Revista Justiça & Cidadania

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2 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2008


EDIÇÃO 96 • Julho de 2008

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O DISSÍDIO COLETIVO À LUZ DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45/04

26 PRORROGAÇÃO DE PERMISSÕES

Foto de capa: Arquivo JC ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES Diretor jurídico ERIkA BRANCO SECRETÁRIA DE REDAÇÃO TAÍS CAVALCANTI REVISÃO DIOGO TOMAZ DIAGRAMAÇÃO CLEONICE DE MELO ASSISTENTE DE EXPEDIÇÃO EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLI RIO DE JANEIRO - RJ - CEP: 20020-906 TEL./FAX (21) 2240-0429 SUCURSAIS SÃO PAULO RAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765 / 13°ANDAR SÃO PAULO - SP - CEP: 01311-200 TEL. (11) 3266-6611 PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO, 1038 / SL.1102 ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO CENTRO - Porto Alegre - RS CEP: 90010-272 TEL. (51) 3211-5344 SALVADOR FREDERICO DINIZ GONÇALVES RUA BARÃO DE ITAPUÃ, 60 / CONJ. 301 CENTRO EMPRESARIAL PORTO CENTER Salvador - BA - CEP: 40140-060 TEL. (71) 3264-3754 BRASÍLIA ARNALDO GOMES SCN - Q.1 – Bl. E / Sl. 715 EDIFÍCIO CENTRAL PARK BRASÍLIA - DF - CEP: 70711-903 TEl. (61) 3327-1228/29 CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL. (61) 9674-7569

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34 A FUNDAÇÃO DE SALVADOR E DO BRASIL

1964 – A MALFADADA ODISSÉIA NO NAVIO PRESÍDIO RAUL SOARES

47 SUMÁRIO

CONSELHO EDITORIAL Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES Antonio Carlos Martins Soares Antônio souza prudente Arnaldo Esteves Lima arnaldo Lopes süssekind aurélio wander bastos Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso CESAR ASFOR ROCHA DALMO DE ABREU DALLARI darci norte rebelo denise frossard Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA Enrique ricardo lewandowski Eros Roberto Grau fernando neves Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins Jerson Kelman Joaquim Alves Brito josé augusto delgado JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO José Eduardo carreira Alvim luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello Massami Uyeda MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes nEY PRADO Paulo Freitas Barata Sergio Cavalieri filho Sylvio Capanema de Souza thiago ribas filho

O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

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Integração entre os tribunais estaduais

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AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E OS QUESTIONAMENTOS QUE INTERESSAM

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Colar de Professor Emérito da Escola Paulista da Magistratura

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A INTIMAÇÃO E A INCIDÊNCIA DA MULTA NO CUMPRIMENTO DA SENTENÇA

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demolições administrativas promovidas na defesa do meio ambiente

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LEIS ESPECIAIS NO BRASIL: ALGUMAS PONDERAÇÕES

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O ORÇAMENTO PÚBLICO

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UMA “DOM QUIXOTE”

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O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O

s acontecimentos ocorridos a partir da decretação da prisão do banqueiro Daniel Dantas demonstraram, com absoluta certeza, que o Brasil vive hoje em perfeita consonância com o Estado Democrático de Direito. A atuação do Poder Judiciário – tanto na decretação da prisão do banqueiro pelo juiz Fausto Martin De Sanctis, como na concessão do habeas corpuss pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes –, está em perfeita consonância com o disposto na lei, no Direito e na competência das referidas autoridades. Cabe acrescentar também que a ação da Policia Federal – através das medidas adotadas pelo delegado Protógenes Queiroz com a Operação Satiagraha, desenvolvida durante 4 anos e acompanhada pelo Ministério Público –, também está amparada em dispositivo legal. Existem indícios e provas, como divulgado fartamente pela imprensa, que o referido banqueiro transgrediu normas, o que capitula as suas ações como ilegais e contrárias à legislação: financeira, econômica, fazendária, bancária e tributária. Assim entendido, tornou-se também legítima a intervenção do ministro da Justiça, Tarso Genro, respaldando as ações da repartição e dos agentes que procederam, conforme suas palavras, no estrito campo das suas atividades policiais. As controvérsias que ocorreram, devem ser creditadas prin­ ci­­­palmente à falta de lei que regulamente a responsabilidade do agente público no caso de abuso de autoridade, incluindo o vazamento de informações de investigações sigilosas e a divulgação estrepitosa de ações que tramitam nos órgãos de fiscalização, Polícia Federal e Ministério Público. Os limites do segredo de justiça são extrapolados, com a ajuda 4 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2008

da mídia jornalística e publicitária, em busca de notoriedade, olvidando o respeito devido ao cidadão não culpado pela Justiça, imputando-lhe a humilhação e o descrédito decorrente das infâmias e da vilania acusatória, divulgadas irresponsavelmente e sem provas cabais. Acresce também que, divulgações escandalosas como a ocorrida na apreensão de documentos e computadores na residência de notório empresário, inclusive com denúncia de venda de ouro desmentida publicamente pelo acusado, podem, além de causar prejuízo bilionário com a desvalorização das ações de sua empresa, acarretar a anulação de uma transação que envolve bilhões de dólares, que deixarão de entrar no país caso o negócio, já fechado da venda de sua mineradora, seja rescindido. Quem arcará com o prejuízo, se houver? Será a Nação? O que acontece demonstra a urgência do Governo em enviar projeto ao Congresso, para punir os casos de abuso de autoridade, conforme sugerido pelo ministro Gilmar Mendes apoiado pelo ministro Tarso Genro. A celeuma criada nesse caso – apesar do evidente estrago no conceito público, pelas opiniões e considerações divulgadas e exploradas intensamente pela imprensa –, serviu para reunir em uma mesa de entendimentos e conciliação, o Presidente da República, o chefe do Poder Judiciário e o Ministro da Justiça, que acertaram e liquidaram os pontos divergentes, com a tomada de medidas próprias e necessárias, a fim de esclarecer à opinião pública, que foi iludida e condicionada a aceitar as distorções dos fatos ocorridos, como se houvesse interesse governamental em abafar o caso. A atitude do delegado Protogénes Queiroz, descurando das normas investigatórias da Polícia Federal, que veda a


Foto: Sandra Fado

divulgação publicitária dos fatos investigados, como declarou na reunião com a chefia da entidade, “que houve erros e falhas com a presença da imprensa”, causou o vazamento de informações publicadas com a deturpação escandalosa dos fatos. Bem agiu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao determinar ao ministro Tarso Genro e ao diretor interino da Polícia Federal, Romero Menezes, que o delegado Protogénes Queiroz voltasse ao comando da Operação Satiagraha, para concluir o que havia começado há 4 anos, demonstrando claramente para a opinião pública que o afastamento do agente do comando do inquérito decorreu a pedido do próprio agente policial, para atender a interesses particulares, de cursos especializados para promoção, e não por pressão política, como deixou transpirar na imprensa. Entretanto, apesar de todos os fatos negativos que ocorreram, o fato da imprensa estar usando de plena liberdade para noticiar e informar todos os deploráveis acontecimentos; a Polícia Federal estar investigando e apurando; o Ministério Público fiscalizando e; a Justiça julgando como lhe compete, uma assertiva resta clara: A NAÇÃO VIVENCIA PLENAMENTE O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO!

“Os acontecimentos ocorridos a partir da decretação da prisão do banqueiro Daniel Dantas demonstraram, com absoluta certeza, que o Brasil vive hoje em perfeita consonância com o Estado Democrático de Direito.”

Orpheu Santos Salles Editor 2008 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5


integração entre os tribunais estaduais

A

integração entre os tribunais estaduais de todo o país é uma das principais metas do desembargador Marcus Faver à frente da presidência do Colégio de Presidentes dos Tribunais de Justiça do Brasil. De acordo com o Presidente, é preciso interligar e harmonizar as relações dos tribunais dos 27 estados, respeitando suas diferenças e partilhando suas experiências positivas. “O Colégio tem por meta acabar, ou, pelo menos, reduzir essas “ilhas” da federação, que são os tribunais, fazendo uma interligação de atividades administrativas de gestão, mostrando atitudes positivas. Para isso, estamos fazendo reuniões bimestrais para levar as experiências positivas de um estado para o outro, porque um dos grandes defeitos da Justiça brasileira é justamente a falta de gestão”, afirmou o Desembargador. Justiça & Cidadania - Quais são seus planos como presidente do Colégio de Presidentes dos Tribunais de Justiça do Brasil? Marcus Faver - O que se tem a fazer, e é esse o trabalho do Colégio, é tentar resolver a situação institucional paradoxal em que nos encontramos. Isso é fundamental na minha visão. Nós somos formalmente uma República Federativa, formada pela união indissolúvel de Estados, Municípios e o Distrito Federal, mas, na prática, somos um país unitário. A União sufoca o Poder Executivo através das verbas que ele 6 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2008

contingencia pra si. Os Estados têm pouca independência financeira. As Assembléias Legislativas são hoje organismos de competência inferior a de uma Câmara de Vereadores, porque o sistema legal contingenciou de tal forma a competência legislativa que as Assembléias não valem quase nada. Estamos sufocados no Executivo pelo contingenciamento da receita tributária, estamos sufocados no Poder Legislativo pelo controle da competência estabelecida pela União e estamos contingenciados no Judiciário pelo controle administrativo exercido hoje pelo Conselho Nacional de Justiça. Estamos num paradoxo. Somos formalmente uma federação, mas na substância tendemos a um estado unitário, isso é ruim porque o país tem diferenças profundas de região para região, os tribunais estão perdendo sua autorização, sua competência administrativa e financeira pelo gerenciamento administrativo do CNJ, que limita a competência dos estados; até mesmo uma eventual promoção de juiz é questionada. Há um choque estrutural: a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, embora sejamos um estado federal, se choca com a independência administrativa consagrada no artigo 96 da Constituição Federal. A Constituição dá autonomia administrativa aos tribunais. É texto expresso na Constituição Federal competir priva­ tivamente, ressalte-se o termo, aos tribunais organizar suas secretarias, prover os cargos de juízes, enfim, gerir toda a questão administrativa do Poder Judiciário no estado. Mas


Foto: Arquivo JC

“Nós somos formalmente uma República Federativa, formada pela união indissolúvel de Estados, Municípios e o Distrito Federal, Mas, na prática, somos um país unitário.”

Presidente do Colégio de Presidentes dos Tribunais de Justiça do Brasil, Marcus Faver tal autonomia é pactuada pela reforma e pelas disposições do CNJ. Talvez haja fundamentos sérios para se controlar os desmandos que às vezes existem nos tribunais, mas essa dicotomia institucional e chocante entre um sistema formalmente federativo e um sistema, na prática, unitário, é um problema sério que o Colégio está tentando mostrar aos tribunais e aos órgãos superiores. A outra questão, é que, em se tratando de uma República Federativa, estamos trabalhando como se fôssemos ilhas isoladas e não interligadas e harmônicas. Por exemplo, uma medida de gestão administrativa adotada em Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo, nossos vizinhos de fronteira, não são em regra trazidas ao nosso conhecimento. A mesma coisa se passa com as experiências administrativas do Rio de Janeiro que não são levadas a São Paulo, etc.. Por esse motivo, o Colégio tem por meta acabar, ou pelo menos reduzir, essas “ilhas” da federação, que são os tribunais, fazendo uma interligação de atividades administrativas de gestão, mostrando atitudes positivas. Para isso, estamos fazendo reuniões bimestrais para levar as experiências positivas de um estado para o outro, porque um dos grandes defeitos da Justiça brasileira é justamente a falta de gestão. O Colégio está empenhado ainda em duas outras metas: a concretização do processo virtual, que vai diminuir custos de maneira acentuada, acabando com o papel; e o incentivo à Conciliação e à Mediação, diminuindo a área de conflito e

as arestas entre as partes. É difícil, mas já temos conquistas extraordinárias, começando em um estado pequeno como Roraima, que está com todos os juizados especiais processando virtualmente. Esse é o caminho, o caminho de uma técnica de gestão altamente positiva, que vai baratear o custo da prestação jurisdicional. São medidas assim que o Colégio está adotando. Servir de “link”, conhecendo esses problemas, diminuindo essa situação paradoxal entre um sistema federativo formal e na prática um sistema unitário, mostrando a necessidade de respeitar as características de cada região. Se ligarmos às 15h30min para o Tribunal de Justiça do Piauí, por exemplo, o Tribunal estará fechado porque eles lá começam a trabalhar às 7h, por causa do calor, e fecham às 13h30min. Eles trabalham o mesmo tempo que a gente, só que em horários diferentes. Essas situações peculiares devem ser respeitadas. Não entender isso é desrespeitar o sistema federativo. Por isso, a iniciativa do Rio de Janeiro, de criar um fundo especial, não poderia ser levada para um estado como o Piauí, que não possui volume de atos negociais para ensejar receita capaz de dispensar a ajuda do Governo. Ele precisa de participação no orçamento do estado, caso contrário sem condições de funcionamento estará. Já o Tribunal de São Paulo se criar um fundo à semelhança do que tem o Rio de Janeiro, a independência será total 2008 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7


Foto: Gervásio Baptista/SCO/STF

Desembargador Marcus Faver em audiência com o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes

e absoluta, e isso é fundamental porque o Judiciário não pode ficar na dependência do Executivo. Os poderes devem ser harmônicos, mas independentes. JC - Na sua gestão como Presidente, no biênio 2001/2002, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro atingiu a independência financeira tornando-se um dos mais bem aparelhados do País. Quais os planos do Colégio para conseguir que os demais tribunais dos outros estados consigam também a sua autonomia administrativa e financeira? MF - O esquema do Rio de Janeiro não daria certo na grande maioria dos estados brasileiros. Só daria certo em estados que tenham uma considerável movimentação negocial. O TJ/RJ recebe como recurso do Fundo, entre outras receitas, as custas, a taxa judiciária, e 20% sobre os emolumentos. A taxa judiciária é paga pela colocação da prestação jurisdicional à disposição da sociedade, pelo funcionamento do Poder Judiciário; as custas são pagas pela atividade de cada servidor – oficial de justiça, escrivão, escrevente – trabalhando em um processo, e; o percentual de 20% dos emolumentos são cobrados pelo exercício do poder de polícia do Judiciário sobre o serviço extrajudicial – registro de escritura, registro de imóveis, lavratura de testamento, reconhecimento de firma, etc.. Esse conjunto de receitas somado a outras receitas: taxa dos concursos 8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2008

públicos, aluguel dos espaços dentro dos fóruns, receita da locação de imóveis, receita de estacionamento, fotocópias, receitas financeiras decorrentes de aplicações, etc., dá ao TJ/RJ independência no tocante às verbas de custeio e investimento; ou seja, no orçamento do estado não consta verba de custeio e investimento para o Judiciário, mas somente verba de pessoal. Para que isso dê certo, portanto, é preciso que haja um considerável volume de atos negociais capazes de gerar uma arrecadação suficiente. Esse esquema nos estados menores não daria certo, considerando que não haveria movimentação negocial capaz de gerar recursos suficientes para cobrir as necessidades do Judiciário. Poderia dar certo em São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, por exemplo. Contudo, fica difícil exportar uma idéia geral como essa, porque ela tem que ser feita de acordo com as condições peculiares de cada estado, de cada região. JC - Qual o impacto da autonomia financeira na estrutura administrativa do TJ/RJ depois da instituição do Fundo? MF - O esquema da autonomia financeira para essas verbas trouxe um custo para o Tribunal muito grande. Tivemos um trabalho enlouquecido porque o Tribunal teve que se estruturar administrativamente para gerir a arrecadação, o controle financeiro, os serviços de engenharia, licitações,


“Hoje, o Tribunal é uma mega-empresa com mais de 15 mil servidores, todos pagos pelo estado, mas, desenvolvendo atividades dentro do Tribunal, responsável pela gestão administrativa. O nosso lema era: arrecadar com eficiência e gastar com parcimônia, como se fosse uma empresa privada.”

contratação de pessoal terceirizado para limpeza, enfim, ações administrativas até então realizadas pelo Governo do estado. Foi preciso organizar uma secretaria de planejamento, de engenharia, serviço médico, etc.. Hoje, o Tribunal é uma mega-empresa com mais de 15 mil servidores, todos pagos pelo estado, mas desenvolvendo atividades dentro do Tribunal, responsável pela gestão administrativa. O nosso lema era: arrecadar com eficiência e gastar com parcimônia, como se fosse uma empresa privada. E qual o lucro dessa empresa? A prestação jurisdicional eficaz e efetiva em tempo razoável. Esse é o lucro da empresa pública: que o usuário fique satisfeito com o serviço que lhe é prestado. Todavia, temos que entender que cada unidade da federação tem suas peculiaridades, suas características e tradições. Com a criação do Fundo em São Paulo, por exemplo, o Governo estadual não perderia nada porque a rigor a Constituição Federal já determinou no art. 98, §2º, que a receita das custas e emolumentos é exclusivamente do Judiciário. O que compete ao Tribunal de Justiça de São Paulo é se organizar administrativamente para recolher as custas e fazer outros insumos para aumentar essa renda, como: receita de concursos públicos; receitas imobiliárias ou administrativas; construção de um prédio e aluguel de uma parte do espaço, com pagamento pelo valor de mercado por metro quadrado ocupado. Isso é que é o Fundo. É o gerenciamento dos recursos que se pode obter, com condições de recolher o dinheiro e aplicar, fazendo aplicações financeiras como aqui no TJ/RJ. Temos uma pessoa que só faz isso diariamente, aplicações em benefício do Fundo, por isso pudemos emprestar dinheiro tanto à governadora Rosinha quanto à governadora Benedita. Foram emprestados 50 milhões de reais, com a garantia dos royalties do petróleo, inteiramente resgatados com juros de mercado. JC - E os 6% do orçamento do estado? MF - São duas coisas diferentes. 6% é o percentual que

a Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece como limite que cada órgão administrativo, o Tribunal especificamente, pode gastar com pessoal. O Tribunal não pode gastar mais do que 6% do orçamento líquido do estado na sua folha de pessoal. Os cargos de escrevente, técnico judiciário, auxiliar judiciário, etc., devem ser criados através de lei, com a fixação das respectivas remunerações, observando-se o limite de 6% do orçamento líquido. Se chegar a 5,4%, 5,5% acende uma luz vermelha proibindo qualquer investimento, sob pena do autorizador da despesa responder por crime de improbidade. É o limite prudencial. JC - Então o Judiciário tem uma autonomia sobre os 6%? MF - Tem, mais ou menos até os 5,4%, 5,5%. Se o Presidente do Tribunal autorizar uma despesa que ultrapasse isso, responde pelo crime de improbidade administrativa. Desta forma, os concursos devem ser realizados dentro deste limite. Se o Judiciário quer criar 30 cargos de desembargador fica a seu critério, desde que não ultrapassado o limite. Com a informatização conseguimos reduzir o número de servidores em cada serventia, não para demitir – porque não podemos – mas para deslocar para outra vara a ser criada; ou seja, com o mesmo custo temos mais serviço. Esta é a grande vantagem da informática: redução no custo administrativo. JC - O número de assessores dos desembargadores e ministros é de apenas 4 ou 5, enquanto um deputado tem 20. O senhor não acha que uma maior quantidade de assessores desafogaria os tribunais? MF - Desafogaria, mas temos o problema da Lei de Responsabilidade Fiscal. Por exemplo, hoje somos 180 desembargadores e, precisando de mais assistentes, temos que criar 180 cargos. Ou seja, um para cada desembargador, o que já pesa muito. E você não pode pagar a um assistente qualificado valor inferior a R$5.000,00, porque senão não aparece funcionário tecnicamente qualificado. Penso que, de 2008 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9


agora em diante, ao invés de se criar mais cargos de desem­ bargadores, deve ser aumentada sua assessoria, através de concurso específico altamente qualificado. JC - Reclama-se que as taxas judiciárias no Rio de Janeiro são muito caras. O valor das taxas e das custas é determinado por lei estadual? MF - Se compararmos com outros estados, as custas do Rio de Janeiro não são caras. Há estados menores em que o valor das custas é o dobro do Rio de Janeiro. O valor da taxa judiciária aqui é de 2% sobre o valor da causa, inclusive com um teto estabelecido. Há estados que cobram mais que isso, até 4% a 5%. O valor das custas para um Recurso Especial interposto ao STJ é de R$100,00 de preparo, além do porte do Correio. Aqui se paga 1/3 disso. O valor é determinado por lei estadual. Tem a tabela das custas e o Código Tributário estadual estabelecendo o valor e a incidência da taxa. O valor está previsto legalmente e sem nenhum exagero. É preciso observar, no entanto, que a população brasileira empobreceu. Houve queda no poder aquisitivo da classe média. Por outro lado, 2/3 das atividades do Judiciário são realizadas hoje de forma gratuita. O serviço criminal, a vara de família e os juizados especiais são todos gratuitos. As únicas atividades que são remuneradas são as varas cíveis, comerciais e orfanológicas. Fazer esse volume reduzido de demandas pagas cobrir custos das demandas gratuitas não é uma tarefa fácil. Por isso, na lei que instituiu o Fundo há um artigo específico estabelecendo uma regra de gestão que o Tribunal não pode gastar um tostão com pagamento de pessoal, para evitar que alguns poucos que detenham o poder arranjem uma função gratificada para A ou B contando com o dinheiro do Fundo. JC - Recentemente foi publicada a Lei nº 11.672/2008, tendo sido regulamentada pelo presidente do STJ, ministro Humberto Gomes de Barros, no dia 15/07/2008. Qual a importância dessa lei no âmbito da justiça estadual? MF - Essa lei restringe a possibilidade de admissão de recursos especiais repetitivos no âmbito do STJ, quando tiverem como fundamento idêntica questão de Direito, diminuindo o volume de processos que iriam a Brasília consideravelmente e aumentando o poder decisório dos tribunais estaduais. O dado mais significativo, no entanto, é a diminuição no tempo da demanda, gerando uma significativa melhora na prestação jurisdicional. Estou convencido que, em decorrência dessa lei, os recursos começarão a se esgotar; além do fato dos tribunais regionais ganharem independência. Essa lei também desafogará os serviços dos tribunais superiores. Tanto o STF quanto o STJ estão abarrotados de processos e estão criando dificuldades para o recebimento de recursos extraordinários e especiais. À primeira vista, a regulamentação dessa lei parece medida adotada exclusivamente em benefício dos tribunais superiores – que não vão mais receber tal volume de processos –, mas tem um 10 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2008

“A médio prazo os tribunais estaduais vão ganhar legitimidade que nunca tiveram, deixando de ser um tribunal de passagem para ser o tribunal final na maioria das demandas.”

significado muito mais importante, um significado político dentro do nosso sistema federativo. A médio prazo os tribunais estaduais vão ganhar legitimidade que nunca tiveram, deixando de ser um tribunal de passagem para ser o tribunal final na maioria das demandas. Desta forma, a estatura dos tribunais estaduais vai ser elevada, considerando que eles passarão a ser o “Supremo Tribunal Estadual” em cada unidade da federação, como nos Estados Unidos. Em uma visão prospectiva é essa figura que vejo. Isso vai requerer dos desembargadores componentes dos tribunais, a compreensão da importância que passarão a ter. Hoje, muitas coisas são decididas mais rapidamente, ou com menos estudo, considerando que a questão será objeto de nova análise em Brasília. A partir de agora, não. Com essa lei, será exigido um maior comportamento técnico do tribunal, com mais responsabilidade. Essa é, talvez a primeira lei que vem para reforçar o federalismo na Brasil. JC - A restrição na admissão de recursos especiais repetitivos por súmulas do STJ, a despeito do posicionamento contrário dos tribunais não fere a sua independência? MF - Não, por tratar-se de previsão legal e até mesmo em razão de uma inadmissibilidade potencial, tendo em vista que no STJ a matéria já seria revertida de qualquer maneira. Os tribunais estaduais vão ter que rever sua posição, pois não teria qualquer sentido admitir um Recurso Especial cuja solução já estaria antecipadamente tomada pelo Tribunal Superior. Então, seguindo a linha procedimental da nova legislação, serão admitidos alguns recursos representativos da controvérsia nos tribunais estaduais e encaminhados ao STJ, suspendendo o julgamento dos demais até que o Tribunal Superior se pronuncie definitivamente sobre o tema. Essa suspensão poderá durar no máximo 180 dias e caso o julgamento do recurso paradigma não seja finalizado no STJ em dois meses os tribunais darão prosseguimento à tramitação das ações.


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O DISSÍDIO COLETIVO À LUZ DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45/04

Ives Gandra Martins Filho Ministro do TST

O

s dissídios coletivos sofreram substancial transformação por ocasião da promulgação da Emenda Constitucional nº 45/04. A exigência do comum acordo para o seu ajuizamento não representou, como pretendem alguns, mera adição de pressuposto processual para seu ajuizamento. Esse eufemismo visa a encobrir uma realidade inegável e contundente: a redução do poder normativo da Justiça do Trabalho pela referida emenda constitucional. Se, a partir da nova redação do § 2º do art. 114 da CF, o comum acordo entre as partes em litígio passou a ser condição para o exercício do direito de ação coletiva, a Justiça do Trabalho transformou-se em instância de eleição das partes para composição do conflito coletivo de trabalho. E a natureza jurídica do foro de eleição é, inegavelmente, a de juízo arbitral. Esta idéia é compartilhada por Marcos Neves Fava (“O Esmorecimento do Poder Normativo – Análise de um Aspecto Restritivo da Ampliação da Competência da Justiça do Trabalho”, in: Nova Competência da Justiça do Trabalho, São Paulo: LTr, 2005, p. 285), que utiliza o termo “arbitragem pública”, e Walter Wiliam Ripper, por entender que, se as partes não se dirigirem à arbitragem privada, uma vez esgotada a negociação coletiva, poderão optar pela “arbitragem judicial”, procedida dentro dos novos limites constitucionais da Justiça do Trabalho. A Seção de Dissídios Coletivos do TST, negando tal realidade insofismável, afasta qualquer similaridade do novo 12 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2008

dissídio coletivo com a arbitragem, ao argumento de que não haveria compromisso arbitral e irrecorribilidade das sentenças normativas, o que não afasta a conclusão de que, na atualidade, o dissídio coletivo guarde contornos semelhantes à arbitragem. Nesse sentido, na esteira dos §§ 1º e 2º do art. 114 da CF, a seqüência natural para composição dos dissídios coletivos de trabalho seria a negociação coletiva, a arbitragem privada e a “arbitragem estatal”, exercida pela Justiça do Trabalho. Com a mudança constitucional em sede de exercício de poder normativo da Justiça do Trabalho, a SDC do TST passou a flexibilizar a antiga rigidez dos pressupostos de constituição e desenvolvimento válido de dissídios coletivos, já que, após a exigência, pela EC nº 45/04, do comum acordo para ajuizamento de dissídios coletivos, a redução das ações coletivas seria natural, não justificando excesso de formalismo na apreciação dessas ações. Nesse diapasão, mudando orientação mais formalista seguida há anos, a SDC entendeu que não se poderia exigir, para efeito de quorum de assembléias gerais das categorias suscitantes, o cumprimento da literalidade do art. 859 da CLT – que fala em assembléia dos trabalhadores associados ao sindicato –, quando o sindicato representa toda a categoria, podendo a assembléia deixar de contar com empregados associados ao sindicato (cfr. TST-ERODC-184/2003-000-17-00.6, Rel. Min. Ives Gandra, julgado em 13/09/07).


Foto: Arquivo JC

Ministro Ives Gandra Martins Filho recebendo o troféu Dom Quixote do ministro Carlos Velloso, no STF, em 29 de novembro de 2006

Em contraste, o único ponto de endurecimento da jurisprudência na admissão de dissídio coletivo ficou por conta dos dissídios propostos por categorias diferenciadas (secretárias, advogados, engenheiros, etc.), que chamavam a juízo centenas de entidades empresariais e sindicais, tornando impossível qualquer negociação, acordo ou defesa efetiva. Para esses casos, a SDC reconheceu a necessidade da presença, na assembléia, de empregados de cada um dos entes suscitados, para legitimar sua chamada a juízo, de modo a que se torne factível a tramitação do dissídio (cfr. TSTRODC-20.092/2002-000-02-00.3, Rel. Min. Ives Gandra, julgado em 08/11/07). Por outro lado, o TST chegou ao máximo da ampliação hermenêutica do § 2º do art. 114 da CF, que não ofendesse sua literalidade: em face do entendimento de alguns TRTs, no sentido de que a EC nº 45/04 não havia alterado o procedimento dos dissídios coletivos, o TST firmou o entendimento de que o comum acordo poderia ser tácito, pela não resistência patronal à instauração da instância, mas se, na contestação, o suscitado não concordasse com o dissídio, este deveria ser extinto. Apenas nos casos de o TRT ter rejeitado a preliminar de ausência de comum acordo e o suscitadorecorrente não renovasse a preliminar, é que se convalidaria a instauração do dissídio, por concordância subseqüente do suscitado (TST-RODC-397/2006-000-05-00.6, Rel. Min. Barros Levenhagen, julgado em 14/06/07). Quando da recomposição da SDC, após o preenchi-

mento dos 10 novos cargos de ministro do TST criados pela EC nº 45/04, passaram a integrá-la, além dos membros da administração do Tribunal, os ministros mais novos da Corte, com o que a jurisprudência tenderá a ser progressivamente modificada. No entanto, no que diz respeito à necessidade do comum acordo, a sua exigência foi mantida (até em nome da segurança jurídica, pela pacificação jurisprudencial de vários anos), em que pese o desejo dos novos ministros de recuperar a antiga plenitude de jurisdição em matéria de dissídios coletivos. O processo no qual se discutiu pela primeira vez a questão, com a nova composição da SDC (na qual o relator apenas trazia processo remanescente), o voto prevalente foi assim ementado: “DISSÍDIO COLETIVO – VIGILANTES E TRANSPORTADORES DE VALORES DO PARÁ – COMUM ACORDO ENTRE AS PARTES – PRESSUPOSTO PROCESSUAL (EC 45/04; CF, ART. 114, § 2º) – RECUSA DA SUSCITADA – EXTINÇÃO. 1. A Emenda Constitucional 45 trouxe substancial alteração na disciplina jurídica do Processo Coletivo do Trabalho, ao exigir, para ajuizamento de dissídio coletivo, o comum acordo das partes em submeterem o conflito à Justiça do Trabalho. A clareza solar do § 2º do art. 114 da CF quanto à exigência não permite exegese que admita o dissídio por vontade unilateral do suscitante. Num regime democrático republicano de separação de poderes, não cabe ao 2008 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13


“Em contraste, o único ponto de endurecimento da jurisprudência na admissão de dissídio coletivo ficou por conta dos dissídios propostos por categorias diferenciadas, que chamavam a juízo centenas de entidades empresariais e sindicais, tornando impossível qualquer negociação, acordo ou defesa efetiva.”

Judiciário sobrepor-se à vontade legítima e expressa do constituinte derivado que, no caso, manifestou-se pela conveniência de limitação do poder normativo da Justiça do Trabalho, conforme anais da votação da referida Emenda Constitucional. 2. O TST, no limite de flexibilização hermenêutica que o art. 114, § 2º, da CF comporta, tem assentado que a EC 45/04 não reduziu o exercício do poder normativo da Justiça do Trabalho, mas apenas criou pressuposto processual adicional, consistente na necessidade do mútuo acordo das partes em conflito para a instauração do dissídio coletivo, excepcionadas as hipóteses de greve em serviço essencial, nas quais o Ministério Público pode suscitar isoladamente o dissídio. 3. Embora o pretendido consenso dependesse da subscrição conjunta da petição inicial do dissídio coletivo, a jurisprudência do TST, sensível ao provável desgaste do relacionamento entre as partes numa negociação frustrada, tem admitido a hipótese de concordância tácita, de forma que apenas a recusa expressa da entidade suscitada obsta a resolução do conflito pela via judicial. 4. No caso, mostra-se inequívoco o dissentimento do Suscitado, tendo em vista que, na contestação e em outras fases do processo sempre manifestou sua discordância com o ajuizamento do dissídio e sua vontade de chegar à solução do conflito pela via negocial autônoma. 5. Assim, não merece reforma a decisão regional que acolheu a preliminar de ausência de comum acordo e extinguiu o processo, sem resolução de mérito, nos termos do art. 267, IV, do CPC. Recurso ordinário desprovido” (TST-RODC-533/2006-000-08-00.0, Rel. Min. Ives Gandra, SDC, DJ de 08/02/2008). As razões expostas, na ocasião, para refutar a pretensão de se afastar o requisito do comum acordo foram as seguintes: “A Emenda Constitucional nº 45/04 erigiu como pressuposto específico de ajuizamento de dissídio coletivo perante a Justiça do Trabalho o comum 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2008

acordo entre as partes (CF, art. 114, § 2º). A vontade do constituinte derivado foi claríssima nesse sentido, conforme se pode verificar dos debates que se travaram em torno da inclusão da expressão no § 2º do art. 114 da CF, verbis: ‘O sr. Gerson Peres (PPB). Sr. Presidente, o Partido Progressista Brasileiro tem um argumento muito simples, curtinho mesmo. O fundamento da reforma do Judiciário é aceito também na economia processual. Queremos evitar o entulho, o volume maior que sufoca a tramitação dos processos, e essa expressão ajuda nisso. Não vemos nada de mais se realmente a parte, de comum acordo, encontrar solução para os seus problemas. Como também, se não houver acordo entre as partes, estaremos impedindo que uma delas prossiga na demanda. De forma que encaminhamos o voto ‘sim’. O sr. Inocêncio Oliveira (PFL). Sr. Presidente, discutimos com o nobre deputado Vivaldo Barbosa, que tem a melhor das intenções. Se olharmos o início do texto, para depois dizermos que só podemos fazer isso em comum acordo, vamos forçar sempre o entendimento. Vamos fazer com que as partes cheguem ao entendimento. Caso contrário, ao retirarmos isso, vai haver tantos litígios que a demanda na Justiça vai ser tão grande que não compensaria a retirada do texto. Por isso, o PFL, para a manutenção do texto, recomenda o voto ‘sim’. O sr. Ricardo Berzoini (PT). Sr. Presidente, quero esclarecer que uma das teses mais caras ao Partido dos Trabalhadores é a luta contra o poder normativo da Justiça do Trabalho. Acreditamos que a negociação coletiva se constrói pela vontade das partes. Ou seja, se não tivermos no processo de negociação a garantia da exaustão dos argumentos, da busca do conflito e da sua negociação, vai acontecer o que vemos em muitos movimentos hoje, particularmente em São Paulo, como o recente caso dos metroviários, em que a empresa recorre ao


poder normativo antes de esgotada a capacidade de negociação. Portanto, na nossa avaliação, manter a expressão ‘de comum acordo’ é uma forma de garantir que haja exaustão do processo de negociação coletiva. O Partido dos Trabalhadores vota pela manutenção da expressão, combatendo o poder normativo da Justiça do Trabalho, que hoje é um elemento de obstáculo à livre negociação coletiva’. Assim, interpretação que levasse à negação da exigência só se faria por voluntarismo jurídico, por ir contra a literalidade de expresso texto de norma constitucional, sobre cujo conteúdo cabe ao Supremo Tribunal Federal dar a última palavra, o que não condiz com o regime democrático republicano de separação dos poderes, já que o Poder Judiciário estaria se sobrepondo à vontade expressa dos representantes eleitos do povo. Essa vontade, conforme já demonstrado acima, foi precisamente a de se estimular a negociação coletiva mediante a limitação do poder normativo da Justiça do Trabalho. No Direito comparado, são raros os países que, como o Brasil, adotam formas impositivas de solução dos conflitos coletivos de trabalho, limitando-se à Austrália, Burundi, México, Nova Zelândia e Peru, já que a intervenção estatal através de jurisdição impositiva em matéria coletiva tem notórios inconvenientes: enfraquecimento da liberdade negocial, desconhecimento real das condições do setor, demora nas decisões, generalização das condições de trabalho, incompatibilidade com a democracia pluralista e representativa, e maior índice de descumprimento da norma coletiva (cfr. Ives Gandra Martins Filho, Processo Coletivo do Trabalho. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2003, p. 33-39). Idealmente, o pretendido consenso seria materializado de forma plena caso houvesse a subscrição conjunta da petição que ajuíza o dissídio coletivo na Justiça do Trabalho. Todavia, seria descabido exigir tal comportamento das partes, uma vez que elas ainda se encontrariam abaladas em suas relações, em decorrência das extenuantes rodadas da negociação malogradas, nas quais não se obteve o consenso sobre o direito material firmado nas várias cláusulas contratuais do pacto debatido. Assim, posto que o espírito da lei pressuponha o mútuo requerimento do socorro jurisdicional, mediante a eleição da Justiça do Trabalho como árbitro da composição do conflito de interesses, adotando interpretação flexível do referido artigo constitucional, a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho tem admitido a hipótese de concordância tácita com o ajuizamento do dissídio coletivo, apenas consubstanciada na não-oposição do suscitado à instauração da instância. Esse é o limite de flexibilização hermenêutica da norma constitucional que não atenta contra a sua literalidade, a que chegou o TST, numa

posição intermediária entre uma redução drástica e a manutenção intacta do poder normativo. Registre-se que os temores de um acirramento de greves pela ausência da instância judicial para composição dos conflitos coletivos de trabalho, frustrada pela simples negativa patronal em negociar, são infundados, haja vista que, nestes 3 anos que se seguiram à promulgação da Emenda Constitucional nº 45/04, não houve qualquer incremento no núme­ro de greves registradas no setor privado. Assim, o comum acordo constitui exigência constitucional ineludível para prosseguimento do dissídio coletivo instaurado pelo Suscitante. Nesse sentido, colhem-se os seguintes julgados da SDC desta Corte: ‘RECURSO ORDINÁRIO EM DISSÍDIO COLETIVO - EXIGIBILIDADE DE ANUÊNCIA PRÉVIA. A manifestação expressa da Suscitada em contrário ao ajuizamento do Dissídio Coletivo torna inequívoca a ausência do comum acordo, pressuposto da ação prevista no art. 114, § 2º, da Constituição da República. Recurso ordinário a que se nega provi­mento’ (TST-RODC-16007/2005-909-09-00.8, Rel. Min. Carlos Alberto, DJ de 16/02/07). ‘EXIGÊNCIA DE COMUM ACORDO PARA INSTAURAÇÃO DE DISSÍDIO COLETIVO DE NATUREZA ECONÔMICA - CONSTITUCIONALIDADE DA INOVAÇÃO INTRODUZIDA PELA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45/2004 - OPOSIÇÃO DA PARTE ADVERSA - EXTINÇÃO DO PROCESSO POR FALTA DE PRESSUPOSTO PROCESSUAL. I - A Emenda Constitucional nº 45/2004 não aboliu o poder normativo da Justiça do Trabalho, nem lhe subtraiu sua função jurisdicional, desautorizando, assim, a tese sustentada aqui e acolá de que teria passado à condição de mero juízo arbitral, extraída da exigência de comum acordo para instauração do dissídio coletivo. II - A atividade jurisdicional inerente ao poder normativo da Justiça do Trabalho qualifica-se como atividade jurisdicional atípica, na medida em que, diferentemente da atividade judicante exercida no processo comum, não tem por objeto a aplicação de direito preexistente, mas a criação de direito novo, detalhe a partir do qual se pode divisar situação sui generis de ela, na sua atividade precípua como órgão integrante do Judiciário, desfrutar ainda que comedidamente da atividade legiferante inerente ao Poder Legislativo. III - Tendo por norte essa singularidade da atividade jurisdicional cometida à Justiça do Trabalho, no âmbito do dissídio coletivo, mais a constatação de o § 2º, do art. 114, da Constituição ter erigido a negociação coletiva como método privilegiado de composição dos conflitos coletivos de trabalho, não se divisa nenhuma inconstitucionalidade na exigência de ‘comum acordo’, para a instauração 2008 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15


“Se, sob o prisma decisório, a tese representava manifesto exemplo de voluntarismo jurídico, sob o prisma hermenêutico, chegouse a falar em verdadeiro ‘malabarismo jurídico’.”

do dissídio de natureza econômica, no cotejo com o princípio constitucional da inderrogabilidade da jurisdição. IV - Não sendo necessário que a instauração do dissídio de natureza econômica seja precedida de petição conjunta dos contendores, como a princípio o poderia sugerir a locução ‘comum acordo’, daí não ser apropriado nomear tal exigência como cláusula compromissória, interpretando-a teleologicamente pode-se chegar à conclusão de ela ter sido identificada como pressuposto de válido e regular desenvolvimento do processo de que trata o art. 267, inciso IV, do CPC. V - Descartada a exigência de que os contendores, para provocação da atuação do poder normativo da Justiça do Trabalho, assim o tenham ajustado previamente, cabe apenas verificar se o suscitado a ela se opõe expressamente ou a ela consinta explícita ou tacitamente, no caso de não se insurgir contra a instauração do dissídio de natureza econômica, circunstância que dilucida a não-aplicação, no processo coletivo do trabalho, da ortodoxia do processo comum de se tratar de matéria cognoscível de ofício pelo juiz, a teor do § 3º, do art. 267, do CPC, pelo que o seu acolhimento dependerá necessariamente da iniciativa da parte adversa. VI - Como o suscitado expressamente manifestou-se contrário ao ajuizamento do dissídio coletivo, depara-se com a ausência do pressuposto de válido e regular desenvolvimento do processo de que trata o art. 267, inciso IV, do CPC, indutora da sua extinção sem resolução do mérito, a teor do caput daquele artigo. Recurso provido para julgar extinto o processo sem resolução do mérito’ (TST-RODC-3.626/2005-000-04-00.9, Rel. Min. Barros Levenhagen, DJ de 16/02/07). A nova redação do art. 114, § 2º da CF, trazida pela EC 45/04, ao impor a exigência do comum acordo para o ajuizamento do dissídio coletivo, limitou, mas não impossibilitou, o ajuizamento da ação coletiva, que continua sendo possível a qualquer das partes, 16 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2008

desde que aceita a jurisdição normativa pela outra. O princípio da inafastabilidade da jurisdição pressupõe o acesso à Justiça para a defesa de um direito existente, que está sendo ameaçado ou foi lesado. Contudo, no caso do Dissídio Coletivo, o exercício do poder normativo da Justiça do Trabalho diz respeito à criação de normas reguladoras das relações laborais entre as categorias profissional e econômica, não restando, portanto, afastada a tutela jurisdicional, entendimento, este adotado por esta Seção Especializada (cfr. TSTRODC-4.049/2005-000-04-00.0, Rel. Min. Vantuil Abdala, SEDC, DJ de 19/10/07). Se o constituinte derivado limitou o poder normativo da Justiça do Trabalho como forma de incentivar a negociação coletiva, condicionando-o ao mútuo acordo na eleição da via judicial, não cabe a esta Justiça Especializada o exercício espontâneo e abusivo da jurisdição, contra a vontade manifesta de uma das partes, respaldada na Carta Maior da República. Ademais, conforme previsto no atual texto constitucional, o comum acordo entre as partes diz respeito à escolha da via judicial como meio de solução do conflito. Portanto, mesmo admitida a possibilidade do comum acordo tácito, o pedido de extinção do processo com base em argüição de qualquer preliminar (ausência de condição da ação ou de pressuposto processual) evidencia a discordância do ente suscitado com a instauração da instância. Assim, a simples recusa patronal na instauração do dissídio dispensa maiores divagações a respeito do preenchimento dos demais pressupostos de constituição válida do processo coletivo, pois a recusa é verificável de plano, enquanto as demais condições exigem exame mais acurado da prova dos autos.” A tese vencida, da desnecessidade do comum acordo, partiu de uma interpretação notavelmente flexível do texto constitucional, assentando que o § 2º do art. 114 da CF dizia respeito à utilização da Justiça do Trabalho como árbitro, enquanto a sede do exercício de poder normativo amplo seria a do inciso IX do art. 114, quando atribuía à Justiça do Trabalho a solução de “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”. Se, sob o prisma decisório, a tese representava manifesto exemplo de voluntarismo jurídico, sob o prisma hermenêutico, chegou-se a falar em verdadeiro “malabarismo jurídico” para se chegar ao resultado desejado por aqueles que, em detrimento do princípio da subsidiariedade, vêem a intervenção estatal como principal e primária fonte de solução dos conflitos sociais. Assim, enquanto mantida a jurisprudência da SDC-TST, a oposição patronal à instauração da instância continuará a afastar o conflito da intervenção estatal, propiciando o aprofundamento na negociação coletiva, sabendo-se que a solução de consenso é melhor do que a imposta pelo EstadoJuiz ou Estado-Legislador.


AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E OS QUESTIONAMENTOS QUE INTERESSAM Sidney Monteiro Peres Juiz Federal

A

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Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa, criada pela Lei nº 8.429/92, traz em seu bojo grande complexidade em razão de não explicitar a competência dos vários graus de juízo para processar e julgar as múltiplas autoridades administrativas, inclusive as de cunho político específico. Além de medida de afastamento cautelar de autoridades administrativas/políticas, no mérito autoriza a condenação da parte ré nas sanções previstas no artigo 12, inciso III, da Lei nº 8.429/92, quais sejam: perda da função pública; suspensão dos direitos políticos de 03 (três) a 05 (cinco) anos; pagamento de multa civil de até 100 (cem) vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e; a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios, ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de 03 (três) anos. Por tudo isso, é necessário tecer considerações de cunho jurídico para que fique esclarecido qual é o juízo competente para processar e julgar determinadas autoridades. Segundo detida análise, constato que, na verdade, tratase de ação de improbidade administrativa que tem objetivo múltiplo, cujo efeito da sentença, uma vez procedente, tanto será civil, administrativo e penal. Por oportuno, a Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992, foi editada para regular as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de cargo público. Enquanto o seu capítulo VI traz disposições de 2008 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17


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“a ação de improbidade administrativa objetiva, precipuamente, a reparação do dano sofrido pelo patrimônio público em virtude do ato de improbidade impugnado e a punição dos responsáveis, aí incluindo o perdimento dos bens e vantagens obtidas ilicitamente, e o seu afastamento da Administração Pública.” natureza penal, o resto da lei trata das sanções e procedimentos administrativos e civis. Por isso, a chamada ação de improbidade administrativa, tipo de ação que visa apurar e punir a prática de ilícitos na Administração Pública direta e indireta, além de recuperar os prejuízos em favor dos cofres públicos. Por seu turno, tem sido uma prática comum, tanto do Ministério Público Federal ou Estadual quanto do Poder Judiciário, o tratamento desta ação de improbidade administrativa meramente como uma nova modalidade de Ação Civil Pública, freqüentemente chamando-a de “Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa”. Por sua vez, não se pode deixar de anotar, por outro lado, que a Lei nº 8.429/92 traz regras tanto de direito material quanto de direito processual e não ressalvou a aplicação subsidiária da Lei nº 7.347/85. Outrossim, conforme já dito, a ação de improbidade administrativa objetiva, precipuamente, a reparação do dano sofrido pelo patrimônio público em virtude do ato de improbidade impugnado e a punição dos responsáveis, aí incluindo o perdimento dos bens e vantagens obtidas ilicitamente, e o seu afastamento da Administração Pública, tanto com a perda de cargos e funções como com a proibição de contratações futuras e a suspensão dos direitos políticos. Tais características, no entanto, a meu ver, fazem da ação de improbidade administrativa uma ação civil de forte conteúdo penal e com inegáveis aspectos políticos. Este caráter claramente punitivo da ação de improbidade administrativa 18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2008

traz sérios questionamentos quanto à competência para o seu julgamento em determinadas situações. Acresce, ainda, que, inegavelmente, diversos dos ilícitos “civis” previstos na Lei nº 8.429/92 – para não dizer praticamente todos – correspondem a tipos penais bem definidos, enquadráveis como crimes de responsabilidade. Assim, é preciso que o ordenamento jurídico seja preservado como um todo orgânico e sistemático, evitandose incongruências, contradições e perplexidades que possam surgir do julgamento simultâneo de ações, uma civil e outra penal, envolvendo os mesmos agentes públicos e os mesmos atos. Ora, a Constituição Federal dá ao Supremo Tribunal Federal a competência originária para, nos crimes de responsabilidade, processar e julgar ministros de Estado e membros dos tribunais superiores e do Tribunal de Contas da União. Da mesma forma, compete ao Superior Tribunal de Justiça processar e julgar originariamente os desembargadores de tribunais de Justiça, os membros dos tribunais de contas estaduais, dos tribunais regionais federais, dos tribunais regionais do trabalho, os membros dos conselhos ou tribunais de contas dos municípios e os do Ministério Público Federal que oficiem perante tribunais. Além do mais, as Constituições dos estados dão aos tribunais de Justiça competência originária para o julgamento de determinadas autoridades estaduais ou municipais quando acusadas de crimes de responsabilidade. Nesse sentido, a conseqüência, no meu entender, deve ser a incompetência dos juízes de primeira instância para processar e julgar, com base na Lei nº 8.429/92, autoridades que estejam submetidas, em matéria penal, à competência originária dos tribunais, inclusive do STF e do STJ. Não se pode admitir, numa interpretação sistemática e teleológica da ordem jurídica, que autoridades com prerrogativa de foro penal possam ser julgadas por juízes de primeira instância em ações de improbidade que discutam, justamente, atos com repercussões penais e cujos desfechos podem se dar com a perda do cargo público e dos direitos políticos. De igual sorte, é cediço observar que o egrégio Supremo Tribunal Federal não permaneceu alheio à discussão. Em decisão recente, em 13 de março de 2008, a Suprema Corte decidiu arquivar ação de improbidade administrativa contra o então advogado-geral da União, Gilmar Mendes, atual ministro e presidente do STF. Segundo a decisão, a ação, proposta em 2002 para apurar supostas irregularidades no provimento de cargos públicos na Advocacia-Geral da União, deve continuar na primeira instância contra os outros réus. A decisão foi tomada no julgamento da Petição (PET) 3.211, em que Walter do Carmo Barletta levantou questão de ordem relativamente à Ação Civil Pública, proposta pelo Ministério Público Federal para apurar supostas irregularidades no provimento de cargos públicos no âmbito da AGU, e também para investigar alegada recusa dos requeridos em prestar informações para apuração de inquérito civil. O ministro Meneses Direito, que abriu divergência no Plenário, defendeu que o julgamento de uma ação de


improbidade contra um Ministro de Estado, pela primeira instância, “quebraria o sistema Judiciário como um todo”. Para o Exmo. Ministro Cezar Peluso, seria “algo absurdo, o máximo do contra-senso” submeter o julgamento à primeira instância. Destarte, por oito votos a um, o STF decidiu que Gilmar Mendes, por ter foro privilegiado, não poderia ser julgado em ação proposta por um Procurador da República na 1ª instância da Justiça Federal. Assim, prevaleceu o mesmo raciocínio aplicado em 2007 ao caso do ex-ministro da Ciência e Tecnologia Ronaldo Sardemberg, acusado de usar um jato da FAB para uma viagem pessoal. Para o STF, ele não poderia ser condenado pela Lei de Improbidade porque exadministradores públicos já estão sujeitos a processos de crime de responsabilidade. O fato é que há grande controvérsia acerca da ação de improbidade contra agentes políticos. Tal discussão fora amplamente debatida nos autos da Reclamação nº 2.138/2002 (relator ministro Nelson Jobim), conforme já mencionado acima, na ação de improbidade administrativa em que o Ministério Público Federal propôs contra Ronaldo Mota Sardemberg, ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), hoje, ministro de Estado da Ciência e Tecnologia. A decisão teve por base fundamentos extraídos da obra de Gilmar Mendes e Arnoldo Wald, que assim dispunha: “A instituição de uma ‘ação civil’ para perseguir os casos de improbidade administrativa coloca, inevitavelmente, a questão a respeito da competência para o seu processo e julgamento, tendo em vista especialmente as conseqüências de eventual sentença condenatória, que nos expressos termos da Constituição, além da indisponibilidade dos bens e o ressarcimento do erário, poderá acarretar a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos do réu em caso de eventual sentença condenatória (CF, art. 37, § 4º). Não há dúvida aqui, pois, sobre o realce político-institucional desse instituto. A simples possibilidade de suspensão de direitos políticos ou a perda da função pública, isoladamente consideradas, seria suficiente para demonstrar que não se trata de uma ação qualquer, mas de uma ‘ação civil’ de forte conteúdo penal, com incontestáveis aspectos políticos. Essa colocação serve, pelo menos, para alertar-nos sobre a necessidade de que não se torne pacífica a competência dos juízes de primeira instância para processar e julgar, com base na Lei nº 8.429/92, as autoridades que estão submetidas, em matéria penal, à competência originária de cortes superiores ou até mesmo do Supremo Tribunal Federal (...). É evidente, pois, que, tal como anotado pela doutrina, a sentença condenatória proferida nessa peculiar ‘ação civil’ é dotada de efeitos que, em alguns aspectos, superam aqueles atribuídos à sentença penal condenatória. É certo, pois, que a condenação proferida na ação civil de que trata o art. 37, § 4º, da Constituição, poderá conter, também, efeitos gravosos para o equilíbrio jurídico-institucional do que eventual sentença condenatória de caráter penal”. Desta forma, perfilho-me ao entendimento sobre a

incompetência dos juízos de primeira instância para processar e julgar causas de improbidade administrativa em que sejam réus agentes públicos que detêm prerrogativa de foro, tendo em vista, sobretudo, a natureza das sanções aplicáveis. Neste ponto, entendo que admitir a competência funcional dos juízos de primeira instância implicaria subverter todo o sistema jurídico nacional de repartição de competências. Além disso, resta claro que há grande divergência sobre a manutenção do foro privilegiado. Isto porque este revela um conflito entre valores de dignidade constitucional: a submissão igualitária de todos, autoridades e cidadãos comuns, ao império do Direito e a estabilidade necessária ao exercício das funções públicas. Esse conflito, como qualquer outro de natureza constitucional, somente se resolverá mediante a compatibilização dos interesses em antagonismo. Contudo, é consabido que, por exemplo, prefeito, governador, secretários, etc., detêm foro privilegiado. Tal foro, como o próprio nome indica, significa o privilégio assegurado a determinadas pessoas, em geral autoridades públicas, de apenas serem submetidas a julgamento em instâncias especiais, de grau superior, ao contrário do cidadão comum, sujeito a julgamento pelo Poder Judiciário comum, ou seja, perante magistrados de carreira de 1ª instância. No Brasil, predomina o entendimento, tanto em sede doutrinária quanto jurisprudencial, de que o foro privilegiado não configura um privilégio pessoal outorgado à autoridade, mas uma prerrogativa funcional destinada a resguardar o regular exercício do cargo público. Reconhece-se, assim, na opção do constituinte de 1988, o interesse em garantir o livre exercício dos mandatos político-representativos e das funções superiores do Estado, para o qual, segundo essa opção, é indispensável a previsão de foro privilegiado, nos termos definidos pela Constituição. Ora, com fulcro no artigo 29, inciso X, da CF/88, o julgamento de um prefeito se dará perante o Tribunal de Justiça. Entretanto, considerando que se o fato importar em apurar a obtenção irregular de recursos dos fundos federais, evidencia-se o interesse e prejuízo a bens e serviços da União, passando-se, então, a competência a ser do Tribunal Regional Federal, cabendo recurso ao STJ e ao STF. Tal entendimento pode ser extraído do excerto do HC n° 78.728-RS, do Supremo Tribunal Federal, de relatoria do ministro Maurício Corrêa: “(...) Os tribunais regionais federais são competentes para processar e julgar prefeitos municipais por infrações praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União (Constituição, artigo 109, IV), assim entendidas também aquelas relativas à malversação de verbas recebidas da União sob condição e sujeitas à prestação de contas e ao controle do Tribunal de Contas da União”. Diante desse quadro, penso que a postura mais adequada por parte de qualquer juízo de primeiro grau, quando receber uma Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa ajuizada pelo Ministério Público, é de se declarar incompetente e remeter os autos ao Tribunal de Justiça, Regional Federal, STJ ou STF, conforme o caso. 2008 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19


Colar de Professor Emérito da Escola Paulista da Magistratura “O que mais me preocupa não é nem o grito dos violentos, dos corruptos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética. O que mais me preocupa é o silêncio dos bons.” Martin Luther King

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o dia 11/07/2008, no auditório da Emerj foram homenageados pela Escola Paulista da Magistratura, com a Medalha do Mérito Acadêmico, o advogado Felício Ferraz e o desembargador Paulo Ventura, diretor da Emerj. Foi homenageado também com o Colar de Professor Emérito, o presidente do TJ/RJ, desembargador José Carlos Schmidt Murta Ribeiro, que na ocasião discursou em nome dos agraciados, conforme transcrição a seguir: “Na verdade, sou pessoa simples, um carioca nato, nascido na Tijuca, no Hospital Evangelista há mais de sessenta e cinco anos, e que sempre morou nesta querida, queridíssima, cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, mais conhecida em passado próximo como Cidade Maravilhosa – mas que, com certeza, voltará a sê-lo em breve; fato este cantado até mesmo em seu hino mais popular. Hoje, como pessoa simples que sou, me vejo vivendo uma situação de grande privilégio intelectual e moral, porquanto não poderia esperar que um vocacionado e dedicado professor universitário, titular de Direito Penal da Universidade Gama Filho e juiz, e só juiz a vida toda, viesse a merecer dos magistrados paulistas tão alto galardão: Professor Emérito da Escola Paulista da Magistratura. No entanto, recebo esta medalha com o coração cheio de esperanças de dias melhores, dias de reformas que terão de vir, a fim de que todos nós aqui presentes possamos resgatar nossas cidadanias. A conjuntura atual se apresenta desfavorável: não há educação para todos, não há empregos para todos, não há salário digno para todos, não há segurança para todos, ocorre imenso desnível social, tudo a nos amedrontar e a nos tornar cativos em nossos lares. Mas, na verdade, vivenciamos atualmente um momento de possível reforma, reforma verdadeira, reforma das pessoas em seu íntimo. Certa vez escrevi pequeno artigo sobre eleições majoritárias, opúsculo publicado na reconhecida revista nacional ‘Justiça e Cidadania’, onde abordo de forma simples

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momentos de eleições, de eleições majoritárias naquele então. Mas, já agora também se avizinham eleições municipais e teremos então a oportunidade de, exercendo corretamente o direitodever constitucional de votar, fazer a verdadeira reforma política. Daí porque devemos deixar de lado o tradicional e conhecido comportamento anômico, abúlico do ‘não tem jeito mesmo, deixa prá lá’, e nos engajarmos firmes no efetivo exercício da cidadania, excluindo de nossas escolhas aqueles que, eleitos por nós no passado, nos traíram na nossa representação frente à Nação. Aqui e agora convoco meus amigos presentes para que não deixemos de exercitar o poder-dever maior do cidadão: votar, e votar bem, aí então exercendo verdadeiramente a Política, Política com ‘P’ maiúsculo como a definiu Platão: ‘Política é a arte de governar as tendências divergentes, imprimindo-lhes novas orientações, comuns e médias, com o mínimo emprego de forças e mínima resistência da coletividade’. Como a atividade essencial do Estado Democrático de Direito é a Política, deveria ter ela como norte o ‘bem comum’, e, não a própria vaidade pessoal de muitos como hoje se retrata. Também nós, professores, juízes e desembargadores, na verdade todos de certa forma juízes, devemos trabalhar, e muito, para chegarmos a este mesmo desideratum: o ‘bem comum’, fazendo prevalecer o Estado de Direito em detrimento de falsos conceitos, onde se confunde democracia com demagogia; o certo – edição de leis justas –, para o errado – edição de medidas provisórias oportunistas –, quando então o Poder Executivo substitui o Legislativo e quer se passar por Judiciário e; ainda quando, por vezes, o Legislativo também quer se passar por Judiciário através das famosas CPIs. Este, meus senhores e minhas senhoras, é o momento próprio para a verdadeira reforma política através do voto municipal, lugar onde realmente as pessoas vivem e fazem acontecer os fatos relevantes, os que são importantes para o


Foto: TJ/RJ

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Da esquerda, o advogado Felício Ferraz, os desembargadores José Carlos Schmidt Murta Ribeiro, presidente do TJ/RJ, Antonio Rulli Júnior, diretor da EPM, e Paulo Ventura, diretor da Emerj

nosso país. Pois, se escolhermos bem nossos representantes, estaremos contribuindo para este ‘bem comum’ tão decantado, mas nunca atingido. Neste passo, destaco dois pequenos trechos de dois grandes pensadores do século passado, século XX, pois não nos esqueçamos de que já estamos no século XXI. Nos ensina Bertold Brecht: A Exceção e a Regra Nós pedimos com insistência Nunca digam: “isso é natural”! Diante dos acontecimentos de cada dia Numa época em que reina a confusão Em que corre sangue Em que se ordena a desordem Em que o arbítrio tem força de lei Em que a humanidade se desumaniza Nunca digam: “isso é natural!” Estranhem o que não for estranho Tomem por inexplicável o habitual Sintam-se perplexos ante o cotidiano Tratem de achar um remédio para o abuso Mas não se esqueçam De que o abuso é sempre a regra Desconfie do mais trivial, na aparência singela Examine o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceite o Que é habitual como coisa natural, Pois em tempo de desordem sangrenta, De confusão organizada, de arbitrariedade Consciente, de humanidade desumanizada,

Nada deve parecer natural Nada deve parecer impossível de mudar. Não podemos, pois, perder a capacidade de nos indignarmos. É através do estudo que formamos cidadãos mais conscientes de seus deveres e direitos, e esse papel a Escola Paulista da Magistratura exerce de forma brilhante, esculpindo o saber jurídico de futuros e atuais magistrados, que, esperamos, exerçam a dignificante função jurisdicional com ética, competência e honestidade. Encerro esta despretensiosa alocução com ensinamento vigoroso e grave, de Martin Luther King, um campeão da cidadania: ‘O que mais me preocupa não é nem o grito dos violentos, dos corruptos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética. O que mais me preocupa é o silêncio dos bons’. Obrigado, muito obrigado por esta imerecida home­nagem, que guardarei para sempre no meu peito repleto de alegria, peito de um cidadão brasileiro, de um magistrado, de um professor universitário em busca constante do norte do ‘bem comum’ – experiência de vida que aprendi em casa com meus queridos pais, José e Lucy; no meu Colégio Santo Inácio, também colégio de Antonio Rulli, ilustre e douto Presidente desta solenidade; na minha Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde me formei na vida acadêmica e onde só se reforçou este caminhar no sentido do ‘bem comum’. Ao cursar a Escola Superior de Guerra tive a oportunidade de transmitir em várias conferências proferidas este mesmo desideratum, que nos ajuda na compreensão de nosso país, grande país, apesar do seu imenso e absurdo desnível social. Não devemos nunca nos conformar com o status quo e, ao revés, exercitar sempre a cidadania, através de momentos como este, onde instituições como a Escola Paulista da Magistratura e a Emerj irmanadas nos elevam ao exercício pleno da cidadania.” 2008 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21


A INTIMAÇÃO E A INCIDÊNCIA DA MULTA NO CUMPRIMENTO DA SENTENÇA Alexandre Sigmaringa Seixas Advogado

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novo art. 475-J, inserido no Código de Processo Civil pela Lei nº 11.232, de 22/12/05, em vigor seis meses após sua publicação, que se deu em 23/12/05, estabeleceu, no seu caput, o seguinte: “Caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de quinze (15) dias, o montante da condenação será acrescido de multa no percentual de dez por cento e, a requerimento do credor e observado o disposto no art. 614, inciso II, desta Lei, expedirse-á mandado de penhora e avaliação”. Da redação lacunosa do dispositivo transcrito decorreram algumas dúvidas e controvérsias, a respeito não só do termo a quo e dos requisitos para fluência do prazo de 15 dias, como também do procedimento e forma de intimação do devedor para cumprimento voluntário da condenação mencionada e, ainda, da incidência da multa referida. As incipientes jurisprudência e doutrina sobre o tema vêm enfrentando essas dúvidas e controvérsias no suprimento das lacunas daquela norma processual. Recentemente, a egrégia 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em acórdão do eminente ministro Humberto Gomes de Barros, decidiu a questão de que aqui se cuida, na forma da ementa agora destacada: “LEI Nº 11.232/2005. ARTIGO 475-J, CPC. CUMPRIMENTO DA SENTENÇA. MULTA. TERMO INICIAL. INTIMAÇÃO DA PARTE VENCIDA. DESNECESSIDADE. 1. A intimação da sentença que condena ao pagamento de quantia certa consuma-se mediante publicação, pelos meios ordinários, a fim de que tenha início o prazo recursal. Desnecessária a intimação pessoal do devedor. 2. Transitada em julgado a sentença condenatória, não é necessário que a parte vencida, pessoalmente ou por seu advogado, seja intimada para cumpri-la. 3. Cabe ao vencido cumprir espontaneamente a obrigação, em quinze dias, sob pena de ver sua dívida automaticamente


acrescida de 10%”(REsp. nº 954859/RS; j. 16/08/07; v.u., DJU 27/08/07). Como se vê, o STJ, ao exercer, pela primeira vez quanto à matéria em foco, a sua função uniformizadora da jurisprudência nacional e da interpretação da lei federal, entendeu que o termo inicial do prazo de 15 dias, previsto na citada regra processual, deve ser fixado a partir do trânsito em julgado da decisão condenatória, independentemente de intimação do devedor ou de seu advogado. Expirado o prazo sem cumprimento da obrigação, é aplicável, desde logo, a multa de 10% sobre o montante da condenação. Os fundamentos do acórdão daquela e. Corte residem, em síntese, nos argumentos de que: “(...) A reforma da lei teve como escopo imediato tirar o devedor da passividade em relação ao cumprimento da sentença condenatória. Foi-lhe imposto o ônus de tomar a iniciativa de cumprir a sentença de forma voluntária e rapidamente. O objetivo estratégico da inovação é emprestar eficácia às decisões judiciais, tornando a prestação judicial menos onerosa para o vitorioso. (...) A lei não explicitou o termo inicial da contagem do prazo de quinze dias. (...) O art. 475-J não previu, também, a intimação pessoal do devedor para cumprir a sentença. (...) Em verdade, o bom patrono deve adiantar-se à intimação formal, prevenindo seu constituinte para que se prepare e fique em condições de cumprir a condenação. Se o causídico, por desleixo, omite-se em informar seu constituinte e o expõe à multa, ele deve responder por tal prejuízo.” Posteriormente, diversos julgados do STJ, lastreados nesse aresto, decidiram no mesmo sentido (v.g.: AG 101091-RS – 3ª Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJ 12/05/08; AG 965762RJ – 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 1º/04/08; AG 993387-DF – 4ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ 18/03/08; AG 953570-RJ – 4ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ 27/11/07 e AG 988363 – RJ, 4ª Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, DJ 08/05/08). Sem se ingressar, neste passo, em outros aspectos jurídicos do tema, é necessário salientar que os fundamentos expostos no acórdão, em parte transcrito, não atentaram para alguns relevantes fatos de ordem prática, concernentes à correta administração da Justiça. De fato, a imposição da multa logo ao fim do prazo corrido de 15 dias contados da data do trânsito em julgado da condenação, independentemente de intimação, teria que ser precedida de certas providências inarredáveis, sob pena de se infligirem sérios prejuízos ao devedor. A primeira delas consistiria na determinação de que se fizesse, de imediato, a certificação do trânsito em julgado, o que, muitas vezes, pode levar dias para ocorrer, a fim de se evitar que o processo fique inacessível à parte interessada durante a fluência do prazo em tela para a realização desse ato cartorário. O jurisdicionado, além de ter direito ao exame dos autos (CPC, art. 155, parágrafo único) por todo o tempo de fluência do prazo, não pode ser onerado, conforme jurisprudência sobre o

art. 180 do CPC, por obstáculos criados pela outra parte, pelos serventuários, pelo magistrado ou por qualquer outro embaraço judicial criado por terceiros, fora do controle do advogado. Do mesmo modo, se os autos se encontrassem nos tribunais ter-se-ia que ordenar, ademais, que permanecessem na secretaria à disposição do patrono do vencido, durante todo o curso do prazo aludido, para consultas, expedição de guias e juntada de comprovantes de depósitos, sob pena de se inviabilizar o pagamento do débito, enquanto os autos estiverem em trâmite entre os tribunais superiores e inferiores, ou entre estes e as varas de origem, e, portanto, inteiramente indisponíveis, submetendo-se o devedor, nessa hipótese, à inevitável incidência da multa, independentemente de sua iniciativa de satisfazer a obrigação. Tais questões devem ser especialmente consideradas, diante do teor do art. 510 do CPC: “Transitado em julgado o acórdão, o escrivão, ou o secretário, independentemente de despacho, providenciará a baixa dos autos ao juízo de origem, no prazo de 5 (cinco) dias.” Eis aí expressa a primeira regra legal desprezada pelo aresto citado do egrégio Superior Tribunal de Justiça. Se o escrivão ou o secretário se acham obrigados, por lei, a providenciar a baixa dos autos no prazo de 5 dias cuja fluência se daria concomitantemente à daquele outro, de 15 dias, para pagamento da condenação – que ainda se somaria ao tempo de remessa ao juízo de origem, de autuação, registros, anotações e despachos – salta aos olhos a impossibilidade do devedor de consultar o processo para verificação do preciso quantum debeatur; de requerer e obter expedição de guias de depósito e as respectivas juntadas de seu comprovante, naquele período de 15 dias, para cumprimento de sentença, contados do trânsito em julgado da decisão definitiva prolatada no feito. Por outro lado, agora já abordando aspectos jurídicos mais técnicos do assunto, se no corpo da decisão cognitiva, especialmente na segunda e terceira instâncias, não figurasse, traduzido em números, o valor exato da condenação, perfeitamente atualizado, acrescido de juros, custas e honorários, sem qualquer imprecisão, a multa do art. 475-J do CPC seria inaplicável ao término do prazo de 15 dias do seu trânsito em julgado. Com efeito, o aludido art. 475-J fala, textualmente, em quantia certa ou já fixada em liquidação. Portanto, antes que se imponha a multa em exame, é necessário que se proceda, primeiro, à liquidação do débito, ainda que por mero cálculo aritmético, conforme os arts. 475-A, § 1º, e 475-B do CPC. O referido art. 475-A, caput, dispõe: “Quando a sentença não determinar o valor devido, procede-se à sua liquidação”. Já o seu § 1º estipula: “Do requerimento de liquidação de sentença será a parte intimada na pessoa de seu advogado”. E o art. 475-B preceitua: “Quando a determinação do valor da condenação depender apenas de cálculo aritmético, o credor requererá o cumprimento da sentença, na forma do art. 475-J dessa lei, instruindo o pedido com a memória discriminada e atualizada do cálculo”. Dessa forma, na hipótese da decisão cognitiva transitada em 2008 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23


julgado não conter, em seu texto, o valor exato e numérico da condenação, como, inclusive, ocorreu no v. aresto referido do STJ, e como, aliás, acontece na grande maioria das vezes, a lei preconiza que a regra do art. 475-J do CPC seja, forçosamente, conjugada com as dos arts. 475-A, caput e § 1º, e 475-B do mesmo diploma legal. Destarte, só depois de liquidado o quantum debeatur, a requerimento do credor, e intimado o advogado do vencido, é que poderá se iniciar a contagem do prazo de incidência da multa em questão. Eis aí os outros dispositivos processuais desprezados pelo acórdão do STJ, uma vez que da v. decisão daquela e. Corte não constava o preciso quantum debeatur objeto da condenação. Logo, não poderia ter mandado que se contasse o prazo em tela do trânsito em julgado, sob pena de multa, independentemente da intimação do devedor ou de seu advogado. Deveria ela, então, ter aplicado, sistematicamente, os referidos arts. 475-A, caput, § 1º, 475-B e 475-J do CPC, segundo os quais, quando a determinação do valor da condenação depender apenas de cálculo aritmético, o credor requererá o cumprimento da sentença, instruindo o pedido com a memória discriminada e atualizada do cálculo, intimando-se o devedor, na pessoa de seu advogado. De outro turno, no caso da decisão cognitiva transitada em julgado apresentar o valor exato da condenação perfeitamente atualizado, acrescido de juros, custas e honorários, sem qualquer imprecisão, deveriam ser rigorosamente observadas as providências de ordem prática mencionadas acima, respeitado o comando do art. 510 do CPC, antes de impor-se a multa aqui tratada, sob pena de se causarem severos e exagerados prejuízos ao devedor, que, em tal hipótese, não teria possibilidade de cumprir sua obrigação. Convém destacar, neste ponto, outras substanciosas e aprimoradas compreensões sobre o tema, distintas daquela manifestada pelo STJ. A 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por exemplo, em brilhante acórdão do desembargador Jessé Torres, decidiu, apoiada em sólidos precedentes do mesmo Tribunal e na norma do art. 475-A, § 1º, do CPC, que: “(...) O prazo para pagamento conta-se a partir da intimação do devedor, mediante publicação no D.O., para o pagamento do valor constante de planilha apresentada pelo credor.” (Agravo de Instrumento nº 2008.002.04152 – j. 12/02/08) Dentre os precedentes referidos, encontra-se a judiciosa decisão da 11ª CCTJ/RJ, da lavra do desembargador Cláudio de Mello Tavares, nestes termos: “Necessidade de intimação de devedor na pessoa de seu advogado, através da imprensa oficial. A Lei nº 11.232/2005, quando alterou a sistemática processual, objetivou dar maior efetividade aos títulos judiciais, prestigiando o cumprimento espontâneo das obrigações. Desta forma, do trânsito em julgado da sentença, no caso de condenação por quantia certa, emerge o dever do réu em pagar o que é devido ao autor, como mero prosseguimento do processo de conhecimento e sua inação acarretar-lhe-á a incidência 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2008

da multa prevista no artigo 475-J do Código de Processo Civil (...).” (Agravo nº 2007.002.23381) Indo mais além ainda, existem precedentes, dentre outros, da 13ª CCTJ/RJ, no AI nº 2007.002.35067 – Rel. Des. Sérgio Cavalieri; da 14ª CCTJ/RJ, no AI nº 2008.002.02400 – Rel. Des. Cleber Ghelfenstein e da 2ª CCTJ/RJ, no AI nº 2007.002.00509 – Rel. Des. Elizabete Filizzola, todos entendendo pela necessidade de intimação pessoal do devedor por via postal, em homenagem às garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório. Na doutrina sobre a matéria, renomados processualistas divergem quanto à forma de intimação do devedor e o termo a quo da fluência do prazo, para cumprimento voluntário da condenação. Sergio Bermudes acredita ser indispensável a intimação do devedor para ciência do trânsito em julgado. No entanto, segundo ele, a publicação do despacho “cumpra-se” mantido pela praxe forense seria suficiente ao início do prazo de 15 dias do art. 475-J (“A Reforma do Código de Processo Civil”, Saraiva, 3ª edição, 2008, a ser lançada). Humberto Theodoro Jr. sustenta que o devedor teria que tomar a iniciativa de cumprir a condenação no prazo legal, que fluiria do momento do trânsito em julgado, independentemente de sua intimação. Porém, se o trânsito em julgado ocorresse em instância superior, enquanto os autos não baixassem à instância de origem, o prazo não correria e só seria contado, então, a partir da intimação às partes da chegada do processo ao juízo da causa (“As Novas Reformas do Código de Processo Civil”, Forense, Rio de Janeiro, 2006, p. 145). Araken de Assis leciona que o prazo se inicia a partir do momento em que a prestação se torna exigível, tendo o devedor que solver espontaneamente a dívida (“Cumprimento da Sentença”, Forense, Rio de Janeiro, 2006, p. 258). Por outro lado, Alexandre Câmara ensina que o prazo começa da intimação pessoal do devedor, e não do advogado, pois é um ato que só à parte cabe realizar, pessoalmente. Para ele, tal intimação deverá ser determinada pelo juiz de ofício, a partir do momento em que a sentença se tornar eficaz (“A Nova Execução da Sentença”, Lúmen Júris, Rio de Janeiro, 4ª ed., 2007, p. 115-116). Conclui-se, pois, sopesados todos os argumentos, que, na hipótese de no corpo da decisão cognitiva transitada em julgado não figurar o valor numérico exato da condenação, perfeitamente atualizado e acrescido de todos os encargos legais, deve-se obedecer ao procedimento de liquidação da sentença previsto nos dispositivos processuais mencionados. Se, de outro modo, daquela decisão constar esse valor exato, o correto seria, respeitada a norma do art. 510 do CPC, intimar a parte, na pessoa do seu advogado, até mesmo pela simples publicação do despacho “cumpra-se”, como sustenta Sergio Bermudes, para que cumpra o julgado, sob pena, aí sim, de imposição de multa, no prazo do art. 475-J do CPC, observando-se, destarte, a mens legis, em harmonia com imperativos de ordem prática, mediante a ponderação de importantes valores e interesses jurídicos distintos, o que evitaria prejuízos excessivos ao devedor.


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PRORROGAÇÃO DE PERMISSÕES

Maximino Gonçalves Fontes Neto Advogado

“Como não se exigia antes da Constituição de 1988 a licitação prévia para a outorga de permissão, nenhum óbice existe, por esse fato, para que continuem a produzir efeitos as mesmas permissões – que continuam a existir, são válidas e eficazes.”

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o debate acirrado que, nos últimos dias, tem sido travado acerca da prorrogação das permissões dos serviços de transporte coletivo de passageiros por ônibus do município do Rio de Janeiro, tituladas por empresas que executam, diuturnamente, esses serviços, verifica-se que há defensores da chamada prorrogação por motivos plausíveis, enquanto outros sustentam que deve haver licitação da execução de aproximadamente 420 linhas municipais. Há bons argumentos nas duas posições, havendo ponto comum entre elas: a licitação, se for a hipótese, deve ocorrer na próxima administração municipal. Neste caso, não se pode olvidar que raras são as situações em que boas razões que militam a favor de uma solução não sejam contrabalançadas por razões mais ou menos boas, em favor de solução diferente. Aqui também ocorre tal fato. A apreciação do valor dessas razões – que muito raramente podem ser reduzidas a um cálculo, um peso ou uma medida – é que pode variar de um indivíduo para outro e sublinha o caráter pessoal da decisão tomada. Daí reconhecer-se o caráter de relatividade do raciocínio jurídico e mesmo do conhecimento. É preciso, contudo, conhecer essas razões para se emitir juízo de valor, começando, porém, pela definição dos termos do presente tema. Assim, a denominação “prorrogação” tem sido utilizada, na hipótese de execução indireta de serviços de transporte


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coletivo de passageiros, por meio de antigas permissões, por prazo indeterminado, modalidade preferida pelas administrações federal, estaduais e municipais para delegação desses serviços nas respectivas áreas de atuação de cada um desses entes federativos. Nesse sentido, cumpre observar que, até a Constituição de 1988 e mesmo até o advento da Lei federal nº 8.987/95 (“Lei das Concessões e Permissões”) – que regulamentou o seu art. 175 – todas essas permissões vigoravam por prazo indeterminado, com a cláusula ‘enquanto bem servir’. Dentre as normas da Lei nº 8.987/95, há previsão de licitação prévia para outorga de permissão para execução indireta de serviços públicos, inclusive os operados, nos planos federal, estadual e municipal, pelas empresas que se dedicam ao transporte remunerado de pessoas. No entanto, nesse mesmo diploma legal federal, também há regras de transição para disciplinar situações preexistentes à sua criação. É a partir daí que surge a controvérsia acerca da validade ou não dessas permissões, outorgadas por prazo indeterminado a empresas operadoras de linhas interestaduais, intermunicipais e municipais. No município do Rio de Janeiro, amparado na regra do parágrafo único do art. 1º da Lei nº 8.987/95 e nas peculiaridades típicas dos serviços públicos de transporte coletivo de passageiros, o legislador municipal resolveu manter as permissões municipais preexistentes a esse

diploma legal federal, adaptando-as às normas gerais da referida lei federal e conferindo-lhes prazo de 10 (dez) anos para que os investimentos realizados pelas transportadoras fossem amortizados. Tudo isso ocorreu à semelhança do que havia acontecido com as permissões interestaduais, que foram mantidas pelo prazo de 15 anos, conforme os decretos federais nº 952/93 e nº 2.521/98. Ressalte-se, a propósito, que a Lei Complementar nº 37/98 – a dispor sobre a delegação da prestação de serviços públicos, prevista no art. 175, da Constituição de 1988, e a tratar no seu art. 5º da manutenção e prorrogação das permissões municipais – cumpre, na essência, a regra contida no parágrafo único do art. 1º da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, preconizando que “a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios promoverão a revisão e as adaptações necessárias de sua legislação às prescrições desta Lei, buscando atender as peculiaridades das diversas modalidades dos seus serviços”. Insista-se nesse ponto: foi, em atendimento a esse parágrafo único, do art. 1º, que este Município resolveu manter – e não prorrogar, porque não se podia prorrogar delegações por prazo indeterminado pela singela razão de que não havia prazo – as permissões preexistentes à Lei nº 8.987/95, por força da regra contida no art. 5º, da Lei Complementar nº 37/98, atendendo às peculiaridades dos serviços de transporte coletivo de passageiros por ônibus. 2008 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27


Tratavam-se de antigas permissões, por prazo indeterminado, de linhas de ônibus (com mais de cinqüenta anos), originadas pela Lei nº 775, de 27 de agosto de 1953, e de normas oriundas do Decreto de execução nº 13.965/58, operadas no território do antigo Distrito Federal sob a égide da Constituição de 1946, que não contemplava qualquer regra acerca da obrigatoriedade da licitação, para delegação da execução indireta de serviços a particulares, através de permissão. Essa afirmativa de clareza meridiana lastreia-se no princípio do tempus regit actum, segundo o qual a lei vigente ao tempo em que foi praticado o ato é que irá reger e fundamentar toda a sua existência, enquanto produzir efeitos, enquanto detiver eficácia. Como não se exigia antes da Constituição de 1988 a licitação prévia para a outorga de permissão, nenhum óbice existe, por esse fato, para que continuem a produzir efeitos as mesmas permissões – que continuam a existir, são válidas e eficazes. Por conseguinte, tais delegações, cujas origens datam de 1953, da Lei nº 775, conforme se ressaltou, não padeciam até 1988 de qualquer mácula a eivá-las do vício de nulidade, ou mesmo de ilicitude, sendo absolutamente incogitável o argumento de que, com a manutenção e a prorrogação, pretendia-se convalidá-las, como se tem afirmado sem qualquer respaldo fático ou jurídico. Aliás, por premissa, se eram válidas, como de fato são, assim, silogisticamente, permaneceram com o advento da Lei municipal nº 37/98, alterando-se, apenas, o prazo – que de indeterminado passou a ser determinado –, conforme o seu artigo 5º, em atendimento à regra contida no § 3º, do art. 57, da Lei nº 8.666/93 (“Lei das Licitações”), que veda contrato com prazo de vigência indeterminado. Noutras palavras, são as antigas permissões que foram mantidas, não se outorgando nova permissão, como se tenta inculcar. Não há dois contratos, existe apenas, e tão-somente, um único contrato que se protraiu no tempo por prazo determinado durante dez anos, com cláusula de recondução para novo período de dez anos por força da regra contida no art. 5º da referida Lei Complementar nº 37/98. Aliás, também é oportuno salientar, a propósito, que a recente licitação para delegar a novas empresas a execução indireta dos serviços de transporte coletivo de passageiros por ônibus desta cidade, em substituição às atuais delegatárias, foi lançada de modo intempestivo. Com efeito, há processos – através dos quais foram ajuizadas ações civis públicas em face das atuais permissionárias na comarca da capital do Rio de Janeiro – em que o Ministério Público questiona a validade dos títulos dessas transportadoras sob diversos fundamentos, dentre os quais a ausência de prévia licitação. Não sendo concedida a liminar propugnada pelo MP, conclui-se que as referidas permissões permanecem válidas e eficazes, havendo-se de cumprir o preceito do art. 5º, do mencionado diploma legal municipal, mesmo nos casos em 28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2008

que há sentença, posto que há igualmente inconformismo dotado de efeito suspensivo. E aí reside a intempestividade da licitação, porquanto, inexistindo decisão judicial definitiva, como de fato inexiste, não há razão para cogitar-se de novas delegações que substituiriam as existentes, que continuam válidas e plenamente eficazes, até que venham a ser desconstituídas. Todas e tais considerações evidenciam que, indubitavelmente, há boas e sólidas razões a respaldar não somente a manutenção das permissões preexistentes à Lei nº 8.987/95, como também a sua prorrogação, figura contemplada no art. 175 da Lei Fundamental. Tal, com o devido respeito de quem assim pensa, inocorre em relação à realização de licitação da execução indireta das mencionadas linhas municipais, pois seu principal argumento reside na pretensa ausência de licitação, não somente das antigas permissões como das novas delegações. Aqui, incorre-se em petição de princípio, pois parte-se de premissa falsa, que consiste em sustentar que as antigas permissões deveriam ter sido delegadas através de prévia licitação. Ora, basta exame nas Constituições anteriores (1946, 1967 e Emenda nº 1/69) para verificar-se que inexiste essa condição para a delegação através de permissão. Portanto, a conclusão do raciocínio dos que sustentam a necessidade de licitação prévia é inválida, mesmo porque, à época que houve a delegação (a maioria com cerca de 50 anos), sequer havia possibilidade de competição, porquanto eram poucos os que se interessavam ou se dedicavam à operação dessas linhas. A propósito da prorrogação, há de se aduzir, ainda, que, conforme já se destacou, no art. 5º há previsão de cláusula de prorrogação da permissão por igual período, tituladas pelas transportadoras municipais. Como se percebe, essa cláusula de prorrogação seria, obviamente, parte constante do contrato administrativo de permissão, que, contudo, não chegou a ser firmado entre o município do Rio de Janeiro e as transportadoras. No entanto, ainda que não haja sido formalizado o contrato administrativo, não pereceu o direito de cada permissionária municipal à manutenção da sua permissão – pelo período de dez anos – de 24 de agosto de 1998 a 24 de agosto de 2008 – assim como da sua prorrogação, porque esse direito tem como fonte a regra do art. 5º da Lei Complementar nº 37/98. Registre-se, por oportuno, que essa cláusula de prorrogação é também condicionante de um bom desempenho da delegatária, no sentido de bom atendimento ao interesse público, aqui materializado pela prestação de um serviço adequado aos usuários, pois essa pode ser, numa interpretação lógica, a razão relevante para a não-prorrogação. Sem dúvida, a relevância da razão há de ser aquela sem a qual a permissão não será prorrogada, não sendo outra senão a que está ligada à boa execução dos serviços sob o ponto de vista qualitativo e quantitativo. Naturalmente, a não-prorrogação funciona aqui como


uma sanção pela má qualidade dos serviços, indissociável à sua prestação. Pois bem, essas permissões municipais, portanto, possuem uma norma de conduta e uma norma punitiva, ambas as partes integrantes das permissões mantidas, na Lei Complementar nº 37, em seu art. 5º, das cláusulas geradoras de obrigações para o poder concedente municipal e para as transportadoras. Ora, se a prorrogação é parte da permissão, integra suas cláusulas, compõe as condições pactuadas, o prazo da permissão é aquele dele constante mais o da prorrogação, o que vale dizer, prazo corrente mais prazo de prorrogação são os prazos fixados na Lei Complementar nº 37/98 (art. 5º), observados por este Município e as transportadoras municipais. Há, neste caso, como afirma o saudoso Orlando Gomes, a recondução expressa, onde a cláusula de prorrogação é anterior à extinção do contrato, para que continue a vigorar pelo tempo nela expresso. Os efeitos dessa prorrogação são previstos pela lei no sentido de que o contrato continue por tempo determinado. É o mesmo contrato, apenas dilatado no tempo. Ora, se tais prazos (corrente + prorrogação) são prazos fixados na lei, à evidência, o art. 5º, da Lei Complementar nº 37/98, cuidou deles para garantir a aplicabilidade. O direito à prorrogação, se bem prestado o serviço público a que se dispôs a permissionária, tornou-se não uma expectativa de direito, um nada jurídico, mas um direito adquirido – pelo menos enquanto perdurar a regra do art. 5º já referido – só afastável por um outro direito deste Município, que seria o de não prorrogar, se de má qualidade, os serviços prestados pela requerente. Sendo de boa qualidade e em quantidade que atendesse o usuário municipal, somente caberia a este Município homologar a prorrogação, ou seja, concordar com o pedido de prorrogação, que foi formulado pelas transportadoras municipais, e aguardar o desfecho das demandas ajuizadas pelo MP. Invoque-se, ainda como boa razão em prol da prorrogação, a Lei federal nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, que, por força do seu art. 58, incluiu novos parágrafos ao art. 42, da Lei nº 8.987/95, dentre os quais o que prorroga até 2010 as concessões em caráter precário, regra igualmente aplicável às permissões, ante o preceito do parágrafo único do art. 40 deste último diploma legal. Conquanto se trate de norma transitória, aplicável tão-somente aos serviços públicos de transporte coletivo interestadual, sendo inaplicável aos estados e municípios, nada impede que esse paradigma seja adotado pelo legislador municipal. Afinal, como adverte Geraldo Ataliba, “efetivamente, ao legislador é que verdadeiramente incumbe fazer justiça: ele é justo ou injusto ao fazer a lei. Na ordem social, a justiça é virtude do legislador e só subsidiariamente – e na medida em que ele o permita – dos outros órgãos ou pessoas”.

“Os efeitos dessa prorrogação são previstos pela lei no sentido de que o contrato continue por tempo determinado. É o mesmo contrato, apenas dilatado no tempo.”

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demolições administrativas promovidas na defesa do meio ambiente Rafael Lima Daudt D’Oliveira Procurador do Estado do Rio de Janeiro Chefe da Assessoria Jurídica da FEEMA – Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente Especialista em Direito Ambiental pela PUC/RJ

A

demolição administrativa para a defesa do meio ambiente decorre do exercício do poder de polícia conferido à Administração Pública e do atributo da auto-executoriedade relativo aos seus atos, que consiste na faculdade de executá-los sem a necessidade de autorização prévia do Poder Judiciário. A sua finalidade primordial é a proteção do meio ambiente, notadamente pela concretização do princípio da prevenção. Há muito vem sendo sustentada a possibilidade de demolição administrativa pela doutrina. Hely Lopes Meirelles já defendia o uso da medida, posição esta que continua sendo reproduzida em seu “Direito Administrativo Brasileiro”1. Os tribunais também já enfrentaram a matéria em mais de uma oportunidade. Com efeito, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que não existe “ilegalidade ou abusividade do exercício do poder de polícia para demolir construções irregulares decorrentes de invasão de área non aedificandi”2. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, do mesmo modo, manifestouse diversas vezes no sentido da viabilidade da demolição sem prévia autorização do Poder Judiciário.3 É oportuno registrar, contudo, que a matéria não é pacífica e suscita controvérsias. O Estado do Rio de Janeiro, por meio da Secretaria de Estado de Ambiente, e a FEEMA – Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente – vêm adotando as medidas demolitórias com base em pareceres de suas assessorias jurídicas4, chancelados pela Procuradoria-Geral do Estado, desde que presentes certos requisitos e respeitado o princípio da proporcionalidade. De fato, a Procuradoria-Geral do Estado, no visto do subprocurador-geral do Estado, Rodrigo Mascarenhas, lançado no 30 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2008

parecer ASJUR/SEA – RT 02/07, entendeu pela possibilidade da demolição administrativa em duas situações: (i) “situação de grande risco para o meio ambiente e/ou para terceiros” e (ii) “situação de inequívoca ilegalidade da construção”. Nos casos concretos, pode-se afirmar, com base nos laudos técnicos emitidos em procedimentos administrativos regularmente instaurados, que se tratavam de construções ilegais em áreas de preservação permanente protegidas pelo Código Florestal e pela Constituição deste Estado – áreas não edificantes –, e que já haviam causado e ainda iriam causar, no caso de inércia da Administração, danos irreparáveis ou de difícil reparação no meio ambiente local. Vale dizer que os infratores foram intimados previamente para remover as construções ilegais, sob pena de demolição administrativa, mas quedaram-se inertes. Assim, na esteira da atual posição da Procuradoria-Geral do Estado, verificavam-se duas razões jurídicas distintas que justificavam a providência demolitória naqueles casos: (i) a evidência da ilicitude – já que era inequívoca a ilegalidade da construção em área não edificante – e; (ii) a urgência da medida diante do grande risco de degradação do meio ambiente – pois já haviam sido causados graves danos no ecossistema local e outros estavam na iminência de ocorrer. É bem de ver que as demolições levadas a efeito pela Administração Pública ambiental não têm natureza sancionatória, eis que consistem em medidas de polícia destinadas ao restabelecimento da legalidade, mediante a adoção de providências materiais (meios) para a consecução das finalidades públicas previstas em lei. Visam o retorno, o tanto quanto possível, ao estado anterior em que as coisas se encontravam (status quo ante) caso a lesão não houvesse ocorrido, dentro de um con-


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Demolição administrativa sendo realizada em Armação de Búzios RJ, e o retorno da paisagem

texto de prevenção e de recuperação do meio ambiente, quando na iminência de ocorrerem danos ambientais ou para fazer cessá-los. Medidas de polícia e sanções administrativas são institutos correlatos, porém diferentes, distinção esta que é acentuada pela doutrina autorizada5. As medidas de polícia, mesmo que muitas vezes vinculadas a um ato ou atividade ilícita, são utilizadas para prevenir uma lesão que proporcione um desequilíbrio entre o interesse público e o interesse privado, sacrificando desproporcionalmente o primeiro, diferentemente da sanção de polícia, que é aplicada quando a lesão já ocorreu, com vistas a reprimir a conduta que a gerou, tendo intuito punitivo do infrator. Esta distinção tem importante conseqüência prática: na execução das medidas de polícia, diversamente das sanções administrativas decorrentes de um processo administrativo punitivo ou sancionador, não há necessidade da observância, pelo menos num primeiro momento, das garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório6, seja pela urgência, seja pela evidência do direito. Um exemplo relativo a uma situação análoga, que tem mais a ver com o Direito Urbanístico, serve bem para ilustrar o raciocínio: um prédio em ruínas está prestes a desabar no Centro da cidade do Rio de Janeiro, podendo matar milhões de pessoas. Seria razoável que os agentes públicos competen-

tes, antes da demolição do edifício, tivessem que intimar o(s) proprietário(s) a se manifestar(em) dentro de determinado prazo, em observância aos princípios da ampla defesa e do contraditório, e aguardar o desfecho do processo administrativo? Por óbvio, a resposta é negativa7. Neste caso, diante da urgência da medida, a vida dos cidadãos não poderia correr risco. O mesmo raciocínio ora desenvolvido pode ser aplicado ao Direito Ambiental, na medida em que o direito ao meio ambiente equilibrado é também um direito fundamental agasalhado pela Constituição da República. 2008 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 31


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e inerentes ao próprio exercício do poder de polícia e à auto-executoriedade dos atos da Administração, não há de se falar em necessidade de lei que tipifique cada medida que a Administração Pública pode valer-se para a tutela dos interesses difusos da coletividade. Assim se diz porque, se a própria Constituição da República já define as finalidades que a Administração está obrigada a perseguir (no caso, a proteção do meio ambiente – art. 225 da CRFB), admite implicitamente todos os meios legítimos à consecução das ditas finalidades10. Nos já referidos casos concretos enfrentados, depois das demolições administrativas, a Procuradoria-Geral do Estado, Em pé, da esquerda: Daniel Cortez, Leila Pose, Sidney Martins, Ana Cristina Maximo, Rafael por meio da 12ª Procuradoria Daudt, Alice Neves, Helio Duarte, Tatiana Vieira. Embaixo, da esquerda: José Lima, Julian Moreira, Oswaldo Teixeira Regional (com sede em Cabo Frio), conjuntamente com o Questão interessante é que a demolição administrativa no Minis­tério Público Estadual, ajuizou ações civis públicas nosso estado não se encontra prevista em lei8. Assim sendo, em face dos responsáveis pelas obras ilegais, com o objetivo não poderia a Administração Pública executar tais medidas principal de que o meio ambiente fosse recuperado e/ou, na de polícia pela ausência de previsão legal? Entendemos que sua impossibilidade total ou parcial, que os danos fossem poderia sim, vez que a lei não é capaz de esgotar todos os compensados. meios necessários ao cumprimento das finalidades cometidas Por fim, duas observações fazem-se necessárias: a primeira, à Administração Pública. Inclusive, esta tem o dever de que a Administração Pública, em casos urgentes como os que cumprir diretamente, dentre outras, as normas ambientais foram relatados, deve agir de imediato para evitar ou cessar daprevistas na Constituição da República. A doutrina avaliza o nos ambientais, não podendo esperar o curso de um processo entendimento no sen­tido de que as medidas de polícia não judicial; a segunda, que é louvável a união e articulação entre precisam estar exaustivamente tipificadas em lei9. órgãos e instituições públicas na estratégia de proteger o meio Logo, em se tratando de medidas de polícia, preventivas ambiente e combater a poluição.

NOTAS MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 21ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 121. RMS 11.688/RJ – STJ/ 2ª Turma - Rel. Min. Francisco Peçanha Martins – DJ 17/06/02, p. 229. 3 Confiram-se os seguintes precedentes: Apelação Cível nº 2002.001.23743 – 10ª Câmara Cível – Rel. Des. Bernardo Moreira Garcez Neto; Apelação Cível nº 2005.001.01437 – 8ª Câmara Cível – Rel. Des. Camilo Ribeiro Rulière; Agravo nº 20226 – 4ª Câmara Cível – Rel. Des. Reinaldo Pinto Alberto Filho. 4 Pareceres ASJUR/FEEMA RD 01/08 e RD 02/08 – Rafael Lima Daudt D’Oliveira. Parecer ASJUR/SEA RT 02/07 – Raul Teixeira. 5 Veja-se, por todos: ÓSORIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: RT, 2000, p. 80-85. 6 Esta posição encontra eco na doutrina brasileira. Neste sentido, veja-se: MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de Construir. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 220; FERREIRA, Daniel. Sanções Administrativas. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 22. 7 O exemplo é de Rodrigo Tostes de Alencar Mascarenhas. 8 A Lei estadual nº 3.467/2000, que disciplina as infrações administrativas ao meio ambiente e suas respectivas sanções, não contempla a possibilidade de demolição administrativa, ao contrário da Lei federal nº 9.605/98 que a tipifica como sanção. Ocorre que, como já dito, o instituto da demolição administrativa, neste estado, não vem sendo entendido e aplicado como sanção administrativa, mas sim como medida de polícia. 9 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 90; JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 401; MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 808. 10 Vale lembrar que a doutrina dos poderes implícitos (implied powers) foi assim concebida por Marshall: “Legítimo o fim e, dentro da esfera da Constituição, todos os meios que sejam convenientes, que plenamente se adaptem a este fim e que não estejam proibidos, mas que sejam compatíveis com a letra e o espírito da Constituição, são constitucionais”. (Apud ARAGÃO, Alexandre de. Agências Reguladoras e a Evolução do Direito Administrativo Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 410-411). 1 2

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Nove anos levando para todo o Brasil

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A FUNDAÇÃO DE SALVADOR E DO BRASIL

Sebastião Nery Jornalista

V

Caramuru ejam que magnífica rocambolesca história. Uma perfeita minissérie de TV, como a “JK”, da Maria Adelaide Amaral, ou a “Amazônia”, da Glória Perez. Tinha razão o inglês Carlyle, que dizia que “a História do mundo é a biografia dos grandes homens”. Ou o sábio poeta Fernando Pessoa: “O homem e a hora são um só, quando Deus faz e a História é feita”. Um jovem português, Diogo Álvares, aventureiro ou prisioneiro, de uns 16, 17 anos, nascido em Viana do Castelo, norte de Portugal, segundo outros na Galícia, que na época era meio Portugal meio Espanha, vinha em um barco pirata, português ou francês, mais provavelmente francês, que naufragou ali no Rio Vermelho, na praia da Mariquita, entre 1509 e 1510. Dez anos depois de Cabral. Caramuru foi o primeiro baiano. Não por acaso a Enciclopédia Britânica o chama de “Patriarca da Bahia”. E certamente, tirando os índios, o primeiro brasileiro. O “temível” vendedor de índios escravizados, João Ramalho – casado com a índia Bartira –, também português e também náufrago como Caramuru, apareceu na mesma época, mas um pouco depois, entre 1510 e 1512, lá por São Vicente, afinal fundada em 1532 por Martim Afonso de Sousa. Depois, João Ramalho fundou a Vila de Santo André em 1545 e ajudou o jesuíta Manoel da Nóbrega a fundar a cidade de São Paulo em 25 de janeiro de 1554. Já como bom baiano, Caramuru passou a conversa nos índios tupinambás, que mataram e certamente comeram os oito tripulantes, seus companheiros. Só ele sobrou. Por quê? Teria matado uma ave voando e foi chamado de Caramuru, “homem do fogo, filho do trovão, branco molhado, dragão do mar”. Mas Caramuru era também o nome indígena da lampreia, 34 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2008

da moréia, um peixe esguio, comprido, da região. E ele era muito alto e muito branco, e, sobretudo, muito magro, esquelético. A lenda poética fala da disputa olímpica das irmãs Moema e Paraguaçu lançando-se ao mar para ver quem chegava primeiro perto dele. O chefe Taparica lhe deu a filha Paraguaçu, “o grande mar”, com quem passou a viver e, como nas novelas, foram felizes para sempre. Viveram muito. Tiveram tantos filhos que Gregório de Matos o chamou de “Adão de Massapê”. E como ninguém é de ferro, em 1528 Caramuru foi à França e lá batizou Paraguaçu como Catarina. Caramuru morreu em Salvador em 1557, com mais de 70, sepultado no colégio dos Jesuítas. Catarina viveu muito mais. Morreu também em Salvador, em 1583, com mais de 90 anos. Índia dura de roer. Mas Caramuru não fez apenas amor e filhos. Foi peça chave para fundar Salvador, a Bahia e o Brasil. História De 1549 a 1565, de Tomé de Sousa, que funda Salvador e fica quatro anos governando a colônia, passando por Duarte da Costa, que também fica quatro anos, até a chegada de Mem de Sá, em 3 de janeiro de 1558, e ajuda o sobrinho Estácio de Sá a fundar o Rio de Janeiro, em 1o de março de 1565 (governou até 1572), foram menos de 15 anos. E foi uma das mais tumultuadas e ricas décadas da história do Brasil. E com uma surpreendente documentação, graças às cartas. Escrevia-se muito e faziam-se filhos. Não havia eletricidade, a noite chegava cedo, não havia rádio, TV, novela e Internet.


Por cartas, prestava-se conta de tudo, sobretudo das intrigas, ao rei e aos superiores em Portugal. Era uma burocracia intrigante e reverente. Isso permitiu que Portugal tenha uma obra monumental como a “História da Colonização Portuguesa no Brasil”. E milhares de cartas conservadas, arquivadas, publicadas. Livros Sobre a construção de Salvador e o governo de Tomé de Sousa, temos alguns livros brasileiros clássicos: – “História da Fundação da Cidade do Salvador”, Teodoro Sampaio; – “A Cidade do Salvador – 1549”, Edison Carneiro; – “História da Fundação da Bahia”, Pedro Calmon; – “História da Companhia de Jesus no Brasil”, Padre Serafim Leite; – “A Primeira Capital do Brasil”, Alberto Silva. E os mais recentes, hoje indispensáveis: “Náufragos, Traficantes e Degredados” e “A Coroa, a Cruz e a Espada”, de Eduardo Bueno, que leu tudo e todos, numa pesquisa fantástica, ampla, fundamentada, completa, e revolucionou a maneira jornalística e acadêmica de contar a história do país. E “A Amazônia de Pombal Sob Ameaça” (a conquista da Amazônia pelo Marquês de Pombal até a expulsão dos Jesuítas), de Gilberto Paim. Colombo e Vespúcio A história do Brasil começou oito anos antes de 1500 com Cristóvão Colombo e Américo Vespúcio. Cristóforo Colombo, italiano de Gênova, era marinheiro. O barco naufragou. Colombo foi esbarrar em Portugal, onde casou com a rica Felipa, cujo pai também era navegador; estudou

os mares, mas ninguém acreditava nele. Foi para a Espanha, conquistou os reis Fernando e Isabel, de Castela, e em 1492 chegou à América; virou “o almirante de todos os mares”, e está de lá, de pé, no alto da torre, diante do porto de Barcelona. A América devia chamar-se Colômbia e não América. Colombo foi literalmente roubado pelo bancário-banqueiro italiano Américo Vespúcio. Américo Vespúcio, de Florença, trabalhava no banco dos Médicis e foi transferido para Sevilha, na Espanha. Era o subgerente. O gerente ajudou a financiar a primeira viagem de Colombo, em 1492. Morreu o gerente, Américo assumiu a sucursal do banco e continuou financiando Colombo na segunda viagem, de 93 à 96; na terceira, de 98 à 1500 e na quarta, de 1502 à 1506. Mas Américo Vespúcio já tinha percebido que a América existia mesmo e dava dinheiro. Virou também navegador. Em 1501, já o Brasil descoberto, ele saiu de Lisboa, passou pelo cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, e foi até o Rio de Janeiro, aonde chegou em 1502. Em 1503, passou por Fernando de Noronha, Bahia e foi até Cabo Frio.Voltou à Europa, foi à Alemanha, pagou e pôs o continente em seu nome – América e não Colômbia – no mapa do globo de Estrasburgo, em 1506. Colombo, passado para trás, morreu de desgosto em 1506. O Pereira Depois do Vespúcio, em 1503, e Caramuru, em 1510, veio o Pereira, 25 anos depois. Em 1534, Portugal dividiu a costa do país em capitanias hereditárias, em 15 lotes, cada um com 50 léguas, 300 quilômetros. O rei doou a da Bahia 2008 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 35


ao fidalgo português Francisco Pereira Coutinho, já velho e doente, mas rico e durão, que, pelos saques nas Índias, virou o “Rusticão”. Ele reuniu 120 pessoas e veio assumir suas terras, em 1536. Ficou encantado e gabou muito. Mandou dizer ao rei que havia “bons ares”, “boas águas”, “os algodões são os mais excelentes do mundo” e “o açúcar se dará quanto quiserem e a terra dará tudo que lhe deitarem”. Instalou-se próximo à praia da Barra, onde hoje é o farol da Barra, fez um povoado com umas 30 casas, cercou de paua-pique e levantou uma torre de dois andares com quatro canhões. Era a Vila do Pereira. Caramuru estava ali perto há quase 30 anos, com uns 200 tupinambás trabalhando com ele e para ele. O Pereira não se meteu com Caramuru, mas começou a distribuir terras em volta para sua gente que veio com ele: o espanhol Afonso Torres, o português João de Velosa e outros. Mas aquelas terras tinham donos: 5 ou 6 mil índios tupinambás, “homens de peleja”, que começaram a ser escravizados para trabalharem nas plantações de cana. Quatro anos depois da chegada do Pereira, em 1540, a guerra estourou. Pereira tinha perdido o apoio de Caramuru e do donatário vizinho, Duarte Coelho, de Pernambuco, que se queixou ao rei: “Ele é mole para resistir às doidices e desmandos dos doidos e mal ensinados”. Durante cinco anos a briga com os tupinambás levou a fome, a sede e a morte para a Vila do Pereira. Acabaram “encurralados entre o mar e a muralha que protegia a vila”, como brilhantemente conta Eduardo Bueno: “Eram uns 100 colonos cercados por mais de mil tupinambás brandindo tacapes, lançando flechas incendiárias, produzindo nuvens tóxicas com a combustão de pimenta e ervas venenosas”. Bush teria bombardeado os índios pelo uso de armas químicas e destruição em massa. Um “clérigo de missa”, padre João Bezerra, que ficou na história como “aventureiro sem escrúpulos”, chegou de Lisboa com um falso alvará, destituindo Pereira da capitania. Pereira fugiu para Porto Seguro. O padre sumiu e os índios tomaram conta da Vila do Pereira, destruíram a torre e as casas, saquearam os armazéns. Mas logo apareceram franceses que “carregaram os canhões que os índios deixaram jogados na praia, juntaram as mercadorias que escaparam dos saques” e também sumiram, prometendo voltar em quatro meses. “Restavam só os destroços”. Caramuru, solidário, foi a Porto Seguro e trouxe o Pereira de volta em seu barco, que naufragou na ponta de Itaparica. Deve ter sido coisa do cacique João Ubaldo. Quem não morreu foi preso pelos índios, inclusive o Pereira, que “foi morto ritualmente”, segundo a tradição, por um garoto de 5 anos, cujo irmão ele tinha mandado matar. Caramuru evidentemente foi poupado. Era o sinal, para Portugal, de que as capitanias não resolviam o problema. Na capitania de Ilhéus, os valentes índios aymorés se haviam rebelado contra as escravizações, incendiando e destruindo oito engenhos. Os 400 habitantes tiveram que fugir. 36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2008

Franceses Ou Portugal agia ou perdia o Brasil para os franceses. Esses foram os primeiros grandes inimigos, durante mais de meio século, de 1500, no Descobrimento, a 1556, com Villegagnon, no Rio. Seus navios piratas cortavam a costa de norte a sul, do Maranhão a São Vicente, trocando, comprando, roubando, levando, sobretudo, Pau-Brasil. Também já havia o comércio de escravos e cana-de-açúcar, mas começando. O grande negócio da época era o Pau-Brasil. Só de Salvador a Olinda eram 800 quilômetros, passando por Sergipe e Alagoas, sobretudo na foz do rio Real (entre Bahia e Sergipe), na foz do rio Sergipe (onde hoje é Aracaju), na ponta do francês (em Maceió), na ilha de Itamaracá e também no litoral da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Se você quer conhecer uma das mais belas cidadezinhas do mundo, vá a Honfleur, de apenas 8 mil habitantes, a 200 quilômetros de Paris, na foz do Senna, norte da França, entre Trouville e Havre. Aquela jóia universal é tão francesa quanto brasileira. Com seu porto profundo, meio escondido diante do grande porto do Havre, durante dezenas de anos os navios franceses despejaram o Pau-Brasil negociado, tomado, roubado dos índios e de traficantes portugueses. A entrada da nossa bela Baía de Todos os Santos, hoje o Farol da Barra, os franceses chamavam de Point de Carammorou. A Amazônia devastada, saqueada, com suas madeiras de lei roubadas, não começou agora. Tem 500 anos. Chamavase Mata Atlântica e seu Pau-Brasil. Quase todas as capitanias estavam abandonadas. Para plantar cana era preciso traficar escravos ou escravizar índios. Tomé de Sousa Como seu descendente Dom João VI, quase 200 anos depois, o rei Dom João III tinha cara de bobo mas não era. A iniciativa privada das capitanias fora um fracasso total. O Estado tinha que assumir, tomar conta. O rei chamou Dom António de Ataíde, seu ministro da Fazenda, e Fernão de Andrade, seu tesoureiro-mor, seu presidente do Banco Central. Eram o Mantega e o Meirelles. E os três planejaram criar um Governo Geral no Brasil, com sede na Bahia. Com dinheiro do Governo, do Reino. A primeira providência foi uma carta do Rei a Caramuru, de 19 de novembro de 1548, mandando preparar a recepção a Tomé de Sousa: “Eu, el Rei, envio muito a saudar... Eu ora mando Tomé de Sousa, fidalgo de minha Casa, a essa Bahia de Todos os Santos, por capitão e governador...Vos mando que quando o dito Tomé de Souza lá chegar, vos vades para ele e o ajudeis”. Caramuru vivia no Outeiro Grande, uma colina acima da antiga Vila do Pereira, hoje bairro da Graça. E fez tudo direitinho. Tomé de Sousa, militar de carreira, que servira no Marrocos e na Índia, era filho de um abade e se revelou o único realmente sério, correto, dos três primeiros governadores-gerais.


Jesuítas Não se pode falar em Salvador, Bahia e Brasil sem a Companhia de Jesus, os “guerrilheiros de Cristo”. Uma incrível

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Duarte da Costa, o segundo, com seu filho Álvaro da Costa, foi um desastre, desastrado e corrupto. Mem de Sá, o terceiro, roubou tanto que se tornou “o homem mais rico do Brasil no século XVI e o mais acusado de corrupção”. Tomé de Souza saiu de Lisboa em 1o de fevereiro e chegou a Salvador na manhã de 29 de março de 1549. Dois meses. Encontraram “um quase segundo paraíso, em perpétua primavera (...) águas de um azul translúcido, repletas de ilhas verdejantes, pontilhadas por um colar de praias. (...) O peixe é tanto que vai de graça”. A frota era de seis embarcações e mais dois navios mercantes. Mais de 500 homens (alguns historiadores falam em até mil): a maioria mercenários, voluntários ou desocupados. Além do material necessário para a construção da cidade e bugigangas para enganar os índios, havia comida, água e vinho em 600 tonéis de madeira. Daí nasceu a tonelagem. Era um litro e meio de vinho por dia para cada um. Não havia só burocratas e soldados. Também artesãos, marujos, “desorelhados” e “ferrados” – gente punida de crimes anteriores –, um médico, um relojoeiro, um boticário, um barbeiro e 51 “trabalhadores”. E nada de mulheres, que ficaram em Portugal, inclusive a de Tomé de Sousa, Catarina da Costa, por quem ele “se consumia de saudade”. E mais três padres jesuítas: Manoel da Nóbrega, o líder, Leonardo Nunes, cristão-novo (judeu convertido) e Azpicuelta Navarro. Nóbrega rezou uma missa “numa maneira de igreja”. Era a “pequena capela de pau-a-pique, com cobertura de palmeira, que Catarina Paraguaçu, mulher de Caramuru, mandara erguer, uns 20 anos antes, na colina acima da Vila do Pereira, onde hoje fica a Igreja da Graça”. A primeira sacada de Tomé de Sousa foi construir a cidade no alto da colina, onde hoje é a Praça Municipal, cercada por uma muralha com duas portas: uma no Pelourinho e outra na hoje Praça Castro Alves. Ali ficaram o Palácio do Governador, a Câmara Municipal (a primeira do país), a cadeia, a Santa Casa de Misericórdia, a Igreja dos Jesuítas e o Pelourinho. Lá embaixo da colina, na Cidade Baixa, a Igreja da Conceição da Praia, a alfândega e um armazém, o Mercado Popular, ligado à Cidade Alta por um elevador de carga, o Guindaste dos Padres. E mais tarde outro, público, onde hoje é o Elevador Lacerda. O primeiro prefeito foi Diogo Moniz Barreto, antepassado desses Moniz e Barretos todos da Bahia. O Garcia d’Ávila, da minha esquina em Ipanema, no Rio, o homem da Casa da Torre na Praia do Forte, o maior latifundiário do Brasil, cujas terras iam de Itapoã ao Piauí, e sobre quem o historiador baiano Moniz Bandeira acaba de escrever um grande livro, “O Feudo”, era “criado”, filho, na época “bastardo”, de Tomé de Sousa.

Sebastião Nery

coincidência histórica. Um fidalgo espanhol, basco, nascido quando o Brasil era descoberto, em 1491, durante um cerco francês à Pamplona levou uma bala de obus entre as pernas, nas partes baixas. A parte inferior da perna direita foi estraçalhada. A barriga da perna esquerda, dilacerada. E ficou impotente. Inigo Lopes de Oñaz decidiu tornar-se um “mendigo de Deus”. “Manco e de magreza espantosa, cabelos e unhas longos, partiu para Jerusalém em peregrinação”. Na volta, em 1529, foi estudar Teologia em Paris. Trocou o nome para Inácio de Loyola, reuniu seis alunos do curso e fundaram a Companhia de Jesus, a serviço do Papa, que Alexandre Herculano chamou de uma “milícia papal”. Mudaram a Igreja e ajudaram a fundar o Brasil. Ortodoxos radicais vetavam o grego por ser “aristotélico” e o hebraico por ser “judaico”. Denunciavam os intelectuais humanistas à Inquisição, ao Tribunal do Santo Ofício. Na hora da partida de Tomé de Sousa, a saída da frota atrasou esperando um andarilho experiente, que tinha sido convocado e vinha a pé de Beira, a 150 quilômetros de Lisboa. Era o jesuíta Manoel da Nóbrega. Estudante de Direito da Universidade de Salamanca, na Espanha, Nóbrega voltou para sua terra, Portugal, e foi estudar em Coimbra, onde se formou em Direito Canônico e Filosofia, em 1541, aos 23 anos. Queria 2008 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37


ser professor, não conseguiu. Foi reprovado porque era gago, “tardo na fala”. Resolveu ser padre. Entrou aos 27 anos na Companhia de Jesus, dirigida em Portugal por um dos seis fundadores, padre Simão Rodrigues. O padre Nóbrega era tão radical que, no carnaval de Coimbra, em 1547, para amaldiçoar a turma, “desfilou com um crucifixo, uma caveira e vários ossos”. Imaginem o padre Nóbrega, hoje, desfilando de caveira e ossos na mão, diante do Expresso 2222 de Gilberto Gil e dos camarotes de Carlinhos Brown, Ivete Sangalo e Daniela Mercury. Foi esse Nóbrega que, com mais dois companheiros, chegou ao Brasil com Tomé de Sousa como chefe, como provincial. “Percorriam as ruas de Salvador em ruidosas ladainhas noturnas, submetendo-se a açoites e conclamando o povo a imitá-los.” Era bem o símbolo de “uma colônia sob o signo do dogmatismo, sem livros, sem universidades, sem imprensa e sem debates por três séculos”, até a chegada do bom gordo Dom João VI. Dom Sardinha Em 1552, chegou ao Brasil o primeiro bispo, Dom Pero Fernandes Sardinha, culto mestre em Teologia na Sorbonne, colega de Inácio de Loyola em Paris. Mas Nóbrega logo se desentendeu com ele. “O bispo era contra catequizar índios”. Nóbrega foi para São Vicente fundar São Paulo. O bispo Sardinha comprou muitas outras brigas. Terrivelmente corrupto, excomungava e cobrava dinheiro para desexcomungar. “Amealhou uma fortuna nos quatro anos de apostolado”. Até que a Câmara de Vereadores de Salvador fez uma CPI contra o novo governador Duarte da Costa e contra o bispo. Denunciou e pediu a Portugal a saída dos dois. E foi atendida. O bispo entrou com mais uns cem em uma nau, que naufragou na foz do rio Coruripe, conhecida como “o porto dos franceses”, em Alagoas, e não na Paraíba, como se enganam alguns historiadores. Era 15 de junho de 1556. Ninguém morreu. Presos, os índios caetés os levaram a pé uns 40 quilômetros acima, até a barra de São Miguel, a 30 quilômetros de Maceió. Lá, foram quase todos mortos (só de 3 a 10 voltaram para Salvador), porque os portugueses brigavam com os franceses, que eram aliados dos caetés. Nem todos devem ter sido comidos. Não havia apetite para tanto. Mas o bispo, certamente foi, porque era o chefe. Em carta para Portugal, Nóbrega não se congratula com a morte do bispo, mas deixa claro que foi castigo de Deus por seus muitos pecados. Nóbrega escreveu dois livros fundamentais: “Informações das Terras do Brasil” e “Diálogo Sobre a Conversão do Gentio”. Vieira, Pombal Mas a aventura dos jesuítas no Brasil não pára na fundação de São Vicente em 1553 e São Paulo em 1554, pelo padre 38 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2008

Manoel da Nóbrega. Meio século depois, em 1608, nascia em Lisboa “o Imperador da Língua Portuguesa”, como o chamou Fernando Pessoa: o padre António Vieira. Quando tinha de sete a oito anos, a família veio para o Brasil, para Salvador, com ele. Estudou no Colégio dos Jesuítas, tornou-se noviço e, com 18 anos, era professor de Retórica no Seminário de Olinda, em Pernambuco, já tendo feito, em Salvador, seus primeiros sermões. Em 1653, Vieira chegou a São Luís e participou – às vezes discordando, às vezes comandando – da epopéia dos jesuítas (e outras ordens religiosas, mas essas com menos ação), ampliando nossas fronteiras. Pelo Tratado de Tordesilhas, de 1494 (dois anos apenas depois da chegada de Colombo às Américas), que dividiu a América do Sul entre Portugal e Espanha, as terras portuguesas iam até o Pará, descendo até o Paraná. O resto era Espanha. Mas em 1676, a Igreja, sempre sábia, espichou a fronteira sul até o rio da Prata, estendendo até lá a jurisdição da Diocese do Rio de Janeiro. E o Norte? Em janeiro de 1750, o Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Mello, 1699-1782, primeiroministro de Portugal durante 27 anos, de 1750 a 1777), o maior herói da Amazônia, conseguiu, no Tratado de Madri, estender as “terras brasílicas” ao rio Negro e ao rio Juruá, o que significava ao norte do Solimões e do Amazonas, até os limites de Nova Granada (Colômbia), Venezuela e Guianas. Para garantir, nomeou seu “irmão do coração”, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, governador e capitão-general do Maranhão e Grão Pará, transferindo a capital da região de São Luís para Belém. O Brasil acabava de ganhar a Amazônia. Mas os jesuítas (e outras ordens religiosas) tinham muitos negócios e relações com os espanhóis, franceses e holandeses daquelas fronteiras sem fim. Houve época em que tinham mais de 100 mil bois só na Ilha de Marajó. Começaram os conflitos e, em 1759, Pombal – com receio de as missões dos jesuítas e outras ordens colocarem os índios ao lado dos espanhóis, franceses, holandeses, e esses avançarem sobre as terras brasileiras (portuguesas) –, afinal, expulsou a Companhia de Jesus do Brasil. E o Padre Vieira, depois de viver 52 anos no Brasil, foi para Lisboa pregar para o Rei, foi para Roma pregar para o Papa e acabou encarcerado pela Inquisição, acusado de heresia por defender os índios. Já velho, voltou para o Brasil só para morrer em Salvador, que ele considerava “sua terra”, em 1697, aos 90 anos. As Colinas E foi assim que a Bahia e o Brasil nasceram de três naufrágios: o de Caramuru, o primeiro baiano; o de Pereira Coutinho, o primeiro donatário; e o de Dom Sardinha, o primeiro bispo. Talvez por isso sejamos assim: desde o começo, tocados pelos ventos da História – às vezes tragados pelas ondas, mas sempre subindo as colinas.


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LEIS ESPECIAIS NO BRASIL: ALGUMAS PONDERAÇÕES

Angélica Carlini Professora de Direito na PUC-CAMPINAS e FACAMP

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s segmentos econômicos têm discutido a necessidade de leis específicas para regular suas atividades, invocando a argumentação de que as leis existentes nem sempre dão conta da complexidade e das peculiaridades de determinados setores. Nesse momento, por exemplo, o mercado de seguros discute essa questão. Em que pese o fato de ser o Brasil um criador de legislação especial com boa-técnica e eficiência – como ocorre no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Código de Defesa do Consumidor e no Estatuto do Idoso –, é preciso considerar as dificuldades que decorrerão da consecução de um novo texto de lei para a área de seguros privados. Há nos contratos de seguro especificidades e características que poderiam sustentar o reclamo por uma lei especial, mas, o risco decorrente da fúria legiferante que se abate sobre o Estado, aliado ao desafio de tentar realizar um traçado mais completo que siga uma hermenêutica aguda e consolidada, propõe ponderar sobre a viabilidade de proteger os participantes da relação de seguro – contratantes, consumidores e seguradores – a partir dos textos jurídicos existentes. “Hoje o que se busca é a coordenação, a harmonia entre as normas do ordenamento como exigência para 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2008

um sistema jurídico eficiente e justo, e, não a exclusão desta ou daquela lei. Ao lado da solução tradicional portanto, convive uma segunda solução: o diálogo das fontes, uma coordenação flexível e útil das normas, dando-lhes coerência, permitindo-se influências recíprocas, visando à sua aplicação conjunta. Por meio desse diálogo das fontes, verificam-se quais os objetivos que são almejados e que devem estar em harmonia, considerada a pluralidade de fontes. Assim, a regulação da matéria securitária no campo das normas gerais do contrato como se propõe, não parece dissociada dos objetivos da proteção do segurado que se extraem do Código de Defesa do Consumidor, ou dos objetivos da proteção da parte vulnerável trazidos pelo Código Civil de 2002. O Projeto de Lei nº 3.555/04 traz avanços nesse sentido e coloca a disciplina em coerência com esses objetivos, modernizando o modelo atual. Entretanto, talvez ganhasse em coerência se esses avanços fossem incorporados ao próprio Código Civil, ao invés de ficarem longe dele numa lei geral sobre o contrato de seguro, numa lei especial em relação ao Código Civil, à medida que esta dialoga com alguma solidez, no tocante


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à disciplina dos contratos em geral, com o Código de Defesa do Consumidor.” (VASCONCELLOS, Antonio Hermann Benjamim e. Contrato de Seguro: Uma Lei para Todos, São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito do Seguro, 2006, p. 447) A reflexão do ministro do Superior Tribunal de Justiça, manifestada durante o IV Fórum de Direito do Seguro, José Solero Filho, em 2004, dá a medida da dificuldade que se impõe para a discussão do tema, ou seja: conceber uma lei especial de seguros ou incorporar ao Código Civil aspectos que não tenham sido adequadamente tratados em relação a esses contratos? A principiologia do Código Civil de 2002 em relação ao contrato está em consonância com a Constituição Federal e com o Código de Defesa do Consumidor. Essa principiologia se alicerça no pensamento culturalista de Miguel Reale, que concebe o Direito como ciência cultural que sofre a interferência do homem na busca incessante da realização de seus fins. Reale concebeu um Código Civil marcado pelo culturalismo e sustentado em três princípios fundamentais: socialidade, eticidade e operabilidade. São esses princípios que vão garantir que o Código se adeque à Constituição Federal para respeitar a dignidade da pessoa humana.

O Código Civil brasileiro não é uma amálgama de artigos aleatoriamente alocados, é um sistema coerente orientado por uma principiologia própria que o norteia, garantindo coerência e unidade. O mesmo se dá com o Código de Defesa do Consumidor de 1990, que busca o equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores de produtos e serviços. Esse equilíbrio está proposto na Constituição Federal que determina a necessidade de relacionar ordem econômica, proteção ao trabalhador e proteção ao consumidor como princípios fundamentais para o desenvolvimento e a justiça social. Assim, não há dúvida de que o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil podem dar conta do equilíbrio das relações entre segurados e seguradoras, cujos conflitos se alicerçam mais na dificuldade de compreensão que os contratos de seguro inspiram, do que propriamente na ausência de uma legislação especial. É preciso ponderar sobre a força dos princípios como fio condutor da hermenêutica a ser aplicada aos contratos de seguro ou, sobre a redescoberta dos princípios como essência da interpretação do Direito. Cabe ressaltar que a consolidação hermenêutica e jurisprudencial do Código Civil de 2002 ainda não ocorreu, porque sequer houve tempo para que o texto civil pudesse demonstrar sua força e alcance. O tempo transcorrido ainda não permitiu a produção de julgados em quantidade necessária para garantir a correta compreensão das cláusulas gerais que norteiam os contratos. Uma lei especial produzida neste momento histórico, antes da consolidação da interpretação da lei civil e durante o processo de amadurecimento da compreensão e aplicação do Código de Defesa do Consumidor, poderá ser fonte de mais problemas do que soluções. Uma lei especial, gestada na fase em que a sociedade brasileira consolida a compreensão das cláusulas gerais de boa-fé e função social do contrato, poderá causar o efeito inverso ao desejado. Poderá atrasar a compreensão dos aspectos específicos dos contratos de seguro, prestando-se para afastá-los de sua razão precípua de existir, que é facilitar a vida das pessoas garantindo segurança no âmbito pessoal e econômico. Estudo de julgados proferidos pelos diferentes tribunais estaduais brasileiros e pelo Superior Tribunal de Justiça, não identifica reclamos da magistratura contra a falta de uma lei específica para os contratos de seguro. Os magistrados encontram na Constituição Federal, no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil, o arcabouço jurídico que necessitam para dirimir as lides postas sob sua responsabilidade. Esse indicativo, daqueles que aplicam o Direito e não apenas o interpretam, em tese, talvez seja significativo para concluir que neste momento histórico, uma lei especial de seguros possa não ser uma forma efetiva de proteção para este setor econômico e seus consumidores. 2008 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41


O ORÇAMENTO PÚBLICO Cid Heraclito de Queiroz Consultor Jurídico da CNC

“o Orçamento do Estado é um ato contendo a aprovação prévia das receitas e das despesas públicas.”

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O conceito de orçamento rçamento significa o ato ou efeito de orçar, de calcular, de avaliar, de estimar. Deriva do verbo orçar, que provém do italiano orzare. Observa o consagrado Aliomar Baleeiro que, “na França e na Inglaterra, o orçamento é designado pela palavra budget, do velho francês bougette, bolsa de couro, na qual o ministro levava à Câmara dos Comuns a papelada da proposta de lei de meios” (“Uma introdução à Ciência das Finanças”, vol. II, 4ª ed., Rev. Forense, Rio, 1958). Em 1871, Paul Leroy-Beaulieu deu início, na Escola das Ciências Políticas de Paris, ao curso de Finanças, sendo o primeiro titular da cadeira, que exerceu até 1880. Com base na sua experiência teórica e prática sobre impostos, orçamentos, empréstimos, crédito, etc., editou, em 1876, a clássica obra “Traité de La Science des Finances” (Lib. Guillaumin, Paris), na qual registrou, com feliz precisão, que um orçamento, um budget, é “um rol de previsão das receitas e das despesas durante um período determinado; é um quadro estimativo e comparativo das receitas a realizar e das despesas a efetuar”. Ainda no século XIX, René Stourm, um dos sucessores de Leroy-Beaulieu na cadeira de Finanças da citada Escola, e que também exerceu o cargo de Inspetor-Geral das Finanças no governo francês, publicou, em 1889, uma obra prima: “Le Budget, son Histoire et son Mécanisme” (Lib. Guillaumin, Paris, 1889), na qual ponderou que o orçamento não é um rol, nem um quadro. Opondo restrições à definição de orçamento constante de um decreto de 1862 e a que foi adotada pelo 42 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2008

Dicionário da Academia Francesa, Stourm sustentou que “o Orçamento do Estado é um ato contendo a aprovação prévia das receitas e das despesas públicas”. Desde então, os tratadistas das ciências das Finanças e do Direito Orçamentário vêm se esmerando em oferecer novas definições, as quais, na essência, não se afastam do texto de Stourm. Louis Trotabas, professor da Faculdade de Direito e Ciências Econômicas de Nice, destacou dois pontos essenciais na definição de orçamento: a ‘natureza legislativa’ do ato orçamentário e o ‘caráter de previsão e autorização’ desse ato (“Finances Publiques”, Paris, 1964). Nos dias atuais, sobretudo depois do advento do Estado intervencionista e das modernas versões do neoliberalismo, da socialdemocracia, do social-liberalismo e outras correntes assemelhadas, não se pode deixar de considerar a observação de Rossy, em 1959, quando chefiava o Corpo-Geral da Fazenda da Espanha, nas “Instituciones de Derecho Financieiro” (Lib. Bosch, Barcelona): “O orçamento é a expressão sintética da política financeira do governo, em um determinado período de tempo”. “O orçamento, na precisa observação de Bouvier, Esclassam e Lassale, tornou-se um instrumento conjuntural” (“Finances Publiques”, Lib. Générale de Droit et Jurisprudence, Paris, 2000). Fernand Baudhuin, da Universidade de Louvain, enfatiza com objetividade a diferença entre os orçamentos particulares e os públicos: “Os particulares ajustam suas despesas a suas


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receitas, enquanto que o Estado ajusta suas receitas a suas despesas” (“Précis de Finances Publiques”, Estab. Emile Bruylant, Bruxelas, 12ª ed., 1951). Enfim, o orçamento, no Estado de Direito, é o ato jurídico, de natureza legislativa, pelo qual, num determinado período de tempo, a receita é estimada e a despesa é autorizada em função dos objetivos da política econômico-financeira e social do governo, observados os preceitos constitucionais pertinentes e os princípios fundamentais da ciência das Finanças. As origens históricas do orçamento As origens mais remotas do orçamento público são encontradas na Inglaterra. Lord Macaulay, nos seus “Ensaios sobre a História da Inglaterra”, de 1864, citado por Stourm, afirma que a máxima segundo a qual “todo imposto deve ser consentido pelo povo” era “tão antiga que ninguém pode precisar a origem”. Todavia, os historiadores da ciência das Finanças fixam essa origem na memorável Magna Carta, salvaguarda das liberdades inglesas, outorgada ou, mais precisamente, aceita pelo célebre Rei João-sem-Terra (John Lackland) – corajoso e eficiente, mas despótico e cruel – em junho de 1215, após a confrontação com os barões rebelados, em Runnymede, situado entre o Castelo de Windsor (uma das residências do Rei), na margem sul do Tâmisa, e Staines, na margem norte, onde os barões se reuniam. Isso antes mesmo da criação do

regime parlamentar, eis que a Câmara dos Comuns reuniu-se pela primeira vez em 1265. Na realidade, a Magna Carta foi aceita pelo Rei, que lhe apôs o selo real, mas por imposição dos barões, que a prepararam, rebelados contra os excessos tirânicos de Joãosem-Terra, notadamente a elevação da scutage – um imposto pago pelos vassalos feudais para se eximirem do serviço militar, bem assim para atender às despesas do exército real com as guerras –, e outras exações tirânicas. No item 12 da Magna Carta, ficou estabelecido que: “Nenhuma scutage or aid (na lei feudal: taxa ou contribuição) pode ser lançada no nosso Reino sem o consentimento geral, a não ser para armar cavaleiro a nosso filho mais velho e para celebrar, mais uma vez, o casamento de nossa filha mais velha. E esses tributos não excederão limites razoáveis. De igual maneira se procederá quanto aos impostos da cidade de Londres.” Portanto, a Magna Carta, também chamada Carta dos Barões, verdadeiro monumento às liberdades, ao estabelecer a limitação das despesas reais através da limitação à liberdade de o Rei lançar tributos, traçava os primeiros contornos do orçamento. Uma lei feita no reinado de Eduardo I, no século XIII, estabeleceu que: “Nenhuma derrama ou tributo (tallage or aid) será lançado ou cobrado neste Reino pelo rei ou seus herdeiros, sem o consentimento dos arcebispos, bispos, condes, barões, cavaleiros, burgueses e outros homens livres do povo deste Reino.” Outra lei, no reinado de Eduardo III, no século XIV, preceituou que: “Ninguém poderá ser compelido a fazer nenhum empréstimo ao rei contra a sua vontade, porque tal empréstimo ofenderia a razão e as franquias do país”. Na “Bill of Rights”, de 7 de junho de 1628, a segunda Carta da Inglaterra, foi reafirmado que: “A partir de agora, ninguém será obrigado a contribuir com qualquer dádiva, empréstimo ou benefício e a pagar qualquer taxa ou imposto sem o consentimento de todos, manifestado por ato do Parlamento; e que ninguém seja chamado a responder ou prestar juramento, ou a executar algum serviço, ou encarcerado, ou duma forma ou doutra, molestado ou inquietado, por causa desses tributos ou da recusa em pagá-los.” No reinado de Guilherme III, o Príncipe de Orange (que destronara o Rei Jayme II, seu sogro), a “Declaração de Direitos”, de 13 de fevereiro de 1689, decorrente da Revolução de 1688, estabeleceu que: “A cobrança de impostos para uso da coroa, a título de prerrogativa, sem autorização do Parlamento e por um período mais longo ou por modo diferente do que tinha sido autorizado pelo Parlamento, é ilegal.” Na França, a evolução foi mais lenta. No chamado período dos Estados Gerais, que se estendeu até 1614, surgiu, segundo René Stourm, “a idéia de que todo imposto deve ser 2008 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43


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consentido pela nação”. Ela, acrescenta Stourm, “dominava constantemente os espíritos”. Reunidos em 1483, os Estados Gerais afirmavam solenemente – ainda consoante narrativa de Stourm – “que eles entendem que, doravante, não se imporá qualquer taxa ao povo sem a convocação dos Estados e sem haver obtido o seu consentimento, na conformidade das liberdades e privilégios da realeza”, mas a cláusula final restringiu o princípio. Assim, foi somente após a Revolução de 1789 que se firmou, na França, o princípio da aprovação dos impostos pelo voto dos representantes da nação. Na “Declaração de Direitos”, a matéria foi, afinal, objeto de três circunstanciados dispositivos: “Art. 13. Para manter o serviço público e as despesas de administração, uma contribuição comum é indispensável; ela deve ser igualmente repartida entre todos os cidadãos em razão de suas disponibilidades. Art. 14. Todos os cidadãos têm o direito de constatar, por eles próprios ou por seus representantes, a necessidade da contribuição pública e de consenti-la livremente, de acompanhar a sua aplicação, de determinar a quantidade (alíquota), a base (de cálculo), o reembolso e a duração. Art. 15. Nenhum imposto em natureza ou em dinheiro pode ser cobrado, nenhum empréstimo direto ou indireto pode ser feito, a não ser por um decreto expresso da Assembléia dos representantes da Nação.” Nos Estados Unidos da América, a questão tributária e orçamentária confunde-se com a própria história da independência dessa grande nação. O Parlamento inglês – relata Stourm – governava as vastas colônias da América do Norte. Em 1765, o Parlamento entendeu que seria justo obrigar as colônias a contribuir para as despesas da metrópole, por sua salvaguarda e proteção. Com esse objetivo, lançou um imposto do selo. Até então as colônias estabeleciam, elas próprias, as suas taxas. A Assembléia da Virgínia protestou energicamente, 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2008

sob a alegação de que os colonos americanos não estavam representados no Parlamento inglês. O protesto da Virgínia inflamou a nação. Representantes das colônias reuniram-se em Nova Iorque, em outubro de 1765, e declararam “que todo imposto pago à coroa era uma livre dádiva do povo, e era despropositado e contrário à Constituição inglesa que o Parlamento da Grã-Bretanha desse à Sua Majestade bens dos colonos”. Diante desses protestos, o Parlamento inglês recuou e, em 1766, revogou o imposto do selo. Mas, o orgulhoso governo inglês, pretendendo, um ano depois (1767), reafirmar os seus poderes sobre as colônias, substituiu o imposto do selo por taxas sobre vidro, papel, tintas e chá. As taxas não eram elevadas. Toda a discussão versava sobre uma questão de princípio. Como lembra Stourm, os colonos exclamavam: “Nossas bolsas estão prontas, mas nós queremos pagar como cidadãos e não como escravos”. Por sua vez, o grande líder George Washington proclamava: “De que se trata? E qual a causa da discussão? É sobre o pagamento de uma pequena taxa incidente sobre o chá? Não! É somente o direito que nós contestamos”. No Parlamento inglês surgiram divergências. Alguns concordaram com os colonos americanos. O Parlamento, em 1770, recuou de novo, mas parcialmente, revogando as

taxas sobre o vidro, o papel e as tintas, porém mantendo a taxa sobre o chá. Esses fatos empurraram as colônias para a insurreição e a guerra pela independência. Em 1774, o Congresso reunido em Filadélfia aprovou uma Declaração de Direitos assim redigida: “Nós excluímos toda idéia de imposto interior ou exterior que tenha por objeto arrecadar receitas de cidadãos da América sem o seu consentimento”.


“Orçamento significa o ato ou efeito de orçar, de calcular, de avaliar, de estimar.“

O desfecho desses fatos, todos sabem, foi a Independência proclamada em 4 de julho de 1776. Em Portugal, segundo João Pedro da Veiga Filho, catedrático da Faculdade de Direito de S. Paulo, no seu “Manual da Ciência das Finanças”, de 1898 (Espíndola, Siqueira & Companhia, S. Paulo), o marco inicial do orçamento residiu numa proclamação das Cortes, em 1385, nos seguintes termos: “Que se lhes não imporiam tributos, sem serem ouvidos e sem que com sua decisão e conselho se buscassem os meios mais suaves para a sua execução”. No Brasil, a Constituição do Império (1824), no seu art. 15, inciso X, atribuiu à Assembléia Geral a competência para fixar anualmente as despesas públicas e repartir a contribuição direta. E, no art. 172, prescreveu que “o Ministro do Estado da Fazenda, havendo recebido de outros ministros os orçamentos relativos às despesas de suas repartições, apresentará na Câmara dos Deputados, anualmente, logo que estiver reunida, um balanço geral da receita e despesa do Tesouro Nacional do ano antecedente e igualmente o orçamento geral de todas as despesas públicas do ano futuro e da importância de todas as contribuições e rendas públicas”. Contudo, a nossa primeira lei orçamentária somente adveio em 14 de novembro de 1827. Enfim, “a história do orçamento, observa Alfred Buehler, professor de Finanças Públicas da Universidade da Pensilvânia, é, em larga medida, a história de séculos de lutas pelo controle popular do tesouro público” (“Public Finance”, McGraw Hill, Nova Iorque, 1948). Os princípios fundamentais do orçamento Desde o século passado, o direito orçamentário é informado por seis princípios fundamentais: legalidade, anualidade, unicidade, universalidade, especificidade e publicidade. O princípio mais relevante é o da ‘legalidade’, cuja origem

confunde-se com a origem do próprio orçamento na Magna Carta da Inglaterra. O princípio da legalidade impõe – conforme a lição de H. Rossy – que o orçamento “seja preparado, formado, discutido e aprovado pelos órgãos do ente público que tenham estas funções atribuídas pela lei constitucional ou fundamental que organize a vida da nação, estado ou município”. Pimenta Bueno, o emérito constitucionalista do Império, ao comentar esse preceito, em 1857, assim justificou o princípio da legalidade: “Ora, se é o povo quem tem de pagar as despesas públicas, se é dele que se tem de exigir anualmente o sacrifício de uma parte do seu trabalho ou propriedade, é manifesto que ele deve ser ouvido para que preste o seu consentimento. Quando não fosse um ato de soberania, seria dever de rigorosa justiça” (“Direito Público Brasileiro”, Tipografia J. Villeneuve, Rio de Janeiro). Em síntese, o orçamento deve ser aprovado mediante lei. Segundo o princípio da ‘anualidade’, que alguns, como Rossy, denominam, mais adequadamente, de ‘temporalidade’, o orçamento deve vigorar por um ano, ou um predeterminado período, que pode ser superior ou inferior a um ano. Na vida privada, são comuns os orçamentos de caráter informal – mensais, semanais e diários. No que tange aos orçamentos públicos, o período anual tem sido justificado em razões da ordem natural, ou seja, coincidência com o ano civil, no fato de obrigar a convocação anual do Parlamento, ou, ainda, para coincidir com o período de uma sessão legislativa. Pode-se acrescentar, como causa ou efeito do orçamento anual, a incidência, pelo mesmo período de tempo, de certos impostos, como o de renda e o da propriedade imobiliária. Finalmente, um ano, na feliz observação de Maurice Duverger, é um período suficientemente breve para que as previsões tenham um certo valor e suficientemente longo para introduzir uma relativa continuidade à vida financeira 2008 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45


(“Finances Publiques”, Presses Universitaires de France, Paris, 10ª ed., 1984). Segundo o princípio da ‘unicidade’ ou ‘unidade’, o orçamento deve ser único, de modo a possibilitar uma visão efetiva de todas as ações do governo. A unicidade permite um melhor controle de equilíbrio orçamentário ou de seus déficits ou superávits. De acordo com o princípio da ‘universalidade’, o orçamento deve compreender a totalidade da receita e da despesa, a fim de que não escape à prévia autorização legislativa, seja a cobrança de tributos ou outros ingressos, seja a realização de despesas. Tal princípio, é claro, não exclui a abertura, no curso do orçamento, de créditos extraordinários, para atender a despesas imprevisíveis, como guerra e calamidades públicas. Consoante o princípio da ‘especificidade’, o orçamento deve especificar, indicar detalhadamente, a composição da receita e o desdobramento da despesa. A receita, segundo as diversas fontes: a tributária (impostos, taxas e contribuições), a patrimonial (aluguéis, foros e laudêmios), a agropecuária, a industrial, a comercial, a de serviços, as de capital (operações de crédito, alienação de bens). A despesa, com a especificação das verbas ou dotações destinadas a cada órgão, programa, subprograma, etc. Destarte, o princípio da ‘publicidade’ diz respeito à necessidade de publicação do orçamento para que o povo possa conhecê-lo e acompanhá-lo, e possa, também, avaliar o desempenho de seus representantes e governantes. De resto, a lei orçamentária, como todas as leis, somente tem eficácia se publicada. A publicação, enfim, facilita o controle do orçamento. Alguns autores, como, p.e., os professores Pierre Lalumière, da Sorbonne (“Les Finances Publiques”, Lib. Armand Colin, Paris, 1980), Bouvier, Esclassam e Lassale (op. cit.) e Joel Mekhantar (“Finances Publiques”, Hachette, 3ª ed., Paris, 2001), referem-se, ainda, ao princípio da ‘não-afetação’ das receitas, ou seja, a não-vinculação do produto da receita pública a determinadas despesas (educação, saúde, fundos, órgãos, etc.), princípio esse que decorre de outro, o da universalidade. Antonio L. de Souza Franco, professor da Faculdade de Direito de Lisboa, prefere a expressão “não-consignação, que nos diz que, em princípio, todas as receitas devem servir para cobrir todas as despesas” (“Finanças Públicas e Direito Financeiro”, Liv. Almedina, Lisboa, 4ª ed., 1998). Lalumière lembra que, se um imposto é afetado a uma despesa e se a receita desse imposto for superior à despesa prevista, os serviços públicos tenderão a despender integralmente essa receita pública, mesmo que as necessidades do serviço estejam amplamente atendidas. A importância política do orçamento Todos esses temas, ainda que perfunctoriamente pincelados, tiveram por escopo enfatizar a imensa importância política, no Estado de Direito, do orçamento, da lei orçamentária. Como destaca Lord Macaulay, o orçamento “é 46 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2008

um atributo da soberania” (op. cit.). A importância política dos orçamentos é de tal ordem que eles têm sobrevivido, em todo o mundo, às mais severas ditaduras e tiranias, enquanto, em numerosos casos, as próprias Constituições sucumbiram diante da força. Nas suas origens, os orçamentos foram aprovados pelas assembléias, mas uma análise de sua história revela que, a rigor, as assembléias dos representantes dos nobres e, depois, do povo é que foram criadas para aprová-los. Até os dias presentes, os mestres do Direito Constitucional concordam em que votar o orçamento é o principal encargo dos parlamentos. Em casos especiais, o orçamento, mesmo fora do contexto das guerras, pode indicar ações extraterritoriais do Estado. Por exemplo, o presidente Bill Clinton, ao enviar ao Congresso a proposta orçamentária para o ano fiscal de 1997, acentuou que o orçamento alocava “recursos para sustentar a função de liderança dos Estados Unidos na luta pela liberdade e pela paz em todo o mundo” (“Budget of the United States Governement”. Washington, 1996). Os nossos orçamentos federais têm autorizado despesas com o deslocamento e manutenção, a pedido da ONU, das chamadas “forças de paz” em países internamente conflagrados ou institucionalmente desestabilizados, como ocorre, presentemente, no Haiti. A relevância do orçamento e suas dificuldades históricas estão sintetizadas em versos de Victor Hugo, citados por Littré e Stourm: “Le budget, monstre énorme, admirable poisson, À qui, de toutes, partes, on jette l’hameçon.” O orçamento reflete as diretrizes, os princípios e as regras da Constituição, do Direito Público e do Direito Privado, as normas das leis de finanças públicas e, ao mesmo tempo, as diretrizes governamentais, as políticas econômica, financeira, monetária, fiscal, social e militar. Reflete mais, reflete a boa ordem ou a desordem da administração e das finanças públicas. Todos esses reflexos provêem das normas e cifras, tanto da receita quanto da despesa pública. Provêem do sistema tributário, com o elenco de impostos, taxas e contribuições, as alíquotas, as imunidades, as isenções, os privilégios, os benefícios, os estímulos. Provêem da receita patrimonial, das receitas de capital (as operações de crédito, internas e externas). Provêem, ainda, da distribuição da despesa, pela natureza, e por órgãos, elementos, modalidades, funções, programas e subprogramas. Sem dúvida, a análise percuciente desses dados do orçamento, sobretudo se comparados em sucessivos exercícios, indica os objetivos, o grau de maturidade política e de desenvolvimento econômico e social, o nível educacional, a própria cultura de uma nação. Pode-se concluir que o orçamento é o “retrato” de uma nação e uma coleção de orçamentos é um verdadeiro “álbum de retratos”, prova da trajetória de uma nação ao longo do tempo.


1964 – A MALFADADA ODISSÉIA NO NAVIO PRESÍDIO RAUL SOARES Orpheu Santos Salles Editor

“A seguir, a porta foi fechada e me preparei psicologicamente para o período de incomunicabilidade imposto e para o regime carcerário que teve início às 15 horas do dia 22 de julho de 1964.”

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epois de ter atravessado na lancha da Capitania dos Portos o trecho de mar no estuário de Santos, entre o porto e o navio presídio Raul Soares, e ter subido a escada que levava ao convés, avistei de pronto os guardas da Polícia Marítima, postados em vários pontos do convés, todos portando metralhadoras e apontando em minha direção. A primeira impressão foi péssima, angustiosa, devido ao misto de medo e pavor pelo desconhecido que me esperava. No convés, me esperava um graduado da Policia Marítima, que se identificou como capitão Silva e mandou que eu seguisse um policial até uma sala onde fui apresentado a um sargento da Aeronáutica encarregado da administração dos presos no navio. De posse de uma ficha que retirou do arquivo, o Sargento leu os meus dados pessoais, perguntou se os confirmava e mandou que abrisse a mala e colocasse sobre a mesa todos os pertences, inclusive os guardados nos bolsos. Retirei da mala as roupas, objetos de higiene, livros, caneta e o pouco dinheiro que trazia e os coloquei sobre a mesa. Ato contínuo, o Sargento revistou as roupas e objetos, tornou a colocá-los na mala, separando os livros e o dinheiro, dizendo que estes ficariam acautelados e seriam devolvidos na soltura. Apelei pela posse dos livros, o que foi negado sob a alegação de

se tratarem de ordens do Coronel encarregado do Inquérito Policial Militar, e mais, que eu ficaria incomunicável até ser ouvido no inquérito. Nesse ínterim, adentrou no recinto um oficial da Marinha, diante de quem o Sargento se levantou, perfilou e apresentou continência, identificando o oficial como o Comandante do navio. Aproveitei a oportunidade para solicitar a sua interferência na liberação da posse dos livros, o que ele lamentou não poder intervir oferecendo uma Bíblia para leitura. Recusei de pronto, pois há muito estava afastado da religião, mas, após uns instantes, lembrando que nunca a havia lido, reconsiderei e agradeci ao Comandante aceitando de bom grado a gentil oferta. Já estava com a mala nas mãos para ser encaminhado ao cárcere, quando lembrei de perguntar ao Sargento onde seria alojado, ao que respondeu: “No porão”. Incontinente, respondi que, por ser jornalista e ter curso superior, tinha por lei direito à prisão especial, em igualdade com os médicos, advogados, engenheiros e militares que se encontravam presos no navio. Diante da dúvida do Sargento o Comandante interferiu, confirmando o meu direito, e, assim, fui alojado em um camarote, que anteriormente tinha sido ocupado pelo cozinheiro de 2ª, nos tempos em que navegava. O camarote onde fui instalado ficava no mesmo patamar 2008 JULHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47


do convés, media 3m x 2m, e continha uma pequena cama fixa no chão e na parede, um colchonete, um lençol e um cobertor, além de uma pequena pia. As paredes eram de madeira compensada com ripas intercaladas, pintadas na cor cinza desbotada e com várias frestas, onde se via a palha escura do compensado envelhecido. A porta não tinha fechadura interna nem maçaneta, era trancada por fora. Havia ainda no compartimento uma pequena escotilha envidraçada, com ferrolho para abrir e fechar, que na maré enchente dava vista para a Ilha do Guarujá e na vazante para o porto. O capitão Silva, que me conduziu ao local, disse que era proibido pôr a cabeça para fora da escotilha e que caso desobedecesse poderia ser transferido para o porão ou a escotilha seria soldada, ficando sem ventilação. O Capitão ainda me avisou que a hora do rancho era precedida de uma sirene, e que eu prestasse atenção ao 48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JULHO 2008

sinal nos horários do café da manhã, do almoço, do jantar e do chá, à noite. A seguir, a porta foi fechada e me preparei psicologicamente para o período de incomunicabilidade imposto e para o regime carcerário que teve início às 15 horas do dia 22 de julho de 1964. Passados alguns minutos escutei pequenas pancadas do lado esquerdo do cubículo. Ao encostar-me na parede consegui ouvir, por uma pequena fresta, uma voz meio sumida de alguém que se identificou como sargento Argeu, meu conhecido da Rádio Marconi, onde compareceu algumas vezes com outros companheiros, solicitando apoio para reivindicações da classe. Entendi, então, a razão da minha oitiva no IPM da Aeronáutica e previ, ao constatar a prisão do Sargento, outras conseqüências decorrentes daquelas conversas e encontros ocorridos na Rádio. Cauteloso, me identifiquei, notei a sua surpresa e, não querendo prolongar a conversa, combinamos nos falarmos, se possível, na hora do jantar. Mais ou menos às 17 horas, ouvi uma sirene estridente com o aviso para o jantar, quando então foi aberta a porta do meu camarote. Entrei em uma fila e avistei vários conhecidos, inclusive o sargento Argeu, o jornalista Nelson Gato, o compositor Geraldo Vandré e mais alguns sargentos da Aeronáutica cujos nomes não me recordo. Na fila, com os demais presos, apanhei uma bandeja, um prato onde despejaram uma mistura de feijão, batata e arroz, acompanhada de um pedaço de pão, uma banana e uma colher. De volta ao cubículo, sentei na borda da cama e examinei a comida, cujo cheiro era desagradável, estando muito pior o paladar. Apesar de com fome por não ter almoçado, não consegui engolir nada além de algumas poucas colheradas; comi a banana e o pão e resolvi jogar o restante ao mar, utilizando a escotilha. Ao levar de volta a bandeja, o prato e a colher, como não estava sendo observado pelos guardas da Polícia Marítima, resolvi ir até a cela vizinha para falar com o sargento Argeu, tendo este me advertido do risco de sermos castigados, me alertando para voltar ao meu alojamento e tentarmos nos falar apenas através da pequena fresta. Ao retornar à cela, bati na parede e chamei pelo Sargento, que de pronto atendeu. Pedi que expusesse a sua situação e relatasse o que sabia, quantos inquéritos estavam sendo conduzidos no navio, se eram dirigidos por militares ou civis


e qual o tratamento dado aos prisioneiros e seus parentes, bem como à visita de familiares e advogados dos presos. O sargento Argeu foi minucioso, relatou que existia Inquérito Policial Militar para todas as áreas da administração pública federal, com destaque para as Forças Armadas, sindicatos e contra os comunistas. Os inquéritos eram conduzidos por oficiais das três armas e contavam com a assistência de advogados recrutados das auditorias militares, do Banco do Brasil e da Caixa Econômica. Por enquanto, não havia notícia de espancamento, mas o tratamento dado aos que estavam no porão era terrível; pior que o espancamento era o alojamento, inundado até os tornozelos de água misturada com fezes e urina, além de ratazanas, piolhos, baratas e outros insetos nojentos. A maioria dos presos dos porões era constituída de trabalhadores, mais de uma centena de líderes sindicais, e marinheiros que vieram deslocados do Rio de Janeiro. Nas cabines do convés e na parte superior do navio estavam presos além dos 23 sargentos da Aeronáutica, dezenas de oficiais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. A visita era permitida aos domingos somente para mães, esposas e filhos, aos que não estavam incomunicáveis. Em desabafo final, o sargento Argeu relatou: “Tem um filho da puta de um coronel da Aeronáutica, que tem feito incursões noturnas em residências, tentando violar filhas e esposas de presos. Minha esposa sofreu vexames em uma visita às duas horas da madrugada, sob justificativa de diligência para colher provas de subversão, apreensão de armas e dinamite. Esse canalha teve a petulância de passar as mãos e apalpar a minha mulher, e não fosse ela gritar pelo meu sogro, que estava dormindo e acordou com os gritos, este patife por certo tentaria praticar o estupro. Este canalha, quando eu sair, se não me matarem, farei engolir os próprios testículos”. O Sargento continuou relatando fatos escabrosos acontecidos com familiares de presos, também desrespeitados e humilhados por oficiais militares, demonstrando a sua incontida revolta. Perguntado como era possível descer aos compartimentos do porão do navio onde se encontrava a maioria dos presos, informou que eu deveria me aproveitar da oportunidade em dia de visita aos presos ou quando da vinda do Auditor Militar – em uma das ocasiões que viesse fazer a correição e os presos subiriam ao convés –, para, na confusão, descer ao porão. Correria, entretanto, o risco de receber uma reprimenda ou até mesmo um castigo. As conversas com Argeu passaram a ser constantes e eu, certamente, dada a minha formação moral e estoicismo, pude trazer para o desesperado companheiro de prisão algum alívio espiritual e esperança para o futuro. Em um dos inumeráveis dias seguintes, veio a bordo o auditor militar Tinoco Barreto, no exercício de Corregedor se informar sobre um habeas corpus impetrado. Deixo assinalado com justiça e alta consideração o nome deste bravo juiz, que no cumprimento de suas funções e atitudes tomadas contra as arbitrariedades, acabou por despertar a

ira dos militares opressores, sendo afastado de suas funções e posteriormente aposentado compulsoriamente. Os dias transcorriam intermináveis, com as lamentações do sargento Argeu e as leituras da Bíblia, que se tornaram maçantes, mas, pior foram as noites de convívio com inúmeras baratas – cujo cheiro era repugnante –, com o que custei a me acostumar, tendo em muitas noites sido acordado com várias delas no rosto e no peito, causando nojo e vômito. Ultrapassado o tempo da incomunicabilidade, pude receber a visita de minha mãe, então com 68 anos, e de meus filhos, Marcus e Junior, com 8 e 13 anos. Minha mãe, durante a visita não parou de chorar, lamentando a situação e o ocorrido. Meus filhos, apesar de advertidos pelos policiais, juntaram-se a outros meninos e tentaram percorrer o convés, no que foram imediatamente advertidos e impedidos de locomoção. Com o objetivo de conhecer os porões do navio, apesar do desejo e vontade de permanecer na presença dos queridos entes, apressei a visita e, quando eles se foram, desci aos porões. Ao avistar os primeiros presos no calabouço denominado por eles de “O Casablanca”, me veio à memória os versos de Castro Alves no poema Navio Negreiro. Só que não se tratavam de escravos mas, de brasileiros trabalhadores. Alguns, como os líderes sindicais Manoel de Almeida, Argeu Anacleto e Waldemar Guerra, estavam barbarizados em um cárcere imundo, amontoados como porcos numa pocilga. A imundice era pior, porque os animais talvez não sintam o forte cheiro do fedor, mas os humanos sim; parte do xadrez estava coberta de fezes e urina que exalavam um odor que feria às narinas. Alguns dos encarcerados que conhecia vieram até as grades e choraram. Waldemar Guerra que eu conhecia mais de perto, companheiro do PTB, chorou e soluçou. Apertou minhas mãos com força, não pronunciou palavra e tornou a soluçar. Eu me afastei chorando, não conseguindo ânimo para percorrer os outros 2 xadrezes, voltando ao convés. Na visita, minha mãe havia trazido um bolo de nozes, que devorei quase todo, porque não era permitido pelos carcereiros do navio, levar para o xadrez comida ou frutas que as visitas traziam. Recusei o jantar e o chá. Não dormi pensando na minha família, no sofrimento de minha mãe e na desgraça que se abatia sobre os infelizes presos que se encontravam brutalizados nos porões do navio. Nessa noite, as baratas não conseguiram me perturbar com sua presença e mau cheiro. O odor da chafurda de fezes e urina do “Casablanca” continuava impregnando não só as narinas, mas a minha alma. Parte do relatado acima foi publicado em 1975, no semanário “Preto no Branco”, do Sindicato dos Jornalistas de Santos, e no Jornal do Brasil, pelo jornalista Fritz Utzeri, transcrito nas páginas 40/41, ed. 44, março de 2004, desta Revista. Em edições seguintes continuarei relatando outras barbaridades acontecidas no malfadado navio Raul Soares.

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Foto: Arquivo ABr

UMA “DOM QUIXOTE” Tiago Santos Salles Diretor

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professora e antropóloga Ruth Cardoso, nascida em Araraquara, São Paulo, transformou a ação social do país nos oito anos em que foi primeira-dama. Doutora em antropologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e pós-doutorada pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque, lecionou em universidades americanas e inglesas usando o saber e a experiência como instrumento para aplicar nas causas do combate à pobreza. Criou o “Comunidade Solidária”, projeto social ambicioso, e imprimiu estilo próprio – inovador e discreto – no exercício da missão de primeira-dama. Além deste, desenvolveu, ainda, outros programas sociais, como o “Alfabetização Solidária”, que chegou a alfabetizar mais de 2,5 milhões de jovens nos municípios mais pobres do país, o “Universidade Solidária”, que mobilizava estudantes e professores universitários para ações de desenvolvimento social, e ainda o “Capacitação Solidária”, que treinou mais de 100 mil jovens para o mercado de trabalho nas grandes regiões metropolitanas. A professora Ruth Cardoso colaborou na nossa publicação, tendo sido homenageada pela Confraria Dom Quixote com

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a outorga do troféu Dom Quixote de La Mancha, cujos princípios éticos, de moralidade, dignidade, pureza, coragem e luta em favor dos desassistidos e injustiçados se coadunam com o trabalho deixado e com suas lutas em favor dos desprotegidos. As mais significativas personalidades do país e do exterior fizeram demonstrações de grande carinho, alto respeito, admiração e homenagens, aliadas às saudades deixadas pela grande e benemérita cidadã. O conhecimento que tivemos com Dona Ruth foi muito ligeiro, entretanto ela deixou-nos um facho de luminosidade pela cultura, inteligência, humanismo, fidalguia e, sobretudo, delicadeza. Portava uma simplicidade invulgar, mas era um esplendor. Deixa muitas saudades entre a multidão que amparou e ajudou socialmente. Também a direção da revista Justiça & Cidadania e a Confraria Dom Quixote, da qual Dona Ruth Cardoso era estimada confreira, prestam saudosas homenagens e louvor a essa extraordinária mulher, a quem poderíamos chamar de uma “Dom Quixote”, pela similitude com as lutas exponenciais travadas pela figura carismática criada por Miguel de Cervantes de Saavedra.


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