo ônus seria a carga que recai sobre a parte para demonstrar o acerto de suas alegações ou afirmações. Distribui-se o encargo segundo as afirmações de cada parte. Aos litigantes incumbe demonstrar a veracidade de suas afirmações. Envidarão esforços, sem dúvida, para demonstrar a verdade dos fatos que afirmaram. Se não conseguem produzir a prova; se não conseguem da prova produzida criar a certeza das suas afirmações terão, como conseqüência, que suportar a responsabilidade da ausência de prova sobre o tema controvertido. Malatesta ao se manifestar sobre o ônus da prova afirma, textualmente, que: “É, portanto, nas presunções que se precisa buscar o princípio superior, determinante do ônus da prova”.


Mas, em que presunção consistirá propriamente este princípio superior ? – pergunta o insígne jurista – e responde: “Eu creio que o critério diretivo supremo para a solução do problema deve ser procurado propriamente naquela presunção genérica, a grande mãe das presunções específicas e particulares e nasce do curso natural das coisas humanas. Observando que uma coisa se verifica no maior número de casos, o espírito humano, não conhecendo se ela se verifica ou não no caso particular, inclina-se, por um juízo de probabilidade, a crê-la verificada, sendo mais crível que em particular seja verificado aquilo que ordinariamente acontece e não o que acontece extraordinariamente. O ordinário se presume: eis a presunção mãe na árvore genealógica das presunções. Continua o festejado Mestre: “Mas se o ordinário se presume, quando uma asserção de fato ordinário se encontra diante da asserção de um fato extraordinário, a primeira merece mais fé que a segunda e, por isso, a segunda deve começar a provar. Se o ordinário se presume, o extraordinário se prova: eis o princípio supremo para o ônus da prova; princípio supremo que chamamos ontológico, enquanto encontra seu fundamento imediato no modo natural de ser das coisas.” Ônus subjetivo e ônus objetivo da prova A parte dispõe dos meios de prova para demonstrar a verdade dos fatos que afirmar. Cabe a ela oferecê-los ao juiz. Não tem a parte obrigação de provar. Tem, apenas, responsabilidade. Este é o ônus subjetivo. Se não oferece ao juiz os meios arcará com os riscos de sua omissão. Não interessa para o juiz quem produziu a prova. Muita vez a parte não oferece os meios de prova ao juiz. No entanto, do conjunto da prova produzida a outra parte poderá fazer prova contrária aos seus interesses. Para o juiz o ônus da prova é uma fórmula que indica o modo correto de analisar o fato controvertido e proferir a sentença. Distribuição do ônus da prova A regra legal de distribuição do ônus da prova é conhecida e não merece maiores comentários. Diz o art. 818 da CLT que a prova das alegações incumbe à parte que as fizer; ao autor a prova dos fatos constitutivos do pedido (art. 333, I do CPC); ao réu a prova dos fatos modificativos, impeditivos e extintivos do direito do autor (art. 333, II). Ônus da prova no Processo do Trabalho A par da discussão teórico-doutrinária trazida pelas teorias monista e dualista há um Processo do Trabalho autônomo do Processo Civil, com características e princípios próprios. O ônus da prova dividir-se-á, em regra, como nos demais ramos do Direito Processual, quer seja ele Civil, quer seja ele Penal. No entanto, não se pode abstrair daqueles princípios que lhes são próprios e, nem mesmo, abstrair da questão da desigualdade das partes, da dificuldade na produção da prova a se chegar na necessidade da inversão do ônus em casos que tais.

Questões contemporâneas do encargo probatório A jurisprudência trabalhista vem, ao longo do tempo, consagrando entendimentos sobre a distribuição do ônus da prova conciliando os princípios pertinentes ao Processo do Trabalho, notadamente quando dá ao juiz os critérios para que ele possa solucionar o conflito de interesses com fundamento no cotidiano, na ordinariedade da relação jurídica desenvolvida pelas partes. A máxima conhecida de Malatesta de que o ordinário se presume e o extraordinário se prova não deixa de ter a sua razão de ser. É que os indícios levam à presunção da verdade por que se trata do useiro, do comum, da regra habitual de conduta. Pretendendo a parte o reconhecimento do vínculo de emprego, afirmando que houve um contrato de trabalho durante determinado lapso de tempo, sem o reconhecimento formal por parte do empregador, seria ônus do autor, reclamante, a responsabilidade de demonstrar a verdade de sua afirmação. Se, porém, longe de negar o trabalho prestado, nega o reclamado o vínculo de emprego a ele cabe o ônus de demonstrar a existência da relação jurídica diversa da relação de emprego, notadamente por que a prestação de serviços continuada para determinado tomador, mediante a paga mensal, presume-se, de ordinário, seja esta relação a de emprego e não outra. Se não se desincumbe do encargo, o critério de julgamento será o da procedência da relação de emprego. Outro aspecto importante se dá quanto à rescisão do contrato de trabalho alegada em Juízo. É comum nas reclamações trabalhistas, quando afirma o empregado reclamante que fora imotivadamente despedido a resposta do réu pela negativa da dispensa. Diz apenas que não despediu, o empregado deixou de trabalhar. O Tribunal Superior do Trabalho firmou o entendimento, consagrado na súmula 212, no sentido de que: “O ônus de provar o término do contrato de trabalho, quando negados a prestação de serviço e o despedimento, é do empregador, pois o princípio da continuidade da relação de emprego constitui presunção favorável ao empregado.” No caso, há uma presunção diante da continuidade da relação de emprego. Não há como se admitir, ordinariamente, – diante de uma realidade social, onde o desemprego é preocupante – que os empregados, de regra deixem de trabalhar, manifestando, sempre, o interesse de não mais prestar serviços. A prova das horas extraordinárias trabalhadas também muito debate suscitou. É que se trata de fato constitutivo, genuíno, a demonstração da verdade pelo autor do trabalho em jornada extraordinária, quando negado pelo empregador. A dificuldade da prova a ser obtida pelo empregado é deveras real, isto por que é o empregador o detentor dos controles de freqüência dos seus empregados. De início, produzia-se a prova do modo previsto nos arts. 357 e ss. do Código de Processo Civil. Isto é, cabia ao empregado requerer em juízo a exibição dos controles de freqüência sob as penas do art. 359 do mesmo Código. Apenas e tão-somente neste caso, se requerida expressamente com essa cominação, diante da 2008 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13


recusa injustificada, é que caberia ao juiz presumir verdadeira a jornada alegada pelo empregado na petição inicial. A jurisprudência evoluiu com o passar do tempo. De extrema rigidez, diante da desigualdade das partes, diante da dificuldade da prova, exigir tal comportamento. Na verdade, quando o empregador negava a existência de jornada extraordinária, embora que fato negativo, estava ele trazendo um outro fato positivo que era o estrito cumprimento da jornada legal de trabalho. Se ele é o detentor dos controles de freqüência, que se destinam à comprovação da jornada de trabalho e da assiduidade do empregado, compete a ele demonstrar o fato positivo que afirmou do cumprimento da jornada normal de trabalho. Se não traz injustificadamente em juízo presumir-se-á verdadeira a jornada de trabalho afirmada pelo empregado reclamante. Este foi o entendimento prevalecente na súmula 338, no seu item I, verbis: “É ônus do empregador que conta com mais de 10 (dez) empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º, da CLT. A não apresentação injustificada dos controles de freqüência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário.” Houve, neste caso, nítida inversão do ônus da prova na medida em que o fato constitutivo do pedido de horas extraordinárias era afirmação do empregado. A negação do trabalho extraordinário trazida pelo réu veio acompanhada pelo fato positivo da jornada ordinária. Diante da existência legal de um documento comum, na posse do empregador, a construção jurisprudencial – nada mais justo – se dá pela inversão do ônus da prova construída pela interpretação da regra legal. Na equiparação salarial, porém, quando admitida pelo empregador a identidade de função a ele cabe o ônus de demonstrar a igual produtividade e a igual perfeição técnica, que se presume favoravelmente ao empregado, quando idênticas as funções. No caso, simplesmente, é a afirmação em defesa, pelo empregador, de que mesmo idênticas as funções não preenchia o empregado os demais requisitos contidos no art. 461 da CLT a permitir o salário igual. Tratase, portanto, de alegação do empregador de fato impeditivo do direito do empregado, a ele competindo provar. É o que preconiza a súmula 6, no seu item VIII, antiga súmula 68. “É do empregador o ônus da prova do fato impeditivo, modificativo ou extintivo da equiparação salarial.” O caso mais polêmico que se vem enfrentando diz respeito à pretensão com relação ao vale-transporte. É que o Decreto no 95.247, de 17/11/87, que regulamentou a Lei no 7.418, de 16/12/85, assim estabeleceu no art. 7º: “Para o exercício do direito de receber o valetransporte o empregado informará ao empregador, por escrito, seu endereço residencial e os serviços e meios de transporte mais adequados ao seu deslocamento residência-trabalho e vice-versa.” 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2008

As reclamações trabalhistas que continham pretensão no sentido do recebimento do vale-transporte comportavam, inexoravelmente, como defesa, a ausência do cumprimento da norma legal de que trata o art. 7º do Decreto de modo a impedir o recebimento. Embora haja dificuldade maior do empregado em demonstrar que tinha requerido, a norma legal assim exigia. As decisões dos tribunais do trabalho foram, na sua grande maioria, no sentido de consagrar o que continha na regra legal, a ponto de o Tribunal Superior do Trabalho editar a orientação jurisprudencial no 215, no sentido de que: “É do empregado o ônus de comprovar que satisfaz os requisitos indispensáveis à obtenção do valetransporte.” Considerações finais A distribuição do ônus da prova segue o princípio consagrado no sistema processual, segundo o qual o autor se encarrega de demonstrar o fato constitutivo do pedido e o réu se encarrega da prova do fato modificativo, impeditivo ou extintivo da pretensão do autor. O princípio legal não é absoluto. Deve ele ser entendido como o conjunto de meios que se coloca à disposição das partes para que possa provar o fato e assegurar ao juiz o acertamento da verdade. Não há como responsabilizar a parte por não ter se desin­ cumbido de realizar uma prova impossível de conseguir. A parte que maior facilidade dispuser para produzir o meio de prova a demonstrar a verdade do fato será, sem dúvida, a responsável a produzi-la em juízo. O ônus da prova, por isso, é critério de avaliação do juiz para apreciação do fato controvertido e deve dar a ele a convicção para julgar. Conclui-se, portanto, que o debate sobre o ônus da prova só será relevante quando não existir prova sobre o fato, ou se a prova produzida não aniquilar, como diz Mittermaier, os motivos sérios em sentido contrário.

BIBLIOGRAFIA ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil, v. 2, 8ª ed., Editora Revista dos Tribunais, São Paulo: 2003 CARNELUTTI, Francesco. A Prova Civil. Livraria e Editora Universitária de Direito, São Paulo: 2002 GORPHE, François. De La Apreciacion De Las Pruebas.Ediciones Jurídicas Europa-América, Chile: 1950 MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A Lógica das Provas em Matéria Criminal, v. I. Editora Bookseller, São Paulo: 1996 MITTERMAIER. Tratado da Prova em Matéria Criminal ou Exposição Comparada, 3ª ed., Editora Bookseller, São Paulo: 1996 PAULA, Carlos Alberto Reis de. A Especificidade Do Ônus da Prova No Processo do Trabalho. Editora LTR, São Paulo: 2001 SANTOS, Moacyr Amaral. Prova Judiciária No Cível e Comercial, v. II, Max Limonad Editores, São Paulo: 1952 SILVA, João Carlos Pestana de Aguiar. As Provas No Cível, Editora Forense, Rio de Janeiro: 2003


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“JOINT VENTURe” responsabilidade no fracasso do empreendimento

APELAÇÃO CÍVEL N° 2008.001.00101

HI TEC SHOP COMÉRCIO IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO LTDA. Apelante 1: Apelante 2: TANDY CORPORATION (RECURSO ADESIVO) Apelados: OS MESMOS Origem: Juízo de Direito da 9ª Vara Cível da Comarca da Capital

Acórdão APELAÇÃO. Contratos de distribuição e de franquia, a ensejarem entendimento divergente quanto à sua natureza e a seus efeitos: sociedade de fato, inspirada por joint venture, sob a perspectiva da autora; franquia, na compreensão da ré. Resolução do pactuado por inadimplemento dos objetivos e metas comerciais estabelecidos. Agravo retido reeditado e rejeitado, quanto à suplementação da prova pericial, desnecessária para o estabelecimento do an debeatur, conquanto possa vir a ser relevante para a apuração, em liquidação, do quantum debeatur, certo que a parte autora formulou pedido ilíquido. Controvérsia acerca dos motivos e de quem lhes deu causa, para fins de assunção de responsabilidades pelos prejuízos do empreendimento. Os fatos e circunstâncias provados nos autos, após extensa dilação, em lide processada por mais de uma década, autorizam a configuração de parceria, fun­dada em relação contratual explícita, conquanto atípica, em que os contraentes mantiveram suas respectivas per­so­na­li­dades. Ainda assim, permanece o núcleo da controvérsia jurídica, que se concentra no comprome­ timento de ambas empresas, ou apenas de uma delas, em relação à álea do empreendimento. Os mesmos fatos e circunstâncias demonstram que, em princípio, os con­tra­entes dispuseram-se a arrostar os riscos do negó­cio, 16 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2008

constituindo verdadeira universalidade de pessoas (universitates personarum), amalgamada por interesses econômicos comuns, mas que, fracassado o projeto, o parceiro internacional esquiva-se de responder pelos riscos, como se estes não fizessem parte do negócio. Cabe ao parceiro internacional indenizar o nacional pelos pre­juízos do insucesso que a ambos atinge, já que se frustrou a implantação da marca do primeiro no mercado brasileiro, por motivos a ambos imputáveis. Provimento do primeiro recurso, prejudicado o segundo. Vistos, relatados e discutidos estes autos da apelação cível n° 2008.001.00101, originária do Juízo de Direito da 9ª Vara Cível da Comarca da Capital, em que figuram, como apelante 1, HI TEC SHOP COMÉRCIO IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO LTDA., como apelante 2, TANDY CORPORATION (RECURSO ADESIVO), e, como apelados, OS MESMOS, os Desembargadores que compõem a Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro ACORDAM, por unanimidade, dar provimento ao primeiro recurso, resultando prejudicado o segundo, nos termos do voto do relator.

Rio de Janeiro, 23 de janeiro de 2008. Des. Jessé Torres


Foto: Arquivo Pessoal

Desembargador Jessé Torres, relator do acórdão

Voto Relatório a fls. 1.633-1.637. A recorrente adesiva renova agravo retido e pretende vê-lo julgado apenas na hipótese de vir a dar-se provimento ao apelo da autora (v. fls. 1.613, item 97). Tal ressalva – processualmente imprópria, posto que o agravo, nessa modalidade, há de ser julgado como preliminar da apelação (CPC, art. 523), e não ao final e sob a condição de a esta ser dado provimento – se compadece, todavia, com o objeto do agravo, que é a obtenção de esclarecimentos do perito acerca dos valores que indicou como correspondentes às despesas e prejuízos que a autora teria suportado em decorrência dos contratos celebrados com a ré. Fica claro que tais esclarecimentos, na percepção da agravante, somente seriam relevantes para o caso de acolher-se o pleito indenizatório da autora, posto que, então, necessário seria apurar-se, com rigor, a respectiva base de cálculo, ou seja, o montante induvidoso do alegado prejuízo. A petição inicial formulou pedido ilíquido. Logo, o julgado também poderá sê-lo (CPC, artigos 459 e 460). A apuração do valor de verbas indenizatórias – o quantum debeatur –, se for o caso, pode ser remetido à liquidação, desde que o julgado defina o an debeatur, isto é, o direito material de que a parte vencedora seja titular. Segue-se que não seria, como não é, imperativo que o Juízo, a requerimento da ré, ordenasse ao perito a suplementação, no processo de conhecimento, de subsídios acerca das fontes em que se

baseou para chegar àquele valor, possível que é a sua final apuração em liquidação. Nada obstante a faculdade prevista no art. 435 do Código de ritos, cerceio não há à defesa se se transfere, para eventual futura execução de sentença, a determinação de valores tidos como devidos, sendo, como é, ilíquido o pedido articulado pela autora. Na liquidação, se a ela se chegar, haverá a oportunidade de exercitar-se o contraditório sobre a certeza das fontes dos valores compensatórios perseguidos pela autora, certo que sua depuração não obsta o exame do fundo da questão, sobre o qual os litigantes debateram à exaustão e esgotaram os meios dilatórios pertinentes. Rejeita-se, destarte, o agravo retido. O tema devolvido ao Tribunal é rico de matizes e desafios, não de todo apreendidos pela sentença. As partes celebraram contratos escritos, estabelecendo relação obrigacional complexa, cuja natureza e efeitos não se deduzem de qualquer deles isoladamente, mas de seu conjunto, iluminado por fatos e circunstâncias peculiares. A rigor, esses fatos e circunstâncias não suscitam divergências quanto à sua ocorrência, porém, sim, quanto à interpretação e à extensão de suas jurídicas conseqüências. Assim, não controvertem as partes quanto ao apoio que a ré deu à constituição societária da autora, bem como durante todo o curso da execução dos contratos, inclusive enviando funcionários seus para o exame da situação dos negócios e a elaboração de relatório, formulando diagnóstico, estabelecendo e reclamando medidas. Tampouco dissentem em relação ao fato de que havia políticas e diretrizes da ré às quais a autora estava obrigada, segundo os contratos, a seguir em sua atuação empresarial, no processo econômico de implantação da marca dos produtos da ré no Brasil, nos mesmos moldes que, há setenta anos, esta promove em escala mundial. Igualmente há consenso em que fracassou o empreendimento e que houve prejuízo. Lide há na definição da índole dessa relação contratual e das responsabilidades pelo insucesso da marca no Brasil. Sustenta a autora que estabeleceu com a ré, em verdade, uma joint venture, com obrigações equivalentes às de parceiros e sócios de fato em empreendimento comum, cujo fracasso decorreu de equivocada orientação da ré, daí sua responsabilidade por assumir metade dos prejuízos. Entende a ré que cláusulas contratuais explicitavam a personalidade jurídica autônoma de cada contraente e a nenhuma ingerência na gestão dos negócios; imputa à má administração da autora o insucesso do empreendimento, pelo que esta há de responder, com exclusividade, aos prejuízos a que deu causa. O desate do litígio passa, necessariamente, pela análise da natureza das avenças, mas não apenas, devendo estenderse à compreensão do contexto em que se desenvolveram, em confronto com o que ordinariamente acontece – tal a importância dos costumes como fonte do Direito Comercial – na execução de contratos da mesma espécie, quando pactuados isoladamente, e, ainda, no âmbito da alegada joint venture, para o fim de verificar-se se, no caso vertente, 2008 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17


“Em razão de sua flexibilidade e facilidade de constituição, a definição de joint venture continua em permanente evolução, pois constitui forma de possibilitar que países em desenvolvimento adquiram tecnologia, repartindo com os investidores os lucros das operações.”

haveria, ou não, uma comunhão de deveres jurídicos que a ambos os contraentes obrigasse além da literalidade das cláusulas contratuais, quanto ao sucesso ou insucesso do empreendimento, daí emergindo, ou não, o direito perseguido pela autora e recusado pela ré. Das lições de Daniel Amin Ferraz (Joint Venture e Contratos Internacionais, Belo Horizonte. Ed. Mandamentos: 2001) extrai-se ser joint venture um contrato de colaboração empresarial. Corresponde a uma forma ou método de cooperação entre empresas independentes, reconhecido, nos países em que prosperou, como uma sociedade entre sociedades ou uma associação de empresas. A característica essencial do contrato de joint venture é a realização de um projeto comum, com prazo determinado. “É a celebração de um contrato entre duas ou mais empresas, que se associam, criando ou não uma nova empresa, para realizar uma atividade econômica produtiva ou de serviços, com fins lucrativos”, sintetizam Maria Bernadete Miranda e Clovis Antonio Maluf (O Contrato de Joint Venture como Instrumento Jurídico de Internacionalização das Empresas – acesso no endereço eletrônico www.direitobrasil.adv.br/ artigos/artigo18.pdf ), que aduzem ter origem no Direito anglo-saxônico, onde se desenvolveu a partir do Direito de Navegação, sendo hoje referida como uma special partnership (parceria especial), cujas características são “emprego em comum de meios ou recursos; busca de ganhos ou lucros comuns; em regra não possuem personalidade jurídica, reunindo duas ou mais partes, essas, sim, possuidoras de personalidade (...) na joint venture não se presume o poder do co-venture de agir em nome dos demais. Deverá ocorrer uma delegação de poderes para tal, explícita e normalmente limitada (...)”. Da lição dos professores Miranda e Maluf destaquese ponto especialmente relevante para a compreensão do instituto e sua aplicação ao caso de que se ocupam estes autos: “As joint ventures são de indiscutível importância em face da utilização como estratégia para alcançar mercados externos, transferência de tecnologia, aporte de capital e uso de franquias (...). Em razão de sua flexibilidade e facilidade 18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2008

de constituição, a definição de joint venture continua em permanente evolução, pois constitui (...) forma de possibilitar que países em desenvolvimento adquiram tecnologia, repartindo com os investidores os lucros das operações (...). Nas partnerships, a divisão dos lucros estará, automaticamente, vinculada à submissão das perdas, todos os partners estão, presumidamente, obrigados a assumir as perdas. Na joint venture, o sistema não é o mesmo. A diferença fundamental é que aqui não há que se falar em presunção na intenção de dividir as perdas, devendo ser essa, de alguma forma, acessória e explícita”. A pena especializada de Carlos Alberto Ghersi esclarece ser joint venture “contrato pelo qual um conjunto de sujeitos de direito, nacionais ou internacionais, realiza aportes das mais variadas espécies, que não implicam perda da identidade e individualidade como pessoa jurídica ou empresa, para a realização de um negócio em comum, podendo ser este desde a criação de bens até a prestação de serviços, que se desenvolverá por um lapso de tempo limitado, com a finalidade de obtenção de benefícios econômicos financeiros, ou simplesmente valorização patrimonial”. (Contratos Civiles, y Comerciales. Ed. Astrea. Buenos Aires: 1998). Alfredo José Santos sublinha que será vã qualquer tentativa de enquadrar a joint venture em determinado tipo societário brasileiro, dada a sua atipicidade jurídica. Recorda que o instituto nasceu no seio do sistema da common law, tendo sido importado e adaptado, na medida do possível, aos países cujo ordenamento deita raízes no sistema romano-germânico. Ademais, a joint venture foi estrategicamente desenvolvida para atuação no âmbito internacional, externamente às legislações empresariais de cada país. Daí arrematar que “a compreensão do fenômeno da joint venture exige a adoção de um procedimento diverso de análise, que não conduza à aplicação rígida da disciplina jurídica para enquadrá-la em determinado tipo legal, mas, sim, a individualizar como aplicáveis traços do regimento jurídico referentes àqueles tipos cuja regulamentação se acerte em maior ou menor medida aos elementos que estão na base do contrato em análise” (Natureza Jurídica dos Acordos de Joint Venture, Revista de


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Estudos Jurídicos UNESP, nº 12, jan./dez. 2003, págs. 189201). O curso evolutivo dessas formas de agregação empresarial constitui aspecto sensível e consagrado no Direito Privado brasileiro. Ao comentar as inovações que na matéria trouxe o Código Civil de 2002, Sérgio Campinho assinala: “Os grupos econômicos são uma realidade no mundo contemporâneo. Apresentam-se como uma técnica de exploração racional da atividade empresarial, na busca do atingimento de um processo de investimentos, pesquisa, produção e comercialização mais eficientes. A aglutinação empresarial é uma forma de encarar eficazmente os desafios da economia de escala. Fábio Konder Comparato testemunha o fenômeno: ‘Não há negar que os grupos econômicos foram criados, exatamente, para racionalizar a exploração empresarial, harmonizando e mesmo unificando as atividades das várias empresas que os compõem (...). Todos os sistemas econômicos, qualquer que seja o regime político que os acompanha, tendem a esse mesmo objetivo de agrupamento e coordenação empresarial. A empresa isolada é, atualmente, uma realidade condenada, em todos os setores, máxime naqueles em que o progresso está intimamente ligado à pesquisa tecnológica”. (O Direito de Empresa à luz do Novo Código Civil, págs. 311-312. Ed. Renovar: 2002). Nem se diga que a positivação, em norma jurídica, dos valores da economia de escala era desconhecida ao tempo dos contratos sob foco; basta lembrar que até mesmo em lei destinada à Administração Pública – esta notoriamente lenta e refratária na absorção de conceitos importantes na atividade empresarial –, a expressão “economia de escala” é utilizada expressamente, como condição para o parcelamento de contratos administrativos, desde a Lei nº 8.666/93, art. 23, § 1º. Essas considerações doutrinárias conformam as primeiras conclusões acerca da natureza dos contratos celebrados pelas partes desta ação, sob a perspectiva da uma joint venture, a saber: (a) um contrato de distribuição de produtos de procedência estrangeira em território brasileiro, como aquele pactuado entre as partes, aos 22.03.91, com prazo de duração de cinco anos, é um dos objetos em que mais nitidamente se apresentam a conveniência e a oportunidade de uma joint venture; (b) somado a esse contrato de distribuição, o contrato de franquia e de licença do uso de marca, firmado entre as mesmas partes aos 30.11.93, com prazo de duração de seis anos, significou o instrumento de implementação do empreendimento, sendo a franqueadora a produtora estrangeira e a franqueada a distribuidora brasileira; (c) a aglutinação de esforços e capacidades se mostrou aos contraentes como a solução empresarial adequada, na medida em que a empresa estrangeira desejava introduzir os produtos de sua marca no mercado brasileiro e a empresa brasileira se dispunha a nesse sentido agir, submissa às diretrizes da produtora; (d) que era esse o propósito e a estratégia que animavam e balizavam a iniciativa, não deixa dúvida o fato de que a empresa brasileira não pré-existia ao empreendimento, tendo sido constituída especificamente para tal finalidade 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2008

e sob a orientação da parceira estrangeira; logo, nenhuma experiência específica individualizada e personalizada a empresa nacional poderia oferecer à estrangeira, por isto que aquela foi por esta monitorada em todos os passos de sua concepção, de seu nascimento e de seu desenvolvimento; (e) a conjugação do contrato de distribuição com o contrato de franquia só poderia significar, no Direito Empresarial contemporâneo, a aglutinação de empresas para a consecução de empreendimento comum, ainda que duas fossem as pessoas jurídicas, vinculando o sucesso do empreendimento (a afirmação da marca estrangeira no mercado brasileiro) à eficiência de gestão necessariamente compartilhada dos meios mobilizados em prol daquele resultado, ou seja, a joint venture desenhada pela autora desde a peça inaugural. Objetou-se que, nos termos dos mesmos contratos, ficou estabelecida a independência de cada contraente em face do outro, por isto que o prejuízo decorrente do fracasso do empreendimento seria total e exclusivo da distribuidora e franqueada, a autora, ineficiente na gestão de seus negócios. O argumento falseia a realidade das relações havidas entre as partes e encontra resposta nos autos e na configuração das chamadas universalidades de pessoas, que, no peculiar contexto do caso vertente, é a ponte, a um só tempo, entre o antigo e o moderno da atividade empresarial, bem como entre os sistemas anglo-saxão e romano-germânico de organização da ordem jurídica. Quanto à realidade das relações havidas entre as partes, o laudo pericial bem destacou pontos mercê dos quais fica clara a ascendência da empresa estrangeira sobre a brasileira, sendo aquela hegemônica na gestão do empreendimento comum, a saber: (a) a ré e seus representantes “terão o direito de, a qualquer tempo razoável, inspecionar as lojas, livros e registros da autora, bem como examinar o estoque e depósitos das lojas e, por qualquer forma, verificar os métodos de operação na medida em que forem relacionados à venda de produtos da ré”; (b) os contratos deveriam ser interpretados segundo as leis do Estado do Texas, EUA, onde tem sede a ré, e de lá também seriam os tribunais competentes para dirimir conflitos entre as partes; (c) a autora seria a responsável pela obtenção de autorizações e licenças pertinentes às atividades contratadas, porém, antes de remeter os pedidos às autoridades administrativas competentes, deveria submetêlos aos representantes da ré, “para revisão”; (d) força maior, caso fortuito, fato do príncipe ou fato de terceiro “não justificam o não pagamento pela autora à ré das importâncias devidas. Caso uma dessas causas continuar impedindo ou retardando o cumprimento do contrato por mais de 180 dias, a ré poderá rescindir o contrato de imediato, notificando a autora”; (e) à franqueadora ré cabia determinar os produtos e as quantidades a serem adquiridas pela franqueada autora, tanto que esta deveria comprar daquela, nos cinco anos do contrato de distribuição, 70 milhões de dólares líquidos em produtos e se obrigou a, periodicamente, emitir “ordens de compra junto à TANDY para certos tipos de mercadorias usualmente vendidas, nos Estados Unidos, pelas lojas da


subsidiária TANDY denominada Radio Schack, a fim de que estas sejam revendidas no Território” (fls. 831-836). Sustenta a ré que tais obrigações nada mais traduzem do que exigências próprias e corriqueiras dos contratos de franquia. A escusa é plausível, porém parcial. Vero é que, como ilustra Fran Martins: “Associações especializadas, como a Small Business Administration, de Washington, e o Bank of America, depois de estudar inúmeros contratos, fizeram listas das cláusulas mais usuais encontradas nos mesmos. A lista da Small Business Administration inclui nada menos de 30 cláusulas freqüentemente utilizadas, entre as quais se destacam as referentes ao direito do franqueador de proibir o franqueado a venda de quaisquer produtos que não forem feitos, aprovados ou indicados pelo franqueador; a realização de um mínimo de vendas dos produtos franqueados; o pagamento de certa importância pela franquia (...); o direito de o franqueador inspecionar os livros do franqueado (...); a manutenção do franqueado de quotas mensais ou anuais de vendas dos produtos comercializados (...). Como se vê, amplas são as modalidades como pode ser feita a franquia. Daí dizer Harry Kursh que não existe, nunca existiu, nem certamente

comezinhos princípios gerais de Direito, como os de que força maior, caso fortuito, fato do príncipe e fato de terceiro tendem a ser excludentes universais de responsabilidade; ou do descabimento de rescisão unilateral de contrato de Direito Privado. Se, e quando tal, ocorrer, como no caso vertente, a hegemonia de uma das partes denota que a parceria entre as contraentes vai além de uma franquia e não se conjumina com o afastamento, pretendido pela ré, dos riscos do negócio, como se estes coubessem apenas a uma das partes, descompromissada a outra. Não impressiona o argumento de que os excessos de imposições unilaterais foram aceitos pela distribuidora franqueada, certo ser de adesão o contrato de franquia. Documentos acostados com a inicial e não impugnados em sua existência e conteúdo – conquanto interpretados de modo divergente pela ré – atestam que representantes de alta hierarquia da empresa estrangeira passaram largos períodos na sede da empresa brasileira, “baseados” no Rio de Janeiro, realizando exatamente as operações que ultrapassavam o que é habitual nos contratos de franquia, o que também foi grifado no laudo de fls. 836, em resposta ao quesito 13, formulado pela

“Nenhum fundamento jurídico ampara a pretensa licitude da evidente desproporção do fato, grifado pela ré, de que apenas a autora deve enfrentar todas as áleas e responder pela consecução do objeto contratado.” jamais existirá um contrato standard para a franquia (...)”. Entretanto, adverte o festejado comercialista brasileiro, “apesar dessa gama de opções, algumas cláusulas são sempre necessárias para caracterizar o contrato de franquia. Essas cláusulas essenciais são as que se referem ao prazo do contrato, à delimitação do território e da localização, às taxas de franquia, às quotas de vendas, ao direito de o franqueado vender a franquia e ao cancelamento ou à extinção do contrato”. Assim é, e deve ser, porque o “que caracteriza principalmente a franquia é a independência do franqueado, ou seja, a sua autonomia como empresário, não ligado por um vínculo empregatício com o franqueador. Por isso, não é a empresa franqueada uma sucursal do franqueador. Tem ela autonomia jurídica e financeira, se bem que muitas vezes use como nome a marca do franqueador, o que dá a impressão de ser uma dependente dele (...).” (Contratos e Obrigações Comerciais, págs. 581-587. Ed. Forense, 11ª edição, 1990). Inequívoca a existência de inúmeras possibilidades de cláusulas de controle da franqueadora sobre a franqueada. Controle, não submissão absoluta, a embotar a autonomia jurídica e financeira da franqueada. Ou a suprimir

ré. E se a franqueada permanecia submissa, decerto que tal se devia à expectativa de que a franquia era mero instrumento para a realização de empreendimento comum de nível estratégico, sob a consentida direção do parceiro estrangeiro, dono da marca dos produtos que se pretendia colocar no mercado brasileiro e do know how, de que não dispunha a franqueada, na distribuição e comercialização desses produtos. A presença de know how do lado da produtora, e sua ausência do lado da distribuidora, trouxe à colação, ainda, a idéia de que se acoplaria aos dois indigitados contratos um terceiro, qual seja o de transferência de tecnologia (a que corresponde, no contrato de franquia, à licença do uso de marca), consistente em consultoria ou assistência técnica, sem qualquer compromisso com as decisões da assistida e com os resultados daí advindos, tal a tese da ré. Tampouco sob a perspectiva desse terceiro contrato se justificaria o tratamento dispensado pela ré à autora, diante do fracasso do empreendimento, ao que se extrai dos numerosos textos trocados entre as partes, via mídia eletrônica (originais e tradução juramentada a fls. 104-165, destacando-se, sobretudo, as intervenções ditadas a fls. 114 e 119). 2008 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21


Visitem-se as lições de João Marcelo de Lima Assafim, especialista brasileiro na matéria, verbis: “O adquirente é o sujeito situado em uma posição ativa de poder jurídico em relação ao bem imaterial, cujos direitos lhes são transmitidos mediante contrato de transferência de tecnologia. O adquirente pode também ser receptor da comunicação do segredo industrial ou da prestação de serviço de assistência técnica. Um sujeito ostenta a condição de adquirente através da correspondente autorização do titular da tecnologia outorgada (...). A autorização pode ser motivada pela capacidade produtiva ou pelas características da empresa. O mais usual é que o concedente de tecnologia atenda a ambas. Por outro lado, é, também, perfeitamente possível que o adquirente seja uma pluralidade de sujeitos (...) a característica de ser intuitus personae exerce um papel importante nos contratos de transferência de tecnologia, em especial nos casos de tecnologia protegida por patente ou de contratos mistos (como, por exemplo, patentes e know how). Não obstante, o intuitus personae pode ser relegado a um segundo lugar pelo denominado intuitus instrumenti, ou seja, pelas características e capacidades da empresa que irá utilizar e explorar a tecnologia concedida (...). Nos contratos de transferência de tecnologia admite-se, pois, que o objeto consista em bens e serviços. Na realidade, esses contratos são formados por um conjunto de relações jurídicas submetidas – por questões de política legislativa e em função de determinadas características comuns – a um único regime político (...).” (A Transferência de Tecnologia no Brasil – Aspectos Contratuais e Concorrenciais da Propriedade Industrial, págs. 133-134. Ed. Lúmen Júris: 2005). O que já se verificou dos contratos de distribuição e de franquia firmados entre as partes é que a autora, licenciada para o uso da marca da ré, não dispunha do know how, logo, o caráter intuitus personae não poderia ser invocado em relação a ela, mas apenas em relação à ré, que almejava fazer da autora o agente da introdução de seus produtos no mercado brasileiro. E sem risco algum, já que também pretenderia transferir à autora toda a álea, fosse a ordinária ou a extraordinária (força maior, caso fortuito, fato do príncipe ou de terceiro), como retro se anotou. Retomem-se as lições de Assafim e ver-se-á que a ré, a cogitar-se de contrato de transferência de tecnologia, teria fraudado suas mais essenciais características. Assim: “Se admite, sem discussão, que o contrato de transferência de tecnologia é um negócio jurídico bilateral (...). A reciprocidade de débitos e créditos é a pedra angular do contrato bilateral, com a qual os sujeitos da relação jurídica se alternam na posição de credor e devedor. Assim, é bilateral o contrato de transferência de tecnologia pelo qual o concedente (provedor) se obriga a autorizar ao adquirente (receptor) o uso de um determinado bem (tecnologia) em troca de remuneração. Em virtude de um contrato desse tipo, fica autorizada a exploração de um bem imaterial, uma prestação de serviço ou a divulgação de um segredo. Dessa maneira, o contrato de transferência de tecnologia, além de ser um contrato bilateral, também é um negócio jurídico sinalagmático; isto quer dizer que as 22 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2008

obrigações surgidas do contrato são correlativas para cada um dos sujeitos contratantes, ou seja, a causa da prestação do concedente é a contraprestação do adquirente e vice-versa. Por conseguinte, as obrigações principais assumidas por cada um dos contratantes são contrapostas e equivalentes; para o concedente, consistem em colocar e manter o adquirente em uma posição que lhe permita utilizar e explorar o bem imaterial transmitido ou obter a prestação do serviço técnico pertinente, enquanto que, para o adquirente, a obrigação principal consiste em pagar ao concedente o preço acordado pela utilização do bem ou prestação do serviço (...), estamos diante de contratos onerosos. Se diz que um contrato é oneroso quando gera vantagens para ambas as partes. Ao afirmar que os contratos de transferência de tecnologia são onerosos, faz-se referência ao fato de que neles existe um intercâmbio de prestações ou de atribuições patrimoniais. Com efeito, no negócio oneroso, as prestações que cada uma das partes realiza são compensadas ou encontram equivalência no benefício obtido pela prestação realizada pela contraparte (...). Entretanto, a subjetividade da equivalência das prestações não significa que uma desproporção injustificada seja lícita e não possa dar lugar à nulidade do negócio jurídico. Com efeito, no CC de 2002, o § 1º do art. 157 prevê a nulidade do negócio jurídico nos casos em que exista uma desproporção entre as prestações, com referência aos valores destas ao tempo da celebração do negócio jurídico, também cabendo a anulação com base na quebra da função social do contrato ou na infração de disposições de ordem pública (...). Desse modo, é estabelecida uma estreita conexão entre o caráter intuitus personae vel instrumenti com outra importante característica do contrato: a de ser um contrato de colaboração. O contrato de transferência de tecnologia proporciona, na maioria das vezes, uma relação duradoura cujo conteúdo se traduz em uma espécie de colaboração (...) [que] pode manifestar-se em outros aspectos do conteúdo do contrato, como nos regimes de controle de qualidade do produto ou do processo produtivo, determinados conforme o objeto contratual. Ambos os sujeitos (concedente ou adquirente) estão interessados em uma exploração que incremente o valor agregado do bem imaterial pertinente” (op. cit., págs. 146-152). Confrontado o perfil do contrato de transferência de tecnologia com a conduta da ré em face da autora, tornase claro que aquela despreza, ou ignora, entre outros traços essenciais o do sinalagma e o da colaboração que os distinguem como contratos bilaterais e onerosos, a cuja sorte se vinculam os contraentes igualmente. Nenhum fundamento jurídico ampara a pretensa licitude da evidente desproporção do fato, grifado pela ré, de que apenas a autora deve enfrentar todas as áleas e responder pela consecução do objeto contratado. Por outro lado, o que a doutrina vem assinalando desde os últimos vinte anos do século XX, quanto à evolução do conceito de joint venture - o instituto já era uma realidade reconhecida no Direito comparado quando da celebração dos contratos em testilha nestes autos – permite correlacioná-lo à vetusta universitates personarum dos romanos.


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“Em outras palavras: não se pode atribuir responsabilidade pelo insucesso a apenas uma das sociedades participantes da universalidade, quando todas concorrem para a geração das causas do mau resultado.”

Na compilação dos dicionaristas, “a generalidade, a totalidade, ou toda composição, conjunção, ou reunião de várias coisas, congregadas, reunidas, justapostas, coletivadas, para que cumpram certos objetivos. Assim, a universalidade não somente revela o acervo de coisas, a massa de bens e de direitos, o patrimônio, como, no seu conceito de ajuntamento, coleção, concentração, união, traduz o sentido de corporação, colégio, companhia, associação e sociedade (...). A universalidade de pessoas se forma pela agremiação, associação, ou sociedade, instituídas com finalidades certas e em interesse das pessoas que as compõem. Em regra, as universitates personarem, tomando a forma de corporações, colégios, comunidades, companhias, associações, sociedades, resultam na composição de uma unidade jurídica, que se personaliza, a fim de que adquira uma individualidade distinta da de seus componentes. Bem por isso, a universalidade de pessoas, personalizando-se, passa a ser a titular de seus próprios direitos, mesmo que sobre eles haja interesse de seus integrantes” (De Plácido e Silva. Vocabulário Jurídico, vol. IV, págs. 437-438. Ed. Forense: 1997). Nada tem de inusitada ou novidadeira a sociedade de fato inspirada na remota universalidade de pessoas. A cada tempo histórico, enseja aplicações e abre novos horizontes, em todos os ramos das ciências jurídicas, notadamente no Comercial e no Empresarial. Nos anos 60 e 70 da centúria passada, começou-se a perceber sua utilidade no processo de transformações reclamadas no alvorecer do que viria a se constituir no hoje desenvolto Direito Comunitário europeu. Coube a Henri Temple antevê-la em monografia específica (Les sociétés de fait, Paris: 1975), descortinadora de novos aplicativos, que não cessam de evoluir. Recorde-se a resenha 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2008

da obra, passada em revista, entre nós, por J. Lamartine Corrêa de Oliveira, verbis: “Os autores mais recentes, ainda que admitindo que a designação ‘sociedade de fato’ cubra diversas hipóteses, preferem estabelecer esquema diverso. Assim, Temple, inserindo o exame das sociedades de fato no esquema genérico, caracteriza as situações de fato de um modo geral através da existência de um fato material (a); – o fato, na situação de direito, seria conseqüência, enquanto na situação de fato é pressuposto de existência, dele se induzindo os demais elementos; da ligação entre tal fato material e a lei, que prevê uma situação de Direito correspondente (b), bem como, finalmente, a imperfeição de tal ligação (c). Se houvesse perfeita obediência à lei, haveria situação de direito. Duas seriam as modalidades básicas de imperfeição – uma primeira, em que as exigências formais da lei não foram jamais cumpridas, e uma segunda, em que todas as formalidades foram cumpridas, mas a nulidade foi verificada ulteriormente. Aplicando essa noção às sociedades, Temple procura daí extrair uma teoria das sociedades de fato. Só haveria o fato material (a) característico de uma sociedade quando, em relação a empreendimento caracterizável como objeto de atividade social, tenha havido funcionamento efetivo. O elemento (b), relativo ao liame entre o fato material e a lei, suporia em primeiro lugar a presença dos elementos do contrato de sociedade (contribuição dos sócios para a formação do capital social, busca dos lucros e participação dos sócios nos resultados da sociedade – o que excluiria as sociedades leoninas até mesmo do rol das sociedades de fato – e a affectio societatis); em segundo lugar, a exteriorização da sociedade, seu caráter público (o que excluiria as sociedades em conta de participação, ocultas por definição, do quadro das sociedades


de fato); e, em terceiro e último lugar, o caráter lícito do objeto social. Este último requisito é da maior importância. A sociedade de fato é teoria de origem jurisprudencial, e seria difícil imaginar a jurisprudência consagrando, por exemplo, associações de malfeitores. Temple admite porém o que chama de ‘gradação na ilicitude’, embora confessadamente não chegue a construir uma teoria que permita ‘traçar o limite entre os diversos graus de ilicitude e fixar o limite que, uma vez transposto, interdiz o benefício da teoria das sociedades de fato’, preferindo deixar esse ‘exercício delicado’ ao juiz, pois ‘a noção de ordem pública não é imutável e deve ser adaptada à evolução dos costumes e das necessidades sociais’ (...). Temple apela para um tipo de solução que reconheceria em favor de tais sociedades uma ‘personalidade moral de fato’, na linha talvez do célebre acórdão da Cour de Cassation em matéria de comitês de estabelecimento, em que se diz que a personalidade civil deve ser reconhecida ‘a todo grupo dotado de possibilidade de expressão coletiva para a defesa de interesses lícitos, dignos, por conseguinte, de ser juridicamente reconhecidos e protegidos’. Invocando a lição da experiência alemã em matéria de sociedades em nome coletivo, Temple responde antecipadamente à objeção segundo a qual uma tal solução se chocaria com a intenção do legislador de 1966, que foi a de fazer da existência ou inexistência do registro a fronteira entre a existência da personalidade e a sua negação: ‘não se trata de fazer gozar uma sociedade de fato, para o futuro, da personalidade moral, mas de tirar certas conseqüências desta última para o passado’.” (in A dupla crise da pessoa jurídica, págs. 188-194. Ed. Saraiva: 1979). Arejado pela modernidade da economia globalizada, o conceito dá curso à idéia de “sociedade de sociedades”, em que se funda a joint venture, e autoriza que se cogite de responsabilizar a universalidade, provida de personalidade moral, pelos direitos e obrigações que, insuficiente ou ineficazmente exercidos pelas sociedades componentes no passado, implicaram o fracasso do empreendimento comum. Em outras palavras: não se pode atribuir responsabilidade pelo insucesso a apenas uma das sociedades participantes da universalidade, quando todas concorrem para a geração das causas do mau resultado. Qualquer direito que a autora, franqueada, pudesse ter, quanto a repartir os prejuízos do empreendimento comum com a ré, franqueadora, se desvaneceria caso se demonstrasse que ao fracasso deu causa, com exclusividade, gestão desastrada ou indisciplinada da franqueada, em desobediência a escorreitas orientações da franqueadora. Tal tese, que é a da ré, porta contradição nos próprios termos, em face das restrições a que a franqueada estava submetida pela franqueadora na administração do negócio. Não se percebe como seria imputável à franqueada a total e exclusiva responsabilidade pelo insucesso, se todas as ações se faziam em estrita conformidade com as premissas, condições e orientações estabelecidas pela franqueadora, de modo cogente e inafastável, e de cuja execução participava no cotidiano da distribuidora, tutelando-a.

Em verdade, o insucesso do empreendimento, nas peculiares circunstâncias comprovadas nos autos, não decorreu de culpa exclusiva de uma das contraentes, mas de ambas. Recorra-se novamente ao esclarecedor laudo pericial: em alguns pontos, a autora não implantou o sugerido pela ré (resposta ao quesito de nº 6, fls. 834), mas, em outros itens, não se pode afirmar, como faz a franqueadora, que a franqueada deixou sem cumprimento obrigações de sua incumbência, tal como no pertinente à realização de programas de treinamento de gerentes de lojas e equipes de vendas, em que houve significativo investimento (resposta ao quesito de nº 7, fls. 834), ou como em campanhas publicitárias, a que a franqueada destinou valores consideráveis (resposta ao quesito de nº 8, fls. 834); a seu turno, a franqueadora não atendia, em tempo hábil, à entrega de peças de reposição para consertos (resposta ao quesito de nº 14, fls. 837) e impunha à franqueada política de compras e revendas, corroboradas em relatório subscrito por seus administradores, que se mostrou improfícua, elevando a níveis insuportáveis o estoque de mercadorias sem interesse no mercado brasileiro. As perdas são fato incontroverso. A ré admitiu-lhes a existência em correspondência remetida à autora, segundo retratado pelo documento de fls. 125-129. E a perícia as estimou, no que se refere a gastos com abertura, legalização e padronização de lojas, em R$ 8.565.167,69, valor atualizado até 30.06.01 (fls. 839). A autora almeja, a título de ressarcimento, a condenação da ré ao pagamento de 50% desse valor. Assiste-lhe razão, ressalvada a possibilidade de revisão do quantum em liquidação, porém induvidoso que houve o prejuízo e que deve ser repartido em idêntica proporção. O recurso adesivo resulta prejudicado. Uma vez que buscava a elevação da verba honorária, o provimento do primeiro recurso impõe derrota processual ao recorrente adesivo, com a inversão dos ônus da sucumbência, deixando a ré de fazer jus a honorários. Eis os motivos de votar por que, prejudicado o segundo recurso, da ré, se dê provimento ao primeiro recurso, da autora, para, reformada a sentença, julgar-se procedente o pleito autoral, e declarar-se a existência de uma universalidade de pessoas (sociedade de fato), em ordem à satisfação de interesses econômicos comuns nos contratos que as partes celebraram, com o efeito jurídico de ambas absorverem, em idêntica proporção, os prejuízos resultantes do fracasso do empreendimento, atribuível ao desempenho inadequado de ambas, em valor a ser apurado em liquidação, sujeito à correção monetária e a juros moratórios de 1% ao mês, que se contarão e fluirão a partir da citação. Por efeito da sucumbência, a ré responderá pelas custas do processo e por honorários, que se arbitram em 20% (vinte por cento) sobre o valor que à ré caberá indenizar, em harmonia com os critérios do art. 20, § 3º, do CPC.

Rio de Janeiro, 23 de janeiro de 2008. Des. Jessé Torres Relator 2008 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25


Roubo contra passageiro embarcado Responsabilidade Civil

Mario Dias de Mesquita Advogado

A

Introdução qui pretender-se-á abordar a questão da respon­ sabili­ dade civil das concessionárias pelos danos decorrentes de roubos praticados contra os passageiros, no interior dos veículos de transporte coletivo. Fique, desde logo, firmado que o foco do presente trabalho não é o debate acerca de ser objetiva ou subjetiva a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de Direito Privado que operam o transporte público de passageiros por concessão, permissão ou autorização. Até porque, pelos danos sofridos por passageiros durante o transporte, a divergência, como será visto adiante, é restrita. Apenas para introduzir a questão focada, nos permitimos alinhar alguns conceitos que, embora não se exclua a possibilidade de virem a ser objeto de outros trabalhos, repita-se, não são protagonistas na proposta deste artigo. Doutrina e jurisprudência vêm discutindo a responsabilidade civil das sociedades empresárias privadas, concessionárias do serviço público de transporte coletivo de passageiros. A Constituição da República dispôs: “Art. 37, § 6º. As pessoas jurídicas de Direito Público e as de Direito Privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, 26 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2008

nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.” A partir do texto acima transcrito, que define como objetiva a responsabilidade civil das operadoras privadas dos serviços públicos, dividiram-se os intérpretes: alguns, entendendo estar a responsabilidade objetiva referida pelo § 6º, do artigo 37, restringida aos passageiros transportados; outros, entendendo que a responsabilidade objetiva, de que trata o referido parágrafo, se aplica a todo e qualquer dano causado a quem quer que seja, passageiro transportado ou qualquer outra pessoa. A primeira interpretação decorre, sobretudo, por considerar que o texto constitucional precedeu o Código de Defesa do Consumidor e, assim, antecipando-se à legislação especializada consumerista, teve por objetivo ampliar a proteção do consumidor do serviço público prestado pelas concessionárias. E tal posição encontraria espeque nos registros dos debates na constituinte. Nesse sentido, decisão do STF, assim: “A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de Direito Privado prestadoras de serviço público é objetiva relativamente aos usuários do serviço, não se estendendo a pessoas outras que não ostentem a


Foto: Arquivo JC

condição de usuário. Exegese do art. 37, § 6º, da CF”. (RE 262.651, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 06/05/05) Portanto, segundo a interpretação que restringe a responsabilidade objetiva das concessionárias às relações de consumo, é subjetiva a responsabilidade civil pelos danos causados por seus agentes e que não decorram da relação de consumo. Ainda poderia ser acrescido em favor de tal entendimento, que às pessoas jurídicas de Direito Privado, ao contrário da União, Estados e Municípios, não é concedido idêntico tratamento para liquidação das indenizações, como, v.g. o pagamento mediante precatório, sendo este limitado à força da arrecadação tributária. Portanto, não haveria simetria entre as conseqüências da responsabilidade objetiva dos entes públicos e das concessionárias, desautorizando a identidade de tratamento. A interpretação que estende a responsabilidade civil objeti­va aos não passageiros se firma, entre outros fundamentos doutrinários, na impossibilidade de restringir o sentido da expressão “terceiros”, do § 6º, do artigo 37, da CF. Quanto aos passageiros, a responsabilidade civil objetiva das concessionárias prestadoras de serviços públicos está inscrita no artigo 14, combinado com o artigo 22, ambos

da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, o Código de Defesa do Consumidor, que assim dispõem: “Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.” “Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.” Como já registrado, não cabe no fôlego deste trabalho o aprofundamento de questões correlatas que emergem da abordagem mais ampla do tema responsabilidade civil do transportador. Assim, por exemplo, também não se abordará a questão da definição de serviço pelo § 2º, do artigo 3º, do Código do Consumidor1 (que, exigindo a remuneração, excluiria os beneficiários de gratuidades). Portanto, a partir do entendimento de que, em tese, é objetiva a responsabilidade civil das concessionárias privadas de serviços públicos por danos causados aos passageiros embarcados (pelo menos, os pagantes), seja qual 2008 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27


“Na verdade, como define a legislação consumerista, ‘o fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor’ e, efetivamente, a ação dos meliantes não pode ser qualificada como ‘vício de qualidade’ do serviço.”

for o fundamento legal para tal entendimento, abordarse-á a responsabilidade daquelas concessionárias em face de danos causados por roubos praticados contra passageiros no interior dos veículos empregados no transporte público coletivo. Os elementos da responsabilidade objetiva “... por mais louvável que seja a ampliação do dever de reparar, protegendo-se as vítimas de uma sociedade cada vez mais sujeita a riscos (...) – não se pode desnaturar a finalidade e os elementos da responsabilidade civil. O dever de reparar não há de ser admitido sem a presença dos elementos da responsabilidade civil. Tão grave quanto a ausência de reparação por um dano injusto mostra-se a imputação do dever de reparar sem a configuração dos seus elementos essenciais, fazendo-se do agente uma nova vítima.” 2 O fato, a autoria e o nexo de causalidade, como unanime­­ mente consagram a doutrina e a jurisprudência, são elemen­tos essenciais da responsabilidade civil. E, ao contrário da responsabilidade subjetiva, para afirmar a objetiva, prescinde-se da demonstração da culpa. Mas, é imperioso que estejam configurados os demais elementos essenciais, sob pena de afirmação da responsabilidade sem causa ou da responsabilidade integral, modalidades não admitidas pelo Direito pátrio. É assente na doutrina que são causas de rompimento do nexo de causalidade o caso fortuito ou força maior, a culpa exclusiva da vítima e o fato de terceiro, sendo as duas últimas expressamente contempladas pelo Código de Defesa do Consumidor3. E aqui se insere a questão dos roubos praticados contra passageiros, no interior dos coletivos que operam o transporte público de passageiros. O rompimento do nexo de casualidade Há quem entenda que a lamentável repetição de roubos 28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2008

tornou a hipótese como previsível e, assim sendo, incapaz de romper o nexo de causalidade que afirma a responsabilidade da concessionária prestadora do serviço público. Tratar-se-ia de risco do negócio. Com todas as vênias às respeitáveis opiniões e decisões nesse sentido, não parece ser o entendimento que melhor se conforma ao Direito posto. Ademais, tal entendimento poderia dar margem à extrapolação de que a doutrina e a jurisprudência se renderiam à banalização do crime4. E mesmo o intérprete que se renda à banalização do crime, por coerência, já terá admitido que tratar-se-iam de riscos “... normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição”5, sendo, obviamente, dispensável que o prestador do serviço informe ao consumidor acerca do referido risco. E que não poderia ser caracterizado como risco exclusivamente do negócio, já que mais amplo: risco de todos. Na verdade, como define a legislação consumerista, “o fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor”6 e, efetivamente, a ação dos meliantes não pode ser qualificada como ‘vício de qualidade’ do serviço. O risco à saúde ou à segurança do consumidor, a que o fornecedor do serviço não pode expor o passageiro transportado, é aquele inerente à atividade de transportar propriamente dita, decorrente de ação ou omissão de preposto ou proveniente da utilização do veículo e seus equipamentos, ainda que fortuito (seria o chamado fortuito interno). Não há fundamento legal para que se exija mais do fornecedor de serviço. No caso específico de roubo a passageiros trans­por­ tados, é estreme de dúvida que são ocorrências “(...) imprevisíveis, inevitáveis, irresistíveis e indefensáveis”7 (tanto que as autoridades públicas não conseguem evitar!), que trata-se de questão afeta à segurança pública. E, como tal, o monopólio da ação preventiva e repressora compete ao Poder Público8. Aliás, demonstrando a incompetência (não fora a impotência) da iniciativa privada para prover a segurança


“A jurisprudência maciçamente predominante, em todas as instâncias do Judiciário, é no sentido de que o roubo praticado contra passageiros embarcados nos ônibus que operam os serviços concedidos é fato de terceiro, imprevisível e inevitável pelas concessionárias.”

pública, transcreve-se em seguida manifestações recentes de autoridades públicas fluminenses9: “Não podemos consentir que a segurança particular substitua a segurança pública.” Ten.Cel. PM Ricardo Pacheco – Comandante do 12º BPM “Se meus homens virem um segurança em alguma rua, ele será preso em flagrante por usurpação de função pública. Eles podem até responder por extorsão.” Dr. Milton Olivier, delegado titular da 81ª Delegacia de Polícia Evidentemente, não se poderia ver em decisões judiciais o estímulo à criação das malfadadas “milícias” que, nos ônibus, substituiriam as autoridades constituídas. A ação dos meliantes, claramente, concretiza a hipótese do artigo 14, § 3º, II, do CDC. A jurisprudência Aqui, abre-se a oportunidade para a recuperação da conjuntura em que se afirmou a responsabilidade objetiva das estradas de ferro – matéria, inclusive, sumulada –, que muitos estudiosos transplantam para o transporte rodoviário

de passageiros. Entre as atividades das sociedades empresárias ferroviárias e as das rodoviárias, há em comum apenas a finalidade do transporte de passageiros. Mas, não se podem olvidar as diferentes condições em que desempenham os seus misteres: as ferrovias operam em vias exclusivas e muradas (de acesso restrito e controlado ou controlável) e dispõem da Polícia Ferroviária10; enquanto o transporte rodoviário divide a via pública com todos os demais veículos e não dispõe de polícia específica. A jurisprudência maciçamente predominante, em todas as instâncias do Judiciário, é no sentido de que o roubo praticado contra passageiros embarcados nos ônibus que operam os serviços concedidos é fato de terceiro, imprevisível e inevitável pelas concessionárias. Conseqüentemente, é reconhecido o rompimento do nexo de causalidade e infirmada a responsabilidade da transportadora de passageiros. E é assim, a nosso sentir, com acerto. Conclusão “Não almejo estimular convicção. Almejo estimular o pensamento e perturbar preconceitos.” (Sigmund Freud)

NOTAS 1 ”Art. 3o, §2º. Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.” 2 TEPEDINO, Gustavo. in O Futuro da Responsabilidade Civil, Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 24, Padma Editora 3 ”Art. 14, § 3º. O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.” 4 Pensamento realista o da juíza Elisa Carpim Corrêa, ao sentenciar (Proc. nº 01198168955, 9a Vara Cível de Porto Alegre): “De fato, o assalto a caminhoneiros, com o conseqüente roubo das mercadorias, é algo que não se desconhece. Mas taxá-lo de corriqueiro é banalizar a violência (...)”. Extraído do artigo do advogado Carlos Josias Menna de Oliveira (OAB-RS 16.126) publicado em 01/07/2008, in www.espacovital.com.br 5 “Art. 8º. Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito.” 6 CDC, art. 20 7 In prefácio do Advogado Antônio Carlos Amaral Leão Filho, na obra A exclusão de culpa do transportador no caso de assaltos e lesões a passageiros, Elizabeth Viúdes C. Leão 8 CF, art. 144 9 O Globo – Caderno NITERÓI – Domingo, 27/07/2008 – pág. 3 10 CF, art. 144, III e § 3º

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ORIENTE MÉDIO A PAZ QUE SE IMPÕE OU A GUERRA SINISTRA

Luiz Felipe da Silva Haddad Desembargador TJ/RJ

O

conflito, que parece nunca terminar, entre judeus e árabes, em torno da Palestina, não começou, como alguns pensam, no ano de 1948, quando o Estado de Israel foi criado e reconhecido pelas Nações Unidas, sob a histórica presidência do brasileiro Oswaldo Aranha, em sua Assembléia Geral. Remonta às décadas de 1920/30 e 1930/40, quando a Grã Bretanha – que obteve mandato da antiga Liga das Nações, sobre tal região, em seguida à queda do Império Turco Otomano, com base na “Declaração Balfour”–, autorizou a emigração judaica, que seria o retorno de um povo expulso há muitos séculos, para seu território de origem. Choques sangrentos então ocorreram. E de 1948 para cá, por conta das guerras vencidas por Israel – naquele mesmo ano, e em 1967 –, o quadro se agravou. A área que, pela partilha, caberia ao Estado Hebreu, foi de fato expandida, com a ocupação da Cisjordânia, do setor oriental de Jerusalém, da península do Sinai, com a Faixa de Gaza, e das Colinas de Golan. O Sinai foi devolvido ao Egito pelos acordos de Camp David, em seguida à histórica visita a Israel do grande presidente egípcio Anuar Sadat (1977). Houve as tratativas de paz, em Oslo, na década final do século findo. Além do Egito, a Jordânia, e outros países árabes, reconheceram a existência de Israel. Foi criada a Autoridade Palestina, etapa prévia do almejado Estado vizinho do judaico. Gaza foi desocupada, bem como parte da Cisjordânia. Mas agora reina um perigoso impasse. O governo palestino legítimo exerce poder apenas na Cisjordânia, mas com exclusão dos vários assentamentos efetivados por Israel,

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a título de defesa – ao ponto de tal região ter fraturada a integridade. Em Gaza, o regime islâmico radical do “Hamas” ataca Israel com mísseis, e recebe em retaliação forte bloqueio que gera o padecimento dos habitantes, sob confinamento e pobreza. Um muro, também com fim defensivo, separará Israel da Cisjordânia, impedindo o livre trânsito de pessoas e mercadorias. Outro grupo fundamentalista – “Hizbollah” – que hoje domina o sofrido Líbano, com apoio do Irã, age no mesmo sentido do “Hamas”. A paz com a Síria parece não estar distante, mas o regime iraniano dos “aiatolás”, na ponta contrária dos interesses imperiais estadunidenses, radicaliza e provoca, na questão nuclear. Portanto, além do dito conflito de longa data, paira outro, jungido às riquezas petrolíferas, cuja explosão, se não causará outra guerra mundial, acarretará enorme dano, em termos econômicos e sociais, ao orbe terrestre, máxime às “legiões” de miseráveis e de excluídos. Para que as chamas não se espalhem com mais intensidade, solapando tudo o que de bom foi feito em todo o mundo após a vitória dos valores humanísticos sobre a sórdida tirania nazi-fascista; para que os ideais que nortearam a criação da ONU não sejam enterrados, ou atirados à sarjeta, é dever da consciência democrática, e autenticamente progressista, pressionar e exigir, não só dos “atores” do conflito, mas, sobretudo, dos “indiretamente envolvidos”, que se atenham aos ditames do Direito e da Justiça, que são inseparáveis dos inerentes à Ética e à Solidariedade. O direito de Israel, de existir e viver em paz e segurança, é inelutável. Mas também o é o do povo árabe palestino em ter seu Estado, nas áreas


Foto: Arquivo Pessoal

acima referidas, compreendendo alguns bairros de Jerusalém. Dois Estados, – como votado pela ONU – vizinhos e em colaboração para o desenvolvimento, marchando juntos, no despojamento de ódios, no exemplo franco-alemão, ou mesmo no sino-japonês. No caso de Israel, que, livre do medo, retome o espírito humanista que remete aos “Kibbutz”, deixando de servir a interesses plutocráticos que nada têm a ver com a beleza e a tradição dos ensinos hebraicos. No caso da Palestina, e de outros países árabes, que se livrem dos fanatismos e dos atrasos, que também são estranhos à verdadeira sabedoria islâmica, e à boa nova cristã. Que caminhem no rumo da tolerância religiosa e do pluralismo democrático, que passa pelo fim da opressão da mulher pelo homem, e pelo respeito às diferenças. Nós, brasileiros, embora estejamos bem longe daquelas terras pela geografia, na verdade estamos perto por nossas origens, por nossos valores espirituais; e, pelo interesse em uma autêntica globalização, norteada pelo Direito, no rumo do desenvolvimento de todos, novo nome da Paz, como proclamado pelo saudoso Papa Paulo VI na Encíclica “Populorum Progressio” (1967). É nosso dever, especialmente dos que têm ascendência árabe (caso deste autor), e dos que têm ascendência judaica, pugnar para que o fraterno convívio, que sempre houve no Brasil entre as etnias primas, se estenda em maior dimensão. Que Deus, que é também Alá e Javé (ou Jeová), tenha piedade dos Povos da Aliança, e ilumine a todos no caminho da Paz. Shalom, Salam, Amém.

Nota do Editor O indômito, mas sempre humilde no trato com seus semelhantes - especialmente com seus amigos e conhecidos -, desembargador Luiz Felipe da Silva Haddad é uma das personalidades mais sociáveis e benquistas do Judiciário brasileiro. O elucidativo artigo do estimado Desembargador, reflete o carinho e a preocupação do ilustre descendente árabe, na conclamação da paz e do convívio fraterno entre as duas raças, em igualdade de condições como ocorre no Brasil, com os filhos, netos e bisnetos dos originários daquelas nações, que aqui tão bem se irmanaram com os naturais e os oriundos de todas as etnias que vivem no país, constituindo com a operosidade e suas culturas originais o caldeamento de uma sociedade ímpar, de gente muito especial. Congratulações ao eminente e prezado jurista, que honra com sua sabedoria, humanismo, cultura e inteligência o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, e o compartilhamento do Editor e da Direção da Revista na esperança de que haja paz, harmonia e amor entre todas os povos e nações.

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1o Prêmio tribunal de justiça do estado de são paulo

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ambiente de insegurança jurídica é um entrave ao desenvolvimento do País, conforme a constatação de estudiosos da conjuntura econômica nacional. Na tentativa de minimizar os impactos deste cenário no setor produtivo, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) vem ampliando, nos últimos quatro anos, sua atuação na área, com intuito de garantir a entrada e a manutenção de novos investimentos. Justamente pelo conjunto de ações empreendidas, o presidente da entidade, Paulo Skaf, tornouse a primeira personalidade a receber o “Prêmio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo”, entregue em cerimônia que reuniu autoridades, familiares e amigos no Palácio da Justiça, no último mês de agosto. A escolha do nome de Skaf foi um consenso entre os desembargadores, que reconheceram os seus relevantes serviços prestados à Justiça. Já em sua primeira gestão, Skaf convidou o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Sydney Sanches, para presidir o Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos (Conjur) da Fiesp. “Ao fazêlo, Skaf acentuou que sua preocupação maior era, e sempre seria, com a segurança jurídica, afirmando que em todos os 32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2008

momentos, que tudo quanto o homem alcançou dependeu, para consolidação, como conquista, de sua integração na vida jurídica”, afirmou o desembargador João Cláudio Caldeira em seu discurso de saudação ao homenageado na cerimônia de entrega do prêmio, no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. A lentidão do sistema judiciário – sobrecarregado e refém de normas constitucionais que permitem infinitos recursos e um sem-número de protelações –, impõe demora à solução definitiva dos conflitos jurídicos. A constatação de tais problemas motivou a Fiesp, desde o início da gestão do presidente Skaf, a criar a Câmara de Mediação e Conciliação (Camfiesp). Ela oferece acesso a um meio mais barato e mais rápido do que o acionamento da Justiça para a solução de conflitos de interesses. Podem beneficiar-se dos serviços de conciliação e mediação tanto as empresas ligadas aos sindicatos afiliados à Fiesp, quanto seus sóciosproprietários. “Problemas sociais, como a violência urbana e a falta de oportunidades para os egressos do regime penitenciário, também mereceram atenção do homenageado”, afirmou Caldeira. Por meio de convênio assinado com o Conselho


Foto: Daniel Morelli

“Quem defende o cidadão é o Poder Judiciário. Quem defende os direitos das pessoas físicas, das pessoas jurídicas é o Poder

Judiciário. A sociedade brasileira não abrirá nunca mão de um Poder Judiciário independente, um Poder Judiciário forte.”

Paulo Skaf, presidente da Fiesp/Ciesp

Foto: Daniel Morelli

Da esquerda: Presidente do TJ/SP, desembargador Vallim Bellocchi, o homenageado, Paulo Skaf e o desembargador João Cláudio Caldeira

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“Quando eu soube da notícia desta homenagem e ligado à solidariedade, fiquei muito feliz, porque é nisso que acredito. Eu acredito na união das pessoas, no entrelaçamento, na força, na sinergia, em busca de objetivos comuns.” Da esquerda: Presidente da Fiesp/Ciesp, Paulo Skaf, presidente da Assembléia

Nacional de Justiça (CNJ) e com a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, o Senai-SP – braço de formação profissional do Sistema Fiesp – assumiu a realização de um programa pioneiro de capacitação profissional para ex-detentos, na área da Construção Civil. “Desta forma, a Fiesp assumiu o compromisso de sensibilizar as empresas para a importância de absorver esta mão de obra”. Afinal, quem tem capacitação arruma emprego e não volta ao mundo da criminalidade. Vitória A luta contra a não renovação da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras), liderada por Skaf no ano passado, também mereceu destaque na justificativa da escolha: “O privado e o público se integram e, nessa esteira, o presidente da Fiesp/Ciesp conseguiu sensibilizar com êxito, o Poder Legislativo e a sociedade para a questão da CPMF”. Presente à cerimônia de entrega do prêmio, o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, além de elogiar Skaf por promover a sinergia entre a as áreas pública e privada, relembrou a sua vitoriosa cruzada nacional contra a CPMF, e destacou qualidades do premiado: “Nós temos, nos últimos anos, nos mais diversos momentos por que passou o país, a presença sempre muito firme e balizadora do Paulo Skaf. Com suas manifestações bem embasadas, ele faz com que a Nação brasileira tenha a voz da indústria presente e, 34 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2008

mais do que a voz da indústria, a voz do desenvolvimento, a voz do emprego, a voz da estabilidade social”. O presidente da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, deputado Vaz de Lima, disse que homenagear personalidades que se destacam em ações pelo fortalecimento da Justiça constitui forte estímulo para todos os que compreendem a importância da comunhão de esforços da cidadania com os tribunais. “Paulo Skaf agigantou-se e agiganta-se no cenário nacional. Sua liderança à frente da Fiesp e do Ciesp atinge uma dimensão poucas vezes observada no empresariado de nossa terra e já transbordou para outros setores da vida brasileira. E a escolha dele por vossas excelências para receber pela primeira vez o ‘Prêmio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo’, expressa de forma irretocável este sentimento”, disse o Deputado aos presentes na cerimônia. O homenageado Paulo Skaf classificou o prêmio como um estímulo para as horas difíceis e um honroso presente, do qual se lembrará para sempre. “Quando eu soube da notícia desta homenagem e ligado à solidariedade, fiquei muito feliz, porque é nisso que acredito. Eu acredito na união das pessoas, no entrelaçamento, na força, na sinergia, em busca de objetivos comuns. Este troféu vai me estimular, vai me energizar para continuar a luta, junto com meus pais, meus amigos e todos os homens de bem deste País, em busca de um Brasil cada vez melhor para todos nós”, concluiu Skaf, sendo muito aplaudido.


Foto: Daniel Morelli

“O privado e o público se integram e, nessa esteira, o presidente da Fiesp/Ciesp conseguiu sensibilizar com êxito, o Poder Legislativo e a sociedade para a questão da CPMF.” Legislativa do Estado de São Paulo, Vaz de Lima e o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab “Eu sempre digo que quando o Paulo Skaf assumiu a presidência da Fiesp, não foi apenas a Fiesp que ganhou um grande presidente, mas o Brasil ganhou um grande líder. E o

Tribunal de Justiça, de uma maneira muito acertada teve uma feliz lembrança, uma feliz iniciativa, ao promover esta justa homenagem.”

Gilberto Kassab, prefeito de São Paulo

- “Está gravada indelevelmente na nossa memória, Paulo, sua épica ação, a batalha pelo fim

da CPMF. Quão bem o poeta Paulo Bon fim e Miguel de Cervantes, qual Don Quixote, ou se preferirem, o Cavaleiro da Triste Figura Moderna, Paulo Skaf apostou no desa fio

gigantesco e mobilizou todas as forças possíveis até a vitória inesquecível no Congresso Nacional.” Vaz de Lima, presidente da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo

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Foto: Arquivo Pessoal

Menos uma dor de cabeça para lula Arnaldo Niskier Membro da ABL Presidente do CIEE/RJ

Foto: Arquivo Pessoal

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e olho em recursos de 8 bilhões de reais, perten­ centes ao Sistema S, especialmente Senac e Senai, o Ministro da Educação sonhou em se apropriar dessa verba anual para ampliar as vagas gratuitas de educação profissional. O motivo era nobre, mas para que ele se viabilizasse necessário seria produzir uma lei congressual, coisa para dois anos de idas e vindas, com todos os riscos de enxertos indesejáveis. Seria uma situação de desconforto para o Governo Lula. Houve conversações, no começo com fortes atritos, mas a sabedoria prevaleceu e estabeleceu-se um acordo, com honra para todas as partes. Da receita líquida do Sistema S, a partir de 2009 e até 2014, de forma progressiva, serão destinados recursos ao programa de expansão de vagas, praticamente em todo o território brasileiro. O bom senso prevaleceu, na discussão entre autoridades e empresários. O Sesc e o Sesi também participarão da parceria, oferecendo atividades sociais e culturais de primeira qualidade, como é da sua tradição, nas várias sedes que há no país. Chegarão a 2014 investindo 1/3 dos seus respectivos orçamentos para viabilizar esse louvável acesso, sobretudo para crianças carentes. Um bom acordo sempre é melhor do que qualquer tipo de briga e um dos itens aprovados refere-se ao


respeito à autonomia do Sistema S, na gestão dos recursos. Surgiram insinuações estatizantes de que havia descuidos nessa operação, o que irritou as confederações patronais, submetidas ao rigor de auditorias permanentes e à ação, sempre vigilante, do Tribunal de Contas da União. O que ganha a educação brasileira com tudo isso? Um projeto de revalorização do ensino técnico, a ampliação das oportunidades de profissionalizantes gratuitos e educação básica e continuada, além de ações educativas gratuitas, o que se faz hoje de forma descompassada nas várias regiões em que se posiciona a diversidade brasileira. A idéia é boa, produto de uma compreensão saudável, mas há nuvens que podem toldar a sua eficiente execução. Falta um decreto presidencial para pormenorizar de que forma isso tudo será feito. E mais: com o atual quadro de confusão que marca o ensino médio, que teve origem no Governo FHC, fica difícil esperar sucesso imediato na relação custo/ benefício. É preciso pensar em questões essenciais, como o aperfeiçoamento da Lei no 9394/96 (já envelhecida) no que se refere ao ensino profissionalizante, cujo currículo é indesculpavelmente complicado. Outro problema que essa discussão suscita é o respeito às vocações econômicas do País. Se querem em Brasília baixar

ordens para serem cumpridas, do ponto de vista curricular, em Rondônia ou no Rio Grande do Sul, mantendo a lamentável tendência da centralização ditatorial, cometese um equívoco de proporções titânicas. Vamos ouvir mais e melhor os sistemas estaduais, colaborando o governo central com recursos para que sejam feitos levantamentos sérios a respeito do crescimento regional. Se existe uma vocação agrícola, não há porque promover cursos no setor secundário da economia. Pesquisas mostram que ainda temos uma incômoda proporção de desemprego entre os jovens de 18 a 24 anos de idade. Até que ponto a formação precária atrapalha a absorção desse enorme contingente? Interessante no quadro que se delineia é a preocupação cultural. Não será apenas o ensino gratuito, mas a concessão, por intermédio de bolsas parciais, de subvenção a projetos relacionados à saúde, ao esporte e ao lazer, além da cultura propriamente dita, como faz o Sesc, com enorme sucesso, nas múltiplas unidades existentes no Brasil. As exposições, como as que são feitas hoje em Pinheiros e Santo André (São Paulo), que tivemos o ensejo de visitar, merecem ser vistas por jovens e crianças. O tema é o livro como instrumento de cultura. Isso não interessa também a alunos e trabalhadores de baixa renda?

CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO DE CULTURA JURÍDICA “Os 200 anos do direito brasileiro. Legado e perspectivas. Identidade e diversidade luso-brasileira”

1, 2 e 3 de Setembro de 2008 Local: Confederação Nacional do Comércio - CNC - Av. Gal. Justo 307 - Centro - Rio de Janeiro

Professores Doutores

Aloisio Surgik (UFPR) - Álvaro Iglesias (CBFD) - Ana Cristina Araújo (Universidade de Coimbra) - Ana Lúcia de Lyra Tavares (PUC/RJ) António Avelãs Nunes (Universidade de Coimbra) - António Braz Teixeira (Universidade Autônoma de Lisboa) António Manuel Hespanha (Universidade Nova de Lisboa) - António Pinto Monteiro (Universidade de Coimbra) António dos Santos Justo (Universidade de Coimbra) - Aquiles Côrtes Guimarães (UFRJ) - Arion Sayão Romita (UERJ) Aurélio Wander Bastos (UNIRIO) - Carlos Mathias de Souza (UnB) - Cesar Asfor Rocha - Diogo Leite Campos (Universidade de Coimbra) Edvaldo Brito (Universidade Mackenzie) - Fernando Catroga (Universidade de Coimbra) - Fernando Taveira da Fonseca (Universidade de Coimbra) Francisco Amaral (UFRJ) - Francisco Vieira Lima (UFES) - Frederico Henrique Viegas de Lima (UnB) - Gustavo Tepedino (UERJ) Heloisa Helena Barboza (UERJ) - J. Othon Sidou (Presidente da Academia Brasileira de Letras Jurídicas) João Calvão da Silva (Universidade de Coimbra) - Joaquim de Souza Ribeiro (Universidade de Coimbra) Jorge Ferreira Sinde Monteiro (Universidade de Coimbra) - José Francisco de Faria Costa (Universidade de Coimbra) José Gabriel Assis de Almeida (UERJ) - José Joaquim Gomes Canotilho (Universidade de Coimbra) - Luiz Edson Fachin (UFPR) Luiz Fernando Whitaker da Cunha (UERJ) - Maria Adélia Campelo (IAB) - Maria Celina Bodin de Moraes (UERJ) Mário Emilio Bigotte Chorão (Universidade Católica de Lisboa) - Miguel Reale Jr (USP) Paulo Luiz Netto Lobo (UFAL) - Paulo da Mota Pinto (Universidade de Coimbra) - Pierangelo Catalano (Universidade de Roma - La Sapienza) Ricardo César Pereira Lira (UERJ) - Roberto Rosas (UnB) - Rui Manuel de Figueiredo Marcos (Universidade de Coimbra) Sergio d’Andréa Ferreira (UERJ) - Silmara Chinelato de Almeida (USP) - Zeno Veloso (UFPA)

Comissão Científica

Profs. Doutores Francisco Amaral, António Avelãs Nunes, José Francisco de Faria Costa, Roberto Rosas e Luiz Edson Fachin

Coordenação Geral

Prof. Doutor Francisco Amaral (UFRJ)

Informações/ Inscrições: (21) 2113-0193 / 2522-0240 / 2553-3112 / 2247-9521 e-mail: sommaeventos@yahoo.com.br idclb@terra.com.br / www.idclb.com.br

Coordenação Executiva Dra. Ana Maria Lourenço

Serão atribuídas 21 horas de estágio pela OAB/RJ

Apoio:

UFRJ - ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS JURÍDICAS - UNIVERCIDADE - OABRJ - ANOREG - FESUDEPERJ - EDITORA RENOVAR - EDITORA JURUÁ - EDITORA MAGISTER - ÂMBITO JURÍDICO

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2008 E O JUDICIÁRIO INDEPENDENTE CRIAÇÃO E AFRONTA

Rodrigo Lins e Silva Cândido de Oliveira Advogado

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ntes mesmo da nossa independência política, em 1808 instalava-se no Brasil o seu Poder Judiciário Independente. Surgia a Casa da Suplicação do Brasil, instituída pelo Príncipe Regente D. João, por Alvará Régio de 10/05/1808, como lembrado na cerimônia de abertura do Ano Judiciário, no Supremo Tribunal Federal. Neste ano de 2008 comemoram-se, assim, os 200 anos desse relevante fato histórico. Um bicentenário não é pouca coisa. Comemoram-se, também, os 20 anos da Constituição de 1988, editada ao fim da ditadura militar. Ano de festa cívica, aquele, após o período das trevas. Trevas que, em 1968, alcançaram o seu ápice com a edição do AI-5, culminando na maior afronta que a Suprema Corte brasileira já sofreu na sua história. Do emblemático ano de 1968, relevante no Brasil e no exterior pelo extraordinário número de acontecimentos históricos nele ocorridos, lá se vão 40 anos. O ano de 2008, como se vê, é cheio de significados. Para o mundo, para o Brasil e para o Poder Judiciário nacional. Os 40 anos do AI-5 trazem a memória de uma violência sem precedentes praticada pela ditadura militar contra a mais alta Corte de Justiça do País: com base nele a ditadura militar impôs arbitrariamente a expulsão dos ministros Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva de suas cadeiras no Supremo. Por que motivo? Pela independência que encarnavam no exercício da judicatura naquela Corte. Ou seja: por exercerem as suas obrigações funcionais com altivez. 38 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2008

Sobre Victor Nunes, disse Heleno Fragoso: “Homem de fina inteligência e sensibilidade, de cultura jurídica profunda e enciclopédica, sereno e ponderado, corajoso e independente. Creio que Victor Nunes Leal foi o maior juiz que o Supremo Tribunal teve, no período em que atuou a minha geração de advogados”, sem esquecer que o Supremo, naquele tempo, “era um verdadeiro escrete de juízes magníficos”. Remata o mesmo Heleno Fragoso: “Pode-se bem avaliar a estupidez que significou a demissão desse magistrado excepcional”. Sergio Bermudes relata muito bem o abatimento que caiu sobre os ministros cassados, falando especificamente sobre Victor Nunes: “O novo presidente da Ordem dos Advogados do Brasil pretendeu tomar Victor Nunes Leal por conselheiro; um conselheiro especial, capaz de opinar com isenção e sabedoria sobre os projetos para o seu biênio. Encarregoume da sondagem”. Após relatar a conversa no almoço que tiveram, Bermudes finaliza com a resposta de Victor Nunes: “Eu não posso aceitar. Os meus conselhos não prestam, não. Eu fui deposto”. Em artigo que publicou 25 anos após a violência praticada pela ditadura, o próprio Evandro Lins e Silva disse o seguinte: “Vinte e cinco anos passados, ignoro até hoje a razão da nossa aposentadoria. Não fomos ouvidos. Na festa de meu jubileu profissional no Primeiro Tribunal do Júri, no Rio de Janeiro, voltei, 50 anos depois, à mesma tribuna do dia da estréia. Pedi ao Criador que, no Juízo Final, me assegurasse o direito de defesa, recusado na Terra. Com o que aprendi nas tribunas


Fotos: Arquivo Pessoal

forenses, na defesa da liberdade dos outros, hei de lutar, na Corte Celestial, por minha própria causa, na esperança de conquistar o reino dos céus... Deus é generoso. AI-5 nunca mais. Vade retro, Satane”. Sobre o abatimento de Evandro Lins e Silva também há um enfático depoimento de Sergio Bermudes: “Voltará à lembrança a aposentadoria forçada do Supremo Tribunal Federal. A ditadura o arrancou dali, juntamente com Victor Nunes Leal e Hermes Lima, porque via com medo a sua independência. Ele nunca se recuperou da brutalidade. Depois da anistia, cogitou de pedir o reingresso no Tribunal. Victor Nunes procurou dissuadi-lo. O que mais poderiam eles acrescentar ao STF, se se admitisse o seu retorno? Mas Evandro mesmo, só ele, foi o senhor da sua decisão. Conteve o ímpeto de tentar a recuperação do cargo, criando um fato histórico. Teria aberto ao Supremo a oportunidade de resgatar-se da humilhação”. Passados 40 anos, a humilhação permanece. Nunca se reparou essa arbitrariedade, nem simbolicamente. Já faleceram os 3 ministros depostos. Mas a humilhação a eles e ao Judiciário permanece insepulta. Realmente 2008 é um ano emblemático. 200 anos da criação, 40 anos da afronta. Nem mesmo a Constituição de 1988 trouxe um alento para sanar a violência imposta. A memória nacional e a memória do Poder Judiciário não podem esquecer desse fato, de suma gravidade, na passagem de uma data assim tão cheia de simbolismos.

“Realmente 2008 é um ano emblemático. 200 anos da criação, 40 anos da afronta. Nem mesmo a Constituição de 1988 trouxe um alento para sanar a violência imposta.”

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O direito constitucional de dirigir embriagado

Hugo Leal Deputado Federal PSC/RJ Advogado

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pós a alteração do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) sobre os limites de ingestão de álcool, com a aprovação da Lei nº 11.705/08, novas polêmicas surgiram. O novo crime do CTB tem como condicionante para seu cometimento a concentração de álcool por litro de sangue, igual ou superior a 6 decigramas, daí: como ninguém seria obrigado a produzir prova contra si mesmo, e, uma vez que a Constituição Federal obriga a autoridade a comunicar ao preso o direito de permanecer calado, analogamente, deve comunicá-lo do direito de não fazer o teste; ademais, como a lei especificou o limite de 6 decigramas/litro de sangue e a superação deste valor só se comprovaria por meio de prova técnica, a prova testemunhal não seria válida nestes casos. Consequentemente o réu, mesmo dirigindo completamente embriagado, não seria passível de punição. Finalmente, não poderia também o legislador aplicar a penalidade administrativa de multa e suspensão do direito de dirigir, pois o motorista embriagado estaria exercendo um direito de não produzir prova contra si mesmo. A prevalecer tal lógica, não haveria o que se fazer. Não se poderia exigir o teste do motorista embriagado, nem suspender sua habilitação, tampouco puni-lo criminal­ mente. A comprovação da embriaguez por evidências físico-compor­tamentais restaria prejudicada, visto que esta 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2008

precisaria ser apurada pericialmente, prova esta que não seria produzida pelo cidadão que, alertado pela autoridade da não obrigatoriedade de submissão ao teste, compreensivelmente, não o faria. Quanto à impossibilidade de qualquer outra prova para se aferir a embriaguez, comungo da opinião do Procurador da República Bruno Freire de Carvalho Calabrich, que em recente artigo defende que “a prisão em flagrante em caso de recusa do agente ao teste do bafômetro deve ocorrer apenas em casos de embriaguez evidente, que há de ser documentada pelo delegado de polícia no Auto de Prisão em Flagrante, inclusive com testemunhas e com qualquer outra prova apta a demonstrar o fato”. Ora, quando o legislador definiu o índice mínimo aferível por teste sanguíneo ou pelo bafômetro, definiu um mínimo que evidentemente não pressupõe embriaguez. A embriaguez é um estado que pode ser aferido por testemunhas e comportamentos notórios. Talvez o foco da discussão esteja distorcido. Precisamos considerar que estamos diante de um sistema, que é o Sistema Nacional de Trânsito. Nele existe uma série de normas que devem ser seguidas obrigatoriamente. Ressalto que não existe uma garantia constitucional para condução de veículos automotores. Assim, todos que pretendem dirigir devem fazê-lo obede­


Fotos: Arquivo Pessoal

cendo não apenas aquelas que lhes pareçam mais justas, mas todas as regras. Regras, cuja verificação de cumprimento, como não poderia deixar de ser, pode resultar em produção de provas contra ou a favor do condutor, como por exemplo: de continuar com saúde, com capacidade mental, com visão, além é claro de estar sóbrio ao dirigir, ou não. O condutor ao renovar sua habilitação deve provar periodicamente que continua apto (exame de vista, por exemplo), e isso faz com que seja constrangido a produzir prova contra si mesmo. Isto é feito para a proteção da sociedade. E mais: este é um sistema que você adere se quiser, se preencher e se concordar com os requisitos. Logo, ao aderir estará concordando em que, periodicamente, pode produzir prova contra si mesmo. Prova de ter pago o licenciamento, de o veículo ter os equipamentos indispensáveis, e até abrindo mão de sua intimidade para que o agente público possa checar todos os itens. Isso existe não só no sistema de trânsito. Na aviação, por exemplo, funciona da mesma forma. Já imaginou um piloto que se recuse a fazer os testes, alegando o direito de não produzir prova contra si mesmo? Ou mesmo um passageiro portando armas que se recuse a se submeter ao raio X para não produzir provas contra si? Quando se buscam formas as mais criativas para des­cumprir a legislação que exige o teste, na realidade busca-

se algo mais contundente, de modo indireto, a defesa do direito constitucional de dirigir embriagado. Não existe esse direito. O cidadão tem uma série de garan­ tias e elas são relativas ao interesse coletivo. No interesse coletivo, busca-se preservar o meio ambiente e quem desrespeitar vai se submeter à perícia, fazendo prova contra si mesmo. Este é um sistema que deve funcionar para a preservação da sociedade civilizada. Por isso, somos obrigados a dirigir por determinado lado da via, não circular em outras, andar em determinada velocidade, etc.. Todas as regras devem ser obedecidas. O que se observa é que a confusão sobre os institutos faz com que surjam posicionamentos que impedem a aplicação da lei. Em síntese, se a lei não pode ser aplicada estarse-á, em verdade, defendendo de forma indireta o direito constitucional de dirigir embriagado. Com certeza não podem prosperar estes raciocínios. Eles ocorrem pela confusão na análise de um instituto fora do sistema a que está subordinado. E aí surgem as incoerências e a fragilização dos sistemas de proteção ao bem maior, que é a vida. Mas não podemos retroceder, pois, a despeito das dificuldades de aplicação e das confusões de interpretação, em um mês de aplicação a nova lei já mostrou sucesso efetivo no cumprimento de sua missão: salvar vidas. 2008 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41


Alimentos gravídicos?

Maria Berenice Dias Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

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expressão é feia, mas o seu significado é dos mais salutares. Aguarda sanção presidencial o Projeto de Lei no 7.376/2006 que concede à gestante o direito de buscar alimentos durante a gravidez. Daí o termo “alimentos gravídicos”. Ainda que inquestionável a responsabilidade parental desde a concepção, o silêncio do legislador sempre gerou dificuldade para a concessão de alimentos ao nascituro. Raras vezes a Justiça teve a oportunidade de reconhecer a obrigação alimentar antes do nascimento, pois a Lei de Alimentos exige prova, ou do parentesco ou da obrigação1. O máximo a que se chegou foi, nas ações investigatórias de paternidade, ao deferimento de alimentos provisórios quando há indícios do vínculo parental ou após o resultado positivo do teste de DNA. Graças à Súmula 301 do STJ2, também a resistência em se submeter ao exame passou a servir de fundamento para a antecipação da tutela alimentar. Assim, em muito boa hora é preenchida injustificável lacuna. Porém, muitos são os equívocos da lei, a ponto de questionar-se a validade de sua aprovação. Apesar de aparentemente consagrar o princípio da proteção integral, visando assegurar o direito à vida do nascituro e de sua genitora, nítida a postura protetiva em favor do réu. Gera algo nunca visto: a responsabilização da autora por danos materiais e morais a ser apurada nos mesmos autos, caso o exame de paternidade seja negativo. Assim, ainda que não tenha sido imposta a obrigação alimentar, o réu pode ser indenizado, pelo só fato de ter sido acionado em juízo. Esta possibilidade cria 42 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2008

perigoso antecedente. Abre espaço a que, toda ação desacolhida, rejeitada ou extinta confira direito indenizatório ao réu. Ou seja, a improcedência de qualquer demanda autorizaria pretensão por danos materiais e morais. Trata-se de flagrante afronta ao princípio constitucional de acesso à Justiça3, dogma norteador do Estado Democrático de Direito. Ainda que salutar seja a concessão do direito, de forma para lá de desarrazoada é criado um novo procedimento. Talvez a intenção tenha sido dar mais celeridade ao pedido, mas imprime um rito bem mais emperrado do que o da Lei de Alimentos. O primeiro pecado é fixar a competência no domicílio do réu4, quando de forma expressa o estatuto processual concede foro privilegiado ao credor de alimentos5. De qualquer modo, a referência há que ser interpretada da forma que melhor atenda ao interesse da gestante, a quem não se pode exigir que promova a ação no local da residência do devedor de alimentos. A outra incongruência é impor a realização de audiência de justificação, mesmo que sejam trazidas provas de o réu ser o pai do filho que a autora espera. Da forma como está posto, é necessária a ouvida da genitora, sendo facultativo somente o depoimento do réu, além de haver a possibilidade de serem ouvidas testemunhas e requisitados documentos. Porém, congestionadas como são as pautas dos juízes, mesmo sem a audiência, convencidos da existência de indícios da paternidade, indispensável reconhecer a possibilidade de ser dispensada a solenidade para a fixação dos alimentos.


Foto: Arquivo Arquivo JC Pessoal Foto:

Mas, há mais. É concedido ao réu o prazo de resposta de 5 dias. Caso ele se oponha à paternidade a concessão dos alimentos vai depender de exame pericial. Este, às claras é o pior pecado da Lei. Não há como impor a realização de exame por meio da coleta de líquido amniótico, o que pode colocar em risco a vida da criança. Isso tudo sem contar com o custo do exame, que pelo jeito terá de ser suportado pela gestante. Não há justificativa para atribuir ao Estado este ônus. E, se depender do Sistema Único de Saúde, certamente o filho nascerá antes do resultado do exame. Os equívocos vão além. Mesmo explicitado que os alimentos compreendem as despesas desde a concepção até o parto, de modo contraditório é estabelecido como termo inicial dos alimentos a data da citação. Ninguém duvida que isso vai gerar toda a sorte de manobras do réu para esquivarse do Oficial de Justiça. Ao depois, o dispositivo afronta jurisprudência já consolidada dos tribunais e se choca com a Lei de Alimentos, que, de modo expresso, diz: “ao despachar a inicial o juiz fixa, desde logo, alimentos provisórios6”. Preocupa-se a Lei em explicitar que os alimentos compreendem as despesas adicionais durante o período de gravidez – da concepção ao parto –, identificando vários itens: alimentação especial, assistência médica e psicológica, exames complementares, internações, parto, medicamentos e demais prescrições preventivas e terapêuticas indispensáveis, a juízo do médico. Mas o rol não é exaustivo, pois o juiz pode considerar outras despesas pertinentes. Quando do nascimento, os alimentos mudam de

“RARAS VEZES A JUSTIÇA TEVE A OPORTUNIDADE DE RECONHECER A OBRIGAÇÃO ALIMENTAR ANTES DO NASCIMENTO, POIS A LEI DE ALIMENTOS EXIGE PROVA DO PARENTESCO OU DA OBRIGAÇÃO.”

natureza, se convertem em favor do filho, apesar do encargo decorrente do poder familiar ter parâmetro diverso, pois deve garantir ao credor o direito de desfrutar da mesma condição social do devedor7. De qualquer forma, nada impede que o juiz estabeleça um valor para a gestante, até o nascimento, e, atendendo ao critério da proporcionalidade, fixe alimentos para o filho, a partir do seu nascimento. Caso o genitor não proceda ao registro do filho, e independente de ser buscado o reconhecimento da paternidade, a Lei deveria determinar a expedição do mandado de registro. Com isso seria dispensável a propositura da ação investigatória da paternidade ou a instauração do procedimento de averiguação, para o estabelecimento do vínculo parental8. Apesar das imprecisões, dúvidas e equívocos, os alimentos gravídicos vêm referendar a moderna concepção das relações parentais que, cada vez com um colorido mais intenso, buscam resgatar a responsabilidade paterna. Mas, este fato, por si só, não absolve todos os pecados do legislador.

NOTAS Lei no 5.478/68, art. 2º “Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade.” 3 CF, art. 5º, inc. XXXV 4 CPC, art. 94. 5 CPC, art. 100, inc. II 6 Lei no 5.478/68, art. 2º 7 CC, art. 1.694 8 Lei no 8.560/92 1 2

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A TRANSPOSIÇÃO É O MELHOR MEIO PARA GARANTIR ÁGUA AOS NORDESTINOS? João Alves Filho Ex-Governador de Sergipe Ex-Ministro do Interior

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Fotos: Arquivo Pessoal

or se tratar da mais cara das alternativas técnicas disponíveis para viabilizar o abastecimento humano e animal, além de promover quase que invariavelmente conflitos entre as populações doadoras e receptoras – ademais dos graves riscos ambientais que costuma gerar –, há um consenso entre os melhores especialistas hídricos de que projetos de transposição só se justificam quando se constatam quatro premissas básicas, conforme examinaremos a seguir. Premissa Primeira - Deve haver excesso comprovado de água na bacia doadora Quanto ao rio São Francisco, há de se considerar, preliminarmente, o estado atual de profunda degradação constatada ao longo de toda a calha. Vários fatores colaboraram para a situação, dentre eles o desmatamento das matas ciliares, esgotos in natura lançados no rio, detritos industriais e a mineração predatória. A causa principal, porém, foi o modo como as hidrelétricas foram construídas, visando exclusivamente maximizar a geração de energia sem a preocupação de conciliá-las aos outros usos tão ou mais importantes: abastecimento humano, irrigação, nagavebilidade, pesca, etc.. Na verdade, tudo isso ocorreu por conta de o Brasil haver sido retardatário, pois somente em 1997 foi aprovada no Congresso a Política Nacional de Recursos Hídricos. Daí porque “as hidrelétricas do São Francisco foram em grande parte implantadas de forma predatória, sem as devidas precauções ecológicas”, levando o rio à lastimável situação dos dias atuais, na maioria da calha, sendo alarmante a situação na foz – como os demais rios que passaram por processos semelhantes em nosso planeta, é lá onde começam a morrer. De fato, no Velho Chico já são percebidos claramente vários sinais de morte iminente, tais como eu vi pessoalmente no rio Colorado (México), no rio Amarelo (China) e em outras partes do mundo. 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2008


A deplorável situação do nosso rio – que deverá se agravar diante das mudanças climáticas em andamento, que tornarão árida a nossa região semi-árida, provocando a morte de rios, conforme previsões do IPCC, confirmadas pelo INPE –, foi descrita de forma notável e acima de qualquer suspeita pelo ilustre ministro Carlos Britto, que em recente voto antológico no Supremo Tribunal Federal, provou que o modo como o Governo Federal promove a licitação das obras da Transposição agride ostensivamente os princípios constitucionais. Além disso, ele – que é também brilhante poeta, nascido

Ilha do Cabeço, próxima à foz, 10 anos atrás, quando era habitada por centenas de pessoas.

Cavaleiros atravessando o São Francisco da margem sergipana a alagoana, à altura da foz, onde anteriormente era a parte mais profunda do rio. Só não completaram a travessia por conta de um estreito canal próximo a Alagoas, por onde as águas do Velho Chico se interligam ao Oceano Atlântico. A cavalgada foi transmitida para todo o Brasil pela Rede Record de TV.

nas margens do Velho Chico, testemunha ocular do cruel processo de degradação do rio –, encerrou seu voto com um verdadeiro brado de alerta à Nação brasileira: “Promover a transposição de águas do rio São Francisco no contexto atual equivale a se fazer a transfusão de sangue de um doente terminal na UTI”. Seria possível reiterar a advertência do eminente magistrado com inúmeros exemplos. Baseado, entretanto, na sabedoria milenar da China, segundo a qual “uma imagem vale mais do que mil palavras”, me parece mais adequado apresentar quatro fotos da foz do rio que falam por si mesmas.

Ilha do Cabeço atualmente submersa, demonstrando os efeitos do avanço das águas do Atlântico em direção ao Rio. Cabe notar o farol que antes estava no meio da ilha. Igual situação já ocorreu com a Ilha da Costinha, bem mais distante da foz. Ademais, os primeiros sinais desse avanço já são percebidos 145 km rio acima, no município de Porto da Folha, cuja população hoje pesca peixes próprios do alto mar, como o robalo.

Ponte que liga os estados de Sergipe a Alagoas, a 45 km da foz. Na época da sua construção, a lâmina d’água sob a ponte variava entre 40m e 50m. Há menos de 10 anos, jovens alagoanos e sergipanos costumavam praticar saltos acrobáticos a partir dos arcos da ponte, mergulhando nas águas profundas do rio, hoje totalmente assoreado. Telespectadores de todo o Brasil se assombraram ao assistir no Jornal Nacional um jovem quase cruzando da margem alagoana à sergipana, pilotando uma moto. 2008 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45


Conseqüências As fotos identificam dois entre tantos fenômenos que costumam preceder a morte dos rios, como tantos que eu vi in loco em diferentes partes do mundo. O avanço das águas do mar ou do oceano rio adentro é chamado de cunha salina. Implica na salinização das águas, sendo a primeira etapa da morte do rio. No caso da foz do São Francisco, acentuandose a tendência, os efeitos serão catastróficos, pois lá adutoras captam a água destinada a abastecer quase um milhão de alagoanos e sergipanos, dentre os quais 60% dos habitantes da capital de Sergipe, Aracaju. Se tal hipótese se consumar, as águas das adutoras ficariam inservíveis para consumo humano e animal em virtude da salinização, como acontece agora na região de Saramém em Brejo Grande (SE). Nessas circunstâncias, ou no caso da morte pura e simples do rio, os efeitos seriam semelhantes: a maior diáspora já vista no Brasil, com centenas de milhares de nordestinos, grande parte famintos, dirigindo-se a outros centros. Por outro lado, o assoreamento é mais um terrível efeito, sucessivamente agravado pela construção das hidrelétricas, cujo ápice se deu com a implantação de Xingó, localizada 220 km da foz – um trecho antes navegado por grandes embarcações, responsáveis por um próspero comércio intermunicipal. Desde a inauguração de Xingó – por conta do Governo Federal não ter cumprido os compromissos de proteção ambiental formalmente assumidos com os ribeirinhos –, o assoreamento se acentuou a ponto de hoje toda a extensão do São Francisco possuir imensos bancos de areia, separados por estreitas vielas onde só conseguem passar pequenas lanchas de passeio, desde que guiadas pelos poucos antigos pescadores que restaram na região. Eis o estágio terminal do outrora caudaloso São Francisco, de onde a Transposição retiraria água para gerar um verdadeiro novo rio de médio porte, com 25 m de largura e 5 m de comprimento, precipitando a antecipação do seu atestado de óbito. Premissa Segunda – Falta de solos irrigáveis na região doadora De novo essa situação é completamente inversa. Ao longo da bacia do São Francisco há milhões de hectares de terras irrigáveis disponíveis, parte considerável lamentavelmente ociosa. Porquanto a ANA nega outorga de água para empresários e agricultores locais que desejam implantar projetos de irrigação. A alegação é que falta água no rio, sob pena de prejudicar a geração energética. Some-se ainda vários projetos da Codevasf praticamente parados há anos por falta de recursos do mesmo Governo Federal que se propõe a gastar bilhões de dólares no projeto da Transposição. Para se ter uma idéia da excelência dessas terras, vale destacar que os perímetros irrigados de Petrolina e Juazeiro (e municípios circunvizinhos) são as únicas áreas no mundo que conseguem produzir uvas durante o ano inteiro. Pois bem, nessa grande região de terras sem similar no planeta há vários empresários dispostos a investir e o Governo Federal lhes nega 46 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2008

outorga alegando a carência de água no mesmo rio do qual pretende retirar um volume imenso para ser levado a 700 km de distância, cujo custo da água – pasmem! – chegará quatro vezes mais caro, que precisará de subsídios permanentes à produção. Premissa Terceira – Ampla disponibilidade de terras irrigáveis na região receptora É verdade que há uma grande quantidade de terras irrigáveis nos estados do Nordeste Setentrional, as quais, embora não dotadas das mesmas vantagens das fabulosas terras de Petrolina e Juazeiro, têm padrão de qualidade semelhante à maioria das encontradas nos milhões de hectares não irrigados dos estados ribeirinhos. O problema é que irrigá-las não geraria produtos competitivos, pois a distância percorrida, somada ao gasto energético desprendido para superar grandes elevações, faria o custo da água elevar-se até quatro vezes mais do que o praticado hoje nas áreas ribeirinhas. Contudo, a boa notícia é que existe no Nordeste Sententrional água em abundância, capaz de irrigar uma imensa área a custos competitivos. Premissa Quarta – A total inexistência de recursos hídricos locais da região receptora apta a atender as demandas presentes e futuras da população Esse é o principal argumento dos defensores da Transposição. Se a obra não for feita, assistiríamos a médio prazo a uma tragédia pela inexistência de água potável suficiente para abastecer as demandas de uma população que aumenta continuamente, considerando que atualmente milhões de sertanejos não conseguem ser atendidos. Todo esse aparente impasse, entretanto, se desfaz com uma notável constatação: a falta de água nos estados do Nordeste Setentrional é, felizmente, um grande mito. Na verdade, eles não precisam de uma única gota d’água do rio São Francisco porque têm água em imensa quantidade. Parte ociosa e parte considerável ainda inteiramente desconhecida na sua grandiosidade dos brasileiros em geral – e de 99% dos nordestinos –, aí incluída a maioria dos mais esclarecidos. A seguir analisaremos esses dois tesouros inexplorados. A maior reserva de água acumulada pela engenharia humana Graças à infatigável capacidade de trabalho dos nordestinos, inicialmente em obras de acumulação de água feitas por fazendeiros locais de maneira improvisada, e, portanto, inadequadas para resistir às secas prolongadas em função da evaporação – para tanto contaram com a magnífica ação do DNOCs, que transferiu tecnologia de ponta aos engenheiros dos governos estaduais –, 70 mil açudes foram construídos no nosso semi-árido, constituindo o maior volume hídrico acumulado pela intervenção humana no mundo. Para dar uma idéia dessa riqueza, basta observar, a título de comparação, que, enquanto nossos açudes acumulam 37 bilhões de m³, se a Transposição fosse executada, levaria apenas dois bilhões de m³ de água por ano para o Nordeste Setentrional.


Lamentavelmente, embora houvessem sido construídas as obras mais difíceis – os açudes –, absurdamente não se implantaram de modo simultâneo obras imensamente mais baratas. Refiro-me às adutoras que deveriam ligar os açudes aos povoados próximos, abastecendo a população e seus animais sedentos. O mais chocante é constatar que pela imensa atomização como estão distribuídos os açudes, a maioria dessas adutoras não ultrapassaria 20 km de extensão e teriam baixo custo, pois seriam de plástico. Caso isso tivesse sido feito, acrescido de pequenas cisternas em pequenas propriedades, a maioria esmagadora da população do semi-árido já não passaria sede desde varias décadas atrás. Simples assim! O maior aqüífero exclusivamente brasileiro Toda a água que é lançada no Oceano Atlântico pelo rio São Francisco durante um ano equivale a 100 bilhões de m3. Pois bem, embaixo do subsolo nordestino existem 135 bilhões de m³ de água de acordo com dados do Radam Brasil. Segundo normas aceitas pelos especialistas hídricos, desse total poderia se retirar por ano 27 bilhões de m³ sem o risco de secar os poços, índice que equivale a quase 14 vezes mais do que toda a água prevista para ser levada no eventual projeto de Transposição. Apenas esse volume daria para abastecer a população dos 10 estados do semi-árido brasileiro e ainda sobraria um imenso volume, capaz de irrigar – nos estados do Nordeste Sententrional – uma área muito maior do que aquela até hoje irrigada na bacia dos cinco estados ribeirinhos. Transposição versus alternativa técnica Apenas para reiterar a irracionalidade da Transposição, basta compararmos dois dados simples: os canais projetados levariam uma vazão de água de 126 m³/s – volume capaz de abastecer 100 milhões de pessoas –, enquanto a população rural dos quatro estados sem água não passa de seis milhões de habitantes. Conseqüentemente, fica claro que a maioria da água restante, retirada de um rio com comprovado risco de morte, seria destinada à irrigação subsidiada, ao agronegócio e ao uso industrial. Quando fui Ministro do Interior durante o Governo Sarney, contratei uma empresa de engenharia altamente credenciada para elaborar um projeto visando abastecer com água potável

todos os nordestinos. Sua execução demandou três anos de meticuloso trabalho no campo, levantando in loco os recursos hídricos, procurando maximizá-los através de técnicas de abastecimento simples e baratas. Concluído, foi submetido à análise da experimentada equipe de técnicos do Banco Mundial, que culminou o projeto de elogios, da mesma forma que décadas depois recusaria financiar o projeto da Transposição por considerá-lo inviável. Lamentavelmente, chegava o fim da gestão Sarney e deixamos o projeto concluído para ser realizado pelos Presidentes vindouros. Recentemente fiz uma projeção dos custos, limitando a abrangência ao semi-árido. Para ser realizado agora, o projeto necessitaria ser atualizado, o que provavelmente daria resultados ainda melhores, pois quando o concebi há 20 anos, o açude Castanhão (Ceará) ainda não estava construído e não se conhecia, com a exatidão de hoje, o magnífico volume dos nossos aqüíferos subterrâneos. É possível, contudo, estabelecer uma ordem de grandeza comparativa do custo/benefício dos dois projetos. Conclusão Não obstante o projeto de Transposição de Águas do São Francisco ser uma brutal agressão ao bom senso, há risco real de ele ser realizado. Isso considerando a absoluta desproporção entre as forças confrontantes. De um lado está o Presidente da República dotado de um carisma inigualável, exercendo um domínio quase total do Congresso, por sua vez bloqueado pelas medidas provisórias – ou seja, na prática, o Executivo é quem legisla; o poderosíssimo lobby das grandes empreiteiras, o esmagador poder de uma máquina publicitária que faz a cabeça da opinião pública com a farsa de que a Transposição vai retirar do São Francisco apenas “uma cuia d’água”, para socorrer os pobres sertanejos sedentos. Do outro lado, um teimoso grupo de idealistas sem poder político, sem dinheiro e muito menos sem armas, constituído de especialistas em recursos hídricos, ecologistas, escritores especializados, professores universitários, jornalistas, sacerdotes, intelectuais, artistas e raríssimos políticos. Só nos resta a esperança em uma entidade que cada vez mais se impõe à admiração da quase unanimidade brasileira: o Supremo Tribunal Federal, onde já existem cerca de 20 ações esperando o julgamento do mérito. Pela existência de dezenas de irregularidades no processo licitatório da obra da Transposição, que agridem diversos dispositivos da Política Nacional de Recursos Hídricos e afronta os ditames da própria Constituição Brasileira, sua ilegalidade é flagrante. Bastaria citar duas dentre muitas: primeiro, o fato de o São Francisco ser um rio nacional que cruza cinco estados, o que implica que qualquer obra nele realizada, visando beneficiar terceiros, tenha a prévia autorização do Senado; e segundo, conforme denunciou o Governo de Minas Gerais, não foi feito o Rima da bacia mineira, responsável pelo fornecimento de 70% das águas do São Francisco. Acrescese, ademais, também não ter sido feito o Rima detalhado da foz do rio, sabidamente o ponto mais frágil. Não temos dúvidas de que, quando julgado o mérito das ações, o STF concluirá pela ilegalidade da obra. 2008 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47


Rioprevidência: os desafios do assessoramento jurídico de uma autarquia em reestruturação

Felipe Derbli Procurador do Estado Diretor Jurídico do Rioprevidência

“ Por óbvio, exigiam-se soluções tecnicamente corretas, juridicamente sustentáveis, criativas e, sobretudo, transparentes, de modo a que os servidores públicos, ativos e inativos, e pensionistas do Estado, bem como toda a população fluminense, tivessem inteiro conhecimento de tudo o que se fizesse com os recursos do Fundo.”

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o final de setembro de 2007, recebi da ProcuradoraGeral do Estado, Dra. Lúcia Léa Guimarães Tavares, e dos Subprocuradores-Gerais, Dr. Rodrigo Mascarenhas e Dr. Henrique Rocha, um “convite” e tanto: ocupar o cargo de Diretor Jurídico do Fundo Único de Previdência Social do Estado do Rio de Janeiro – Rioprevidência. O convite, na verdade, era uma missão institucional de enorme relevância. Finalmente, o Estado se apercebeu de que o fundo de pensão de seus servidores, com patrimônio de cerca de R$ 54 bilhões, é o segundo maior do país, perdendo apenas para a Previ, do Banco do Brasil. Era necessário instituir uma gestão independente e profissional na autarquia, para o que foram trazidos o atual DiretorPresidente, Wilson Risolia Rodrigues, e outros técnicos de grande capacidade. A administração competente dos ativos do Rioprevidência envolvia a adoção de medidas que ampliassem a rentabilidade de sua carteira imobiliária e, sobretudo, o bom aproveitamento dos royalties do petróleo que lhes foram incorporados ao patrimônio pelo Estado, de modo a garantir as reservas de longo prazo e, paulatinamente, reduzir o déficit atuarial do regime próprio de previdência social dos servidores públicos do Estado. Por óbvio, exigiam-se soluções tecnicamente corretas, juridicamente sustentáveis, criativas e, sobretudo, transparentes, de modo a que os servidores públicos, ativos e


Foto: Arquivo JC

inativos, e pensionistas do Estado, bem como toda a população fluminense, tivessem inteiro conhecimento de tudo o que se fizesse com os recursos do Fundo. Toda essa agenda positiva, no entanto, também trouxe consigo uma contrapartida urgente e necessária: com o então recente advento da Lei Estadual no 5.019/2007, havia sido extinto o Instituto de Previdência do Estado do Rio de Janeiro (Iperj), que foi sucedido pelo Rioprevidência em seus direitos e obrigações. Em cumprimento ao que determina o art. 40, § 20, da Constituição Federal, passou a ser do Rioprevidência, como ente gestor único, não apenas a gestão do ativo previdenciário, como também do passivo. Não é novidade que o extinto Iperj, de há muito, já não mais atendia adequadamente os seus propósitos. A defasagem dos benefícios previdenciários à luz da regra constitucional da paridade entre ativos, inativos e pensionistas criou a enxurrada de ações judiciais que, hoje, representam cerca de 250 novos mandados de citação por mês. Em passado relativamente recente, o Iperj possuía um lastimável histórico de descumprimento de decisões judiciais, que ocasionavam a cominação de pesadas multas ou mesmo outras medidas coercitivas mais extremas, como intimações para cumprimentos de ordens em 30 minutos ou mandados de condução à autoridade policial, que, ainda que de legalidade discutível, normalmente advinham de justo motivo.

Qual o papel da Diretoria Jurídica do Rioprevidência nesse cenário? Antes de tudo, era preciso dar tranqüilidade aos órgãos técnicos para trabalharem nas atividades-fins da autarquia, que agora também envolviam o atendimento aos segurados e beneficiários do regime próprio de previdência. Impunha-se reduzir o risco jurídico/judicial do Rioprevidência, o que deveria começar, é claro, pela mais elementar das medidas: organizar e promover, a qualquer custo, o cumprimento célere das decisões judiciais. Com essa disposição, convidei a Dra. Juliana Caldeira e Teixeira para assumir o cargo de Coordenadora Jurídica e chefiar uma equipe 100% dedicada à administração do cumprimento de ordens judiciais – temos, atualmente, 23 pessoas exclusivamente voltadas para essa atividade. Reorganizamos procedimentos internos e, periodicamente, revisitamos nossas rotinas sob uma análise crítica, otimizando as relações com o Grupo de Trabalho de Processos Judiciais da Diretoria de Seguridade e com a Procuradoria Geral do Estado (que representa o Rioprevidência em juízo) e uniformizando os documentos de comunicação com o Tribunal de Justiça e com as Varas de Fazenda Pública. Os resultados não demoraram a aparecer. Até o final de julho deste ano, foram cumpridas e informadas ao Poder Judiciário, somente quanto aos processos de revisão de pensão, 2186 decisões judiciais, contra 918 de todo o ano passado – 2008 AGOSTO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 49


“Apesar de ainda haver, vez por outra, algumas surpresas desagradáveis – e, ouso dizer, alguma teratologia –, os antes justificáveis atritos com o Judiciário reduziram-se sensivelmente. Parece-me que conseguimos a compreensão de que, nesta quadra, trabalha-se com vontade e na forma da lei.” até o final do ano, alcançaremos um aumento de 200% no atendimento das determinações dos magistrados. Na medida do possível, temos respondido às requisições de informações da forma mais completa que nossas competências nos permitem e em tempos bem inferiores aos anteriormente praticados. Conseguimos municiar a PGE das informações necessárias à defesa do Rioprevidência com muito maior eficácia. Apesar de ainda haver, vez por outra, algumas surpresas desagradáveis – e, ouso dizer, alguma teratologia –, os antes justificáveis atritos com o Judiciário reduziram-se sensivelmente. Parece-me que conseguimos a compreensão de que, nesta quadra, trabalha-se com vontade e na forma da lei. Tais resultados foram alcançados com muito empenho e dedicação. Nossa equipe administrativa foi treinada, submetendo-se a curso de noções elementares de Direito ministrado pelos próprios integrantes da Diretoria Jurídica a custo zero, para compreender a prioridade do cumprimento das decisões judiciais e os indesejáveis efeitos de seu desatendimento. Com o perdão da imodéstia, é impossível não notar a diferença. Evidentemente, de nada adiantaria tanto esforço sem que se adotasse qualquer providência para que novas ações não precisem mais ser intentadas. Anunciado pelo Governo do Estado o objetivo de atualizar os benefícios previdenciários e repactuar o passivo perante os pensionistas, judicial e extrajudicial, a Diretoria Jurídica do Rioprevidência, com o auxílio inestimável da Procuradoria Geral do Estado e da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão, já concluiu os estudos que viabilizarão esse projeto histórico, elaborando as minutas dos instrumentos que fornecerão o respectivo arcabouço jurídico. Até que a operação se inicie, algumas outras medidas pontuais já foram adotadas. Fornecemos lastro jurídico para a habilitação das pensões previdenciárias por morte de policiais militares que, apesar de consolidada jurisprudência do Tribunal de Justiça, ainda vinham sendo fixadas a menor ou simplesmente não eram concedidas, ficando o Tesouro obrigado a custear pensões provisórias por períodos excessivos e irrazoáveis. Milhares de pensionistas, literalmente, terão suas pensões concedidas pelo Rioprevidência nos valores constitucional e legalmente corretos. Mesmo com tanto a fazer nessa área, a Diretoria Jurídica do Rioprevidência não descurou das outras frentes de ação. Daqui saiu o anteprojeto de lei de unificação dos regimes próprios 50 • JUSTIÇA & CIDADANIA • AGOSTO 2008

de previdência do Estado, que, em calorosos e profícuos debates com notáveis integrantes dos Poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e do Tribunal de Contas do Estado, culminou na edição da Lei no 5.260/2008, diploma elogiado noutros cantos do país, que permitiu ao Estado a manutenção do Certificado de Regularidade Previdenciária, condição indispensável para o recebimento de transferências voluntárias de recursos da União. A Diretoria Jurídica atuou, ainda, em outras questões relacionadas à transparência na gestão da autarquia. Atendendo às normas da Lei no 3.189/99, fizemos a minuta do Decreto no 41.356/2008, que fixa os prazos de contratação e de interstício de recontratação de auditor externo independente pelo Rioprevidência – medida posteriormente estendida para todo o Poder Executivo. Em conjunto com a Diretoria de Investimentos da autarquia, elaboramos a Portaria no 136/2008, que disciplina os procedimentos para o credenciamento e a seleção das instituições financeiras autorizadas a operar com o Rioprevidência – agora, é possível saber com clareza o que levou o Fundo a manter aplicações financeiras num ou noutro banco. Estamos presentes, ainda, no assessoramento jurídico para as licitações (este ano, já foram mais de 40) e nas futuras operações do Rioprevidência no mercado de capitais. Com a indispensável ajuda da Gerente de Apoio Jurídico, Dra. Cristiane Dias Carneiro, estamos trabalhando na estruturação da licitação para securitização de bem imóvel do Rioprevidência, mediante a constituição de fundo de investimento imobiliário, um projeto inédito nos regimes próprios de previdência social de todo o país. A Diretoria Jurídica participou do programa de certificação profissional do Rioprevidência – somos quatro os profissionais certificados pela Associação Nacional dos Bancos de Investimento – ANBID (CPA-10). E muito mais foi feito, além do que se poderia contar neste espaço. Tudo isso tem sido possível graças à independência que vem sendo assegurada ao trabalho da Diretoria Jurídica e à confiança franqueada pela PGE, que supervisiona constantemente nossa atuação. Tem sido gratificante fazer parte da novidade e do que, ao meu sentir, vem sendo uma verdadeira revolução na gestão da coisa pública, sem jamais perder de vista o rumo da ética, da legalidade e da transparência. Aguardem-nos: outras inovações virão por aí.


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