Malcolm

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MALCOLM

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O arteiro britânico chegou rápido, chegando mesmo, buscando seu lugar no cenário (simples e charmoso, fruto da eficiência tradicional das equipes de estúdio), e pronto para falar! Nada tão problemático, no sentido de que até houve um tempinho para preparar uma, digamos, semipauta, pequena estrutura mesmo - o assunto “punk britânico” e arredores variados sempre fizeram parte das minhas pesquisas. Mas, pela complexidade do personagem, tinha uma certa preocupação em acertar o tom, não queria vacilar, perder ganchos ou, o pior nessas situações, aborrecer o elemento.

oisas estranhas aconteciam naqueles primeiros anos de MTV Brasil. Falo especificamente de entrevistas e de como, em algumas situações, a costumeira organização corporativa se rendia ao acaso. Diferentemente do rádio, em que é mais frequente a presença do elemento surpresa, no caso da televisão - ou daquela específica - a regra era a da boa organização prévia, agenda azeitada, estúdio armado, tudo nos conformes para o bom funcionamento do processo. Muitas exceções, claro.

Foi numa dessas que me vi, repentinamente (numa tarde qualquer de dia de trabalho), a trocar ideias com o grande e muito saudoso Robert Palmer - eu encostado na parede ao lado da entrada do estúdio, ele ao meu lado sentado todo cool com seu paletó verde-azeitona, tranquilão numa daquelas cadeiras de diretor de cinema a saborear um uisquinho trazido diretamente do nono andar, Gastão Moreira à nossa frente na posição de entrevistador daquela ocasião. Diz aí Doctor, gimme the news.

Não sabia ainda, mas havia pouco com que me preocupar. Até tive a chance, imagino, de demonstrar que conhecia algo a seu respeito; lancei mão, aqui e ali, de referências mais ou menos espertas e, em alguns momentos, acho que tive êxito em estabelecer um ritmo de entrevista que se aproximou bastante de uma conversa. Mas, como disse, nada que fizesse tanta diferença assim. O eterno empresário dos Sex Pistols (das lojas Let It Rock e SEX; dos Adam & The Ants e do Bow Wow Wow; dos discos autorais, consideravelmente visionários, repletos de convidados ilustres; dos imbróglios corporativos e paramidiáticos retumbantes), anti-herói modelar da cultura britânica dos últimos 50 anos, falou como numa conferência. Autoconferência. Não estamos falando de um monólogo, claro, pois sua gentileza me concedeu a possibilidade de entrar no ritmo do bate-papo. Ou experimentar essa sensação. Mas ficou evidente, desde o começo e de modo absolutamente natural, que esse era o seu jogo, seu espaço, e que quem mandava ali era ele. Afinal, essa era uma das formas mais legítimas que ele parecia encontrar para alimentar sua própria história, contribuir para incrementar mais, e sempre que possível, sua própria lenda pessoal. E como

Aconteceram situações parecidas com o José Julio do Espirito Santo, também parceiro daqueles primeiros anos de MTV - destaque para a visita relâmpago do senhor Al Di Meola e um convidado que aparentemente foi a pessoa mais educada que ele entrevistou. [Passei por algumas dessas. “Prepare-se porque daqui a pouco vem aí”- o fantástico Buddy Guy, gentileza suprema, olhar penetrante e sincero, carisma e humildade transbordantes e contagiantes, uma bênção para qualquer jovem apresentador.] E, concordando transversalmente com o Julio, um dos mais curiosos, interessantes e, sim, talvez um dos meus mais corteses entrevistados dentre muitos, o inigualável, o verdadeiramente único Malcolm McLaren. IX


entrevista ao formato HQ, o plano já vinha sendo desenvolvido há uns bons 10 anos.

estamos falando do cara que basicamente inventou alguns desses mecanismos de autopropaganda (ainda que tenha sido um exímio sabotador de si mesmo), o que fazer? Para a nossa sorte, deixar o homem falar!

Além de Malcolm McLaren, outros dois ou três artistas integraram os rabiscos da adaptação - figuras ilustres em conversas longas repletas de histórias legais. Mas o neto da Sra. Rose Corre Isaacs (que o criou e a quem se atribui certa responsabilidade pelo espírito combativo e sagaz do autor de “Buffalo Gals”) continuamente corria por fora, e de algum jeito eu sempre acabava voltando a essa entrevista; a releitura do texto após sua morte em 2010 foi algo determinante no processo.

Se houve um mérito, acho que foi o de ter sido capaz de deixar um entrevistado potencialmente difícil à vontade para falar pelos cotovelos - a ponto de ultrapassarmos consideravelmente os até decentes 15 minutos combinados. Quase 50 minutos de conversa, ninguém esperava. Por questões editoriais, pouca coisa acabou sendo utilizada desse material. Um par de matérias essencialmente da pauta, com o disco Paris e Catherine Deneuve. Algo mais genérico a respeito dos Pistols. E só. Daí para o depósito, direto para as quebradas então mais selvagens - da Fitoteca.

Uma galáxia de figuras curiosas. Episódios malucos. Sacadas espertas. Vinhetas mordazes. Salve conteúdo! É possível que um trabalhão televisivo desse conta do recado e produzisse bons resultados. Dificilmente faria frente ao poder da leitura desse universo doidão - ¬ e extremamente rico do ponto de vista cultural ¬- através das lentes psicodélicas de uma História em Quadrinhos.

Sempre tive minha cópia do encontro, em VHS - peça importante dos meus arquivos pessoais por motivos evidentes. E sempre julguei que o material bruto “oficial” teria tido o mesmo destino de muitos pares magnéticos: o desaparecimento completo. Para minha grata surpresa descobri, nos momentos finais da MTV Brasil, que o material foi preservado e faz parte do acervo do canal (pertence à editora Abril).

Por indicação amiga cheguei ao Luciano Thomé. Algumas ilustrações meio crumbianas e um par de textos (de mesma importância nesse contato inicial com seu trabalho) foram suficientes para que marcássemos nosso primeiro encontro. Final de 2012. A partir dessa primeira conversa, já estávamos trabalhando no projeto. Sintonia-Malcolm afinada e refinada a cada etapa. Pesquisa e mais pesquisa, reuniões eficientes do tipo no bullshit e imersão total no universo de referências bio/bibliográficas. É o Luciano quem crava o carimbo no seu passaporte para esta viagem. Não sei se você, caro leitor, quer ser o Malcolm McLaren. Mas posso garantir que vale a pena dar uma olhada dentro da cabeça dele! Abrimos uma passagem através da cabeleira vermelha. Vamos.

Mais surpreendente ainda é o fato de que, excepcionalmente, além da minha cópia em VHS também tenho, desde muito tempo, uma versão completa do “texto” da entrevista - transcrição roots da conversa tirada na íntegra num delírio de missão arquivística quase improvável dadas as dimensões do registro. Sempre soube que tinha que fazer algo com esse McLaren. No livro de projetos, dá para considerar que o capítulo dos quadrinhos é até consistente. Diria que, no geral, serve mais ao exercício, ao prazer de divagar, vislumbrar possibilidades formais, desenvolver algumas ideias. Mas no caso da adaptação de uma

Fabio Massari

Vesúvio, SP Abril de 2014

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Malcomics

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ornalismo musical em quadrinhos? Tanto faz o rótulo: é quadrinhos, é história, é rock'n'roll... so, let's rock!!! Não precisamos inventar muita coisa. Entrevista em quadrinhos? Crumb já fez. Jornalismo em quadrinhos? Sacco já fez. Claro, também não era mais do mesmo. Tinha um desafio diferente nessa empreitada: o fantasma da “quadrinização”, o tão famigerado “adaptado para os quadrinhos” etc. Quando o Massari me passou o texto para eu ler pela primeira vez, aquela pequena dose de desconfiança se dissipou de cara. Tinha toda razão o Reverendo, em sua sábia visão: era um trabalho para as histórias em quadrinhos!

assiduamente foram as de música (depois dos gibis, é verdade). Nesses objetos de papel recheados de imagens bacanas, aprendia os nomes dos grandes heróis, revolucionários e mártires da contracultura. Eu os admirava e queria conhecer e entender cada vez mais e mais os seus feitos: as grandes invenções musicais; as performances rituais aniquiladoras de tabus; as grandes guerras travadas contra a caretice autoritária... Ou seja, a música era muito mais que apenas música. A história do rock (e antes dele do blues, do jazz, em suma, da música popular e rebelde) é uma história recente de primeira importância: é a história de como um punhado de gênios e loucos fizeram este mundo em que vivemos mais libertário e interessante.

Já tinha uma boa ideia do que eu devia fazer. A grande sacada dos quadrinhos aqui é seu poder de imaginar de forma extremamente fluida toda essa história contada por Mr. Malcolm McLaren. E como é uma história real (talvez apenas em grande parte, vai saber...) era preciso representar suas cenas com um certo realismo. A careta de Johnny, o penteado de Sid, a maquiagem do Boy George, a pose de Annabella, o trejeito no lábio superior do Michael (o Jagger)... tudo isso faz diferença nessa antropologia visual. Um pouco de caricatura e gozação também é importante, já que - como é sabido - a história tem suas ironias. Acima de tudo, o dever de evocar os registros históricos, a necessidade de levantar o máximo de documentos a respeito e a deixa de informar sobre o tema. Malcolm também é, nesse sentido, um quadrinho de pesquisa, um quadrinho histórico.

Ok... O outro lado da moeda! Há também muita enganação no meio disso tudo. Ideias aparentemente revolucionárias são mercadoria barata. Costumes desviantes são a última moda. Contestações são facilmente cooptadas pelo status quo e transformadas em lucro. Enfim, é a soap opera resumida no conceito de Indústria Cultural por dois importantes filósofos ranzinzas. E, vejam só, poucas figuras na história da música personificam tão bem essa contradição quanto Malcolm. Talvez seja ele o grande responsável por reviver e ampliar no movimento punk do final dos setenta uma certa experiência de 1968, da radicalidade do situacionismo e da irreverência da contracultura. Talvez seja ele o grande pilantra do rock em todo seu cinismo de biznessman. Talvez ele seja mesmo um gênio...

Pensando bem - e pensando retrospectivamente, como historiador que sou de vez em quando - é bem provável que se deva ao rock o meu interesse pela história. As primeiras revistas que comecei a ler

Luciano Thomé

Wisard Cirley, SP Abril de 2014

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Copyright [do projeto] © 2014, Fabio Massari Copyright [das ilustrações] © 2014, Luciano Thomé Copyright desta edição © 2014, Edições Ideal - Coleção Mondo Massari [A entrevista que Malcolm McLaren concedeu a Fabio Massari é uma propriedade da Abril Radiodifusão S.A., que gentilmente cedeu o material para este projeto. Muito obrigado!]

Editor: Marcelo Viegas Diagramação: Guilherme Theodoro capa: luciano thomé e victor ghiraldini letreiramento: luciano thomé Revisão: Mário Gonçalino Tratamento de imagens: Victor Ghiraldini Finalização gráfica: Miolo Diretor de Marketing: Felipe Gasnier Agradecimentos: Zico Goes e Luana Fontana CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO Bibliotecária: Fernanda Pinheiro de S. Landin CRB-7: 6304 M414m

Massari, Fabio, 1964Malcolm / Fabio Massari ; ilustração de Luciano Thomé. - São Paulo: Edições Ideal, 2014. 64 p. : principalmente il. ; 26 cm. Texto em quadrinhos ISBN 978-85-62885-25-9 1. McLaren, Malcolm, 1946-2010. - Entrevistas. 2. Músicos de rock. 3. Rock. 4. Histórias em quadrinhos. I. Thomé, Luciano. II. McLaren, Malcolm, 1946-2010. III. Título. CDD: 741.5 07.04.2014

EDIÇÕES IDEAL

Rua João Pessoa, 327 São Bernardo do Campo/SP CEP: 09715-000 Tel: 11 4941-6669 Site: www.edicoesideal.com


Tipografado em Komiks Grotesk © Thomé 2013. Impresso pela gráfica R.R. Donnelley, em papel Offset 150g/m2. São Paulo, Brasil, 2014.






Malcolm McLaren. Ninguém tem uma opinião fria sobre o homem: ou ele era o ser mais abjeto que já pisou na Terra, um oportunista que descartava seus artistas assim que eles não mais lhe serviam, ou era um gênio absoluto, capaz de usar a mídia a seu favor de uma maneira que ninguém, até hoje, aperfeiçoou. Talvez ele fosse as duas coisas ao mesmo tempo. [ André Barcinski ]

O eterno empresário dos Sex Pistols, anti-herói modelar da cultura britânica dos últimos 50 anos, falou como numa conferência. Autoconferência. Não estamos falando de um monólogo, claro, pois sua gentileza me concedeu a possibilidade de entrar no ritmo do bate-papo. Ou experimentar essa sensação. Mas ficou evidente, desde o começo e de modo absolutamente natural, que esse era o seu jogo, seu espaço, e que quem mandava ali era ele. [ Fabio Massari ]

Tinha um desafio diferente nessa empreitada: o fantasma da “quadrinização”, o tão famigerado “adaptado para os quadrinhos”. Quando o Massari me passou o texto pela primeira vez, aquela pequena dose de desconfiança se dissipou de cara. Tinha toda razão o Reverendo: era um trabalho para as histórias em quadrinhos! [ Luciano Thomé ]

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