Manual de Bioquímica com Correlações Clínicas

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CAPÍTULO 21 METABOLISMO DO HEME E DO FERRO

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CORRELAÇÃO CLÍNICA 21.11

Porfiria Intermitente Aguda Uma mulher de 40 anos de idade procurou o pronto-socorro em um estado agitado, chorando e reclamando de intensa dor abdominal. Estava constipada há vários dias e notou marcada fraqueza nos braços e nas pernas e que “as coisas não parecem estar completamente corretas”. Exame físico revelou uma velocidade de batimento cardíaco ligeiramente acelerada (100/min) e hipertensão moderada (pressão sangüínea de 160/110 mmHg). Episódios anteriores de dor abdominal severa já haviam ocorrido; operações realizadas em duas ocasiões não revelaram nenhuma anormalidade. Os testes laboratoriais comuns são normais. As queixas neurológicas não são localizadas num foco anatômico. Decide-se que os sintomas presentes são amplamente de origem psiquiátrica e têm uma base funcional, e não orgânica. A paciente é sedada com 60 mg de fenobarbital; um psiquiatra consultado concorda, por telefone, em ver a paciente em aproximadamente 4 h. O corpo clínico percebe uma piora notável; fraqueza generalizada surge rapidamente, progredindo para um comprometimento da função respiratória. Esta evolução ruim leva à incorporação imediata de um regime de ventilação assistida, com transferência para unidade de terapia intensiva para monitoração fisiológica. Sua condição piora e ela morre 48 h depois. Uma amostra de urina da paciente é relatada mais tarde como apresentando um nível muito elevado de porfobilinogênio. Esta paciente tinha porfiria intermitente aguda, uma doença pouco entendida da biossíntese de heme. Há um padrão de herança dominante associado a uma superprodução de ALA e porfobilinogênio, os precursores de porfirina. Três anomalias enzimáticas foram observadas em casos que foram estudados cuidadosamente. Estas incluem: (1) um grande aumento de ALA sintase, (2) uma redução à metade da atividade de porfobilinogênio deaminase, e (3) uma redução à metade da atividade da esteróide 5α-redutase. A mudança no conteúdo da segunda enzima é consoante com uma expressão dominante. A mudança no conteúdo da terceira enzima é adqui-

rida, e aparentemente não existe expressão hereditária da doença. Acredita-se que uma diminuição na porfobilinogênio deaminase leve a uma pequena diminuição no conteúdo de heme do fígado. A concentração menor de heme leva a uma insuficiência na repressão da síntese e na inibição da atividade da ALA sintase. Quase nunca manifestada antes da puberdade, acredita-se que a doença apareça apenas com a indução da 5β-redutase, na adolescência. Sem uma quantidade suficiente de 5α-redutase, o aumento observado nos 5β-esteróides é devido a um desvio de esteróides para a via da 5β-redutase. A importância de anomalias nesta última via metabólica na patogênese da porfiria é controversa. A doença é um grande enigma: o desarranjo do metabolismo da porfirina é confinado ao fígado, que anatomicamente parece normal, enquanto achados patológicos estão restritos ao sistema nervoso. No presente caso, envolvimento de (1) cérebro leva ao estado agitado e confuso e ao colapso respiratório, (2) sistema autônomo leva à hipertensão, aumento na velocidade de batimentos cardíacos, constipação e dor abdominal, e (3) sistema nervoso periférico e medula espinhal levam à fraqueza e distúrbios sensoriais. Experimentalmente, nenhum intermediário metabólico conhecido da biossíntese do heme pode causar a patologia observada na porfiria intermitente aguda. Deveria ter havido uma suspeita maior da possibilidade de porfiria, logo após a chegada da paciente. O tratamento incluiria infusão de glicose, exclusão de qualquer droga que pudesse causar aumento de ALA sintase (p.ex., barbituratos) e, se a doença não respondesse satisfatoriamente apesar destas medidas, administração de hematina intravenosa para inibir a síntese e a atividade de ALA sintase. Porfiria hepática aguda é de interesse político histórico. A doença foi diagnosticada em dois descendentes do rei George III, sugerindo que o último tinha uma personalidade alterada antes e durante a Revolução Americana, que poderia talvez ser atribuída à porfiria.

Fonte: Meyer, U.A., Strand, L.J., Doss, M., et al. Intermittent acute porphyria: demonstration of a genetic defect in porphobilinogen metabolism. N. Engl. J. Med. 286: 1277, 1972. Stein, J.A. e Tscudy, D.D. Acute intermittent porphyria: a clinical and biochemical study of 46 patients. Medicine (Baltimore) 49: 1, 1970.

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