Revista Justiça & Cidadania

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ISSN 1807-779X

Edição 106 - Maio de 2009

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EDIÇÃO 106 • maio de 2009 “O STF É MAIS IMPORTANTE DO QUE TODOS E CADA UM DE SEUS MINISTROS”

O Executivo não pode interferir no Judiciário

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Foto de capa: Lu Teixeira ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO DAVID SANTOS SALLES Diretor jurídico ERIkA BRANCO diretorA DE REDAÇÃO DIOGO TOMAZ DIAGRAMAÇÃO beatriz affonso giselle souza JornaliStas colaboradoras EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLI RIO DE JANEIRO – RJ CEP: 20020-906 TEL./FAX (21) 2240-0429

SUCURSAIS SÃO PAULO RAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765 / 13°ANDAR SÃO PAULO – SP CEP: 01311-200 TEL. (11) 3266-6611 PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO, 1038 / SL.1102 ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO CENTRO – Porto Alegre – RS CEP: 90010-272 TEL. (51) 3211-5344 BRASÍLIA Arnaldo gomes SCN, Q.1 – Bl. E / Sl. 715 EDIFÍCIO CENTRAL PARK BRASÍLIA – DF CEP: 70711-903 TEl. (61) 3327-1228/29 CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL. (61) 9674-7569

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As dimensões do direito contemporâneo luso-brasileiro e a crise mundial

CONSELHO EDITORIAL Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES Antonio Carlos Martins Soares Antônio souza prudente Arnaldo Esteves Lima arnaldo Lopes süssekind aurélio wander bastos Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso CESAR ASFOR ROCHA DALMO DE ABREU DALLARI darci norte rebelo denise frossard Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA Enrique ricardo lewandowski Eros Roberto Grau Fábio de salles meirelles fernando neves Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins Jerson Kelman Joaquim Alves Brito josé augusto delgado JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO José Eduardo carreira Alvim luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello Massami Uyeda MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes nEY PRADO Paulo Freitas Barata Sergio Cavalieri filho Siro Darlan Sylvio Capanema de Souza thiago ribas filho

Da súmula à súmula vinculante

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SUMÁRIO “os sonhos que Alimentam a vida”

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Harvard no Brasil

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Seminário Debate relações entre Brasil e Estados Unidos

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bernardo cabral: honra ao mérito

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PARA QUE O NATURAL NÃO FIQUE IMUTÁVEL

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MINISTRO CeSAR ASFOR ROCHA ELEITO PRESIDENTE DE CORTE INTERNACIONAL

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A Política das Cotas nas universidades públicas e o princípio da igualdade

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Reformas constitucionais urgentes e inadiáveis

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SEMINÁRIO Processo Judicial Tributário

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EDITORIAL

“os sonhos que Alimentam a vida”

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o último dia 28 de abril, na Livraria Argumento do Leblon, José Gregori autografou seu livro, “Os sonhos que alimentam a vida”, com memórias e sonhos de sua honrada, digna e proveitosa vida. Na sua obra, relembra fatos históricos dos quais foi personagem, lembrando figuras que evocam saudades, como Dona Ruth Cardoso, Dom Hélder Câmara, Marcio Moreira Alves, Mário Soares, Dalmo de Abreu Dallari, Almino Afonso, Hermano Alves, Fábio Comparato, Mario Covas, Fernando Gasparian, San Tiago Dantas, Franco Montoro, Ulysses Guimarães, Leonel Brizola, Renato Archer, Miguel Reale Júnior, Marcos Freire, Olavo Setúbal, Tancredo Neves, Severo Gomes, Vladimir Herzog, Paulo Freire, Rubens Paiva, Luís Carlos Prestes, Getúlio Vargas, Jânio Quadros, Juscelino Kubitschek, Henrique Teixeira Lott, Marcílio Marques Moreira e outras personalidades que fazem parte da história. José Gregori, ex-ministro da Justiça no governo Fernando Henrique, partícipe da política desde os tempos de estudante na Faculdade de Direito de São Paulo; companheiro de Franco Montoro no governo de São Paulo, de San Tiago Dantas e Marcílio Marques Moreira no Ministério da Fazenda, exerceu a Secretaria do Conselho Nacional de Defesa da Pessoa Humana. Foi o criador, quando Ministro da Justiça, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, tendo sido um dos mais estreitos colaboradores do Cardeal Paulo Arns na defesa dos presos e perseguidos da Ditadura Militar. Seu livro, é um retrato por inteiro de um cidadão que dedicou sua vida, desde a juventude, à defesa dos postulados da democracia, da cidadania e dos direitos humanos. Parte da vida de José Gregori, relatada com seus sonhos e utopias, são substanciosos exemplos rememorados. Exemplos vividos por quem se dedicou, com honra e dignidade, aos vários e importantes cargos que exerceu na vida pública. As boas lembranças que traz de seus diletos amigos, ditosos companheiros e de sua querida família, em especial sua 4 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2009

extremada mãe, Dona Esther, suas filhas e sua esposa Maria Helena — valorosa defensora dos perseguidos da Ditadura Militar, inclusive sofrendo agruras, levada presa ao DOPS, por ordem do façanheiro e destrambelhado Secretário de Segurança Pública Coronel Erasmo Dias. A rememoração do fantástico Padre Palácios, figura extraordinária de religioso, orador carismático, dotado de um misticismo que impregnava seus ouvintes e assistentes com sua voz grave e incisiva, chama-nos à lembrança de suas pregações humanistas e exemplos de religiosidade infinita. As missas, as reuniões e as confabulações que promovia na sua igreja eram impressionantes pelos resultados. Muitas e muitas vezes eu assisti, depois de uma veemente pregação do Padre Palácios, a várias pessoas conhecidas — algumas delas, amigos que eu sabia ateus, comunistas e trotskistas empedernidos, e outros evangélicos — se postarem em fila, verdadeiramente convictos da fé, para receberem o sacramento da comunhão. Conheci Padre Palácios através do amigo e companheiro de função na Presidência da República, Roberto Alves, que foi secretário particular do Presidente Getúlio Vargas. A amizade e convivência com Palácios foi de extrema importância nesse momento da minha vida, proporcionando-me momentos inesquecíveis. Passava por um período difícil, após os dissabores e humilhações com as várias e impertinentes prisões em São Paulo e no Rio de Janeiro, culminando no navio presídio Raul Soares, onde curti um período de seis meses, parte dele em prisão incomunicável. Ganhando a liberdade graças ao habeas corpus impetrado pelo amigo e professor Canuto Mendes de Almeida, viajei para o Uruguai, onde compartilhei de boa convivência com o presidente João Goulart, Darcy Ribeiro e outros companheiros que haviam ali se exilado. Depois de curto período no Uruguai, sem ter o que fazer, decidi voltar, completamente amargurado, frustrado, acabrunhado e descrente. As reuniões às quais compareci na sacristia (estava mais


Foto: Sandra Fado

para adega) da Igreja de São Dimas eram realmente fantásticas pelos participantes e pelos diálogos travados que se misturavam numa balbúrdia impressionante. Depois de horas de discussões, as mais variadas e controvertidas, Padre Palácios chamava para a missa, que ele dizia ser uma reunião de fé. Suas palestras e orações tinham um misticismo que transcendia à realidade num paradoxismo que misturava os acontecimentos vividos por cada um dos presentes e encaminhava, como ele afirmava, para um plano de vida espiritual mais elevado. Depois de sua preleção, que envolvia um espiritualismo transbordante de fé, era comum Palácios chamar um dos presentes para que desse um testemunho. O que ocorria, então, era indescritível e inimaginável. Ora era um comunista ou trotskista fanático, como o ex-deputado Taibo Cadorniga, seguidor de Lênin, Engel e Marx, a falar de fé e espiritualismo; ora um ateu, como o ex-deputado Wilson Rahal, falando sobre o transcendentalismo, o misticismo e a fé na condução da humanidade (estes dois meus companheiros nos xadrezes do DOPS-SP, em abril e maio de 1964); ou então os boêmios como o empresário de artes Oswaldo Palma e o industrial Alexandre Siciliano soluçando e dizendo dos afastamentos e reencontros com Deus; e assim por diante, como o ex-seminarista Roberto Alves, último secretário do Presidente Getúlio Vargas, lamentando a apostasia e a troca da batina pela política; evangélicos falando da vida de santos apóstolos, e assim tantos outros como eu, afastado da igreja e indiferente à religiosidade, a falar do espiritualismo e do desdobramento da fé. Padre Palácios era um dos dirigentes do movimento da igreja, Cursilho da Cristandade, e um tenaz incentivador espiritual na tarefa de tentar levar seus convivas ao Cursilho. Algumas vezes, porém, encontrava reação ao convite e à participação, como no meu caso. Os Cursilhos da Cristandade tiveram, no período posterior à derrubada do governo democrático do Presidente João Goulart, um grande surto de participantes em São Paulo, tendo, com a direção espiritual do Padre Palácios — um denodado incentivador e grande mensageiro da fé cristã —, alcançado um movimento espiritual extraordinário, com reuniões quinzenais que congregavam em média 50 participantes; além dos palestrantes, 2 clérigos, 6 leigos e um grupo de 7 leigos encarregados do preparo da alimentação. Os Cursilhos se realizavam numa grande residência na zona sul da capital, contendo boa acomodação para cerca de 70 pessoas e tinham a duração de 3 dias. Entrava-se na casa às 19h30min de quinta-feira e das 8h até às 20h de sextas, sábados e domingos realizavam-se palestras chamadas de “rolhos”. Várias vezes Padre Palácios insistiu para que eu aceitasse participar de um Cursilho, tendo seguidamente recusado. Certa ocasião, Palácios, alegando que estavam faltando pessoas para ajudar na cozinha, fez uma convocação para que eu participasse, alegando saber dos meus conhecimentos e pendores culinários. Não tive como recusar, e após participar da primeira cozinha, fui logo conduzido a chefe, ou reitor da cozinha, como eram chamados os encarregados da alimentação nos Cursilhos. Exerci essa função em três

Orpheu Santos Salles, editor

oportunidades, esclarecendo que as funções da cozinha eram exclusivas e completamente distintas das reuniões. Ao comparecer à quarta convocação para a cozinha, fui surpreendido com um estratagema preparado pelo Padre Palácios: ao me apresentar para função, fui informado que fora indicado para fazer o Cursilho. A reação foi de ir embora, aborrecido e não aceitando a substituição, no que fui dissuadido pelos amigos e companheiros Roberto Alves, Oswaldo Palma, Alexandre Siciliano e outros. Ressabiado e contrariado, fui conduzido a um quarto, onde tive como companheiros Oswaldo Palma, o jovem Paulo Silveira e o banqueiro Amador Aguiar, que havia conhecido em Marília, durante uma visita do Presidente Getúlio Vargas às plantações de algodão e seda na fazenda do fazendeiro Iassutaro Matsubara, a pedido e instâncias do político Arquimedes Manhães e de Zezé de Almeida, diretor da Casa Bancária Almeida Irmãos. Naquela ocasião, Amador gerenciava ou era contador da Casa Bancária Almeida Irmãos. Mais tarde, tornei a vê-lo em encontros políticos durante o governo do Dr. Ademar de Barros, na Prefeitura de São Paulo, onde Amador Aguiar foi Secretário de Finanças, por indicação do PTB e de João Goulart, então Vice-presidente de Juscelino Kubitschek, e ainda também, por ocasião da composição eleitoral ao Governo do Estado, quando, igualmente por indicação do PTB, foi cogitado para ser o candidato a Vice-Governador, o que recusou, indicando seu companheiro do Bradesco, Laudo Natel, que se elegeu e acabou governador, face a cassação de Ademar de Barros pelos militares. Depois de acomodados, foi servido um café e voltamos ao quarto. O jovem estudante Paulo Silveira disse que foi induzido ao Cursilho por sua mãe, muito religiosa e ligada à Ordem das Carmelitas. O Palma, como eu, foi praticamente forçado e inscrito pelo Padre Palácios; trocamos algumas palavras. Já Amador Aguiar, taciturno como era, pouco falou, demonstrando, talvez pelo mutismo, contrariedade por 2009 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5


ter sido induzido a participar do Cursilho. Deitei, as luzes foram desligadas e logo tanto Palma como o jovem ressonavam. Amador Aguiar remexia-se na cama e deduzi que também, como eu, não conseguia dormir. Por horas meu pensamento divagou sobre vários assuntos e questões, fixando-me afinal sobre que resultado eu teria daquela clausura voluntária a que fora submetido, tendo em vista a convicção em que me achava de não aceitar participar de qualquer movimento religioso ou espiritual. E assim adormeci. Os acontecimentos que ocorreram durante os 3 dias do Cursilho demandam, pelo ineditismo das palestras e resultados espirituais que produziram, que sejam tratados em outra ocasião e oportunidade, não agora, que é vez de falar do livro de José Gregori. A apresentação do livro de José Gregori, devido a suas lembranças de personalidades do passado, em especial à rememoração de uma figura extraordinária que se tornou

importante na minha vida espiritual, a do religioso Padre Palácios, descrito nas páginas 138/139, fez com que eu divagasse com passagens vividas intensamente nos tempos percorridos pelo autor do magnífico livro “Os Sonhos que Alimentam a Vida”. As memórias do ex-ministro da Justiça do governo Fernando Henrique e atual Secretário Especial de Direitos Humanos da prefeitura de São Paulo recordam, além de sua história e carreira política, sua atuação nos tempos da repressão e o contato com personalidades da época. É recomendável a leitura. Como amostra do seu conteúdo, transcrevo a seguir um de seus impressionantes capítulos.

Orpheu Santos Salles Editor

ECUMENISMO FELINIANO

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lém de Ibiúna, vivemos até momentos de lirismo, em pleno período Médici, quando como na Igreja de São Dimas, na Vila Nova Conceição, houve uma benção nupcial para o casal Cláudio e Radha Abramo; ele, diretor de redação da “Folha de São Paulo”; e ela, respeitada crítica de arte. O oficiante foi um padre espanhol de grande carisma. Bom orador. Agregou em torno de si um rebanho insólito, a partir do sucesso de um movimento que propiciou um surto místico, intenso e passageiro em São Paulo, os Cursilhos de Cristandade. Originados da Espanha franquista, esses Cursilhos eram o que havia de mais conservador na Igreja Católica da época; o antípoda do que pregaria mais tarde a Teologia da Libertação. Mas Padre Palácios, era esse seu nome, conseguia a proeza de juntar um grupo considerado de boêmios, intelectuais, artistas, agnósticos, anti-clericais e ateus de carteirinha que, envolvidos em sua imensa humanidade, compareciam à igreja, inclusive na benção a Radha e Cláudio. Hoje, nesses tempos de missas em estilo gospel e confessionários eletrônicos, nada mais causa espanto. Mas, naquela época, de radicais choques ideológicos, os encontros do Padre Palácios eram, no mínimo, diferentes. Não se pode dizer que as cerimônias celebradas por Padre Palácios fossem ecumênicas; pouco se usava a expressão. Era uma miscelânea. Mas talvez houvesse mais sinceridade e autenticidade do que naquilo que agora se chama ecumenismo. Era algo em estado puro, espontâneo, sem nenhuma combinação formal. Minha mãe, dona Esther, afeiçoou-se ao Padre Palácios, e, quando doente, recebeu dele toda a assistência espiritual, inclusive quando seguiu para o hospital, onde, dias depois, partiu para confirmar suas crenças. Essa última missa foi um instante comovedor, mas com um toque feliniano. Padre Palácios trouxe três coroinhas, figuras boêmias, carimbadas em São Paulo: Roberto Alves, que fora 6 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2009

secretário particular de Getúlio Vargas no seu último governo e que esteve preso na chamada República do Galeão, tentativa de revolta de oficiais da Aeronáutica, logo depois do suicídio de Vargas; Oswaldo Palma, colecionador de arte e membro ativo do Clube dos Artistas, e Orpheu Salles, político popular do PTB. Era sábado. Os quatro, inclusive o padre, vinham de uma alegre feijoada. Por isso mesmo, transmitiram uma emoção à missa que misturou fé, misticismo, pranto convulso e um certo nível etílico. Tudo isso só aumentou a infinita tristeza da despedida dos sete filhos a dona Esther, nossa padroeira. Só os santos, os poetas e os loucos são capazes de descrever a dor da interrupção do convívio do amor filial.


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Harvard no Brasil

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Foto:istockphoto.com

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Universidade de Harvard, mais antiga instituição de ensino dos EUA, com 373 anos de existência e um legado de mais 40 prêmios Nobel, foi novamente eleita em 2008 como melhor universidade do mundo pelo mais prestigiado ranking internacional de ensino superior “The Times Higher Education Supplement”. Nos últimos anos, os laços entre esse centro de excelência mundial e a comunidade jurídica brasileira tornaram-se mais estreitos. Em 2007, o advogado carioca Max Fontes, então com 32 anos, foi eleito presidente da Harvard Law School Association of Brazil (HLSAB), entidade com 120 anos de existência nos EUA e que congrega mais de 35.000 exalunos e professores de Harvard ao redor do mundo. Com o compromisso de representar a instituição no País e facilitar o acesso de brasileiros a esse centro de excelência acadêmica, o jovem advogado tomou posse em cerimônia que reuniu o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, inúmeras autoridades do meio jurídico nacional, além de representantes dos maiores escritórios de advocacia do País. Desde então a entidade tem organizado eventos de grande repercussão, que contaram com a presença de outros ministros do STF (v.g. Carlos Mário Velloso, Ellen Gracie, Cezar Peluso), membros de Tribunais Superiores (v.g. Edson Vidigal, Aldir Passarinho), Presidentes de Tribunais de Justiça, professores americanos (v.g. David Kennedy, Gail Hupper, William Hochul), Premier da Tailândia, dentre tantos outros. Atualmente, além de professor consultor da FGV, Max advoga na área de Direito Empresarial. Sua trajetória no mercado jurídico retrata bem o perfil deste advogado e a paixão pela profissão que escolheu. Cresceu cercado de advogados — seus pais são ex-procuradores, sua irmã é magistrada e seu irmão gêmeo é advogado, também formado em Harvard (único caso

de gêmeos da Harvard Law School). Graduou-se pela UFRJ em 1996 e obteve o seu mestrado, com grau máximo, na renomada Harvard Law School no ano 2000. Em seguida, trabalhou no escritório americano Arnold & Porter em Washington, DC, referência mundial em Direito Empresarial e Regulatório. Em 2001, retornou ao Brasil, a convite da FGV, para coordenar a criação de sua nova Escola de Direito no Rio de Janeiro (FGV DIREITO RIO), que obteve, tanto da OAB quanto do MEC, a melhor avaliação na história do País para processo de autorização de uma instituição de ensino superior. Nesse mês, Max foi responsável, juntamente com o seu irmão Marcus, por trazer pela primeira vez ao Brasil um Ministro da Suprema Corte Americana para participar de um Seminário jurídico. Fruto de uma parceria com a Escola de Direito do Rio de Janeiro da FGV, o evento discutiu o papel das instituições jurídicas no desenvolvimento econômico. Durante o evento, Max concedeu a seguinte entrevista à Revista Justiça & Cidadania: Revista Justiça e Cidadania – O que é a Harvard Law School Association (HLSA)? Como funciona a instituição e quais são os seu objetivos? Max Fontes – A Harvard Law School Association é uma entidade que existe há 120 anos nos Estados Unidos e que congrega mais de 35.000 ex-alunos e professores da Faculdade de Direito de Harvard ao redor do mundo. Trata-se de uma organização supranacional que tem por objetivo criar um canal de diálogo permanente entre as instituições jurídicas de diversas jurisdições, desenvolver o conhecimento científico, ampliar parcerias institucionais, estimular intercâmbios e facilitar o acesso à informação para aqueles que desejam estudar em Harvard. JC – Quais são os principais planos da entidade? MF – Um dos objetivos centrais é ampliar cada vez mais


Foto: Lu Teixeira

Max Fontes, Presidente da HLSAB

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Fotos: Ana Colla

Max Fontes, Pres. da HLSAB; Elena Kagan, Procuradora-Geral dos EUA; e Marcus Fontes, Diretor da HLSAB, no almoço em homenagem ao Presidente Barack Obama em Washington

Ministro Gilmar Mendes, Presidente do STF, na posse da nova Diretoria da HLSAB

Ex-alunos de Harvard no Brasil: Corinto Falcão, Joaquim Falcão, Francisco Dornelles e Sérgio Chermont de Brito 10 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2009

nossa atuação no País, através da aproximação de Harvard com centros de pesquisas brasileiros e da promoção de parcerias institucionais. Além disso, pretendemos, com o talentoso grupo que integra nossa Diretoria e Conselho, estimular a realização de Seminários internacionais e intensificar nossas publicações. Nos últimos anos, por exemplo, nossa instituição editou obras importantes, como foi feito com o lançamento do livro “Direito do Comércio Internacional”. Através dessa publicação pioneira, sob a coordenação do nosso antigo presidente e membro do Board, Dr. Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, a HLSAB conseguiu franquear o acesso da comunidade jurídica brasileira às teses mais importantes sobre o processo de integração de mercados. JC – Harvard é a universidade com mais recursos financeiros no mundo. Nos três últimos anos arrecadou U$ 300 milhões em doações. Como essa receita é aplicada? MF – Essa enorme fonte de recursos é aplicada, principalmente, na qualificação do ensino e no corpo docente da própria Universidade. Harvard é uma instituição de muitos predicados e de inúmeros superlativos. Para que a infraestrutura seja constantemente renovada é preciso muito investimento. Por exemplo, a Biblioteca da Faculdade de Direito é a maior do mundo, com cerca de 200 anos e mais de 2 milhões de volumes. Somente a reforma parcial de suas instalações custou mais de U$ 35 milhões em 1997, patamar extremamente alto para qualquer instituição de ensino. O custo de captar talentos é também muito elevado. Nos últimos 5 anos, sob a liderança da ex-diretora Elena Kagan (atual Procuradora-Geral dos EUA), a HLS instituiu uma nova estrutura curricular, introduziu inovações tecnológicas no ensino jurídico e contratou dezenas de acadêmicos para diminuir radicalmente o percentual de alunos x professor. Toda essa despesa em capital humano e tecnológico exigiu um investimento altíssimo. Daí a importância dessas doações. JC – O Brasil é um mercado em potencial? Qual o interesse de Harvard no País? MF – Embora a relação do Brasil com Harvard seja antiga, ela ainda é pouco intensa. Há fatos interessantes que ocorreram no passado, como a visita de D. Pedro II à Harvard em 1876 e de seu encontro com o famoso poeta Oliver Wendell Holmes; da entrega do título de professor honoris causa ao arquiteto Lucio Costa em 1960, dentre outros, que revelam períodos de distanciamento e de aproximação pontual com o Brasil. Hoje, a tendência é que essa parceria se amplie cada vez mais, em razão da maior importância do País para o mundo, não somente sob o ponto de vista econômico, mas, sobretudo em relação aos modelos institucionais que adotamos. No campo jurídico, um fato relevante que demonstra a importância do País para a universidade é o recente programa de intercâmbio que foi estabelecido entre Harvard e as Escolas de Direito da FGV no Rio de Janeiro e em São Paulo. A FGV tem uma tradição de inovação e excelência e suas Escolas de


JC – Como é a vida em Harvard? Qual a experiência acadêmica mais marcante durante o período em que estudou lá? MF – A comunidade acadêmica em Harvard é vibrante e global. A Faculdade de Direito reúne alunos e professores de mais de 70 países, com linhas de pesquisa e centros de estudos em todo o mundo. É impossível circular pelo campus sem notar as inúmeras atividades que são desenvolvidas diariamente. Em termos acadêmicos, uma experiência marcante para mim foi ter sido aluno do Prof. Laurence Tribe, o constitucionalista americano que mais defendeu casos na Suprema Corte Americana. Por ter formação matemática, Tribe busca desenvolver nos alunos um raciocínio diferenciado, focado em dados analíticos e sistêmicos, que é incomum no meio jurídico, mas extremamente relevante para a prática profissional. Outro curso interessante que tive foi com os Profs. Roberto Mangabeira Unger e Jeffrey Sachs intitulado “One way or Many”, em que esses dois professores, que possuem pensamentos econômicos completamente divergentes, debatiam juntamente com os estudantes os argumentos teóricos e as alternativas institucionais para os países em desenvolvimento. Era a teoria e prática da dialética em sala de aula, revelando uma metodologia envolvente e enriquecedora. JC – Na sua opinião, qual é o balanço do Seminário sobre Direito e Desenvolvimento entre Brasil e EUA? MF – Minha avaliação é extremamente positiva. Acredito que o objetivo central do Seminário foi plenamente satisfeito, uma vez que a HLSAB e a FGV DIREITO RIO conseguiram sensibilizar a comunidade jurídica da importância dessa iniciativa: da necessidade de uma troca de experiências institucionais, que não se restringe somente a esse canal de diálogo que iniciamos entre o Judiciário Brasileiro e a Suprema Corte americana, mas que inclui também uma aproximação entre os diversos órgãos que formam o “sistema de justiça” no Brasil e nos EUA, ou seja, o Judiciário, o MP, a Advocacia, o Ministério da Justiça, dentre outros. Além de promover e ampliar essa integração institucional, conseguimos também estruturar o Seminário de uma forma multidisciplinar e com um conteúdo programático abrangente. Através da análise e discussão de questões como previsibilidade, segurança jurídica e estabilidade normativa sob diversos ângulos, pudemos refletir conjuntamente sobre o papel das instituições jurídicas no desenvolvimento dos dois países, especialmente num momento delicado que enfrentamos, diante da grave crise econômica que afeta o mundo inteiro. Geralmente a agenda entre Brasil e Estados Unidos restringe-se ao Executivo e, às vezes, ao Legislativo, mas nunca inclui o Poder Judiciário. Ampliar essa agenda é um projeto comum e um compromisso de nossa Associação e da FGV.

Foto:istockphoto.com

Direito são dirigidas atualmente por ex-alunos da HLS (Prof. Joaquim Falcão, LL.M.’68 e Prof. Ary Oswaldo Mattos Filho, LL.M./ITP ’68). Esse convênio formal foi firmado com apenas 5 universidades ao redor do mundo e o Brasil foi um dos escolhidos. Uma conquista para a FGV e também para o País!

Alguns ex-alunos da Harvard Law School: No Mundo: Barack Obama (Presidente dos EUA) Michelle Obama (Primeira-Dama dos EUA) Ma Ying-jeou (Presidente de Taiwan) Shankar Dayal Sharma (Presidente da Índia) Mary Robinson (Presidente da Irlanda) 6 Ministros da atual composição da Suprema Corte dos EUA Elena Kagan (Proc. Geral de Justiça dos EUA) Kenneth Chenault (CEO da American Express) Ronald Dworkin (constitucionalista) Laurence Tribe (constitucionalista) No Brasil: Alexandre Vidal Porto Altamiro Boscoli Antônio Carlos Rodrigues do Amaral Ary Oswaldo Mattos Filho Carlos Mário Velloso (membro honorário) Carlos Portugal Gouvêa Corinto Falcão Daniel Facó Daniel Goldberg Daniel Vargas Diego Faleck Francisco Dornelles Francisco Müssnich Gabriel Lacerda Gustavo Miguez de Mello Joaquim Falcão Luciana Cossermelli Tornovsky Luiz Müssnich Marcus Fontes Max Fontes Roberto Mangabeira Unger Ronaldo Lemos Sérgio Chermont de Brito 2009 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11


Foto: Ana Colla

Max Fontes e a Ministra Ellen Gracie, do STF

JC – Quais são as vantagens dessa aproximação e dessa atuação conjunta entre as diferentes instituições? MF – As vantagens são inúmeras. Muitos acreditam que, em momentos de crise, a solução dos problemas está na capacidade de se obter mais recursos financeiros. Contudo, essa é uma solução incompleta. Isso porque, ao investirmos mais dinheiro em contratações, equipamentos e infraestrutura, podemos estar fazendo mais da mesma coisa. E o que é pior, podemos estar caminhando na direção errada. Sabemos, por exemplo, que, no caso do Judiciário, a “demanda” por justiça é e será maior que a capacidade estrutural do sistema em ofertála, pelo menos através das práticas tradicionais que assistimos. Por isso, o aumento do número de juízes e a construção de mais tribunais poderão minimizar a situação atual e ampliar o acesso às cortes — o que é altamente positivo — mas, a longo prazo, poderão até criar involuntariamente um paradoxo, ou seja, estimular um maior grau de litigiosidade social, como ocorreu com os Juizados Especiais que estão sobrecarregados de ações atualmente. Talvez, parte da solução esteja num pensamento-chave: fazer mais, com os mesmos recursos. Para tanto, precisamos reimaginar nossos papéis e nossas instituições. Investir em novos métodos e conceitos. Daí a vantagem do intercâmbio de experiências e da necessidade do diálogo fecundo com outros países. O Brasil pode adotar modelos e experiências de outras jurisdições, dando verdadeiros saltos de qualidade, sem, contudo, incorrer em desperdício de tempo e recursos, típico de todo e qualquer processo de evolução institucional. JC – Esse intercâmbio pode influenciar o Direito Brasileiro? MF – Certamente. Percebemos hoje uma convergência e integração cada vez maiores do Direito Brasileiro com o norte-americano. Nos últimos anos, o Brasil vem importando uma série de institutos que têm origem no Common Law. A súmula vinculante é um claro exemplo nesse sentido. A ideia da decisão de um Tribunal Superior vincular as demais decisões das cortes inferiores vem do constitucionalismo americano, que é pautado na vinculação aos precedentes 12 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2009

jurisprudenciais. Essa inovação representa um grande avanço, porque, além de conferir maior previsibilidade, racionaliza e maximiza o trabalho da Justiça, afastando do sistema litigantes que se utilizam da morosidade da estrutura jurisdicional como estratégia de atuação. Existem igualmente outros institutos do sistema americano que agregam maior legitimidade à jurisdição constitucional como, por exemplo, o amicus curiae que permite às entidades privadas (v.g. federações de empresas, ONGs etc.) participar do debate constitucional em assuntos que digam respeito aos seus respectivos setores. Assistimos o uso desses instrumentos em casos que discutiram grandes temas nacionais, como pesquisas com células-tronco embrionárias, sistema de cotas, fetos anencefálicos e tantos outros. Outro exemplo é a repercussão geral, uma espécie de filtragem institucional adotada recentemente pelo STF, exigindo que a questão jurídica deva transcender o direito subjetivo das partes para chegar à mais alta instância judiciária do País. Essa é uma transformação silenciosa, porém radical, que teve inspiração na cultura jurídica dos EUA. JC – Em que medida essa iniciativa pode ajudar o desenvolvimento do Brasil? MF – Vivemos atualmente uma enorme crise econômica global, que vem consumindo trilhões de dólares nos últimos meses. Alguns economistas afirmam que a diferença entre a crise atual e aquela de 80 anos atrás é que hoje existem países emergentes que são robustos e estão dando sustentação ao crescimento mundial, mesmo diante da recessão americana e da instabilidade financeira de alguns países europeus. Hoje, o que se verifica é que não existe um consenso, nem mesmo entre os maiores especialistas do mundo, sobre a forma precisa que os países conseguirão reerguer seus mercados internos. A única certeza que se tem até o momento é que grande parte da tensão macroeconômica que vivemos se deu em virtude da completa ausência de regulação do mercado de crédito imobiliário nos EUA. Analisando esse fato econômico sob a ótica jurídica, a conclusão que se chega é a de que a economia não se baseia somente em mercados e ações. Um capitalismo bem sucedido requer muito mais. Depende, sobretudo, de um Estado de Direito realmente eficaz. Exige não somente um sistema normativo estável, com regras claras e precisas, mas, principalmente, um sistema institucional sólido, em que as estruturas de poder regulatório e todos os elementos que compõe o “sistema de justiça” funcionem de forma harmônica e sintonizados com os demais Poderes, Executivo e Legislativo. Por isso, a iniciativa desse Seminário em parceria com a FGV é tão relevante. Serve para que o Judiciário e os demais operadores do Direito reflitam sobre como as instituições jurídicas podem contribuir para minimizar os efeitos negativos desse caos econômico, bem como para retomar o processo de desenvolvimento. A missão da Associação de Harvard é exatamente essa: não deixar que um déficit de capital, de bens ou de pessoas se torne um déficit de ideias e de alternativas para o Brasil.


Fotos: Ana Colla

Ministro Cezar Peluso, Vice-Presidente do STF; Antonin Scalia, Ministro da Suprema Corte dos EUA; e Max Fontes, Presidente da HLSAB

Seminário Debate relações entre Brasil e Estados Unidos evento reuniu mais de 800 pessoas no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro para receber a primeira visita acadêmica de um Ministro da Suprema Corte Americana ao Brasil

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o dia 15 de maio, a Harvard Law School Association of Brazil (HLSAB) e a Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas realizaram o “Seminário Internacional Direito e Desenvolvimento entre Brasil e EUA”, no auditório da EMERJ. As palestras começaram pela manhã e terminaram com as palavras do convidado de honra, Ministro da Suprema Corte Americana, Antonin Scalia. O Seminário trouxe pela primeira vez ao Brasil um ministro da mais alta Corte dos EUA para participar de um evento jurídico. A iniciativa partiu do Presidente e do Diretor da HLSAB, advogados e irmãos gêmeos Max e Marcus Fontes, que enviaram o convite em janeiro passado após participarem dos eventos de posse do Presidente Barack Obama, em Washington. A parceria uniu a HLSAB e a FGV em busca de um objetivo comum: iniciar uma aproximação intensa entre o Poder Judiciário do Brasil e dos EUA. A abertura do evento foi realizada pelo Presidente da Associação da HLSAB, Max Fontes, seguido pelo Presidente em exercício do TJ/RJ, Antônio Duarte, pelo Diretor da EMERJ, Manoel Alberto e pelo Prof. Joaquim Falcão, Diretor da FGV DIREITO RIO. Segundo Max, a crise mundial financeira torna fundamental a troca de conhecimentos e de experiências jurídicas entre os dois países.

Constitucionalização de todos os ramos do Direito O primeiro palestrante foi o Ministro Carlos Velloso, membro honorário de Harvard, que há 10 anos participa de eventos organizados pela instituição. Ele abordou o tema da constitucionalização do Direito no estágio atual do desenvolvimento econômico. Segundo o ex-ministro do STF, o constitucionalismo historicamente se desenvolveu por etapas e seu início é marcado pelas primeiras Declarações de Direito, com a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789). A segunda etapa, explicou, é marcada pela afirmação de que a Constituição tem eficácia normativa, e a terceira, por sua vez, mostra a necessidade das regras e princípios constitucionais serem protegidos nas dimensões público e privada. Por fim, afirmou que o Brasil chegou à quarta e última etapa que acontece com a constitucionalização de todos os ramos do Direito. O Prof. Oscar Vilhena, Coordenador do Programa de Mestrado da FGV DIREITO (SP), lembrou que uma Constituição é progressista por natureza. Para os dois palestrantes, a Carta de 1988 representou um marco histórico e uma tentativa de democratizar e desenvolver o País, social e economicamente. Vilhena registrou que a Constituição Brasileira reflete 2009 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13


O papel do Judiciário no momento atual A transferência de poder político do Executivo e do Legislativo para o Judiciário é um fato. “Quase tudo no Brasil é judicializado. Há uma transferência da Política para o Direito, ou seja, uma constitucionalização”, afirmou o professor Luiz Roberto Barroso. A justificativa para tamanha Judicialização, explicou, decorre do próprio modelo constitucional brasileiro. Tanto as questões mais importantes quanto as menos importantes são tratadas na Constituição. Barroso esclareceu, no entanto, que, ao contrário da “Judicialização da Política”, o “Ativismo Judicial” não é um fato, mas sim uma “atitude”. Segundo o palestrante, o Ativismo pode manifestar-se de diversas formas, porém, normalmente ocorre quando há um déficit de atuação do Legislativo e Executivo. Atender às demandas da sociedade é a principal vantagem do Ativismo Judicial, mas, por outro lado, esta atitude revela problemas nos demais Poderes. O constitucionalista foi enfático ao concluir que enquanto o Judiciário se expande, o Legislativo encolhe. Para Barroso, até o presente momento, tanto a Judicialização quanto o Ativismo Judicial serviram bem ao Brasil, porém, ainda há incertezas quanto à contínua adoção desse modelo. Barroso afirmou que um dos exemplos mais importantes é a Judicialização na saúde que, segundo ele, ajudou a promover a democracia no País. Um dos riscos da Judicialização, segundo o constitucio­ nalista, é a possibilidade de politização do Judiciário. Apesar de certa intenção política, explicou, o Direito age conforme uma vontade política já existente, presente na Constituição.

Fotos: Ana Colla

uma sociedade complexa. “A nossa Magna Carta é baseada na desigualdade social e essa desigualdade é persistente”, disse. O membro da FGV apontou falhas no sistema constitucional brasileiro que culminam nas cobranças feitas atualmente ao Poder Judiciário. “Inúmeras promessas feitas pelos constituintes originários não conseguem ser concretizadas pelo sistema político vigente. Além disso, aceitamos um multipartidarismo fragmentário e um sistema eleitoral originário da ditadura”, enfatizou Vilhena. O professor criticou também a sobrecarga de casos que chegam ao STF. Lembrou que o STF concentra três funções jurisdicionais: o de Corte Constitucional, o de Corte de Cassação e o de Foro Especializado. Esse excesso de competência causa um congestionamento na mais alta instância judiciária do País. O palestrante ressaltou que 95% das decisões do STF são monocráticas, ou seja, não são decisões do Supremo como um todo, enquanto instituição, mas sim de cada membro individualmente considerado. Para Vilhena, a forma como as questões são deliberadas deveria ser revisada. “O Supremo deve concentrar-se nas questões constitucionais. Seria muito interessante se houvesse audiências públicas mais longas e uma nova forma de deliberação, para que o STF dê conta da enorme responsabilidade que foi jogada em suas costas”, encerrou Vilhena.

Desembargadores Murta Ribeiro, Manoel Alberto, Antonio Duarte e Luis Felipe recebendo os palestrantes do Seminário no TJ/RJ

Ministro Scalia e os Diretores da HLSAB, Marcus Fontes e Luis Müssnich

O membro honorário da HLSAB, Ministro Carlos Mario Velloso e o Diretor da EMERJ, Des. Manoel Alberto

Prof. Oscar Vilhena, Coordenador do Mestrado da FGV DIREITO (SP) 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2009


Ao finalizar, o professor fez uma analogia entre o Poder Judiciário e a figura do equilibrista para alertar que até aqui o Ativismo Judicial aprofundou a democracia, mas é preciso cautela para que o Judiciário não se exceda no futuro. “Estamos sempre numa corda bamba, mas o equilibrista deve sempre saber se está se equilibrando e não voando. Como tudo é Judicializado, o juiz precisa ter humildade para saber se, embora podendo, deve avaliar certas questões”, encerrou Barroso.

O Diretor da FGV DIREITO RIO, Prof. Joaquim Falcão e o Ministro Antonin Scalia

Des. Antonio Duarte, Ministro Cezar Peluso e o Ministro Scalia

Prof. Luis Roberto Barroso e o Prof. Joaquim Falcão

Democracia: uma tensão contínua entre os Poderes Há dilema jurídico presente tanto no Brasil quanto nos EUA: se o juiz deve assumir uma postura “consequencialista”, “interpretativista”, ou seja, indo além do texto constitucional, modernizando-o, ou por outro lado, restringir-se à letra da norma, adotando a visão “legalista”ou “textualista” (nomenclatura utilizada nos Estados Unidos), que se refere à aplicação fiel da Constituição e das leis. Para exemplificar a relação entre os dois países, o Diretor da FVG DIREITO RIO e Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, Prof. Joaquim Falcão, mencionou dois fatos, um no Brasil e outro nos Estados Unidos, que têm em comum esse dilema sobre a correta postura que deve ser adotada pelos magistrados. Nos EUA, registrou o Professor, o Ministro da Suprema Corte Americana, David Souter, acabou de renunciar e o Presidente Barack Obama disse que gostaria de indicar um juiz que não se preocupasse somente com manuais teóricos, mas que tivesse empatia com as lutas e esperanças do povo. Esse fato, para ele, revela da mesma forma, uma postura “consequencialista” do Presidente americano. O que está em jogo nesta discussão, segundo Falcão, é a natureza da separação dos Poderes que a democracia pretende em cada país. Os juízes “fiéis” ao texto constitucional enfatizam e dão plena legitimidade ao Poder Legislativo, enquanto que os que apóiam a “interpretação da Constituição” priorizam o Poder Judiciário, explicou. “A nossa Constituição diz que os Poderes são independentes e harmônicos. E o que me parece é que os Poderes não buscam a harmonia, mas a competição contínua entre si”, enfatizou. Para o Conselheiro do CNJ, a essência da democracia tem como núcleo as “regras de competição” entre os Poderes. Segundo ele, cada vertente terá seus aliados, formando, portanto, doutrinas interpretativas que competem entre si. “É preciso que exista sempre uma sequência de equilíbrios e desequilíbrios entre os Poderes. O dia em que essa sequência parar, não existirá mais democracia”, afirmou Falcão. Juízes não são legisladores “Se você é um juiz em uma democracia e se você está feliz com todas as suas decisões, você é um mau juiz, pois o trabalho do magistrado não é chegar a um resultado de que ele goste, mas sim chegar a um resultado específico determinado pela população, que está escrito na Constituição”, afirmou o

Dr. Antonio Rodrigues do Amaral, membro do Board da HLSAB 2009 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15


Economia, Direito Concorrencial e Segurança Como último palestrante da manhã, o Dr. Cláudio Soares Lopes, Procurador-Geral da Justiça do Rio de Janeiro, abordou o tema “Globalização do Crime Organizado”, registrando a importância do Ministério Público e das instituições federais envolvidas no combate de crimes transnacionais. Sob a direção do Dr. Luiz Müssnich, Diretor da HLSAB, a parte da tarde do Seminário contou com as palestras da Dra. Mariana de Araújo, Secretária de Direito Econômico; do Dr. Paulo de Tarso Ribeiro, ex-Ministro da Justiça; do Dr. Arthur Badin, Presidente do CADE; e do Dr. Oscar Petersen, Vice-Presidente Jurídico da Embratel. Os palestrantes debateram sobre questões regulatórias e de Direito Concorrencial entre o Brasil e os EUA, incluindo combate a cartéis e outras condutas anticom­ petitivas que afetam diretamente a economia dos dois países. 16 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2009

Foto: Ana Colla

Ministro da Suprema Corte Americana, Antonin Scalia. Foi com essa mensagem que Scalia marcou seu discurso de encerramento do Seminário Internacional. Principal liderança intelectual da corrente “originalista” — doutrina americana que busca extrair do processo de interpretação o sentido exato conferido pelos arquitetos da Constituição americana há 200 anos, os chamados Founding Fathers. Segundo o Ministro, por diversas vezes ele chegou a decisões que ele mesmo considerou pouco inteligentes, porque, segundo ele, não é seu papel considerar suas decisões inteligentes ou não, mas sim aplicar as normas que foram emanadas diretamente da população, através de seus representantes legítimos. O Ministro ressaltou que a imprensa normalmente publica decisões judiciais nos jornais, sem saber na realidade os detalhes fáticos dos julgamentos. Isso porque, segundo ele, o que o público quer saber é “quem ganhou” e “quem perdeu”. E se a “pessoa ruim” perdeu, o juiz é um bom juiz, se essa “pessoa ruim” ganhou, ele é um mau juiz, explicou. Segundo Scalia, não se pode julgar um juiz baseado nas opiniões dos jornais. O palestrante afirmou que, ao concordar com uma postura “interpretativa”/“consequencialista” dos magistrados, não se pode falar em democracia, mas numa “aristocracia de juízes” que distorce o que a população decidiu através da Constituição, para chegar a resultados que a democracia deveria considerar como justos. Essa postura dos juízes criarem suas próprias leis, explicou Scalia, não é uma tendência nova que ocorre especialmente nos Estados Unidos. Ao voltar na história, é possível ver que isso ocorre há muito tempo. Segundo ele, antigamente, no sistema anglo-saxão, os juízes ingleses escreviam as leis, pois eram instrumentos do Rei. De acordo com o Ministro, no ensino jurídico americano atual, os alunos de Direito estudam durante o primeiro ano de faculdade os casos antigos julgados em 1700 e 1800, todos baseados no Common Law. Assim, a visão que os estudantes americanos carregam do que sejam bons juízes é a daqueles juízes que “inventavam as leis”, e faziam justiça baseados em juízos de equidade, e não baseados em normas prescritas expressamente pela Constituição. “Essa é uma falsa ilusão”, lamentou Scalia.

No dia 15 de maio, o Ministro da Suprema Corte Americana, Antonin Scalia, formado pela Harvard Law School em 1960, veio ao Brasil para participar do “Seminário Internacional Direito e Desenvolvimento entre Brasil e EUA”, realizado pela HLSAB e FGV. Conhecido por sua posição conservadora, Scalia defende o “Originalismo” (em inglês Originalism), metódo de interpretação constitucional, que busca extrair do texto escrito o significado original atribuído pelos constituintes americanos, os denominados Constitucional Framers. Em meio a intensos debates relacionados ao Ativismo Judicial e à separação dos Poderes no País, Antonin Scalia falou com exclusividade à Revista Justiça & Cidadania: Revista Justiça & Cidadania – O Sr. conhece o Poder Judiciário brasileiro? Justice Antonin Scalia – Na verdade, eu só conheço os níveis mais altos. Os ministros que conheci são pessoas progressistas, muito inteligentes e sérias. Tive uma boa impressão, mas eu só estive no Supremo Tribunal Federal, em Brasília, e no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. JC – Como o Sr. acha que o Brasil pode se aproximar dos Estados Unidos? AS – Juízes no mundo todo enfrentam os mesmos problemas. São muitos casos, e eles têm que trabalhar rapidamente e de forma justa. Vocês têm muito que aprender conosco e nós também temos muito que aprender com o Brasil. Eu sou muito favorável a ter projetos de troca de conhecimentos como esse, não somente nos Tribunais Superiores, mas também nos Tribunais inferiores. Esse Seminário é uma ótima iniciativa para aprendermos uns com os outros.


ENTREVISTA EXCLUSIVA: ANTONIN SCALIA, MINISTRO DA SUPREMA CORTE AMERICANA

O Executivo não pode interferir no Judiciário JC – No momento de crise em que vivemos, como o Judiciário pode ajudar no desenvolvimento econômico? AS – Na verdade, quem deve ajudar a economia são os governantes! O Judiciário deve aplicar a lei. Nada é mais importante para ajudar a economia do que um sistema judiciário previsível. Os países do Leste Europeu, por exemplo, não estão prosperando porque o sistema judiciário deles não tem previsibilidade. Dessa forma, ninguém vai investir seus capitais lá! Não há Tribunais para garantir o cumprimento dos contratos privados individuais, nem dos contratos com o governo. Então os empresários não vão arriscar seu capital em regiões como essas, nem vão negociar com esses países. Essa é a maior contribuição do Poder Judiciário para a economia: ser previsível para facilitar investimentos.

ao que o magistrado pensa ser a “melhor ideia” para um caso específico. Esse não é o papel do juiz! Muitas vezes eu chego a conclusões, que considero, sinceramente, idiotas, mas não é meu trabalho julgar se essas decisões são inteligentes ou não, esse trabalho é do Congresso. Meu trabalho é dar uma justa e honesta interpretação à Constituição dos EUA.

JC – O que o Sr. acha que vai mudar com a chegada do novo Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama? AS – Eu passei por cinco mandatos, desde o Presidente Reagan, passando por Bush I, depois Bill Clinton, Bush II e agora Obama! América continua América e sempre será América, não importa o presidente!

JC – ... porque muitos estudiosos acham que o Legislativo é ineficiente. AS – E os juízes sabem menos ainda que o Legislativo. Se não quiserem a democracia, voltem para a Monarquia!

JC – Qual é a sua opinião a respeito do papel do juiz na interpretação do texto constitucional? AS – Eu não acredito nisso. Você não pode ter uma democracia sem a palavra escrita. O único jeito da sociedade ter sua vontade reconhecida é através da palavra escrita, que ela adotou em estatutos ou na Constituição, através de seus representantes no Legislativo. Se você quer manter a democracia, o trabalho do juiz é dar à lei uma justa interpretação, ser fiel ao que o povo escolheu, e não

JC – ... muitos dizem que o Ativismo Judicial contribui para a democracia. O que Sr. acha disso? AS – Os juízes sabem o que é melhor para a sociedade? Os juízes são o segmento mais aristocrata da sociedade! Eles não são os homens do povo. Se você quer saber o que o povo quer e pensa, vá para o Legislativo e não para um Tribunal! A única coisa que os juízes sabem é o que eles acham que é melhor para o povo.

JC – Qual é a sua opinião em relação à influência do Poder Executivo no Judiciário? No Brasil há um fervoroso debate no STF, considerando esta questão. AS – Isso não pode acontecer. Na verdade, isso nunca aconteceu no sistema judiciário americano. Eu fui juiz federal em Washington por 27 anos e nunca fui abordado por ninguém do Poder Executivo. O Executivo não pode interferir no Poder Judiciário e isso é proibido. Nem uma vez isso ocorreu nos Estados Unidos. Já houve casos de corrupção, mas nada relacionado à interferência do Executivo no Judiciário. 2009 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17


“O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL É MAIS IMPORTANTE DO QUE TODOS E CADA UM DE SEUS MINISTROS”

Discurso proferido pelo Ministro Celso de mello, em 29.4.2009

Nota do editor Em edição anterior, nº 104, no preâmbulo da matéria publicada nas páginas 44 a 47, discorremos sobre o “Protago­ nismo do Supremo Tribunal Federal” e tornamos a reafirmar a adoção permanente do princípio básico da publicação: a defesa intransigente do Poder Judiciário e da Magistratura. Com muita oportunidade e sobre o relevante papel reservado e destinado à Suprema Corte brasileira, o eminente Ministro e decano do STF, Ministro Celso de Mello, proferiu no plenário, em 29.4.2009, o magnífico discurso cuja correlação com os objetivos da Revista, e pela relevância e importância dos conceitos e dogmas referidos, ora transcrevemos com grande apreço.

O registro das efemérides, Senhor Presidente e Senhores Ministros, constitui um exercício importante na vida das Instituições, pois permite relembrar eventos relevantes cuja rememoração, por isso mesmo, há de sempre merecer especial destaque. É por isso, Senhor Presidente, que desejo ressaltar a ocorrência de fato revestido de alta significação na vida desta Suprema Corte. Refiro-me à passagem do primeiro aniversário da Presidência de Vossa Excelência à frente do Supremo Tribunal Federal, pontuada por eventos impregnados de elevado sentido institucional e de positivas consequências no processo de administração da justiça em nosso País.

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Quando da posse de Vossa Excelência na Presidência desta Suprema Corte, salientei que incumbe ao Supremo Tribunal Federal o desempenho do dever que lhe é inerente: o de velar pela integridade dos direitos fundamentais de todas as pessoas, o de repelir condutas governamentais abusivas, o de conferir prevalência à essencial dignidade da pessoa humana, o de fazer cumprir os pactos internacionais que protegem os grupos vulneráveis expostos a práticas discriminatórias e o de neutralizar qualquer ensaio de opressão estatal. Acentuei, então, Senhor Presidente, que esta Suprema Corte possui a exata percepção dessa realidade e tem, por isso mesmo, no desempenho de suas funções, um grave compromisso com o Brasil e com o seu povo, e que consiste em preservar a intangibilidade da Constituição que nos governa a todos, sendo este Tribunal o garante da integridade da ordem constitucional, impedindo, assim, com atuação firme e independente, que razões de mero pragmatismo ou de simples conveniência de grupos, instituições ou estamentos prevaleçam e deformem o significado da própria Lei Fundamental. O que me parece de fundamental importância, Senhor Presidente, notadamente agora em que se registra o primeiro aniversário da administração de Vossa Excelência à frente desta Corte, é reafirmar, perante os cidadãos desta República e os demais Poderes do Estado, o compromisso do Supremo Tribunal Federal de jamais renunciar ao exercício do encargo de guardião da Constituição, pois, se esta Suprema Corte falhar no desempenho da gravíssima atribuição que lhe foi outorgada,


Foto: U.Dettmar/SCO/STF

a integridade do sistema político, a proteção das liberdades públicas, a estabilidade do ordenamento normativo do Estado, a segurança das relações jurídicas e a legitimidade das instituições da República restarão profundamente comprometidas. É preciso reconhecer, Senhor Presidente, que o Supremo Tribunal Federal, na linha de suas melhores tradições, tem sido fiel não só às premissas e aos princípios que informam a ordem jurídica fundada no Estado Democrático de Direito, mas, igualmente, aos objetivos fundamentais da República, como se vê de notável construção jurisprudencial que se consubstanciou em verdadeira jurisprudência das liberdades, cujo processo de formulação resultou de legítima resposta jurisdicional, dada por esta Suprema Corte, a injustos ataques perpetrados, arbitrariamente, por agentes do próprio aparato estatal, contra o núcleo de valores que conferem identidade e essência ao texto da Constituição. Na realidade, esta Corte Suprema tem permanecido vigilante na proteção aos direitos e garantias fundamentais de qualquer cidadão. É preciso que fique claro, Senhor Presidente, que esta Suprema Corte não julga em função da qualidade das pessoas ou de sua condição econômica, política, social ou funcional. O Supremo Tribunal Federal é mais importante do que todos e cada um de seus Ministros. Cabe-nos, desse modo, como Juízes da Suprema Corte, velar pela integridade de suas altas funções, sendo-lhe fiéis no desempenho da missão constitucional que lhe foi delegada.

É por isso que jamais poderemos transigir em torno de valores inderrogáveis como a respeitabilidade institucional, a dignidade funcional e a integridade desta Corte Suprema. Importantíssimas decisões, Senhor Presidente, foram proferidas, neste último ano, pelo Supremo Tribunal Federal, todas com imensa repercussão sobre a vida dos cidadãos desta República, bem assim sobre as próprias Instituições do Estado, em clara demonstração de que os julgamentos desta Corte Suprema, sempre pautados pela consciência responsável de seus Juízes, encontram fundamento, referência e parâmetro, unicamente, no texto da Constituição da República, de cuja interpretação este Tribunal tem “o monopólio da última palavra”. Vale destacar, dentre esses julgamentos ocorridos sob a presidência de Vossa Excelência — e que só fazem confirmar as sábias palavras do eminente Ministro Carlos Britto, de que o Supremo Tribunal Federal “é uma Casa de realização de destinos” —, algumas relevantíssimas decisões que exerceram notável impacto na vida deste País, na de suas Instituições e na de seu próprio povo, como aquelas referentes à controvérsia sobre as pesquisas científicas com as células-tronco embrionárias, a inconstitucionalidade do nepotismo, a limitação do uso de algemas, a insubsistência da prisão civil do depositário infiel, com o consequente reconhecimento da primazia dos tratados internacionais de direitos humanos sobre a legislação infraconstitucional brasileira, a repulsa à inelegibilidade de candidatos antes do trânsito em julgado da condenação e a impossibilidade de execução provisória da sentença penal 2009 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19


condenatória, em respeito, em ambos os casos, ao postulado constitucional do estado de inocência, a demarcação da terra indígena Raposa/Serra do Sol e o cabimento de ação direta de inconstitucionalidade contra medidas provisórias sobre créditos extraordinários. Impõe-se relembrar, ainda, alguns eventos extremamente relevantes que se produziram ao longo do primeiro ano da administração de Vossa Excelência como Presidente do Supremo Tribunal Federal e cujo registro torna-se digno de menção nos anais desta Suprema Corte. Refiro-me, Senhor Presidente, dentre esses fatos de grande relevo político-institucional e administrativo, às seguintes realizações: • Ingresso do Brasil, representado pelo Supremo Tribunal Federal, como membro permanente da Comissão de Veneza (Comissão para a Democracia por meio do Direito — órgão consultivo do Conselho da Europa); • Eleição do Brasil como País-sede da II Conferência Mundial de Cortes Constitucionais; • Representação do Brasil em 15 eventos internacionais multilaterais e 12 bilaterais; • Divulgação das principais decisões do Supremo Tribu­ nal Federal nos bancos de dados Codices (Comissão de Veneza); GLIN (Biblioteca do Congresso Norte-Americano); Conferência Ibero-Americana e Mercosul; • Edição de 11 novas Súmulas Vinculantes; • Repercussão Geral: 128 controvérsias constitucionais com repercussão geral reconhecida (40 já julgadas) e 33 casos de repercussão geral afastada (total apreciado: 161); • Sensível redução do número de processos protocolados, autuados e distribuídos; • Realização de 2 Encontros Nacionais em que estão repre­sentados todos os tribunais do País (estaduais, federais, trabalhistas, eleitorais e superiores) e nos quais são estabelecidas metas concretas para todo o Poder Judiciário; • Celebração de novo Pacto Republicano para continuação da bem-sucedida reforma do Judiciário; 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2009

Foto: Foto:U.Dettmar/SCO/STF U.Dettmar/SCO/STF

“Renovo-lhe, agora, Senhor Presidente, em meu nome, no momento em que se completa o primeiro ano de seu mandato à frente desta Corte, os votos de saudação, de apreço e de plena confiança que lhe apresentei quando de sua posse, há um ano, na Presidência do Supremo Tribunal Federal.”

• Contratação de 15 auxiliares egressos do sistema prisional; • Criação da Central do Cidadão, que já recebeu mais de 20.000 comunicações; • Instituição de programas que treinaram mais de 700 servidores; • Nomeação, mediante prévia aprovação em concurso público de provas e títulos, de 164 novos servidores; • Criação de Faixa Educativa na TV Justiça; • Reestruturação da Secretaria Judiciária para (I) classi­ ficação e tratamento dos recursos sujeitos à repercussão geral e (II) processamento acelerado das ações penais; • Organização de 8 mutirões carcerários em 5 Estados diferentes (RJ, PI, MA, PA e AL), com a libertação de mais de 2.000 presos em situação irregular (equivalente a 5 presídios de médio porte); • Instituição do intercâmbio de magistrados em que juízes provenientes de Estados-partes do Mercosul conheceram, por 30 dias, o Judiciário Brasileiro; • Edição, pela Secretaria de Documentação, da valiosa publicação “A Constituição e o Supremo”, contendo as mais importantes decisões desta Corte Suprema sobre o texto de nossa Lei Fundamental. Também são inúmeras as realizações que o Conselho Nacional de Justiça empreendeu, após abril de 2008, sob a Presidência de Vossa Excelência, período no qual se desenvolveram importantes atividades, notadamente no âmbito do diálogo institucional com todos os Tribunais brasileiros, de que resultou a adoção de passos significativos no sentido da atuação conjunta de magistrados e demais órgãos do Poder Judiciário, com o propósito de tornar o sistema de administração da justiça mais eficiente, mais moderno, mais transparente e, sobretudo, mais acessível ao alcance dos cidadãos, especialmente dos cidadãos necessitados e despossuídos. Destaco, por seu relevo, aquelas medidas que objetivam universalizar o acesso pleno dos cidadãos à assistência


judiciária, bem como a instituição da Rede de Promoção e Defesa de Direitos Fundamentais, em clara demonstração de que não são meramente teóricas ou acadêmicas as preocupações de Vossa Excelência com um tema tão sensível e caro às tradições do Poder Judiciário nacional e à preservação da integridade da ordem democrática, pois, com essa Rede, potencializam-se as ações de entidades e organizações não-governamentais que atuam no âmbito de proteção e amparo aos direitos fundamentais, como a defesa dos grupos vulneráveis, dos despossuídos, da mulher, de pessoas portadoras de necessidades especiais, de crianças, adolescentes e idosos e daqueles que, por descaso ou desaparelhamento do Poder Público, sofrem a opressão e a ignomínia do cárcere, completamente desassistidos e incompreensivelmente postos à margem do sistema jurídico. Tais medidas — como a Resolução para permitir o controle das prisões temporárias e a instituição do Núcleo de Advocacia Voluntária — são, na realidade, a concretização de algumas preocupações que Vossa Excelência já revelara em seu discurso de posse na presidência do Conselho Nacional de Justiça, quando salientou que: ‘Ainda hoje nos debatemos com dificuldades para identificar as efetivas condições jurídicas de nossa população carcerária. E, a todo momento, a imprensa noticia casos que chocam a todos, como os de menores recolhidos em prisões de adultos e outros atentados inadmissíveis às garantias individuais dos cidadãos. Acredito, que, nessa seara, o Conselho, com sua capacidade de análise e de crítica, atuará em parceria com os demais órgãos públicos responsáveis, de forma a mudar, de vez, essa triste realidade’. Daí, Senhor Presidente e Senhores Ministros, consideradas as realizações empreendidas no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, sob a Presidência do eminente Ministro Gilmar Mendes, a radiografia do sistema penitenciário apresentada no 2º Encontro Nacional do Judiciário e que divulgou dados extremamente preocupantes, pois se constatou, em diagnóstico revelador das profundas deficiências do sistema prisional brasileiro, que, além da superlotação

penitenciária em todos os Estados-membros da Federação brasileira, não há, nas unidades prisionais, separação entre presos condenados definitivamente e presos provisórios; nem existe, de modo satisfatório, assistência judiciária ou orientação jurídica integral para os detentos necessitados e desprovidos de condições financeiras adequadas, tanto quanto falta, no universo penitenciário brasileiro, o efetivo cumprimento, pelo Poder Público, de obrigações que lhe foram impostas pela Constituição e pela Lei de Execução Penal, como a adoção de medidas que viabilizem a prática laboral, a educação e a capacitação profissional dos sentenciados, sem se falar na inaceitável omissão dos órgãos estatais que permitem a anômala e intolerável situação de réus que, embora já havendo cumprido a sua pena, ainda continuam presos, porque destituídos de qualquer amparo de ordem jurídica. Muito mais poderia ser relembrado, nesta ocasião, Senhor Presidente, quando se completa o primeiro ano de mandato de Vossa Excelência à frente do Supremo Tribunal Federal. Tenho para mim, no entanto, que alguns dos eventos e realizações que relatei representam, só por si, a atestação, Senhor Presidente, de sua atuação como magistrado responsável e fiel ao interesse público e à causa da justiça, e que será capaz, por isso mesmo, de superar — como já o vem fazendo — os graves desafios e problemas que tanto afligem o Poder Judiciário em nosso País, formulando ideias e implementando projetos, em comunhão solidária com os Juízes que integram esta Suprema Corte e em harmonia com os demais Poderes da República, em ordem a estabelecer, em favor da cidadania, um sistema de administração da justiça que se revele processualmente célere, tecnicamente eficiente, politicamente independente e socialmente eficaz. Renovo-lhe, agora, Senhor Presidente, em meu nome, no momento em que se completa o primeiro ano de seu mandato à frente desta Corte, os votos de saudação, de apreço e de plena confiança que lhe apresentei quando de sua posse, há um ano, na Presidência do Supremo Tribunal Federal.” 2009 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21


Foto: Arquivo Pessoal

Da esquerda para direita: Prof. Clynio Brandão, Diretor da Faculdade de Direito; Ministro Mauro Campbell, representando o STJ; Governador Eduardo Braga; Reitor Hidembergue Ordozgoith da Frota; Dr. Bernardo Cabral e Desembargador João Simões, Presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas

bernardo cabral honra ao mérito Clynio de Araújo Brandão Diretor da Faculdade de Direito / UFAM

Nota do editor Há pouco mais de um mês o jurista José Bernardo Cabral, ilustre membro do Conselho Editorial dessa Revista e chanceler da Confraria Dom Quixote, recebeu o título doutor honoris causa da Universidade Federal do Amazonas. A merecida homenagem faz justiça ao cidadão manauara que tantos serviços prestou ao Estado e ao País, tanto na Advocacia quanto no Magistério e na Política. O mais jovem dos formandos da turma de 1954 da Faculdade de Direito da UFAM foi escolhido por seus méritos acadêmicos para, aos 22 anos, ser orador da Turma, representando a todos no passo inicial para adentrar na carreira jurídica. 55 anos depois, no mesmo dia em que completou 77 anos, aquele mesmo jovem, igual nos gestos e nas palavras, amigo cativante e homem público exemplar, além de completar mais um ano de experiência e sabedoria foi agraciado, pela mesma instituição, com a mais alta distinção acadêmica existente, o título de doutor honoris causa. O discurso de homenagem e reconhecimento da Faculdade de Direito da UFAM, proferido pelo emérito professor doutor Clynio de Araújo Brandão, retrata com ricos detalhes a personalidade do ilustre homem público que honrou e dignificou pela inteligência, cultura e saber jurídico, todos os cargos que galgou na sua magnífica e proveitosa existência, dedicada inteiramente em benefício das causas públicas. O jurista, parlamentar, constitucionalista, professor, detentor de tantas e merecidas honrarias pátrias e internacionais, é um cidadão que dignifica a sua terra, o Amazonas que tanto ama, e o Brasil, que é orgulhoso de tê-lo como filho. 22 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2009

Esta é uma noite rara. Congregados sob a égide de Eulálio Chaves, abrese para nós uma hora especialmente solene. Esta Academia prima pela seriedade meticulosa com que escolhe nomes para entronizá-los em nossa reverência. Nesses anos, a Academia esmerou-se em letras, cresceu em ciência, ampliou-se em espaço físico, no treinamento e na qualidade de seus quadros; principalmente ampliou a geografia de sua atuação. São oitocentos doutores e mestres atuando como uma grande teia de conhecimentos, espalhada até os confins do nosso Estado.Estendemse os campi avançados, desdobra-se a ação universitária. As dificuldades comuns a todas as universidades brasileiras aqui sempre foram enfrentadas e vencidas, a partir da compostura democrática, que desde a nossa origem legitimou a escolha de nossos dirigentes; que convoca e decide validamente os meios, para definir e realizar perfeitamente os fins. Chegamos ao centenário. Neste campus ungido pelo nome do Senador Arthur Virgílio Filho, o nosso primeiro século vive também a festa da memória, quando evocamos, nas vias que nos trazem até aqui, os nomes amáveis de Jauary Marinho, Octávio Mourão, Roberto Vieira, Aderson de Menezes. Como foram


homens-caminhos, hoje são caminhos-homens. Amadurecidos que estamos como formadores e intérpretes do nosso meio, os títulos conquistados nesta Academia crescem na excelência que os reveste. Portanto, as luzes gerais da nossa existência institucional estão prontas e vibrantes, estão na hora mesmo de festejarem outra personalidade, o Dr. Bernardo Cabral, símbolo vivo da inteligência amazônica. Título Honoris Causa. Título para honra, para louvar a honra, para dizer da honra. Essa honorificência há de ter nascido, no seio da alma mater, de uma inspiração que procurou cercar-se das melhores referências do sentir e do fazer humanos, de uma determinação de assimilar e proclamar os mais nítidos exemplos de grandeza e de bem.E isso para consistência de suas próprias cátedras, e isso para iluminação de seus próprios filhos, porque toda Universidade, por ser geratriz de rumos, precisa também inspirar-se e renovar-se diante de monumentos de humanidade que ela mesma propõe, que ela mesma ensina, que ela mesma constrói. Vós, Doutor Bernardo Cabral, pertenceis a essa categoria de homens-monumentos que a Universidade cria para nele ser recriada, erige para ser nele contemplada, tanto pela virtude quanto pela obra, quanto pela vida. A honra desse título reparte-se em três direções, agasalhase em três seios. É honra para esta Universidade, para Bernardo Cabral e para o Estado do Amazonas. É honra para a Universidade, Senhores, porque foi dela que o homenageado saiu para o mundo jurídico, com os fundamentos do Direito fascinando a sua juventude. Foi aqui que ele bebeu a primeira água dessa universal e interminável sede de justiça. É honra para Bernardo Cabral porque, nesta noite, recordando tantas distinções que mereceu, novamente ele tem um encontro consigo mesmo, para receber o máximo louvor reservado a um homem de bem: a paz de sua consciência diante do que fez, e a tal ponto o fez que o aplauso de seus contemporâneos corrobora as suas realizações de homem superior, homem que contribuiu para a construção do mundo na realização e no sacrifício de si mesmo. É honra para o Estado do Amazonas, que tem em vós, Dr. Bernardo, uma concentração extraordinária de valores éticos e intelectuais, uma predestinada organização mental de jurista e de líder democrático. Sois o notável filho dos estirões amazônicos, aquele que destacou o nome do nosso povo em umas das páginas mais sérias da consolidação da história republicana. A biografia de um grande homem jamais poderá ser apreendida por um livro que queira sintetizá-la, por uma estátua que queira perenizá-la, nem por um discurso que queira demonstrá-la. Contudo, é necessário e edificante acompanharvos, ainda que celeremente, pelo caminho ascensional de vossa existência. Nascestes no Amazonas, onde se harmonizam incólumes forças primordiais da criação, seja no prodígio da água, seja na potência da terra, seja no embevecimento do homem. Essa natureza, que guarda ainda, em seus movimentos, as energias puras dos primeiros dias das formações telúricas, há de ter beneficamente influído na formação do vosso temperamento, e assim herdastes a determinação salvadora das fontes, as cintilações dos tesouros vivos, e essa capacidade

de buscar que constitui o destino dos olhos deslumbrados. E vos temos então, temos a vossa vida peregrina como os nossos rios, frutuosa como a nossa terra, larga e inspiradora como a circunspeção dos nossos horizontes. Ainda muito jovem recebestes da Justiça o aceno e a convocação, o abraço e o beijo, logo que começastes a sonhar com ela sob as arcadas da nossa Faculdade de Direito. E desde então nunca mais deixastes de servi-la, como um cavaleiro legendário. Aí começa a saga de vossa vida pública de homem apaixonado pela Justiça, a mais exigente e cultuada das virtudes, a única que às vezes pode ser vista no lugar da Caridade. Quem se apaixona por ela, recebe imediatamente a missão de lutar pelos deserdados da terra, pelos escravos dos desajustes sociais, pelos mendigos de todas misérias, pelas vítimas gerais das desigualdades infelizes.Assim, para gerar os frutos da equidade, exercestes a Advocacia e logo ocupastes, no Amazonas,cargos de elevada importância para a vida democrática. Vendo vosso valor, a Justiça vos pediu que assumísseis a vida parlamentar. Foi a Justiça que vos levou à Política, pela intensidade com que percebestes que a Justiça, embora muito longe de se esgotar na Política, tem nesta o seu agir pela liberdade e pela igualdade ao nível das capacidades do Estado, quer dizer, no espaço totalizador e mais visível das inquietações coletivas. E assim fostes deputado estadual e deputado federal. Agitadas reivindicações do povo; instituições que avançam e recuam como ondas; antigas maldades de poderosos, duras como rochedos; legítimas e necessárias tensões sociais, que procuram resolver-se como o ímpeto das correntezas: tudo isso é vida política. Tudo isso pode ser, ao nauta da Justiça, um grande mar terrível. E deu-se que, numa convergência de forças transtornadas, reuniram-se ventos sem destino, que rasgaram pendões e desbarataram sonhos, no episódio tenebroso conhecido como Revolução de 64. Ondas da perseguição vos assaltaram, a vós e a tantos companheiros. Pode-se bem avaliar o quanto o Brasil perdeu na sufocação de tantos talentos libertários, tantos pendores valiosos. Até hoje a Nação se ressente das perdas de energias consumidas e desesperançadas no silêncio dos cárceres submersos, entre os destroços das perseguições, nas areias desterradas do exílio. Mas vós sobrevivestes, e vos levantastes ainda mais livre e mais forte, tal o fervor com que assumistes as virtudes escolhidas como patronas do vosso destino, isto é, a Justiça e aquele séquito apaixonado de valores que a acompanham, como a honra, a coragem, o sentimento de respeito para com o próximo, de compromisso com a sustentação dos mais amados ideais do convívio humano. De tal forma vos mantivestes audaz e coerente no centro da procela e depois dela, que bem parecestes, e pareceis, aquele comandante, citado pelas letras clássicas, que no auge da tempestade gritou: “Ó Deus, tu me salvarás se quiseres, tu me condenarás se preferires, mas eu manterei reta, assim mesmo, a barra do leme!” Viremos essa página. Encontramo-vos depois como presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Vestistes a venerável armadura do Direito, para comandar a vossa Ordem, num período em que a luta pela 2009 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23


redemocratização resgatou os brios do País e nos deu triunfos consoladores das velhas cicatrizes. E vossa amada de sempre, a Justiça, recuperando-vos das injustiças, voltou a encher de esperança a vossa vigília pela liberdade, o vosso empenho pelos ideais da democracia. Certas dignidades quase perdidas da consciência nacional remodelavam-se em mãos como as vossas, e vossa fama de homem que nasceu para libertar horizontes recomendou-vos para ser artífice da Justiça no Congresso Nacional. Então a Justiça junto com a História romperam o escuro. O povo, cansando de abandonos velhos e mordaças rotas, procurou intérpretes de sua alma, para a formulação de um novo credo político, uma nova Constituição. Fostes eleito relator da Carta de nós todos, o homem talhado pelas pressões sociais para decifrar as vozes, auscultar as tendências, escolher os anseios e as determinações mais legítimas, para plasmar esse amável corpo tantas vezes afrontado, amável corpo da suprema Lei. Parece que vos vemos, noites afora, a meditar rumos, a escutar sofrimentos, a medir implicações, a criar parágrafos e alíneas com o pensamento no futuro e o coração pulsando em artigos redentores. Na verdade, as atribuições que tínheis faziam pesar primeiro sobre vós a obra de pacificação constitucional, eis que vos cabia o primeiro instante de mediação dos conflitos, a conciliação entre o que devia desaparecer e o que tinha de surgir: tratava-se de encontrar, na matéria multiforme e febril que vos chegava de todos os recantos da nacionalidade, a medida e a substância desassombrada e fecunda que nos daria o espelho e o destino jurídico-institucional da alma brasileira. E sentistes, mais do que nunca, que uma Constituição não só ordena,

não só cristaliza, não só dogmatiza, mas também validamente desafia, arduamente convoca, urgentemente mobiliza, tanto mais firme quanto mais sofrida, tanto mais respeitada quanto mais legítima, tanto mais bela quanto mais sonhada.De uma coisa podeis ter certeza: a nossa Constituição não tem os olhos cabisbaixos e tristes; ela tem no olhar visionário a determinação que chama a nacionalidade a realizar as maiores ascensões da consciência coletiva. Fostes completo em vosso trabalho. A contribuição que destes ao Parlamento Nacional tão digna e decidida foi, que vosso nome será lembrado sempre que as vivandeiras das transações espúrias tentarem as desigualdades dos Poderes, maquinando uma equivocada prevalência do Executivo. Ouvistes muito, e fizestes mais.Ouvistes, por exemplo, e sabias tanto, que a permanência da Zona Franca de Manaus não era apenas uma causa do Amazonas, sacrificado pelo isolamento, mas uma premência do Brasil, atravessado pelas desigualdades que se alastram por meridianos, entre o mar e o rio, entre o litoral e a selva.Um artigo justo, que corrige o extrativismo e humaniza a própria economia, deu ares de perenidade à Zona Franca, e por isso tendes na gratidão do Amazonas uma espécie de pedestal peregrino que anda pelas cidades, pelas várzeas, pelo distrito dos elétrons, pelos remansos onde repousam as árvores poupadas. Diante de todo o País, vosso trabalho na Constituinte, Doutor Bernardo, foi consagração da inteligência e vitória do espírito. Inteligência que se esmerou na missão filosóficocientífica de fazer coincidir a verdade e o bem na justiça constitucional. Espírito que simultaneamente doou-se na

“Meus cumprimentos pela merecida homenagem que lhe faz a Universidade Federal do Amazonas, com a outorga do título de doutor honoris causa. Alinho-me entre os seus orgulhosos amigos pelo justo reconhecimento, fruto de sua brilhante carreira dedicada ao estudo e ao desenvolvimento do Direito Brasileiro.” Ellen Gracie, ministra do STF “Merecida e justa homenagem que lhe presta a Universidade Federal do Amazonas pelos relevantes e patrióticos serviços prestados ao Brasil e ao seu Estado natal. Como seu amigo, sinto-me altamente orgulhoso.” Ernane Galvêas, ex-ministro da Fazenda “Não poderia eu deixar de parabenizá-lo pelas iniciativas promissoras, e pelos relevantes serviços prestados ao Estado brasileiro, todos desenvolvidos com competência, integridade e retidão, pois o ilustre amigo é exemplo de conduta, concórdia e unidade.” José Roberto Tadros, presidente da Fecomércio/AM “Todos nós que temos o privilégio de sermos contemporâneos, amigos e admiradores do Senador, Ministro da Justiça, Presidente do Conselho Federal da OAB e Relator Geral da Assembleia Nacional Constituinte, para citar apenas as mais relevantes funções das inúmeras já exercidas pelo Professor Doutor José Bernardo Cabral, estamos orgulhosos e comemorando sábia decisão da egrégia Universidade Federal do Amazonas.” Humberto Mota, presidente do Conselho Superior da ACRJ 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2009


Foto: Arquivo Pessoal

Reitor Hidembergue Ordozgoith da Frota entregando o diploma de doutor honoris causa ao Dr. Bernardo Cabral

contemplação e na realização de esperanças que não se rendiam à penúria nem ao medo, mas resistiam com a determinação dos que tecem, de suas próprias dores, madrugadas de paz dentro da escuridão. Nossa Constituição caminhará no tempo, não só entre as conquistas de agora, mas também entre os sonhos de amanhã, porque ela se lança para além dos nossos dias, pelo valor intemporal de seus princípios, pelos altos desígnios com que a alimentastes. Vosso nome caminhará junto a ela, e ela lembrará vosso nome, como aquele que é amado lembra de quem o ama. Recordemos: depois que constituístes a norma, fostes para o trabalho de distribuí-la como Ministro da Justiça, como quem não se limita a semear sobre a terra, mas quer entregar frutos da terra.Depois, o Brasil pediu, e o Amazonas vos fez senador.Foi então que a Justiça vos lançou a uma nova cruzada. Ela vos quis como defensor da natureza, exatamente no tempo dramático em que os clamores em torno do meio ambiente, partindo dos livros dos cientistas, avassalam as preocupações parlamentares. Já vínheis de longe vos preparando para essa saga do verde, desde que publicastes um artigo sobre o Instituto Hudson e a famigerada ideia do lago amazônico. Em vossa consciência formara-se uma compreensão combativa, uma voz que queria exprimir e minorar a agonia das nascentes soterradas, o pedido de amor que há nos lábios sedentos das águas perseguidas. Em sucessivas publicações e relatórios, estudais politicamente o nosso hídrico Eldorado, os portentos da bacia que se entrega em vertentes andarilhas, em hidrovias, em correntezas de potência hidráulica, em lagos compassivos onde, entre sombras e ninhos que resistem, passa a misericórdia alegre dos cardumes.

Eis aqui entre nós, Senhores, o advogado da redemocra­ tização e o grande constituinte de 1988. Eis o defensor do ensino jurídico. Eis aquele que já foi chamado de patrono das águas. Eis aquele que completou o nosso próprio nome: Universidade Federal do Amazonas. Eis um homem integral: seus talentos se doaram às instituições, ao povo, à natureza, desenvolvendo em torno de seus contemporâneos um círculo de completa honra. Tendes recebido, Dr. Bernardo, honrarias nos mais elevados graus, de entidades jurídicas e culturais, no Amazonas, no Brasil, no exterior. Hoje recebeis da UFAM o título de doutor Honoris Causa, que vos entregamos como oferenda ao mérito e ao trabalho. Nesta solenidade, nossas vozes reunidas escolheram as palavras definitivas que podem congregar os significados do nosso gesto: justiça e gratidão. Justiça grata seja o nome desta hora. Justiça e gratidão formam a única síntese possível quando se quer reconhecer e expressar o belo e o bom, o verdadeiro e o transcendente na felicidade recíproca. Estamos no centenário da Universidade. Estais hoje no dia de vosso aniversário. Há, portanto, na dupla festa, um abraço entre o século e o dia que se encontram. Nosso século é o júbilo das cátedras triunfantes, dos saberes distribuídos. Vosso aniversário tem o apogeu de alegria da vossa família, os parabéns de tantas amizades que ornamentam vossa vida. E acontece que, sob a grande noite amazônica, a noite que amais, é justo, é maravilhoso mesmo que, em vossa homenagem, um século, cem anos se inclinem em reverência à passagem de um dia. Agora o centenário e o aniversário olham-se nos olhos, refletem-se um no outro, erguem as taças repletas e brindam à felicidade de nós todos! Muito obrigado!” 2009 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25


PARA QUE O NATURAL NÃO FIQUE IMUTÁVEL

Darci Norte Rebelo Consultor da Fetergs

O

pensamento é de Brecht: “Não digam que isso é natural, porque, dizendo-o, há o risco de tornálo imutável”. O oportuníssimo seminário do jornal “Valor Econômico”, realizado em Brasília, há poucos dias, do qual participei como um dos painelistas, certamente vai contribuir para que a inoportuna megalicitação dos transportes interestaduais comece a ser questionada como algo completamente fora do natural. Sobre o tema e com o título “Desmonte”, em 10 de fevereiro de 2008, no jornal “O Globo”, já havia emitido opinião assim resumida: “Tudo está encaminhado para o réquiem do maior e mais barato sistema de transporte coletivo rodoviário do mundo que, se ocorrer, ficará na história do País como um ato fronteiriço entre a insanidade política e a insensatez econômica”. Se ocorrer? Não, Senhores, está ocorrendo. A Agência Nacional de Transportes Terrestres — ANTT, agência governamental a quem foi deferido o exercício do poder concedente desses serviços, nesse processo, está com as mãos amarradas. Ela mesma confessou que se encontra algemada ao ouvir sua área jurídica, constrangida, dizer que nada podia ser feito para evitar tal desastre, porque um ato presidencial havia determinado, há dez anos, o fim dos contratos das transportadoras, em 7 de outubro de 2008, tornando-os improrrogáveis embora prorrogáveis fossem. Confessa a

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área jurídica da ANTT que “...ininteligível é a retirada dessa expectativa que consta expressamente no contrato, violando, assim, o princípio constitucional do ato jurídico perfeito”. No entanto, “o Poder Executivo, exercido pelo Presidente da República (art. 76 da CF/88), deixou explícito, ao editar o Decreto nº 2.521, de 1998, que não é conveniente nem oportuno que se prorroguem os contratos firmados sob a égide do art. 94 do Decreto nº 952, de 1993 (...). Assim, enquanto não houver alteração dessa ordem legal, com a edição de novo dispositivo revogando ou alterando seus termos, há de prevalecer o que foi estabelecido no Decreto Presidencial”. Concluindo, lamentou: (...) Ante o exposto... “ainda que possa soar estranho, não pode a Administração da ANTT autorizar a prorrogação desses contratos”. A improrrogabilidade e sua [inexistente] fonte O Parecer da área jurídica da ANTT deixa claro que o art. 98 do Decreto nº 2.521/98 é violador do princípio constitucional do ato jurídico perfeito ao tornar improrrogável o que já fora deferido como prorrogável. Para a administração pública parece natural que o decreto paralise a Constituição. Mas não é só por atingir um ato jurídico perfeito que o contundente art. 98 agride a ordem jurídica. O exame desse art. 98 do Decreto nº 2.521/98 — que gerou essa pandemia licitatória


Foto: Arquivo JC

“Temos lido, em manifestações de Tribunais da maior hierarquia, como o STJ, afirmativas de que as permissões de ônibus não gozam de proteção alguma por se tratarem de delegações ilegítimas.”

— mostra que ele busca sua justificação no atendimento ao disposto no art. 42 da Lei nº 8.987/95 (sic), isto é, ele está regulamentando a norma transitória do art. 42 para a área dos transportes interestaduais. A proibição da prorrogação, porém, não tem registro algum no art. 42. Esta norma transitória dizia e continua dizendo que as delegações anteriores consideravamse válidas pelo prazo constante dos respectivos contratos ou atos de outorga. Quando a Lei nº 8.987/95 trouxe ao mundo jurídico essa norma transitória de confirmação das delegações a ela anteriores, já existiam centenas de contratos celebrados na área interestadual e internacional com origem no art. 94 do Decreto nº 952/93, com cláusula de prorrogação de quinze anos; o mesmo direito já estava assegurado mesmo às outorgas efetuadas ainda sem contratos por celebrar. Não existe a palavra improrrogabilidade no art. 42 e, por isso mesmo, a norma do Decreto nº 2.521/98 extraiu do texto legal uma proibição que ali não está expressa nem implícita. O Presidente da República, quando expede regulamentos, só pode fazê-lo para fiel execução da lei (CF/88, art. 84, IV). Logo, o art. 98, como o 99, que lhe dá complemento, é francamente exorbitante do dever regulamentar e, por isso, indisfarçavelmente inconstitucional. Há, portanto, nessa regra que diz ter sido expedida em atendimento (sic) ao art. 42 da Lei nº 8.987/95, uma dupla violação da Constituição, porque o decreto infiel à lei fere

também o princípio da separação de Poderes. Nos contratos, havia dois prazos, que foram considerados válidos pelo art. 42 cuja leitura foi distorcida pelo decreto. A [falsa] premissa da ilegitimidade O que ocorreu e está ocorrendo, na verdade, decorre de um festival de premissas de justificação extremamente duvidosas e até mesmo preconceituosas. A primeira delas diz respeito a uma suposta ilegitimidade das permissões por não terem origem em processo licitatório, embora tenham elas sido constituídas em época em que não se cogitava de tal procedimento como preliminar da contratação. Criou-se uma histeria (apenas quanto a ônibus) de que, sem passar pela pia batismal da licitação, a atividade não pode entrar no “reino dos céus”. Temos lido, em manifestações de Tribunais da maior hierarquia, como o STJ, afirmativas de que as permissões de ônibus não gozam de proteção alguma por se tratarem de delegações ilegítimas. Não podem reivindicar tarifas nem invocar a regra clássica das delegações acerca do equilíbrio da equação entre receitas e encargos. Nessa linha, o STJ disse, e o repetiu várias vezes, em ações do Estado de Minas Gerais1. As permissionárias, mesmo lesadas pelo Poder Público, têm menos direitos que empregados sem carteira assinada. Estes, pelo menos, podem pedir socorro à Justiça do Trabalho e nela 2009 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27


Foto: sxc.hu

sua pretensão é invariavelmente reconhecida. Em razão desse pecado original de investidura no serviço público, permissão não tem direito a nada. Os Tribunais parecem ignorar que esse [inexistente] pecado — se pecado fosse — teria contaminado as concessões de serviços públicos da maior importância em nosso País. Todas tiveram origem contratual, quer dizer, em contratos sem prévia licitação, como as concessões de estradas de ferro — de meados do Séc. XIX — com prazo de noventa anos; as de energia elétrica e bondes, do começo do Séc. XX, contratadas por sessenta anos; a aviação — a Varig é de 1927 —, que nunca passou pela experiência licitatória; também os telefones, os portos, a radiodifusão. Esta é o máximo: outorga do Presidente da República, não-renovação somente com 2/5 do Congresso em votação nominal (CF/88, art. 223). Nem por isso todo o sistema concessional brasileiro é ilegítimo. A lei do tempo protegia tais atos, e o tempo, inexorável tempo que tudo consolida ou apaga, é o grande legitimador de situações inicialmente instáveis, precárias ou mesmo contrárias à ordem jurídica. O Brasil de hoje, nascido da violação do Tratado de Tordesilhas, é um país legítimo mesmo perante o Direito Internacional. Por que, então, permissões de ônibus, por não terem origem em procedimentos licitatórios, em época que estes não eram exigidos, são ilegítimas, enquanto empresas de energia elétrica, de telefones, de aviões etc. não são? Prorrogação como violação da Constituição Por esse [des]fundamento, centenas de ações, de Norte a Sul, promovidas pelo Ministério Público, Federal e Estadual, copiadas umas das outras, perturbam a estabilidade das relações entre Poder Público e concessionárias ou permissionárias. Trata-se de uma espécie de jihad, de uma guerra santa, em que se sustenta que essas delegações, por serem anteriores à Constituição e de origem espúria [isto é, sem prévia licitação], não podem ser prorrogadas. Quem ler a Constituição, desarmado, sem partido, sem compromisso ideológico, não 28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2009

conseguirá fazer tal leitura do texto máximo. O que a Carta diz é que, a partir de 5 de outubro de 1988, todas as permissões e concessões serão contratuais e deverão, sempre, ser precedidas de licitação; a permissão, antes desprotegida, passa a equiparar-se às concessões. Resumindo: o texto constitucional estabeleceu que o ingresso no serviço público só pode ser efetuado pela porteira da licitação e impôs a forma contratual tanto para concessões como para permissões (CF/88, art. 175). A Constituição, como todas as leis, dispõe para o futuro. Ela não apaga a ordem jurídica anterior, criando um vazio jurídico no espaço social. Nenhuma permissão anterior à Carta podia ter violado algo que não existia. Para evitar a violência da retroatividade, quase sempre maligna, a própria Carta dos Direitos estabelece que a lei protegerá o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido (CF/88, art. 5º, XXXVI). Para não ser recepcionada a lei antiga, é preciso que ela seja claramente incompatível com o novo texto. No fundo, a recepção, que é a regra, nada mais traduz que um princípio constitucional mais amplo, um dos pilares do Estado Democrático de Direito, o princípio da segurança jurídica. Em segundo lugar, é a própria Constituição que, no parágrafo único do mesmo art. 175, estabelece que à lei incumbe dispor sobre o caráter especial do contrato de concessão e permissão e de sua prorrogação. A Lei nº 8.987/95, que regulamentou a Constituição, por sua vez, complementa que a cláusula de prorrogação é essencial e, portanto, compulsória, em todos os contratos. Logo, a regra é simples: licitar para ingressar; prorrogar para permanecer, de modo que quem licita, não prorroga e quem prorroga, não licita. Por que então prorrogações de permissões ou concessões de ônibus não podem ser efetuadas e são execradas desde os juízes até alguns tribunais? Insisto: por quê? Prorrogação é faculdade Para pôr pá de cal no assunto, outros sustentam que a cláusula, mesmo legal (Lei nº 8.987/95, art. 23, XII) e


constitucional (CF/88, art. 175, parágrafo único, inc. I) — e o li numa sentença da Justiça Federal de Brasília — tem a natureza de mera faculdade, ato discricionário cuja oportunidade e conveniência dependem do arbítrio dos dirigentes da administração. O poder concedente não precisa de motivos para negá-la. Basta um mal-querer; um despertar de mau humor ou o desejo de favorecimento a padrinhos ou a amigos. Quem sustenta que a cláusula prorrogatória não vale nada rasga a teoria geral do Direito e ignora a existência do § 2º do art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil. Ali está positivado o direito condicional como direito adquirido. O direito condicional não é uma expectativa de direito [que não é direito] mas, como diria o esquecido grão-mestre Pontes de Miranda, um direito expectativo [que direito é]. O direito condicional existe desde sua constituição, assim como o nascituro que possui direitos mesmo antes de nascer. O problema está na condição, para que o direito se liberte da condição e encontre sua realização plena. Comparo o direito condicional a um barco preso ao cais pelas suas amarras. Imagino que a condição é que permite a desatracação. O barco só navega quando as amarras da condição que o prendem ao cais são desatadas. Mas o barco lá está, já existe, à espera da ordem de partir quando as condições previstas ocorrerem. Assim, quando alguém contrata e o contrato contém o prazo inicial e o de prorrogação [condicional], o contratante tem ciência de que, implementando a condição [o bom desempenho], não está sujeito ao arbítrio do outro contratante. O implemento da condição liberta o direito, já adquirido, cujo exercício está simplesmente travado. Nesse passo, peço licença para sugerir a leitura de Parecer de Ives Gandra da Silva Martins acerca da cláusula de prorrogação dos contratos de concessão do Estado do Rio Grande do Sul2. Ali o tema dos direitos condicionais está claramente explicado com apoio em Clóvis Bevilaqua, Caio Mário e outros mestres da matéria. As algemas e como abrí-las O Presidente Fernando Henrique não tinha bola de cristal para saber que sua decisão iria explodir no epicentro de uma crise internacional, cujo último precedente, de 1929, abalou a economia mundial tal como esta. Mesmo que crise alguma tivesse existido, nenhum administrador pode afirmar, dez anos antes, que é inconveniente e inoportuno que, no futuro, tal ou qual ato da administração venha a ser ou não praticado. Oportunidade e conveniência constituem um espaço de liberdade do administrador e não um ato de futurologia. Oportunidade diz respeito ao momento presente, jamais ao momento futuro. Conveniência, por sua vez, se mede pelo metro do interesse público sobre uma situação atual. Administração não é premonição. O art. 42 da Lei nº 8.987/95 considerou válidos os contratos e atos de outorga anteriores pelo prazo neles estabelecidos. Cortar o prazo de prorrogação como se não fosse prazo fere a lógica mas, considerado natural até agora, transformouse numa lógica aparentemente imutável. O Presidente

Fernando Henrique algemou o Presidente Lula e este transferiu as amarras para os pulsos da ANTT. A chave, capaz de abrir as algemas, não está, porém, no Supremo Tribunal Federal, que já as regulamentou para evitar abusos e espetáculos pirotécnicos de poder policial. Está no bolso do Presidente da República e nas gavetas do Congresso Nacional. O Presidente, por decreto, para fiel execução da lei (Constituição, art. 84, IV) pode revogar o art. 98 do Decreto nº 2.521/98 e repristinar o anterior, o art. 94 do Decreto nº 952/93; ou o Congresso, por decreto legislativo, tem competência para sustar o ato normativo do Poder Executivo, exorbitante do poder regulamentar (Constituição, art. 49, V). Ou um ou outro tem a chave da solução. A questão está em que o clamor do fato tem de subir as rampas de acesso ao poder. Quando a indústria automobilística acordou com seus pátios congestionados de automóveis sem compradores, o Presidente a escutou e a socorreu. Um automóvel é ele e centenas de circunstâncias, como poderia dizer Ortega y Gasset. O mesmo ocorreu com a indústria de motocicletas, concorrente direta dos ônibus urbanos. Quando as fábricas anunciaram que a demanda estava sendo drasticamente reduzida, o Presidente as acudiu. A construção civil, em função do emprego, também foi ajudada. Eletrodomésticos, igualmente. Os bancos tiveram liberados substanciais recursos para impedir que a crise no crédito paralisasse a economia do País. Por óbvio, nem por isso os juros ficaram menores. O Presidente tomou sábias e rápidas decisões para contornar os efeitos da crise internacional na economia interna. Pode ser que o ruído de muitos motores do sistema interestadual de ônibus seja escutado antes que boa parte deles pare definitivamente e o silêncio caia sobre as garagens enlutadas. Se isso é natural, será imutável. Depende de nós dizer não. No Seminário do “Valor Econômico”, ao fim de minha participação, invoquei o poeta fluminense Eduardo Alves da Costa, quando escreveu “No caminho com Maiakovski”, um poema sobre o tema da omissão, do silêncio, do medo, da inércia... e de suas consequências. “Na primeira noite, eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem, pisam as flores, matam nosso cão e não dizemos nada. Até que um dia o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz e, conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta e não podemos dizer mais nada.” Espero que ainda possamos dizer alguma coisa. NOTAS 1 RESP 443796 / MG e mais uma dúzia de Acórdãos dentro dessa linha 2 Entre outras publicações, pode ser lido em “Questões de Direito Administrativo”, Ives Gandra da Silva Martins, Obra Jurídica Editora, 1999, Florianópolis, págs. 147/163

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As dimensões do direito contemporâneo luso-brasileiro e a crise mundial Ives Gandra Martins Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e CIEE Membro do Conselho Editorial

Foto: Arquivo JC

Nota do editor A Revista Justiça & Cidadania considera-se engalanada com a homenagem que a Universidade do Minho, uma das maiores universidades portuguesas, prestou, pela Cátedra Prof. Carlos Lloyd Braga, no dia 22 de abril último, ao eminente jurista Ives Gandra da Silva Martins, exponencial membro do Conselho Editorial da nossa publicação. A Cátedra Prof. Carlos Lloyd Braga foi criada em homenagem ao primeiro reitor da Universidade, patrono da fundação e exministro da Educação em Portugal, e é atribuída anualmente a uma personalidade de renome internacional que, em sessão pública, profere uma aula sobre um tema atual e significativo, cultural e cientificamente, que neste ano abordou “As dimensões do Direito Contemporâneo Luso-Brasileiro e a Crise Mundial”. As reverências com que a Universidade do Minho reconhe­ ceu o consagrado homenageado corroboram o mérito que o Professor Ives Gandra desfruta internacionalmente com sua cultura e seu elevado conhecimento jurídico. Sua magnífica palestra, que nos orgulhamos de publicar, enriquece mais uma vez as páginas da Revista, além de constituir para os nossos prezados e ilustres leitores uma extraordinária aula sobre as dimensões do direito contemporâneo.

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século XXI deverá conhecer uma profunda revolução nos clássicos conceitos jurídicos, não só a partir de uma visão do Direito Constitucional à luz da soberania das nações, mas também do Direito supranacional, que vai se universalizando pelo prisma da formação dos blocos regionais. Basta ter em mira o denominado “direito de ingerência”, que as nações mais desenvolvidas, em nome de um pretendido consenso de representatividade do concerto das nações, outorgam-se para intervir pontualmente em outros países, como ocorreu, na década passada e na atual, no Iraque, Afeganistão, Kosovo, e Haiti; intervenções estas de maior visibilidade e repercussão. A crise econômica mundial, que abalou o mundo em 2008 ­— cujos reflexos negativos ainda se fazem duramente sentir e deverão continuar a ser sentidos nos próximos trimestres, nos países desenvolvidos e também nos países emergentes —, serviu apenas para mostrar que a alavanca do desenvolvimento mundial, se não concorreu para facilitar a redução de tensões entre os povos e os países, servirá, de rigor e entretanto, para uma reflexão maior e para a conscientização quanto à necessidade de buscarmos soluções jurídicas, que transcendam às clássicas formulações do Direito estável e nacional, do passado. É bem verdade que, após a 2ª Guerra Mundial, os primeiros organismos supranacionais de atuação efetiva foram surgindo, como a ONU, com os órgãos a ela ligados; FAO, Unesco, etc.; o FMI; o Banco Mundial; a própria OCDE e, mais recentemente, com assunção das principais atribuições do GATT, a OMC; além do modelo europeu, hoje compaginando na Comunidade vinte e sete nações, dotado de pelo menos seis órgãos de administração jurídica além fronteiras, que servem de modelo para o mundo (Parlamento, Comissão, Conselho, Tribunal de Contas, Tribunal de Justiça e Banco Central). Por outro lado, formam-se blocos de menor expressão, como o Mercosul, o pacto Andino e outros grupos regionais, que começam a dar seus primeiros passos para abandonarem as características de mera zona de livre comércio e transformaremse em autênticas uniões aduaneiras, objetivando um futuro mercado comum. Estes primeiros passos, de extrema relevância, nos últimos sessenta anos, não representam senão o início de uma escalada que deverá, a meu ver, desembocar, até o fim do século, num Estado Universal, como defendi no livro escrito em 1977, “O Estado de Direito e o Direito do Estado”. Não desconheço, todavia, as dificuldades para que isto ocorra, decorrentes das diferenças do estágio de civilização em que se encontra cada país, de costumes, cultura, conflitos de natureza religiosa e social, nacionalismo predominante e fanatismos, que levam ao radicalismo e ao terrorismo. O certo é que estes problemas ai estão à espera de solução. Quando da invasão da Europa pelos mouros, em 711, e que durou até 1492, quando foi batido o último reduto de Granada, não se vislumbrava, durante seus primeiros séculos, uma solução europeia e não moura para a região invadida. O que vale dizer: sessenta anos de novas experiências convivenciais, de um comunitarismo universal, nada obstante

os choques, inevitáveis em qualquer processo de implantação, é muito pouco tempo, na busca de novas alternativas para a integração da humanidade, na aldeia global em que o mundo se transformou. Thomas Friedman, em seu livro “O mundo é plano”, demonstra como o mundo se estreitou na economia e no mercado de empregos, sendo hoje o custo/benefício a alavanca permanente desta integração. Principalmente, na área de serviços ela permite que pessoas no mundo inteiro prestem serviços entre si, sem que os usuários tenham qualquer noção de quem os está prestando. Quantas declarações de imposto de renda, nos Estados Unidos, são feitas por competentes e menos onerosos especialistas indianos, que desconhecem os contribuintes — chegam-lhes os números e não os nomes — e sem que os declarantes saibam quem as elaborou. O mundo, portanto, que tanto evolui nesta integração supranacional, com a consequente e necessária formulação jurídica, deverá ultrapassar novas barreiras, nos próximos noventa anos, ou seja, até o fim do século, aprendendo com a crise atual e aproveitando-a para melhorar os instrumentos de integração. Algumas das exigências regulatórias são universais e, embora timidamente adotadas, por variados motivos, inclusive a falta de pronta adesão dos países mais poderosos, deverão ser implementadas como condição de sobrevivência mundial. As questões ambientais estão a exigir rápido entrosamento entre todas as nações — principalmente os Estados Unidos, reticentes quanto ao Protocolo de Kyoto —, visto que o aquecimento global, tal qual um câncer recém-detectado e no início, se não for combatido com medidas urgentes, universais e mediante sanções efetivas, também de âmbito geral, poderá gerar, ainda nos próximos 50 anos, colapsos incomensuravelmente superiores aos impactos das crises econômicas, políticas ou das guerras regionais, que continuam a macular a evolução da humanidade. A necessidade, neste campo, da implantação de regras jurídicas de preservação ambiental de caráter mundial deve suscitar o interesse das nações, principalmente após a deterioração, ano após ano, da qualidade de vida, o surgimento de tormentas e cataclismos naturais e as alterações incontroláveis do clima, com reflexo negativo em toda a produção agropecuária, como também na própria vida dos centros urbanos. As medidas são urgentes, todas as nações devendo se voltar para a questão, cuja regulação jurídica deve ser universal, com aprovação, pelo direito local de cada uma, do que for decidido no consenso das nações, como forma de preservação do meio ambiente. À evidência, as nações que têm um custo maior de preservação ambiental, principalmente se emergentes, deverão poder partilhá-lo com as nações mais desenvolvidas, mediante, por exemplo, um Fundo compensatório que permitiria um real combate às causas de degradação do meio ambiente. Não creio que, de imediato, isto seja possível, visto que o câncer da deterioração ambiental, do aquecimento global, 2009 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 31


começa apenas a ser detectado. Mas, não tenho dúvidas: quando a gravidade da corrosão do meio ambiente for percebida por todos os povos do mundo, todos os países serão forçados a participar de uma solução global. A urgência de uma regulação universal para a preservação do meio ambiente além do tímido Protocolo de Kyoto, não é o único problema a exigir a conformação de um direito supranacional. Outra questão que está a demandar regulação mundial mais precisa é a que envolve o comércio internacional, o mercado de capitais e o sistema financeiro. A crise de 1929 permitiu o aperfeiçoamento dos mecanismos de controle das crises, com a multiplicação dos bancos centrais, em todo o mundo, assim como a criação e o fortalecimento do FMI, do Banco Mundial, da OMC e da OCDE, com variado elenco de medidas possíveis para solução de controvérsias. Os primeiro e segundo choques do petróleo, na década de 70, levaram as nações desenvolvidas ao retorno às soluções protecionistas no comércio internacional, após a Rodada de Tókio, em 1979, concomitantemente à reunião da OPEP, que estabeleceu o aumento do preço do petróleo (Viena). Na época, tal comportamento contou com a tolerância do GATT, para com as nações desenvolvidas que o adotaram, a partir dos dois eventos. As nações emergentes, todavia, altamente endividadas ainda por decorrência do primeiro choque e dependendo do fortalecimento dos mercados externos que se fecharam, despencaram. A década de 80 foi considerada uma década perdida, com inflação e crescimento pífio para a maioria das nações, inclusive com a declaração das moratórias mexicana (82) e brasileira (86). A moratória brasileira foi mais consistente, porque, não só continuou o país pagando os juros da dívida, como se comprometeu a pagar o principal em prazo certo. O Brasil, no curso daquela própria década e na seguinte, reduziu sua dependência externa a valores inexpressivos para a dimensão de sua economia, o que não ocorreu com a Argentina, ao decretar a moratória do início do século XXI, cujos reflexos perduram até hoje. O certo é que aquela crise e as posteriores, das décadas de 80 e 90, não afetaram as grandes economias. A queda do Muro de Berlim e a globalização da economia permitiram que as nações emergentes se recuperassem, vencendo, inclusive, o fantasma da inflação, com crescimento superior ao das nações desenvolvidas. Algumas nações emergentes ganharam especial destaque, entre elas o Brasil, a Índia, a China e a Rússia, após o colapso do império soviético. A crise de 2008, todavia, teve globalização semelhante à crise de 29, com a diferença de que os mecanismos de consulta e atuação conjunta das nações permitiram que seus efeitos, embora terrivelmente impactantes, fossem menores que os de 1929. O diferencial foi a maior resistência à recessão, nos países emergentes, que, a meu ver, por terem um padrão de vida menor que o das nações civilizadas, adaptaram-se melhor à nova realidade. 32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2009

De qualquer forma, revelou-se que o mercado de capitais não encontrou ainda uma regulação capaz de evitar as grandes oscilações das bolsas e do sistema financeiro. Este último, mais preocupado com o aspecto formal dos créditos das instituições financeiras, descuidou-se da verificação de sua qualidade sobre permitir uma multiplicação de operações no vazio, a ponto de transformar-se num mercado virtual de papéis, sem lastro. Creio que será mais fácil a correção do sistema financeiro, desde que o FMI e os bancos centrais do mundo inteiro se orientem para adoção de normas mais rígidas quanto à multiplicação da moeda virtual e um controle direto e eficiente na qualidade dos papéis em que se lastreia o sistema. Mais difícil será a operacionalidade do mercado de capitais, em que o jogo é inerente a sua existência e em que os operadores do mercado têm mais força que os governos. Creio que seria desejável a adoção de regras também mais rígidas, no caso de oscilações, ocorrendo intervenção, por exemplo, sempre que os papéis experimentem, em um dia, oscilação superior a um determinado percentual não muito elevado, devendo ser retirados do mercado por período mais longo (1 ou 2 semanas), não como hoje, em que se suspende o prazo de negociação por um breve período. Dessa forma tornar-se-ia o jogo — que sempre existirá — um pouco mais controlável. Estou convencido de que uma regra mundial de controle mais efetivo é necessária, sendo a aplicação de um direito supranacional nitidamente mais abrangente, mais interventiva e mais universal. O meio ambiente e o direcionamento de investimentos são dois campos em que a integração mundial, tornando o mundo menor, faz-se necessária. E a crise, certamente, levará a soluções jurídicas universais mais abrangentes, entre elas, a de maior controle jurisdicional. A questão da integração entre as nações será passo decisivo para a criação de um Estado Universal ou uma confederação de países, semelhantes à União Europeia, de natureza global. À evidência, tais problemas somente poderão ser superados com o diálogo à exaustão e jamais com represálias de idêntica violência. É o caso do islamismo, pluridividido, cujas correntes mais radicais ressuscitam lideranças do século VII e VIII — do tempo da invasão da Europa —, sustentam que os poderes político e religioso se confundem e preconizam a eliminação daqueles que consideram infiéis, com atos de terrorismo espalhados por todo o mundo, no estilo de Bin Laden. Essa visão político-religiosa, para a qual o terrorismo é uma forma de atingir a vida eterna em grau de santidade, ao ponto de as “bombas-humanas” serem permanente instrumento de ataques inesperados, é um tipo de marginalidade que não pode ser combatida pelos métodos clássicos, utilizados contra marginais que pretendem conservar a própria vida. No fanatismo religioso, tal ataque à humanidade nãomulçumana faz-se por convicção. Quando o terrorista está disposto a sacrificar a própria vida, é porque suas convicções


Fotos: sxc.hu

são irremovíveis; ele age na certeza de que faz o certo e que Alá o protege, incentiva e lhe dará uma vida eterna de bemaventuranças. Conter o terrorismo político-religioso em linha armada e ameaça de pressões, inclusive pena de morte, nada significa. Tem havido, todavia, evolução nos próprios costumes dos países sujeitos à disciplina político-jurídica religiosa islâmica. As mulheres, antes condenadas a secundário papel, hoje cursam universidades e adquirem conhecimento e força que as levará, certamente, a conquistas semelhantes às obtidas pelas mulheres ocidentais nos séculos XIX e XX. Tal nivelação levará, no futuro, uma sociedade de homens a conviver em igualdade de condições com as mulheres, como ocorre no Ocidente, e à compreensão, como no cristianismo, de que os dois planos (político e religioso) não se confundem, a não ser na busca de valores éticos, matéria em que não há imposição possível. O futuro Estado laico não será, necessariamente, ateu, mas um Estado em que convivem os que acreditam e os que não acreditam em Deus, procurando criar uma estrutura jurídico-política capaz de dar, como dizia Bentham, a maior felicidade possível ao maior número de pessoas. Os focos de intolerância político-religiosa permanecem ainda, de rigor, no Tibete chinês, na Índia, no próximo Oriente, na Irlanda e na Inglaterra, Paquistão, Índia, mas estou convencido, nada obstante os incidentes mais graves que ocorrem ou possam ocorrer — ­ como, recentemente, a questão palestina —, que até o fim do século clara ficará a sábia afirmação de Cristo, ao responder aos fariseus: “Dai a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que a Deus pertence”. E a regulação jurídica internacional tenderá, a meu ver, a consagrar o princípio. O problema da pobreza e das diferenças étnicas também

“O meio ambiente e o direcionamento de investimentos são dois campos em que a integração mundial, tornando o mundo menor, faz-se necessária.” permanece, no início do século, mas, num Estado universal, tenderão a merecer solução melhor. Muito se falou a respeito do holocausto, considerado crime contra a humanidade e contra um povo em especial, uma das chagas na história da humanidade. Nos dias que correm, todavia, a denominada “purificação étnica” ocorre em diversas regiões da África, às vistas insensíveis da comunidade internacional, não interessada, ainda, em intervir no continente africano, como o fez na Europa e no Oriente próximo. O próprio desenvolvimento lá chegará, não apenas pelas armas que tais povos já obtiveram, mas pelo conhecimento. Creio que, nada obstante a criminosa omissão das nações desenvolvidas, haverá redução, nas próximas décadas, da violência, com a evolução desse continente de potenciais riquezas capazes de torná-lo, no futuro, um dos mais prósperos, na medida em que se detecta o esgotamento das riquezas das nações mais desenvolvidas, no potencial ofertado pela natureza. Em outras palavras, a evolução cultural de todos os povos deverá permitir um diálogo mais sério pela sobrevivência da Terra. Ora, à medida e na rapidez que a evolução tecnológica 2009 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33


torna a Terra cada vez menor e os povos cada vez mais próximos, a busca de uma universalização semelhante à experiência vivida pela comunidade europeia imporse-á à humanidade, talvez com a criação de uma efetiva confederação de nações, com organismos internacionais semelhantes aos da União Europeia, mas com poder de atuação mais efetivo que a UE oferta. A integração de todas as nações, numa confederação desta espécie, exigirá vocação e convivência mais harmônica, em que o direito de ingerência ganhará outro perfil, mediante forças de segurança para a integração e a paz entre as nações. Ganhará, pois, especial relevância uma confederação forte e convivencial, com forças armadas avançadas modernamente equipadas para intervir com eficácia e eficiência em qualquer parte da confederação. A ONU, pois, seria substituída por uma autêntica confederação de países, com uma autonomia quase soberana, ou uma soberania com ares de autonomia, vinculadas, todas as nações, a um poder central, como ocorre, nas Federações, com os Estados, Províncias ou Cantões, que possuem autonomia vinculada a um governo centralizador. O princípio da solidariedade universal a ser juridicizado é a única forma, que, no tempo, permitirá a superação de questões de desinteligências e desintegrações, o que implicará, necessariamente, aceitação da maneira de ser de cada povo e de cada cultura, com seus valores preservados. Ódio gera ódio. Contra o terrorismo não profissional, mas por convicção, a arma não é adotar reação idêntica. O diálogo é a única forma. Lembro-me de um conto russo que li, quando menino, de sete cavaleiros invencíveis que um dia se reuniram para comemorar sua invencibilidade. Surgiu, todavia, um cavaleiro andante para desafiá-los. De um só golpe um dos sete invencíveis dividiu-o, mas, para sua surpresa, do cavaleiro cortado ao meio surgiram dois, que, também divididos de um só golpe, transformaramse em quatro. Todos os cavaleiros invencíveis decidiram, então, combater os quatro, que foram se multiplicando a cada divisão até que, após sete dias de lutas, os sete cavaleiros invencíveis foram derrotados pela multiplicação de cavaleiros andantes nascidos de cada derrota individual. Temo que a luta armada contra o terrorismo derivado do fanatismo possa levar a uma multiplicação idêntica. Temo que Israel não esteja percebendo que, estando cercado de islâmicos por todos os lados, a única solução possível é o diálogo à exaustão para aprenderem a conviver. Estou convencido de que, até o fim do século, a questão será solucionada, mas até lá, enquanto para cada ação houver idêntica reação, teremos muita instabilidade, dor e sofrimento. A estes problemas acrescentar-se-á o fantasma do desemprego, originado por crises e pela substituição do homem pela máquina. Nenhuma legislação nacional consegue equacioná-lo, pois o emprego é determinado pelo mercado e a competitividade termina por ter no fator preço elemento relevante. Como a máquina não faz greve, não tem direitos, não tira férias e trabalha sem reclamar, o 34 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2009

desemprego crescerá. Um Estado Universal poderá melhor regular a oferta de emprego e instituir uma única legislação laboral. Creio numa confederação mundial até o fim do século, mais forte que a União Europeia e com mais poder de intervenção para conduzir a humanidade, com todos os povos sendo representados no Parlamento global e nos órgãos diretivos da instituição política máxima, com regulação supra-constitucional. O gênio de Gene Rodenberry, em seu “Jornadas nas Estrelas”, criou uma federação que rendeu a edição de mais de setecentos episódios e dez filmes de longa metragem. Como regra primeira, imposta aos comandantes das naves interestrelares, estava a de não intervir na maneira de ser de cada povo, buscando sua integração à federação, em todas as galáxias, com respeito a seus costumes. Creio que o mundo, que avançou tecnologicamente com as especulações de ficção científica de um Verne, de um Da Vinci, de um Wells 1, poderá muito aprender com este gênio da ficção científica do cinema. Estou convencido de que, como os sonhos verneanos foram se transformando em realidade, assim também, um dia, uma confederação dos países permitirá o surgimento de um Estado universal, onde, com maior facilidade, se eliminarão os conflitos. Não no ideal Kantiano de uma paz perpétua, através da democracia, mas de uma integração de todos os povos, num regime jurídico universal e abrangente, que respeite a maneira de ser de cada povo. E, neste particular, a maneira de ser da civilização lusíada, em que a integração foi sempre o elemento de maior presença, poderá servir de exemplo. Haja vista que, em idêntico espaço americano, conseguiu manter um país único, com variadas formas de cultura, ao contrário da América Espanhola, que se pulverizou em um número enorme de nações. E a prova maior reside numa integração consideravelmente mais relevante entre as diversas raças no Brasil do que em outras nações, ao ponto de todas as culturas que se somaram posteriormente à portuguesa lá conviverem em perfeita harmonia, inclusive judeus e muçulmanos, que, muitas vezes, reúnem-se em cerimônias comuns, numa demonstração de que culturas diferentes podem viver harmonicamente. Adriano Moreira, no 1º Congresso das Comunidades de Língua Portuguesa, em 1964, afirmou que há uma maneira de ser diferente do português, na sua presença no mundo. E esta maneira de ser, que permitiu a criação de uma nação continental, é aquela que, talvez, possa servir de exemplo para o mundo futuro, na conformação de um Estado Universal lastreado na solidariedade entre os povos. NOTAS Júlio Verne (Vinte mil léguas submarinas; Robur, o conquistador; O castelo dos Cárpatos); Leonardo Da Vinci com os projetos dos aparelhos de voo e George Wells com “A guerra dos mundos” e “A máquina do tempo”.

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MINISTRO CeSAR ASFOR ROCHA ELEITO PRESIDENTE DE CORTE INTERNACIONAL

Da Redação

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Ministro Cesar Asfor Rocha foi eleito em Madri, por aclamação, presidente de novo órgão de cúpula do Judiciário que reúne instituições judiciais de 41 países europeus e latino-americanos. A meta do novo órgão é traçar uma estratégia comum na atuação do Judiciário dos países integrantes, ampliar o acesso à Justiça, tornar a máquina judiciária mais transparente e estabelecer uma cooperação jurídica internacional através do fortalecimento da comunicação institucional. O órgão pretende também combater a corrupção e o crime organizado. O presidente da Associação de Magistrados Brasileiros (AMB), juiz Mozart Valadares, afirmou que a eleição de Asfor Rocha é o reconhecimento do seu trabalho. “Esta eleição é a fusão do reconhecimento internacional do Poder Judiciário brasileiro e do notório trabalho do ministro Cesar Asfor Rocha”. Mozart disse acreditar que a integração será boa para todos os países membros do órgão. “Esse intercâmbio trará, com certeza, benefícios para o Brasil e para os 41 países membros da instituição”, disse. A eleição ocorreu no final da sessão que instalou a Comissão Conjunta de Trabalho da Cúpula Judicial Ibero-Americana e da Rede Europeia de Conselhos de Justiça. Estavam presentes 36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2009

no evento representantes do Supremo Tribunal de Justiça da Espanha, ministros de Estado, o embaixador do Brasil na Espanha e embaixadores de outros países. REUNIÃO PLENÁRIA – A Assembleia plenária, ocorrida em março de 2008, no Superior Tribunal de Justiça, realizada pela XVI Cúpula Judicial Ibero-Americana, aprovou a criação da Comissão Conjunta de Trabalho entre a Cúpula Judicial Ibero-Americana e a Rede Europeia de Conselhos de Justiça. A Comissão buscará a comunicação e o diálogo direto entre as instituições jurisdicionais e governamentais máximas do Poder Judiciário dos países da Europa e latino-americanos. A instituição terá, entre outras atribuições, que elaborar documentos informativos, estudos periódicos sobre a situação da Justiça nos países com instituições pertencentes às estruturas que a compõem, promover iniciativas que melhorem os canais de comunicação com outras instituições e estabelecer intercâmbio de experiências e de práticas bem sucedidas. A eleição do Ministro Cesar Asfor Rocha para a presidência desse órgão internacional é o reconhecimento do trabalho que vem realizando e das iniciativas modernizadoras e práticas que tem implantado nos vários órgãos judiciais que tem participado e dirigido.


Ministro Cesar Asfor Rocha, presidente do Superior Tribunal de Justiça

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A Política das Cotas nas universidades públicas e o princípio da igualdade

Celso de Albuquerque Silva Procurador Regional da República

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Introdução Constituição Brasileira, que acaba de completar 20 anos de sua promulgação, representou um marco no desenvolvimento e planejamento de uma nova sociedade democrática, devendo ser compreendida contextualmente como um documento que tem por finalidade assegurar um modelo de democracia associativa. A democracia associativa, superando a díade indivíduo/ comunidade, promove, sem desprezar as características individuais do ser humano, o reencontro do indivíduo com a sociedade, assumindo a tarefa de substituir uma igualdade formal do “sujeito de direito”, por um sistema de distribuição de recursos e oportunidades baseado em um princípio substantivo de igualdade que, sem rejeitar qualitativamente as inegáveis vantagens da igualdade abstrata dos sujeitos de direito, a ela agrega quantitativamente uma concepção positiva de liberdade que trate as pessoas como indivíduos reais que possuem necessidades a serem obrigatoriamente atendidas. A concepção de igualdade democrática associativa incorpora a noção que liberdade não é apenas liberdade de “alguma coisa”, mas a liberdade de positivamente se realizar como pessoa humana e viver a vida que entende como boa, questão na qual se insere a temática das cotas nas universidades públicas. O tema das cotas em universidades está na ordem do dia

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da pauta política com o atual debate que se trava no Congresso sobre a necessidade, conveniência e mesmo constitucionalidade da instituição de cotas nas universidades federais1. A situação não é diversa no Judiciário. Atualmente, os Tribunais Regionais Federais da 1ª e 4ª Região já se pronunciaram pela sua constitucionalidade. O Tribunal Regional Federal da 5ª Região entende pela sua inconstitucionalidade enquanto não existir lei em sentido formal autorizando tais políticas, e o Tribunal Regional da 2ª Região ainda não tem posição definida. O Supremo Tribunal Federal deverá se pronunciar sobre o tema brevemente na ADI nº 3.197, proposta pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino contra a Lei nº 4.151/2003, do Estado do Rio de Janeiro, que instituiu o sistema de cotas na UERJ e UENF. Aqui se busca demonstrar a constitucionalidade das ações afirmativas em ensino superior, fazendo uma correlação entre o sistema de cotas e o princípio da igualdade de recursos. O princípio da igualdade – evolução histórica de seu sentido e conteúdo Historicamente, o princípio jurídico de que todos os cidadãos pertencentes à pólis devem ser destinatários, por parte do Estado, de um tratamento de igual consideração e respeito apenas tendo em conta a sua dimensão moral enquanto


pessoa humana, está nas sociedades ocidentais ligado ao desenvolvimento da teoria do Estado. No Estado absolutista precursor do Estado Liberal dos séculos XVII e XVIII, as pessoas não eram concebidas como iguais. É com a instauração do Estado Liberal de Direito que a igualdade de todos os homens perante a lei é afirmada, igualdade esta significando a abolição dos privilégios derivados da ordem social estruturada em castas. É a igualdade formal na liberdade dos Liberais. Com o advento da democracia e do Estado Social nos albores do século XIX e início do século XX, iniciou-se o processo de releitura do princípio da igualdade. A democracia propiciou o surgimento do mercado político2 em que as classes sociais menos favorecidas economicamente aceitam trocar o seu voto por prestações e utilidades sociais até então inacessíveis, conduzindo o Estado a promover uma maior intervenção no mercado econômico, província até então considerada exclusiva da classe burguesa. Essa nova leitura do princípio da igualdade traz uma renovada visão de justiça igualitária. O critério definidor da igualdade passa a ser não mais a capacidade, mas sim a necessidade. Nessa nova concepção, o foco não é mais o indivíduo abstrato e racional idealizado pelos filósofos iluministas, mas a pessoa de carne e osso, com necessidades materiais que precisam ser atendidas, sem as quais não consegue nem mesmo

exercitar suas liberdades fundamentais. Parte-se da premissa de que a igualdade é um objetivo a ser perseguido através de ações e políticas públicas, e que, portanto, ela demanda iniciativas concretas em proveito dos grupos desfavorecidos. É a igualdade do Estado Social que se convencionou chamar de igualdade material em contraposição à igualdade formal do Estado Liberal. Nesse primeiro momento, igualdade formal e igualdade material são apresentadas como virtudes antitéticas, vez que a primeira ampliaria a liberdade, para que cada indivíduo se desenvolvesse segundo sua capacidade, enquanto a última restringiria a liberdade individual em favor da coletividade. Ao Estado Social segue-se o Estado Democrático de Direito. Este, informado pelos valores da igualdade e liberdade, reconhece que em uma sociedade plural como a atual, a igualdade material não é a homogeneização forçada. Convém que ela (a igualdade) possa navegar entre as demandas de um tempo que é centrado na multiplicidade de suas vozes. Nesse diapasão, a filosofia política contemporânea busca articular um conceito de igualdade que contemple a diversidade cultural, pois nela se contém o reconhecimento de que todos têm igual liberdade de ser diferentes e viver de acordo com essas diferenças. Não se trata, portanto, de um lado, de simplesmente excluir os méritos, as capacidades e as consequências de escolhas e modos de viver livremente adotados pelos membros da coletividade enquanto 2009 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 39


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“A Constituição brasileira erigiu como princípio fundamental a eliminação da pobreza e a superação das desigualdades sociais, com o firme combate a qualquer forma de discriminação e com a construção de uma sociedade, ao mesmo tempo em que livre, justa e solidária.”

Procurador Celso de Albuquerque Silva

indivíduos, nem de outro, de excluir a responsabilidade coletiva desse mesmo indivíduo, enquanto componente de uma comunidade, mas fazê-los complementares e sinérgicos. Igualdade e liberdade no final do século XX e início do presente século trabalham lado a lado para assegurar o respeito à dignidade da pessoa humana e a justiça social. Nesse labor de harmonização, exige-se que o sistema de princípios abstratamente considerado, seja interpretado de modo a se conformar uma unidade coerente. Essa a linha desenvolvida por Ronald Dworkin. Para superar a tradicional tensão entre os dois princípios, o autor estrutura, a partir dos pressupostos do liberalismo igualitário, um modelo de “igualdade de recursos”. Através desse modelo, Dworkin procura conjugar a responsabilidade do indivíduo pelas escolhas que faz com a responsabilidade da sociedade pelo estabelecimento de um contexto adequado para que as escolhas individuais possam se realizar. A mediatriz dessa dupla responsabilidade impõe ao Estado o papel de estabelecer um sistema distributivo que confira a todos iguais recursos para que possam realizar seus projetos de vida. As diferenças aleatórias que decorrem, por exemplo, dos talentos naturais ou da sorte de cada um, serão objeto de redistribuição. Mas as diferenças que resultarem das opções pessoais, feitas de forma materialmente autônoma, não serão anuladas. Garante-se, com isso, simultaneamente e de modo harmônico e sinérgico, a liberdade e a igualdade3. 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2009

Política de cotas, igualdade, Justiça distributiva e princípio meritocrático A Constituição brasileira erigiu como princípio fundamental a eliminação da pobreza e a superação das desigualdades sociais, com o firme combate a qualquer forma de discriminação e com a construção de uma sociedade, ao mesmo tempo em que livre, justa e solidária. Um dos valores mais essenciais do Estado Democrático de Direito, delineado através da Carta de 1988, é o da justiça social, diretamente relacionado ao princípio da dignidade da pessoa humana. A realização desses ideais é proposta assumida por toda a sociedade e imposta ao Estado. No particular, todos concordam; mesmo os críticos das políticas de cotas. Para os críticos das ações afirmativas, a justiça social deve ser alcançada unicamente através de políticas de caráter universalista que tenham por objetivo reduzir a pobreza e promover significativas melhoras sociais. Assim, a solução compatível com o acesso meritocrático ao ensino superior, nos termos do artigo 208, V, da Constituição Federal, seriam políticas públicas universalistas de melhoria do ensino fundamental e médio e jamais a adoção de políticas públicas discriminatórias e parciais de ação afirmativa. A defesa intransigente e radical do igualitarismo formal universalista em detrimento do igualitarismo material não radical parte da premissa equivocada de que há uma incompatibilidade natural entre políticas universalistas e


políticas afirmativas, quando na verdade existe uma estreita relação de complementaridade entre elas, na medida em que ambas decorrem do mesmo princípio da igualdade, variando apenas de grau. Nesse sentido é relevante a constatação de que o próprio Constituinte traz elementos desse sistema complementar de concretização da igualdade substancial ao prever expressamente pelo menos duas políticas de ação afirmativa em favor de minorias: o dever de proteger o mercado de trabalho da mulher ainda que através de políticas especiais (art. 7º, XX) e a reserva de vagas para pessoas portadoras de deficiências (art. 37, VIII). Como visto anteriormente, esta concepção de igualdade na filosofia política atual possibilitou uma reconciliação entre os valores da igualdade e da liberdade, entendidos, em um contexto pós-moderno pluralista e multicultural, como aspectos distintos do mesmo ideal de associação política. O ideal democrático. É o princípio da igualdade material de recursos que permite compatibilizar, de forma coerente e sinérgica, o estabelecimento de cotas para minorias com o princípio do mérito individual. É que a igualdade material de recursos se estrutura em dois princípios fundamentais do individualismo ético: o primeiro é o da igual importância, a afirmar que do ponto de vista objetivo, a vida humana seja bem sucedida, em vez de desperdiçada, tal como previsto na Constituição Federal, nos art. 1º, caput e inciso III, art. 7º, caput, e art. 205. O segundo princípio é o da responsabilidade especial, que assume a premissa de que, embora toda a coletividade deva reconhecer a igual importância objetiva no êxito da vida humana, um indivíduo, uma pessoa, tem a responsabilidade especial e final por esse sucesso — a pessoa dona de tal vida. Esse princípio é relacional e não ético e nesse sentido não despreza qualquer vida, seja tradicional, rotineira e enfadonha, seja inovadora, aventureira e excêntrica, contanto que essa vida tenha sido conscientemente endossada pelo indivíduo que a escolheu. (CF, art. 208, V). A igualdade material de recursos impõe ao Estado o dever de estabelecer um sistema distributivo que garanta iguais recursos a todos os cidadãos para que possam realizar seus projetos de vida. Para alcançar esse desiderato, assume que as diferenças aleatórias que decorrem, por exemplo, dos talentos naturais ou da sorte de cada um serão objeto de redistribuição, pois a correção dessas diferenças é de responsabilidade coletiva em razão do primeiro princípio da igual importância. Por outro lado, as diferenças que resultarem das opções pessoais, feitas de forma materialmente autônoma, não serão anuladas, sendo de responsabilidade do indivíduo, em função do segundo princípio da responsabilidade especial4. Assim, diante da igualdade material de recursos, não há como não reconhecer a constitucionalidade do sistema de cotas que procura melhorar as condições econômicas e sociais de parcela da sociedade excluída, seja por raça, cor ou condição econômica, ao reservar vagas para competição entre membros dessas minorias, máxime quando se reconhece que

educação é um recurso essencial à melhoria da qualidade da vida social do indivíduo e condição necessária para a superação da marginalização social e econômica. Por outro lado, a responsabilidade coletiva que impõe ao Estado o dever constitucional de assegurar os recursos necessários para tornar o destino dos cidadãos sensível às opções que fizeram não afasta a responsabilidade pessoal pelas opções eventualmente feitas. É com base no princípio da responsabilidade pessoal que o princípio do mérito deve ser averiguado. De fato, se mesmo sem demonstrar as condições mínimas para aprovação no vestibular, determinado aluno ingressasse na universidade em razão exclusivamente do sistema de cotas estabelecido, haveria clara vulneração do princípio da igualdade material, mesmo a de recursos. Por outro lado, o ingresso do aluno, em razão de seus méritos pessoais, que lhe permitiram alcançar a pontuação necessária para ascender a um curso superior segundo sua capacidade, ainda que aliado a outros fatores como uma política pública de ação afirmativa, não representa qualquer vulneração ao princípio da igualdade e do mérito, mas ao revés, sua plena observância e respeito. Conclusão Acreditamos ter demonstrado que os princípios da igualdade e da liberdade acolhidos pelo texto constitucional não conduzem a uma sociedade meritocrática baseada apenas em números, mas ao revés refundam o pacto democrático liberal para forjar uma democracia associativa na qual se reconhece que as pessoas dependem das outras para viver e fruir a vida que julgam boa. Nesse sentido, as políticas públicas de inclusão social, como as ações afirmativas para ingresso no ensino superior, são instrumentos atuais e necessários para que a justiça social seja alcançada, superando-se as terríveis diferenças entre uma pequena classe social abastada e uma grande massa de cidadãos brasileiros excluídos dos bens sociais, funcionando o valor da igualdade como um verdadeiro princípio anticastas a significar que, no que diga respeito a capacidades e funções humanas básicas, um grupo social não pode estar sistematicamente abaixo de outro.

NOTAS Sobre o tema veja-se o PLS nº 344/2008 de autoria do senador Marconi Perillo, pronto para pauta na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado e PLC nº 180/2008, de autoria da deputada Nice Lobão, pronto para pauta na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados. 2 BOBBIO, Norberto, “O Futuro da Democracia – Uma Defesa das Regras do Jogo”, Paz e Terra, 5 edição, 1992, pp. 141-143. 3 DWORKIN, Ronald. “A Virtude Soberana. Teoria e Prática da Igualdade”, Martins Fontes, São Paulo, 2005, pp. XIII-XVIII, 200250 4 Sobre a igualdade material de recursos e seu papel na distribuição da responsabilidade coletiva e individual, veja-se DWORKIN, Ronald, “A Virtude Soberana...cit”, cap. 7. 1

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Reformas constitucionais urgentes e inadiáveis

Ney Moreira da Fonseca Desembargador Federal aposentado

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consolidação da democracia no Brasil, em especial a efetiva aplicação do princípio constitucional da moralidade no serviço publico, exige urgentes alterações constitucionais, todas há muito tempo reclamadas pelo interesse público. Com efeito, o artigo 37, da Constituição Federal, estabelece preceitos fundamentais à organização e ao funcionamento hígido de atividades essenciais para o aprimoramento da prática democrática. É preciso urgentemente que a sociedade exija que os políticos (deputados e senadores) retirem da Constituição Federal e das Constituições Estaduais artigos que consagram injustificáveis e manifestos privilégios que afrontem a um só tempo esses princípios da moralidade, da igualdade, da impessoalidade e outros mais que impedem a melhor prática democrática e eficiente dos serviços públicos. Um dos exemplos claros é a forma de composição das cortes de contas por meio de nomeações políticas, em lugar do concurso público. Por que razões os ministros dos Tribunais de Contas da União — TCU e dos Tribunais de Contas dos Estados e Municípios não são escolhidos por meio de concursos públicos de provas e títulos, como qualquer servidor público, observada, rigorosamente, a ordem da classificação, com obrigação de terem domicílio nos locais onde estejam instaladas as sedes das respectivas cortes de contas? Por que razão esses “fiscais das contas públicas” são nomeados, em caráter vitalício, por meio de critérios absolutamente políticos, pelas Câmaras Legislativas e pelo Presidente da República, a quem vão controlar as contas? Qual a isenção que tem um ministro ou um conselho dessas cortes de contas em julgar atos administrativos e financeiros de um governante ou de um partido político que


o nomeou para emprego vitalício tão almejado? Em 12 de outubro passado, o jornal “O Globo” publicou em sua coluna “Panorama Político” o seguinte, in litteris: “Intervenção no TCU – O presidente Lula decidiu intervir nas eleições para o TCU. Acertou com o PMDB o lançamento de uma candidatura para se opor ao ex-senador José Jorge (DEM). Leomar Quintanilha (PMDB-TO) quer.” Essa mesma fórmula, expressa no art. 49, inc. XIII; no art. 52, inc. III, alinea “b” e no art. 73 da Constituição Federal, está reproduzida nas Constituição Estaduais. Só a investidura por meio de concurso público de provas e títulos garantirá ao ministro assim escolhido a independência necessária para o desempenho de tão importante múnus público em defesa dos princípios consagrados no art. 37 da Carta Constitucional. Outro absurdo inominável e que teima em perpetuarse é a eleição de senadores suplentes, eleitos na penumbra de titulares e que, não raras vezes, ocupam a titularidade, com as licenças, afastamentos e falecimentos dos efetivos, ocasionando representação parlamentar na Alta Corte Política sem qualquer respaldo popular, frustrando o próprio desiderato da representação constitucional. Hoje a representação social no Senado se faz por expressiva quantidade de senadores suplentes que, em verdade, não tiveram um só voto. Recentemente, o jornal “O Globo” publicou matéria acerca do tema, em que um senador suplente, que assumiu a titularidade desde o início da legislatura, como consequência do afastamento do titular — que assumiu um Ministério —, disse à reportagem, depois de por ela instado, que seu propósito ao fim do mandato no próximo ano era continuar a ser suplente, já que essa situação é muito mais confortável e segura do que ter que disputar na planície da realidade eleitoral um mandato direto, já que, segundo afirmara, efetivamente não tinha voto. Muitos desses suplentes são, em verdade, financiadores das campanhas dos titulares em disfarçada compra de mandato e, por consectário, de votos. Há não muito tempo, quando exerci o mandato de juiz eleitoral, deparei-me com um caso singular de pleito judicial de cumprimento de obrigação contratual de repartição de tempo de mandato. Foi celebrado formalmente, e por escrito, um compromisso de divisão de metade do tempo de mandato do titular para o suplente de um determinado senador. O acordo não foi adimplido pelo titular, e o suplente postulou seu “suposto direito” junto à justiça Eleitoral, como se mandato fosse coisa, objeto de comércio e ou transação, e não conquista de natureza personalíssima, intuitu personae. Essa prática desnatura a própria representação parlamentar, atingindo mortalmente a democracia. Por quê não acaba com esse absurdo? A resposta é simples. Porque depende da iniciativa dos próprios senadores, que não têm qualquer interesse em revogar esse privilégio, em cortar na própria carne.

A extirpação desse câncer só será realizada por forte pressão popular, com alteração do art. 46 da Carta Magna. Outra prática que é preciso elidir é a duração dos mandatos dos senadores, igualando-os aos dos deputados federais. No plano da organização judiciária, deve igualmente ser revogada a inconveniente prática, sob todos os títulos, de serem nomeados pelo Presidente da Republica os juízes federais, tanto os dos Tribunais Regionais Federais quanto os do Superior Tribunal de Justiça e, sobretudo, os do Supremo Tribunal Federal, com injustificada e inconveniente intervenção de um Poder sobre o outro, violando e violentado o princípio da independência dos Poderes, consagrado como fundamental nos regimes democráticos e impedindo a prática salutar da carreira. A escolha de todos os juízes, federais ou estaduais, deve dar-se somente pelos critérios do mérito e da antiguidade, e a nomeação deve igualmente ser de responsabilidade dos próprios Tribunais e não de outro Poder; no caso, o Executivo. A escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal deve dar-se, pelos mesmos critérios do mérito e da antiguidade, dentre ministros dos Tribunais Superiores, revogando-se, para tal efeito, o art. 101 da Constituição Federal e pondo termo à politização dessas escolhas. Afinal, constitui grave ameaça à soberania e à independência da mais alta Corte Judicial brasileira esse tipo de dependência. Por fim, outra alteração que deve ser implementada com urgência é o estabelecimento de critério seletivo mais eficiente e moralmente justificado para seleção de candidatos a cargos políticos eletivos, em todas as esferas e escalas, pelo mesmo critério da seleção funcional do servidor público, retirando da representação legislativa candidatos com o passado cheio de registros de práticas criminais incompatíveis com os cargos que postulam, estabelecendo nódoas tristes na representação político-eleitoral e estimulando essas condenadas práticas até como fator de impunidade e promoção social. Para tal efeito, deve ser acrescentado um § 9º ao novo art. 101 da Constituição Federal, com a seguinte redação, litteris: “§ 9º. A regra da presunção de inocência, insculpida no inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal, não se aplica ao processo eleitoral, que se rege pelas normas do art. 37, no que respeita à habilitação de candidatos a pleitos eleitorais.” Alterações constitucionais, infelizmente, não podem ser feitas por iniciativa popular, com fundamento no art. 14, inc. III, e na forma do art. 61, § 2º da Constituição Federal, reservadas que estão, a teor do mesmo artigo, aos deputados federais e senadores. Por isso, só a forte mobilização social pode tornar realidade esse importante e urgente desiderato em prol do aprimoramento da prática democrática e aplicação dos princípios da moralidade, da impessoalidade, da publicidade e da eficiência, insculpidos no já tantas vezes citado art. 37 da Carta Magna. Esperamos que essa convocação encontre eco na sociedade. 2009 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43


Da súmula à súmula vinculante

Roberto Rosas Professor Titular da Universidade de Brasília Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional

E

m 1963, há 45 anos, o Supremo Tribunal Federal julgava 3.500 processos; em 2007, centenas de milhares de processos. Naquela época, já pretendia o encontro de solução para o excesso de processos, na chamada crise do Supremo Tribunal Federal, na verdade, crise do recurso extraordinário; porque, naquele tempo, todas as questões poderiam subir ao STF. Em 1957, houve uma comissão de reforma constitucional, e o tema foi aflorado. Houve uma sugestão drástica para a subida do recurso extraordinário. Outros mecanismos foram criados, na linha defensiva, com conteúdo restrito (prequestionamento, revisão de provas, reexame de cláusula contratual, etc.). Nada limitava o acesso. Estabeleceu-se, então, a ideia de corporificação de linhas de pensamento ou solução em verbetes (ou enunciados) daqueles temas mais comuns, principalmente dos procedimentais. A ideia partiu do ministro Victor Nunes Leal, com o apoio decisivo de outros ministros, dentre eles, Gonçalves de Oliveira, Pedro Chaves e Evandro Lins e Silva. Uma parte, dentre os ministros mais antigos, resistia ao estabelecimento desses enunciados, alguns com aviso de não aplicação dos mesmos. Prevaleceu, então, a edição de verbetes, chamados de Súmulas da Jurisprudência Predominante, e assim surgiu a Súmula do STF, em 1963. O maior número concentrou-se nas regras procedimentais do recurso extraordinário (nº 279 – reexame de prova; nº 282 – prequestionamento; nº 288 – traslado completo). A súmula era um instrumento de orientação sobre 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2009

determinado tema. Não se petrificava. Não era imutável, tanto que algumas foram alteradas (e até revogadas pelo STF) (ex. Súmula 152 – alterada pela 494; 388 – cancelada por interpretação, depois restabelecida por força de lei). O passo decisivo na importância da súmula não está no seu momento de elaboração, e sim no futuro, na aplicação, na alteração, no cancelamento. Se os julgadores não a seguem, de nada vale. Se o legislador altera a norma supedânea do texto, ela será alterada ou cancelada. Sem dúvida, ela é grande material de pacificação, ainda que haja discordância do seu texto, como ocorre com a Súmula 400 (razoável interpretação); tão criticada, mas com defensores. A ideia da súmula consolidou-se, e nesses 45 anos os tribunais superiores e os demais tribunais editam suas súmulas, mesmo porque o acesso à jurisprudência ainda é precário. No Brasil, a informação da jurisprudência, isto é, o acesso aos julgados, tem sido prestigiado pelas revistas especializadas, que, naturalmente, editam os acórdãos com atraso. No século XIX e início do XX, a grande difusão foi feita pela Revista “Direito”, de J. J. do Monte. Com o surgimento da “Revista do Supremo Tribunal Federal”, na década de 20, surgiu novo alento nessa informação. Entretanto, essa revista, de edição privada, tornou-se um escândalo, porque a editora foi acusada de receber benefícios fiscais para importação de todo o material (papel, tintas de impressão etc.), e desviar essa finalidade em projetos próprios da editora. Morreu. Surgiu,


Foto: Arquivo pessoal

em 1957, a “Revista Trimestral de Jurisprudência”, editada até hoje pelo próprio Supremo Tribunal Federal. Ao lado, de grande importância e de notáveis contribuições, a “Revista Forense” (desde 1904) e a “Revista dos Tribunais” (desde 1912). É claro que o 1º Regimento Interno do STF (1891) já determinava a publicação de suas decisões no “Diário Oficial” (art. 128, § 19). Atribui-se, portanto, à escassez de informações a dificuldade na divulgação das decisões dos tribunais, e, muitas vezes, a divergência entre julgados sobre a mesma tese, e, às vezes, sobre os mesmos fatos. Acreditamos que o mundo informático melhorou essa difusão, e o acesso é expressivo nos mais longínquos rincões. A Constituição de 1891 impunha à Justiça Federal e à Estadual a consulta à jurisprudência dos tribunais, para a aplicação do direito respectivo (federal ou estadual) (art. 59, III, § 2º). Como observou Castro Nunes, a inobservância da jurisprudência do Supremo Tribunal (que era a segunda instância federal) levava ao recurso extraordinário para corrigir esse desrespeito, e tinha como objetivo a uniformização da jurisprudência na aplicação do Direito federal (“Teoria e Prática do Poder Judiciário”, 1943, p. 539). No processo normativo há a produção da norma e a sua aplicação. São duas atitudes diferentes, porque, ainda que seja importante a relação entre essas duas funções, a primeira surge da técnica legislativa, dentro do processo legislativo, que, além de longo capítulo constitucional, ainda depende de regras internas de elaboração das normas (por exemplo, o manual de redação); a segunda etapa é a da aplicação da norma pelo jurista, especialmente pelo juiz. Este estará diante do dilema ontológico: ser apenas receptor passivo ou, então, integrante da elaboração do direito? O art. 5º da Lei de Introdução não abandona o magistrado, e o ampara, numa colaboração na aplicação do Direito, porque ele se socorrerá dos fins sociais da lei e das exigências do bem comum (Tércio Sampaio Ferraz Jr., “Direito, Retórica e Comunicação”, 2. ed., Saraiva, 1997, p. 68). Veremos, adiante, as várias etapas do processo decisório

judicial e a importante função dos julgados anteriores — que têm várias denominações, como acórdão, precedente, jurisprudência, súmula e direito sumular. Que é acórdão? É a concentração de um julgado. É a forma material da expressão da decisão judicial. Que é o precedente? É uma decisão anterior persuasiva para decisões futuras. Não é compulsória; apenas norteará o futuro julgador a seguir aquela decisão. Serve de informação, de simplificação de trabalho. Não é obrigatório. Que é a jurisprudência? Significa mais do que o precedente. Pode, até, ser formada com um precedente. Se o Supremo Tribunal, em sessão plenária, ou o Superior Tribunal de Justiça, em sessão da Corte Especial, decidem num julgamento, em um processo sobre determinada tese, ali estará a jurisprudência. É claro que o prestígio dessa jurisprudência será maior com a ratificação de outros julgados. Não sendo julgamento de órgão plenário, somente pode entender-se a jurisprudência com a consolidação de julgados reiterados. Que é a súmula? Esta reflete a jurisprudência de um tribunal ou de uma seção especializada autorizada a emitir a consolidação (v. voto do Min. Carlos Mário Velloso sobre conceito de súmula, na ADIn 594 (RTJ 151/20). Que é direito sumular? É o reflexo do Direito emanado de súmulas de um tribunal. Concluímos, então, que não importa o nome quando o tribunal fixa entendimento e diretriz. É a chamada força vinculante da decisão, pouco importa o nome — orientação precedente, jurisprudência, súmula. Como afirma Calmon de Passos — seja o que for, obriga (“Revista do TRF da 1ª Região”, v. 9, n. 1, p. 163), porque repugnam decisões diversas, baseadas em interpretações diversas, sobre a mesma regra jurídica. Como observa a ministra Ellen Gracie Northfleet, a maioria das questões trazidas ao foro, especialmente ao foro federal, são causas repetitivas, e, embora diversas as partes e seus patronos, a lide jurídica é sempre a mesma (“Ainda sobre o efeito vinculante”, “Revista de Informação Legislativa”, n. 131, p. 133). Há conteúdo compulsório em tudo isso e, portanto, a obediência a essas decisões, por todos os níveis. Dirão: mas há liberdade do juiz em decidir! Verdade. Mas o verbete de uma súmula somente será decisivo depois de muito debate — por isso foi sumulado. A liberdade judicial, apanágio do Estado Democrático, dirige-se a novas questões, a novas leis, a temas em aberto. Aí, sim, o juiz, com sua livre decisão, prestará notável serviço à Justiça. Quais os percalços da súmula? A súmula pode ser perigosa, se elaborada com defeito. A lei também, e há leis inconstitucionais e decretos ilegais. A súmula pode ser mal redigida? A lei também. O que é sumulado? Somente teses controvertidas, e não de textos legais eventuais (por exemplo, tributação anual). A súmula pode não adotar a melhor tese, mas oferece norte e segurança, ao contrário da vacilação de julgados, ora numa corrente, ora noutra direção. A súmula sofre o mesmo processo da legislação, isto é, alteração por nova interpretação e, principalmente, nova 2009 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45


legislação, alterando aquele enunciado. Hoje notamos essa influência com o novo Código Civil (de 2002), que altera várias súmulas do STF (Súmula 165: compra pelo mandante, alterada pelo art. 497; Súmula 494: venda do ascendente ao descendente, art. 496; Súmula 377: comunhão de aquestos, art. 1.672, todos do CC-2002). A importância da súmula está consagrada. A Lei nº 8.038/90 (art. 38) permitiu ao Relator negar seguimento a recurso contrário à súmula do respectivo tribunal (CPC, art. 557). No art. 475, § 3º, do CPC (redação de Lei 10.352, de 26.12.2001) não há sujeição ao duplo grau de jurisdição, nas sentenças de interesse da União, Estado, Município, se a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do STF ou em súmula do STF ou do tribunal superior competente. No art. 518, § 1º do CPC, o Juiz não receberá a apelação se a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal. No art. 544, § 3º do CPC, o Relator (STJ) poderá converter o agravo em recurso especial, e neste, provê-lo, se a decisão recorrida estiver em confronto com a súmula do STJ. Questão muito debatida, e extremada de opiniões, é a da súmula vinculante. O que significa? O processo de elaboração de uma súmula é exaustivo, depende da existência de pronunciamento único (mas expressivo) ou então da reiteração. O debate sempre foi longo, até a edição. Para a vinculação dessa súmula a julgados futuros há necessidade de processo especial, de maior debate, porque aquele verbete será aplicado automaticamente. Então, a chamada súmula vinculante não pode ser, e, acredito, não será, fruto de uma decisão aligeirada, rápida, e, muito menos, será a vinculação de qualquer decisão de um tribunal. Não basta o Supremo Tribunal reunir-se, decidir, que automatica­mente todas essas decisões serão vinculantes. Se as súmulas atuais decorrem de um lento e burocrático procedi­ mento, imagina-se mais ainda para a súmula vinculante. 46 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2009

Ao lado dessa expressão, outra aparece — a súmula impeditiva de recursos, isto é, a impossibilidade de interposição de recurso se a decisão recorrida estiver apoiada em súmula do Supremo Tribunal. Esta hipótese minora a recorribilidade contra orientação assentada do STF; no entanto, permite ao juiz discordar da súmula do STF. O juiz pode não aplicá-la, ao pretexto de não se adequar à hipótese, de ser outra a matéria; no entanto, parece total inversão hierárquica a não-vinculação. O efeito vinculante já foi consagrado na Emenda Constitu­ cional nº 3/1993, ao estabelecê-lo, quanto às decisões definitivas de mérito, nas ações declaratórias de constitucionalidade (nova redação do art. 102 da CF, acrescentando o § 2º). Destaque-se ainda o disposto na Emenda Constitucional nº 45/04, no § 2º do art. 102: “As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas estadual e municipal”. Vê-se, portanto, que o texto constitucional foi além da súmula ao prever a súmula vinculante. Ela era meramente persuasiva, e não vinculativa. Era mera orientação de trabalho. O tema já estava no controle de constitucionalidade no entendimento da eficácia contra todos (erga omnes) e efeito vinculante em relação a todos os magistrados, tribunais e administração pública. A súmula vinculante tem efeitos além desses, e sim, lato sensu, a todos. Na verdade, os fundamentos do texto são os vinculantes não somente o enunciado. A súmula vinculante torna mais ágil a justiça sobre o mesmo tema, com impedimento da multiplicação de demandas, ou encerramento das múltiplas demandas, no percurso dos vários graus de justiça. Não é possível a desigualdade no tratamento de casos


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iguais, que devem ter soluções idênticas. A proliferação leva a situações díspares. Um defere, outro indefere. Uma câmara concede, a outra não, sobre o mesmo fundo de direito, partes em idênticas condições. A certeza do direito leva ao pleito de solução certa, com segurança jurídica. Hoje prega-se muito sobre a demora das soluções judiciais. Portanto, há um direito constitucional à razoável duração do processo. Se há solução única e uniforme, a tendência é a pronta solução. Há respeitáveis críticas contrárias à adoção da súmula vinculante. Invoca-se o princípio da separação dos Poderes com a possível invasão da função legislativa pelo Judiciário. A súmula busca no sistema jurídico e legal seu assento. Não nasce do nada. Portanto, a edição da súmula prestigia o legislador. A independência do julgador não é afetada porque pode não aplicar a súmula, se o texto for inaplicável à espécie. O juiz está adstrito à lei, e sua liberdade tem esses parâmetros. A jurisprudência não sofrerá com a súmula, porque sua evolução ocorrerá com os cancelamentos, alterações, e até adequação de entendimento (Súmula 346 – nulidades dos atos administrativos, entendida pela Súmula 473). Não impedimento do direito de ação, porque já há uma orientação. Qualquer autor será temerário na propositura de uma ação se a jurisprudência estiver consolidada contra sua tese. A Lei nº 11.417, de 19.12.2006, estabelece regras sobre a edição da súmula vinculante. O Supremo Tribunal Federal, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, pode editar enunciado de súmula, que terá efeito vinculante. A súmula vinculante sozinha não resolverá comple­­ ta­mente a demora dos processos. Entretanto, é grande auxiliar na busca desse desejo, de juízes, advogados e jurisdicionados.

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Av. Paulista, 1765 -13° andar TEL: +55 (11) 3266-6611 - São Paulo Rio de Janeiro - Brasília - Campinas Belo Horizonte 2009 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47 www.santossalles.com.br


Da esquerda: Ministro Luiz Fux, do STJ; Fabrício Fernandes de Castro, presidente da AJUFERJES; Leonardo Espíndola, presidente da APERJ; Prof. Sergio Bermudes; Rodrigo Mascarenhas, procurador do Estado; e Desembargador José Muiños Piñeiro Filho

SEMINÁRIO Processo Judicial Tributário Da Redação

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o dia 17 de abril de 2009 foi realizado, no Rio de Janeiro, o Seminário Processo Judicial Tributário que contou com a participação de dois ícones da Magistratura e da Advocacia nacional, o Ministro do STJ, Luiz Fux, e o advogado Sergio Bermudes. O evento foi promovido pela APERJ – Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, em parceria com a recém-criada AJUFERJES – Associação dos Juízes Federais do Estado do Rio de Janeiro e Espírito Santo. Na abertura do Seminário, feita em conjunto pelos presidentes das Associações, Leonardo Espíndola e Fabrício de Castro, da APERJ e AJUFERJES respectivamente, foi destacado que o evento marca a primeira parceria entre as duas entidades, que já se demonstra muito profícua no enriquecimento da cultura jurídica fluminense e capixaba. 48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2009

“o evento marca a primeira parceria entre as duas entidades, que JÁ se demonstra muito profícua no enriquecimento da cultura jurídica fluminense e capixaba.”


Da esquerda: Leonardo Espíndola, presidente da APERJ; Ministro Luiz Fux, do STJ; Prof. Sergio Bermudes; e Dr. Fabrício de Castro, presidente da AJUFERJES

Da esquerda: Ministro Luiz Fux, do STJ; Fabrício Fernandes de Castro, presidente da AJUFERJES; Leonardo Espíndola, presidente da APERJ; Prof. Sergio Bermudes; Rodrigo Mascarenhas, procurador do Estado; Desembargador José Muiños Piñeiro Filho; e o jurista Helio Saboya 2009 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 49


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